Pessoa Fernão Ramos o Que Documentario

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O que Documentrio?

Ferno Pessoa Ramos UNICAMP

A questo com a qual iniciamos, de modo um pouco provocativo, nosso artigo, constitui-se da seguinte forma: existe a especicidade do campo no-ccional, seja na tradio documentria que remonta aos anos 30, seja no contato da imagem no ccional com o cinema de vanguarda construtivista, seja nas inovaes formais trazidas pelo cinema direto/verdade, seja, ainda, nas experincias de narrativa em primeira pessoa do nal do sculo XX? Existe algo estruturalmente comum ao campo noccional, abrangendo tambm o espao que hoje cobre as novas mdias e suportes digitais? A questo est em se podemos armar a existncia de um campo heterogneo, trabalhado em sua substncia imagtico-sonora comum, dentro de um leque amplo que vai das experincias com "web cmeras"em sites da Internet, passa por narrativas seriais do tipo "Reality TV"("No Limite", "Survivors", "Big Brother"), servindo tambm para as diversas composies de estilo documentrio mais clssico, veiculadas por tvs a cabo, alternando formas como depoimentos/entrevistas e voz over explicativa. Um mesmo campo que tambm teria, em suas fronteiras, propostas no estilo "docudrama",
in Ramos, Ferno Pessoa e Catani, Afrnio (orgs.), Estudos de Cinema SOCINE 2000, Porto Alegre, Editora Sulina, 2001, pp. 192/207

dramatizando/reconstituindo eventos extraordinrios (crimes, acidentes, etc) ou fatos histricos realmente ocorrridos, no eixo de programas do tipo "Linha Direta"(que traz o documentrio "The Thin Blue Line", de Errol Morris, como sua principal fonte inspiradora). Ser que podemos caracterizar o documentrio, dentro de uma equivalncia enquanto gnero, a partir de outras tradies narrativas do cinema, como o western, o musical, o lme noir? Seria o documentrio um gnero como outros, ou teria o documentrio caractersticas imagticas (e sonoras) estruturais que o singularizariam deste outro vasto continente da representao com imagens-cmera que a co narrativa (em seus formatos diversos de lme -longa ou curta-, mini-srie, novela)? Nestes ltimos anos, o campo bibliogrco sobre cinema no ccional tem sido percorrido por alguns ttulos1 , que buscam denir parmetros para se pensar esta produo. So textos que inserem-se em um recorte que chamamos de "cognitivista- Ponech, Trevor. "What Is Non-Fiction Cinema?". Westview Press, 1999. - Plantinga, Carl. "What is a Nonction Film", primeiro captulo de "Rethoric and Representation in Nonction Film", Cambridge University Press; 1997. - Carroll, Nol. "From Real to Reel: Entangled in Nonction Film"in "Theorizing the Moving Image". Cambridge University Press, 1996.
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Ferno Pessoa Ramos sibilidade de uma distino analtica clara2 . Discutir fronteiras e denies surge como algo ultrapassado, pois rearma a possibilidade de um saber que desloca, do centro da arena, o recorte analtico que gira em torno de variaes sobre a fragmentao subjetiva (seja na anlise, seja no discurso flmico propriamente). Uma pesquisa mais detalhada neste setor, deve contrapor a denio do campo documentrio dentro do recorte analtico-cognitivista (Carroll, Plantinga, Ponech) com a bibliograa que trabalha a no co dentro do horizonte psestrutural (Renov, Nichols, Odin). O ponto de vista contrrio possibilidade de denio do campo documentrio, costuma trazer em seu mago um outro argumento caro ao pensamento contemporneo: a questo da reexividade do discurso cinematogrco. Em geral, o discurso que tem na reexividade seu ponto de fuga tico, sustentado pela negao da possibilidade de uma representao objetiva do real. Encontramos, no horizonte, novamente a preocupao do pensamento contemporneo em frisar a fragmentao da subjetividade que sustenta a representao. A reexividade, na realidade, a sada, no vetor tico, do discurso que gira em volta do posicionamento subjetivo estilhaado. Podemos detalhar esta idia.
O Sanduche (2000) curta (14 min.) de Jorge Furtado, revela bem a atrao que exerce sobre a sensibilidade contempornea as narrativas em abismo, nas quais os campos ccionais e documentrio sobrepe-se sem denio clara. Tambm em debates e palestras, documentaristas contemporneos (Furtado, Salles, Coutinho, entre outros) revelam nitidamente a valorao positiva implcita na indenio de fronteiras.
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analtico". ntido em sua formulaes uma postura de contra-reao. Seu objeto a ideologia, ainda dominante em nossa poca, que tem um certo orgulho em mostrar fronteiras tnues entre os campos da co e da no-co, embaralhando denies. O embate, por assim dizer, que traz a marca de discusses conceituais mais amplas, envolve distintas concepes da narrativa com imagens em movimento. Esta contraposio entre diferentes abordagens, s vezes fornece a impresso de um dilogo de surdos. Ambas esto corretas dentro dos pressupostos nos quais denem o campo da argumentao, mas so pouco convicentes ao olharem a seara alheia, a partir do prprio entorno conceitual. No Brasil, reina de um modo difuso, mas uniforme, o discurso que reivindica a no especicidade do campo no ccional. Nele podemos encontrar embutidos alguns pilares do pensamento contemporneo de origem ps-estruralista. A linha mais corriqueira deste raciocnio, desenvolve-se dentro de uma postura que valoriza o desao a normas estabelecidas. Negar o campo documentrio, equivale aqui a estabeler uma ruptura. O documentrio visto como um campo tradicional, com regras a serem seguidas. Extrapolar estas fronteiras um atestado de inventividade e criatividade. O logro que uma narrativa ambgua, eventualmente, pode pregar no espectador, serve como modelo. interessante notar como este tipo de narrativa encontra-se no mago da sensibilidade esttica de nossa poca, provocando uma espcie de atrao irrefrevel sobre o movimento de anlise. Uma narrativa aparentemente documentria, que termina como co, seria a prova da impos-

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Existe uma conuncia entre esta viso de uma necessria opacidade no movimento da representao e o eixo tico atravs do qual o documentrio consegue ser pensado hoje. Assumir um campo especco ao documentrio, seria assumir a possibilidade de uma representao objetiva, transparente. O raciocnio desenvolve-se, mais ou menos, na seguinte linha: 1. parte-se do postulado de que, para alguns, o documentrio busca, ou tem como objetivo, estabelecer uma representao do mundo; 2. na medida em que o postulado est estabelecido ("eu posso representar o mundo", diria necessariamente o documentarista), a ideologia dominante, hoje, sobrepe facilmente a esta possibilidade o seu carter especular e falsamente totalizante; 3. a isto segue-se o discurso sobre a necessria fragmentao do saber e da subjetividade que sustenta a representao; 4. e, necessariamente atrelado, surge a sada tica dominante da ideologia contempornea: a reexividade como postura correlata ao indispensvel recuo do sujeito (pois necessariamente fragmentado, seno imediatamente ideolgico) na articulao da representao. Poderamos dizer: o recuo reexivo o ponto cego ideolgico da ideologia contempornea. o ponto cego onde a ideologia da tica contempornea no consegue ver-se enquanto tal. Em outras palavras: tico mostrar o processo de representao; no tico construir
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a representao para sustentar a opinio correta (como defendiam Grierson, ou Eisenstein, em um outro parmetro). Podemos perceber que, neste discurso, surgem embaralhados dois campos: o da impossibilidade de axarmos um saber, ou uma representao; e a pr-concepo de que o documentrio, necessariamente, traz a presuposio de uma representao totalizante que axe este saber. Ao apontarmos para o carter ideolgico (para seu carter de discurso, de representao) das formulaes em torno da fragmentao do sujeito que sustenta a representao (geralmente acompanhadas da tica da reexividade), tambm armamos que o questionamento dominante hoje do campo documentrio, constitui-se a partir de uma viso de mundo que no traz em si, automaticamente, a universalidade de seus pressupostos. Ou seja, existe uma pobreza analtica em ter-se este eixo, repetidamente, como eixo universal para anlise. Debita-se ao documentrio uma certa inocncia epistemolgica, cometendo-se um duplo erro: 1) analisar o documentrio a partir de um discurso inocentemente totalizador e transparente (o que no corresponde realidade, em funo da diversidade estilstica que vimos tentando armar para o campo); 2) e, mesmo se assim o fosse, ter um parmetro relativamente pobre para julg-lo: o parmetro que gira exclusivamente em torno da nfase na fragmentao subjetiva como sada tica. O discurso contemporneo sobre a sobreposio do campo ccional e do campo documental, na realidade, responde a demandas posicionadas a partir deste "duplo errro". Como oposio representao totalizante e necessariamente transparente que o

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conceito de documentrio implicaria, retirase uma evidncia, atestando a presena da dimenso discursiva. A partir desta constatao, transfere-se para a presena da dimenso discursiva, a evidncia da dimenso ccional do documentrio. Como se espessura de procedimentos discursivos e co fossem sinnimos, ou ainda, como se o nico dispositivo discursivo vlido para o documentrio fosse apontar em direo s suas prprias condies de enunciao. Em desenvolvimentos mais elaborados, armado que todas narrativas com imagens possuem estatuto enunciativo, o que as tornaria similar, sejam ou no ccionais. A constatao da espessura da enunciao leva, neste caso, negao do documentrio como especicidade, pois, ao armar a especicidade, teramos que sustentar a existncia de uma representao transparente. O crculo ento fecha-se, o que feito s custas de um frgil raciocnio de partida. Ao localizar o documentrio no eixo de uma viso inocente da representao da realidade, carregada com o vis especular, transfere-se para fora deste campo, o universo da representao, que traz em si um posicionamento moderno, contemporneo, do sujeito em interao com o mundo que lhe exterior, constituindo e dando ensejo atividade de representao. Enquanto o documentrio identicado com uma posio inocente, que traz em si a representao especular do real, toda espessura da representao depositada no lado da co. Campos so diludos de qualquer especicidade e o grande sol da enunciao, das estruturas de linguagem envolvidas no movimento da representao, ocupa o horizonte indistinto da co e da no co.

Vejamos agora de que modo se congura, com relao a esta questo, o outro recorte analtico do campo documentrio, mencionado no incio deste artigo como cognitivista-analtico. Neste horizonte defendido de modo claro a possibilidade de uma denio bem mais rgida do documentrio e de suas fronteiras com a co. Sintomtico desta posio so os artigos, j citados em nota, que surgem, na segunda metade da dcada de 90, com ttulos propondo denies rgidas. Alguns ironicamente, outros mais a srio, buscam levar a empreitada adiante, dedicando-se misso de denir um campo fechado para a narrativa noccional, a partir de onde cariam ntidos os recortes. clara a inteno polmica destes textos, na prpria propositura de um campo especicamente denido como no sendo ccional. Conforme j mencionamos, uma das posturas mais fortes na ideologia dominante contempornea , exatamente, a nfase na sobreposio de fronteiras e a nfase na impossibilidade de estabelecer-se campos, conceitos e categorias denidas. A denio de alguns lugares comuns da ideologia dominante contempornea, como pertencendo a um campo comum, denominado de ps-estruturalista, j , em si, motivo para polmica. A abordagem do eixo analtico-cognitivista desloca-se da preocupao (central para o ps-estruturalismo) com o posicionamento subjetivo, em direo uma anlise da enunciao documentria dentro de parmetros conceituais prximos da lgica formal. Nol Carrol, em "Fiction, Non Fiction, and the Film of Presumptive Assertion: a conceptual analysis"3 , dedica-se
3 in Allen, Richard e Smith, Murray. "Film Theory and Philosophy". Oxford University Press, 1997.

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a recuperar o conceito de "verdade"na representao documentria, a partir de um trabalho da enunciao documentria pensada enquanto proposies lgicas. Evidentemente, recuperar a idia de que uma representao documentria possa ser "verdadeira"ou "falsa", deslocando o eixo tico centrado na reexividade, um desenvolvimento bastante polmico. Para a reexo lgico-analtica, dizer que o documentrio existe e pode ser localizado, signica, portanto, retirar o eixo da anlise da questo do posicionamento subjetivo, como horizonte exclusivo para se trabalhar a representao. Ou melhor, signica dizer que a representao possvel, sem que a necessria modstia do sujeito que a prope, deva ser o ncleo de sua tematizao. Por necessria modstia, entendemos o campo da reexividade do discurso e as tematizaes em torno da interferncia subjetiva na representao (e seu necessrio recuo) que ocupam o pensamento contemporneo. Deslocando-se o horizonte tico da modstia do sujeito face representao, abre-se o campo para uma carga analtica sistemtica mais desenvolta. Em outras palavras, poderemos tematizar aqui o signicado de uma posio analtica que no mais se centrar exclusivamente em uma posio tica, que gira em torno da constante reteno das ambies epistemolgicas do sujeito que sustenta a representao. Na realidade, a abordagem anlitica situase em um outro universo ideolgico, onde a preocupao maior est localizada no estabelecimento de um mapeamento lgicocognitivo do campo do discurso documentrio. Na prpria medida em que este mapeamento creditado como possvel, implicando necessariamente na armao de
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um saber, est condenada a posio desconada com as ambies subjetivas. O mapeamento lgico implica um saber, e este saber ir ser novamente armado na denio do campo documentrio. Denir o que documentrio, na realidade, faz parte de uma estratgia provocativa, de conquistar espao mexendo os cotovelos. O pensamento analtico que assume a possibilidade de uma denio do campo documentrio, trabalha basicamente como dois conceitos centrais: o de "proposio assertiva"e o de "indexao". O primeiro designa o campo documentrio como aquele onde discurso flmico carregado de enunciados que possuem a caracterstica de serem asseres, ou armaes, sobre a realidade. No documentrio realizaramos asseres sobre aspectos diversos do mundo que nos cerca. Uma assero um enunciado que traz um saber, na forma de uma armao, sobre o universo que designa. "Cabra Marcado Para Morrer", por exemplo, contm asseres, proposies na forma da armaes, (seja como entrevista/depoimento ou em voz over), sobre a vida de uma famlia que teve seu destino desviado pela instaurao do regime militar no Brasil. "Conterrneos Velhos de Guerra"contm asseres sobre a construo de Braslia e a vida dos operrios envolvidos nesta ao. "Drifters", de John Grierson, caracterizaria-se por constituir-se em discurso composto por enunciados assertivos sobre a pesca industrial na Inglaterra dos anos 30. O documentrio tomaria, ento, sua singularidade da co, ao possuir uma forma especca de representao, composta por enunciados sobre o mundo, caracterizados como asseres. Estas asseres, por sua vez, podem ser analisadas como propo-

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sies, a partir de procedimentos que possuem a estrutura da lgica formal, no horizonte. O estatuto discursivo do documentrio seria o mesmo, por exemplo, daquele que est contido na armao "o professor Pedro d aulas na Universidade Estadual de Campinas s quinta-feiras de manh". Este enunciado contm uma assero sobre o mundo a que pertence o professor Pedro e traz em si uma armao que possui, em um grau razovel de previsibilidade, uma assero que poder ser conrmada semanalmente. No est no horizonte desta assero o logro do destinatrio. O fato de o professor Pedro deixar de comparecer universidade em uma determinada quinta-feira, igualmente no a invalida. Ou seja, ao designar a realidade de que este professor comparece universidade s quintas, no est no horizonte do razovel supor que ele estar l sistematicamente aos domingos. O discurso documentrio seria uma narrativa com imagens, composta por asseres que mantm uma relao, similar a esta, com a realidade que designam. E neste sentido, que deve ser analisado em sua relao com o real que designa. O pensamento ps-estruturalista ao minar repetidamente a posio do sujeito enquanto sustentculo da representao tem, como defeito, para o recorte analtico, a fatalidade de trabalhar com excees. Evidentemente o logro possvel, mas concentrar-se, de modo desproporcional, em narrativas que demonstrem a necessria fragilidade da inteno do saber, levaria a anlise a enunciados falaciosos. A assero documentria deve, para a abordagem analtica, ser denida e trabalhada a partir de proposies lgicas, que fecham o campo para a denio de seu contedo de verdade.

O segundo conceito que mencionamos como fazendo parte da viso logico-analtica do documentrio pode ser denido como "indexao". importante no confundi-lo com "indicialidade", que designa uma potencialidade da imagem bastante distinta. Por indexao, entenda-se um conceito que aponta para a dimenso pragmtica, receptiva, do documentrio. A idia que, ao vermos um documentrio, em geral temos um saber social prvio, sobre se estamos expostos a uma narrativa documental ou ccional. Como espectadores, fruimos a narrativa em funo deste saber prvio. Novamento aqui, o logro do espectador possvel, mas est longe de se constituir regra. O fato da ambigidade do estatuto de uma narrativa cinematogrca poder facilmente ser construda (o ltimo grande exemplo, neste campo, talvez seja "A Bruxa de Blair"), no parece ser metodologicamente signicativo para esta abordagem. Na ampla maioria dos casos, efetivamente, sabemos o que signica uma narrativa documental, que tipo de imagens contm, e reagimos, enquanto espectadores, a este saber. Socialmente, uma srie de procedimentos nos informam o tipo de narrativa a que estamos tendo acesso. Tambm aqui, razovel armar que o estatuto de documentrio ou co, que a narrativa adquire socialmente, em geral coincide com os objetivos dos realizadores do lme. Embora exista toda uma reexo que debrua-se sobre as excees regra, nada impede que um pensamento sobre a regra propriamente (ou seja a coincidncia entre a indexao, os objetivos dos realizadores e a postura espectatorial) tambm seja considerada relevante. O importante destacar que, para alm de sua acoplagem ao conceito de proposio assertiva (de onde podemos distinguir sua concepo
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originria), a evidncia da indexao introduz uma dimenso propriamente pragmtica, que designa uma relao de duas vias com o destinatrio do discurso, dentro do contexto social no qual a narrativa concretamente se insere. Para tematizarmos do lado de fora as propostas da abordagem cognitivista-analtica, tentaremos desenvolver uma abordagem que trabalhe com a especicidade da imagem documentria, mas situando-a em um campo no estritamente lgico-formal. Ou seja, nos interessa da crtica analtico-formal a abordagem que desloca a fragmentao subjetiva do centro da anlise, mas sentimos os limites das discusses que reduzem o campo documentrio a enunciados lgicos. Entre uma proposio e uma imagem vai uma diferena grande, mesmo se, metodologicamente, procedimentos advindos da losoa da linguagem possam ser teis para ampliar o campo temtico em torno do qual giram as anlises do documentrio. Neste sentido, sentimos diculdades em acompanhar Carroll4 em sua negao da singularidade epistemolgica da imagem cmera, ou, em seus termos, da "mdia"envolvida na tomada e exibio desta imagem (o que critica como "medium-essentialism"). A imagem documentria pode ser pensada a partir de estruturas recorrentes da composio imagtica, em niveis distintos envolvendo: a) a produo desta imagem atravs do que chamamos "tomada", constituda a partir da presena de um "sujeito"no mundo sustentando a cmera (o sujeito da cmera);
Particularmente em From Real to Reel: Entangled in Nonction Film e em Dening the Moving Image in Carroll, Nol. Theorizing the Moving Image. Cambridge University Press, 1996.
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b) a composio desta imagem como imagem maqunica, mediada pela mquina cmera, implicando na dimenso indicial desta imagem a partir do trao do transcorrer do mundo no suporte (seja este suporte digital, videogrco ou pelcula); c) a dimenso pragmtica desta imagem, ao fundar a relao espectadorial, no modo que tem o espectador de poder "lanar-se" circunstncia da "tomada"fundada pelo sujeito da cmera. Pensemos em um caso extremo, para melhor mapear a especicidade do campo da imagem documentria, conforme a entendemos: a imagem da morte. A imagemcmera da morte real possui uma forte intensidade que nos absorve por completo e nos coloca em posio desconfortvel com relao ao que est sendo exibido. Uma imagem de morte real constitui-se em uma espcie de fronteira, onde a posio espectadorial possvel. Uma fronteira tica, inclusive, onde a fruio do horror traz em si uma poro inevitvel de m-conscincia pelo desbalano entre a desgraa representada e o prazer obtido com a representao. A este desnvel chamamos sadismo, e sua fruio traz uma postura que no aceita socialmente em nossa sociedade. Os romanos tiravam prazer em ver seres humanos devorados ou mortos na arena. Na sociedade contempornea ocidental, este prazer condenado. No entanto, ainda podemos ter uma parcela deste prazer da arena com uma imagem de morte real, se tal fruio da representao da morte nos atrai. Mas tambm este posicionamento suscetvel de crtica. Uma imagem-cmera de morte real no algo para o qual olhamos de modo indiferente.

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A posio espectadorial que acabo de delinear acima refere-se, evidentemente, uma imagem de morte que seja indexada como no ccional, uma imagem de morte real. Que reao provocaria no mesmo espectador uma imagem de morte da qual fosse informado tratar-se de encenao e que correspondesse, dentro do horizonte de indexao no qual nos locomovemos, uma imagem ccional, encenada de acordo com os procedimentos corriqueiros que cercam nossa noo do que co? Aparentemente nenhuma das emoes acima descritas acompanharia a fruio de uma morte representada ccionalmente. Os lmes de co esto carregados de imagens de morte que nos provocam um tipo de emoo evidentemente distinta. Morte ou beijo, morte ou despedida, morte ou batida de carro, a emoo no espectador provocada por estes eventos parece poder ser equalizada. A imagem no ccional, disposta ou no em narrativa documentria, tem como paradigma esta intensidade prpria imagem da morte, e nisto singulariza-se. A mesma intensidade que apontamos atrs em uma imagem de morte real podemos localizar, em diferente grau, nas tomadas que conguraram, na dcada passada, momentos paradigmticos da histria do sculo: o espancamento de Rodley King pela polcia de Los Angeles, o massacre dos sem-terra no Par, o assassinato cometido pela polcia paulista na Favela Naval. Outras imagens paradigmticas podem ser citadas nesta mesma linha, buscando exponenciar a questo da intensidade da imagem-cmera: o estudante chins desaando uma coluna de tanques na Praa da Paz Celestial; a exploso da nave Discovery; a morte de Airton Senna; o assassinato de John Kennedy; os astronautas americanos

dando os primeiros passos na Lua. Exemplos podem ser multiplicados ao innito. Este tipo de imagem possui um estatuto particular em nossa sociedade. As comoes sociais que sua exibio provoca, so prova da intensidade exponencial que estas imagens possuem. Imagens pictrias ou descries orais/escritas de testemunhas oculares, a partir dos mesmos fatos, obtm reaes qualitativamente diversas. Em nosso ponto de vista, este tipo de intensidade deve colocarse no cerne de qualquer trabalho analtico mais amplo que debruce-se sobre as imagens no ccionais. De onde advm a surpreendente intensidade que a imagem no ccional pode adquirir e como podemos den-la de modo mais preciso? Devemos, para tal, atentar em direo s particularidades de sua conformao, principalmente atravs de suas caractersticas como imagem e som: maqunicos e necessariamente advindos da mediao pela cmera. De modo mais preciso, podemos destacar uma etapa central na constituio desta imagem, mediada pela cmera, que a tomada propriamente. A circunstncia da tomada, para sermos mais especcos, algo que conforma a imagem-cmera de um modo singular no universo das imagens. Por circunstncia da tomada entendemos o conjunto de aes ou situaes que cercam e do forma ao momento que a cmera capta o que lhe exterior, ou, em outras palavras, que o mundo deixa sua marca, seu ndice, no suporte da cmera ajustado para tal. Podemos pensar em um "estar"fenomenolgico do sujeito que sustenta a cmera, como sendo marcado pela dimenso da presena que traz em si este "estar", prprio do ser humano. Dizemos "estar fenomenolgico do sujeito"pois
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a cmera possui esta pontencialidade, acima de todas as outras, de signicar uma presena em ausncia. De signicar uma forma de presena na circunstncia da tomada. para esta dimenso da presena, singular imagem-cmera, e que no encontramos em um desenho, por exemplo, que volta-se, de modo dominante, a fruio espectadorial da imagem no-ccional. esta presena da cmera e do sujeito na tomada, que permite a composio da intensidade das imagens, acima citadas. Digo intensidade, pois a dimenso da presena surge reduplicada, lanada, do momento da constituio da imagem para o momento da fruio desta mesma imagem. Boa parte do pensamento contemporneo desenvolve-se de modo a realar as estruturas de enunciao que envolvem o intervalo entre a tomada e a fruio do espectador. Nestas abordagens, a dimenso enunciativa acaba por adquirir uma espessura que aproxima, de modo excessivo, a imagem que tem a mediao maqunica da cmera, do conjunto das outras imagens pictricas. Narrativas imagticas voltadas para explorar a intensidade da presena na circunstncia da tomada, no so exclusivas do cinema no-ccional. Grandes cineastas da narrativa cinematogrca, percebem as pontencialidades da tenso do presente que transcorre como presena na tomada, e articulam sua estilstica para exponenciar esta intensidade de modo potico. Diretores como Roberto Rossellini ou Jean Renoir, so artistas que tm na intensidade da presena na tomada, um ncleo articulador na construo de seu estilo. Mas evidentemente na tradio do cinema no ccional que a dimenso da presena na tomada adquire um campo aberto para abrir suas asas sobre o
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espectador. O cinema no ccional voltado para o instante da tomada, para o transcorrer da durao na tomada e para maneira prpria que este transcorrer tem de se constituir em presente, que se sucede na forma do acontecer. Podemos pensar no contra-argumento de que existem cineastas, dentro da tradio no-ccional, que trabalham com estilos nos quais esta presena no surge na linha de frente. Novamente insistimos sobre o fato de que a constatao de que possvel extrapolar denies e embaralhar fronteiras, no deve impedir uma reexo mais acurada sobre as caractersticas sistmicas do conjunto das narrativas que denominamos documentrias, ou, de modo mais amplo, noccionais. Este dobrar-se da narrativa no-ccional sobre a tomada da imagem, no deve levarnos a negar a dimenso enunciativa, de discurso propriamente, desta narrativa. Particularmente, o trabalho que chamamos "montagem", e que realizado a partir de imagens originalmente constitudas na situao de tomada, deve ser destacado. Um diretor como Frederick Wiseman, costuma lmar 30 horas, ou mais, para montar 3. Suas prprias declaraes, inclusive, do amplo destaque para o trabalho de seleo e montagem que desenvolve com as imagens que coleta. Inuenciados pelo discurso dominante hoje com relao ao tipo de trabalho que valorizado, a maior parte dos cineastas coloca nfase na articulao enunciativa das imagens. A preocupao, um pouco obsessiva, de nossa poca com esta dimenso, pode fazer com que o que salta aos olhos na obra de Wiseman no seja visto. E o que salta aos olhos sua capacidade de apreender a vida, o mundo, em seu transcorrer, no pingar de seu presente, conforme surge para

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o sujeito que sustenta a cmera. Este o mago de seu estilo, e a que est a magia de sua imagem. Do mesmo modo, a fora estilstica de Flaherty, est na intensidade das tomadas, nas quais vemos Nanouk puxar com diculdade um leo marinho com seu arpo, ou o pescador de Aran tropeando aito nas pedras, fugindo de ondas maiores que parecem lhe ameaar. Reduzir a obra de Flaherty s manipulaes envolvidas por necessidades de encenao etnolgicas, enfatizando o trabalho oculto da mediao discursiva, , no meu ponto de vista, situar-se em um ponto lateral para abordar o todo. A magia de Flaherty est em saber transgurar a presena em imagem. Flaherty estava l, Flaherty morou onde a circunstncia da tomada transcorre. Flaherty tambm sabia lmar, sabia esperar o momento de transferir para tela a intensidade da presena, obtida atravs de longas estadias no local. Flaherty engravida-se longamente de presena, para depois condens-la em imagem e articul-la em narrativa, de modo que a intensidade original seja preservada. Mesmo na recuperao de um diretor como Vertov, podemos sentir esta preocupao excessiva com a dimenso enunciativa, orientando a viso contempornea dominante de seu legado. Esta recuperao encaminha-se por inteiro para realar os aspectos construtivistas de seu estilo, principalmente a partir do que o prprio Vertov chama de "metodologia do cine-olho". As propostas contidas no cine-olho vertoviano esto por inteiro voltadas para o explorar dos efeitos da montagem cinematogrca, como forma de construo. Mas h outro conceito esquecido, presente nos escritos do diretor. Trata-se do que Vertov chama de "a vida de improviso", termo que traz

uma interessante anlise da tomada propriamente, voltada para o acaso e para a indeterminao. esta viso do documentrio como narrativa capaz de captar "a vida de improviso", que ir levar o crtico francs George Sadoul a proclamar, no incio dos anos 60, Vertov como pai do Cinema Verdade. O prprio Sadoul, em seguida, faria sua autocrtica em relao a aspectos imprecisos da proximidade que havia levantado entre o "kino-pravda"de Vertov e o Cinema Verdade. O pensamento contemporneo, no entanto, ao enfatizar a concepo enunciativa contida no mtodo do cine-olho, deixa em completo esquecimento a parte do pensamento vertoviano que valoriza tomadas envolvendo a "vida de improviso". Este lado indissocivel, como a outra face da moeda, da concepo de montagem presente metodologia do cine-olho vertoviano. "Vida de improviso" a marca das imagens de Vertov, no que estas imagens esto voltadas para a intensidade da tomada. O "cine-olho"no lida com qualquer imagem, ele deve manipular, montar, somente imagens da vida, da vida em seu acontecer imprevisto, no encenado, indeterminado e ambgo. A noo de imprevisibilidade, prpria circunstncia aberta da tomada, ir fornecer o diferencial estilstico ao trabalho de montagem, proposto pelo mtodo do cine-olho. Se as narrativas voltadas para exponenciar a circunstncia da tomada aparecem como centrais em trabalhos prximos da estilstica do Cinema Verdade/Direto, h, na histria do cinema documentrio como um todo, uma espcie de fora centrpeta que atrai a imagem e o espectador para a presena do sujeito que sustenta a cmera na tomada. O pensamento dominante que questiona e tematiza o posicionamento subjetivo, tem
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certa diculdade em lidar com esta evidncia. A densidade da mediao discursiva que acompanha o estilhaamento da centralidade da posio subjetiva no pensamento contemporneo, impede uma anlise que tematize a presena do sujeito na tomada e o debruar-se, do espectador, sobre esta presena. A reexo marcada pela abordagem lgico-analtica dos enunciados da narrativa no-ccional, tambm sente diculdade em tematizar isto que seria a singularidade radical da imagem-cmera e sua narrativa, com relao a outras estruturas enunciativas. O molde lgico-analtico necessita de universalidade, para que sua aplicabilidade seja coerente, independentemente do veculo que serve como mdia. Dentro de um trabalho que tem o questionamento subjetivo ps-estruturalista no horizonte, Vivian Sobchack realiza em seu livro "The Adress of the Eye"5 , uma espcie de fenomenologia da presena do sujeito da cmera na tomada, trazendo para o centro da tematizao, a gura do espectador. Tratase de um pensamento marcado pela fenomenologia de Merleau Ponty que ir trabalhar o ato de ser atravs dos olhos de outrem, como caracterstica da cmera. No mago da anlise, esto as delicadas mediaes estabelecidas pela autora para pensar a presena do sujeito na tomada e o modo pelo qual esta presena se "enderea"ao espectador, em uma via de duas mos. Ao comentar uma imagem paradigmtica da fora desta presena, o crtico francs Andr Bazin dizia, sobre a intensidade de uma imagem borrada e completamente fora de foco, toSobchack, Vivian. The Adress of the Eye. A Phenomenology of Film Experience. Princeton University Press, 1992.
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mada em uma jangada em alto mar, que esta representava no a imagem de um tubaro (que precariamente distinguia-se na tela) mas a imagem do perigo. Figura de linguagem que aponta para uma relao espectadorial no com a imagem propriamente, enquanto representao, mas com a "tomada"em estado puro (por assim dizer) e o trao bruto da circunstncia de sua composio. Como se fosse possvel, atravs da imagem-cmera, atingirmos diretamente a circunstncia do mundo, extraordinria e intensa, que conformou a imagem. A imagem como marca da presena do sujeito que sustenta a cmera, pode ser to intensa que a dimenso propriamente gurativa se esvaece. A intensidade da imagem borrada e fora de foco, que mal podemos distinguir, permanece como paradigma da potencialidade singular da imagem-cmera na articulao da fruio espectadorial, lanando-se para a tomada. E esta potencialidade singular que pode nos situar em uma perspectiva instigante para pensarmos a tradio da narrativa documentria em particular, e as imagens no-ccionais de um modo geral.

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