A Reliquia - Eça de Queiros
A Reliquia - Eça de Queiros
A Reliquia - Eça de Queiros
(exer
EÇA DE QUEIRÓS
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18/04/2020 Estudo de obras
Eça de Queirós nasceu em 25 de novembro de 1845 em Póvoa do Varzim, fruto dos amores
secretos de Carolina Augusta Pereira de Eça e de José Maria Teixeira Queirós. Faleceu no
ano 1900, com apenas 55 anos de idade. A jovem Carolina deu à luz secretamente, em casa
de Francisco Augusto Soromenho, empregado da fiscalização do pescado da Póvoa. A carta
que ela recebeu do pai da criança, bastante curta, intriga os estudiosos da biografia do escritor
português.
Senhora:
Ponte de Lima, 18 de Novembro de 1845
Recebi carta de meu pai, que novamente me recomenda a creação de meu filho e se me
oferece para mandá-lo crear no Porto, em companhia de minha família, quando a
senhora n’isto convenha. Espero pois a sua resposta para nessa inteligência escrever a
meu pai.
Elle me recomenda igualmente – e também o desejo – que no Assento de Baptismo se
declare ser meu filho, sem todavia se enunciar o nome da mãe. Isto é essencial para o
destino futuro do meu filho, e para que, no caso se verificar o meu casamento consigo – o
que talvez haja de acontecer brevemente – não seja precisa em tempo algum justificação
de filiação. Espero que se ponha ao nosso filho o meu ou o seu nome, conforme deva de
ser.
Adeus. Acredite sempre nas sinceras tenções – e agora mais do que nunca –
(exer
Queiroz
Fruto de uma relação não legítima, foi criado por uma modesta família de Vila do Conde,
cidade vizinha daquela onde nasceu. Recebia constantes visitas de seus pais, que só depois de
quatro anos,
em 1989, legalizaram o nascimento do filho, quando então se casaram.
Desde o nascimento, as polêmicas sempre estiveram presentes na vida de Eça de Queirós. Ele
viveu verdadeiras revoluções íntimas e as expôs como ficção em muitas das suas obras. A
estudiosa Anya Moura (2012) afirma que a “revolução íntima vem do paradoxo de viver em
uma época em que o Romantismo impregnava as almas, e de trocar sentimentos e emoções
por uma visão cientificista, adotando uma atitude de analista social”.
Como jovem universitário, Eça participou, em 1871, das Conferências do Casino Lisbonense,
um conjunto de palestras realizadas pelo grupo do Cenáculo, reunião de escritores e
intelectuais da Geração de 1970, a qual era formada pelos iniciadores do Realismo /
Naturalismo. Os principais autores dessa geração são: Antero de Quental, Eça de Queirós,
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Como os realistas franceses, a Geração de 1970 queria uma “arte viva”, capaz de servir como(exer
arma de combate, voltada para a reforma do corpo social e com a educação como uma de
suas preocupações. Entretanto, logo o governo português interveio e proibiu a continuação
das conferências, alegando que elas atentavam contra a religião e as leis do país.
Com os romances O crime do Padre Amaro (1875) e O primo Basílio (1878), Eça consolida a
ficção realista / naturalista em Portugal. O Eça dessa época é o mais conhecido e estudado:
um escritor incisivo, sarcástico e bastante irônico para com as estruturas sociais do seu
tempo. Mas, como bem atesta o estudioso Maurício R. Silva,
há um outro Eça, visível apenas na face oculta do espelho. É o Eça que dá asas ao puro
sonho, à quimera literária, e,
em suas próprias palavras, ao ‘realismo fantasista da farsa’. É desse segundo Eça de
Queirós, idealista e visionário,
que A Relíquia será fruto, como já havia sido fruto, anteriormente, O Mandarim, de 1880.
(SILVA, 1996)
A Relíquia foi publicado em 1887, causando uma série de estranhamentos para os leitores
que, muitas vezes, achavam a narrativa “moderna demais” para o seu tempo.
A evolução literária de Eça de Queirós é dividida em três fases ():
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• Primeira fase (1866 a 1875): iniciou sua carreira literária como autor de folhetins e
posteriormente reuniu esses textos na obra Prosas bárbaras, em 1866, dando início à sua
primeira fase literária, que terminaria em 1875, com a publicação de O crime de Padre
Amaro. Nessa fase, revela-se influenciado pelo Romantismo,
e seus textos foram marcados pela indecisão e humanização da natureza.
• Segunda fase (1878 a 1888): Eça se torna adepto das teorias do Realismo. Esta fase, diz
Saraiva e Lopes (1996), “esboça um panorama de crítica social cultural que poderia constituir
um programa de inquérito à vida portuguesa” (p. 900). Além das reflexões sobre os maus
hábitos da sociedade portuguesa do século XIX, Eça destina especial atenção ao clero,
atribuindo-lhe um comportamento hipócrita e manipulador. É nesta fase que ele escreve suas
principais obras: O Primo Basílio (1878), O mandarim (1880), A Relíquia (1887) e Os maias
(1888).
• Terceira fase (1889-1900): ao contrário do pessimismo e das duras críticas estabelecidas no
período anterior,
na terceira e última fase, percebemos uma tendência ao otimismo, valorizando o espírito e a
alma, além da vida simples do interior em oposição à agitada vida urbana. Dessa fase,
destacam-se como obras principais: Correspondência de Fradique Mendes
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Correspond%C3%AAncia_de_Fradique_Mendes) (1889-90),
Dicionário de milagres (https://pt.wikipedia.org/w/index.php?
title=Dicion%C3%A1rio_de_milagres&action=edit&redlink=1) (1900), A Ilustre Casa de
Ramires (https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Ilustre_Casa_de_Ramires) (1900) (exer
e A Cidade e as Serras (https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Cidade_e_as_Serras) (1901, obra
póstuma).
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I. o Realismo deve ser perfeitamente do seu tempo, tomar a sua matéria na vida
contemporânea. Deste princípio, que é basilar, que é a primeira condição do Realismo, está
longe a nossa literatura (a oitocentista!) A nossa arte é de todos os tempos, menos do nosso;
II. o Realismo deve proceder pela experiência, pela fisiologia, ciência dos temperamentos e
dos caracteres;
III. o Realismo deve ter o ideal moderno que rege as sociedades – isto é: a justiça e a verdade.
(QUEIRÓS apud MATOS, 2016).
A RELÍQUIA
Quanto à obra A Relíquia, na ocasião de sua publicação, o já muito badalado Eça de Queirós
a submeteu a um concurso literário da Academia Real das Ciências de Lisboa (para ele, berço
da “literatura tradicional e conservadora”). Essa obra não teve êxito, muito pelo contrário; o
estudioso e crítico Pinheiro Chagas, que era relator do júri, teceu críticas ácidas,
desqualificando-a por completo.
Tese x Fantasia
O estudioso Álvaro Lins diz que A Relíquia não “pertence à primeira parte nem a última parte
da produção de Eça. (exer
Mas ela realiza, no destino do escritor, a sua primeira evasão do Naturalismo para o domínio
da fantasia, que sempre o atraiu” (LINS, 1959, p. 84). Apesar de estar inserida na parte
“realista” do crítico (para a maioria dos estudiosos), Antônio José Saraiva (1992) a coloca em
um subgrupo em que o escritor expandiria suas ideias baseando-se em dois princípios:
a tese e a fantasia.
Pontos de vista
São muitas as discussões em torno dessa obra espetacular do irreverente Eça de Queirós. Em
uma outra direção, João Gaspar Simões afirma que A Relíquia seria uma obra malograda (),
porém capaz de demonstrar maior maturidade do escritor: ”Para sentir-se em liberdade,
bastava-lhe um tema em que não fosse preciso observar, analisar ou imaginar dentro da
fronteira do real.” (SIMÕES, 1973, p. 476). Por fim, observemos o que João Medina diz
sobre o conteúdo da tão debatida obra: o livro apresenta “matéria suficiente para escandalizar
os espíritos religiosos e bem pensantes da sociedade burguesa do seu tempo, no fundo tão
conformista e devota”. (MEDINA, 2000, p. 98) Medina ainda assegura que
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Eça apenas se utiliza de certa fantasia, por meio do sonho de Teodorico e depois pela
materialização de sua consciência, para mostrar que todas as coisas poderiam ter dois
sentidos. Que a mentira cobre uma verdade, que a fantasia esconde uma autêntica nudez;
em outras palavras, esses fatores impedem que a verdadeira consciência se firme e seja
capaz de mostrar o bem e o mal, e essa consciência encontrava-se dentro de si próprio.
(MEDINA, 2000, p. 100)
Ironias e críticas
Após uma série de considerações, é possível perceber que Eça de Queirós, em A Relíquia, faz
irônicas e diretas críticas ao típico burguês (e às suas formas de ascensão social) de Portugal
da segunda metade do século XIX, assim como aos costumes hipócritas nos quais estava
imersa a cultura portuguesa, que atribuía às práticas religiosas mais um dos diversos meios
para os indivíduos serem integrados às benesses do capital e do luxo. O autor, não se pode
deixar de registrar, também ironiza bastante o cientificismo naturalista da época.
Humor e caricatura
Beatriz Berrini, investigadora brasileira de literatura e especialista na obra de Eça de Queirós,(exer
assegura que em
A Relíquia, Eça “está mais uma vez exercendo seu poder de observador da realidade na qual
está inserido e, como não podia deixar de ser, registra suas críticas explicitamente a partir da
narrativa de Teodorico”. Eça não poupa críticas à sociedade lusitana da segunda metade do
século XIX. De modo metonímico, o escritor destila a sua ironia ferina ao partir de uma parte
(Teodorico) para o todo (sociedade portuguesa). Assim, segundo Berrini,
Eça opera uma crítica sem complacência alguma, na verdade, que vai fundo e atinge não
somente, numa e noutra,
o mundo português, mas a sociedade contemporânea e o ser humano em geral, de
qualquer tempo e espaço. Talvez pelo fato do humor estar mais presente, e o autor buscar
o exagero caricatural, mais esquematizador, para dar a sua visão da sociedade e do
homem, tal obra parece menos virulenta. (BERRINI, 1997, p. 61).
Gênero
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A discussão em torno do gênero da obra A Relíquia é antiga. Observemos o que afirma Ana
Paula Foloni Gamba (2005): “O autor procurou ser claro e objetivo desde o início, lançando a
ideia da presença do elemento fantasista já na célebre epígrafe “Sobre a nudez forte da
Verdade – o manto ‘diáfano’ da Fantasia”,” que abre seu texto.
Evasão e fuga
A ideia de “evasão” e “fuga” é apenas aparente na obra de Eça de Queirós, pois ele nunca
abandonou a análise do comportamento humano, a crítica social e a sátira de costumes. O que
ele fez, na verdade, foi “camuflar” a impertinente tirania da realidade, tornando o estudo
desta menos “áspero”. Para isso, adotou um gênero que se baseia justamente na mescla da
realidade e da fantasia, da comicidade e da seriedade filosófica.
Maurício R. Silva (1996), estudioso das obras de Eça, portanto, traz outras frentes, ao afirmar
que a obra é
Síntese do enredo*
A obra é dividida em cinco capítulos, e seu prefácio é de suma importância para o
entendimento do livro. Assim começa a “peregrinação” de Teodorico Raposo, o debochado e
pícaro Raposão para os amigos de farra:
Decidi compor, nos vagares deste verão, na minha quinta do Mosteiro (antigo solar dos
condes de Lindoso), as memórias da minha vida – que neste século, tão consumindo pelas
incertezas da inteligência e tão angustiado pelos tormentos do dinheiro, encerra, penso eu
e pensa meu cunhado Crispim, uma lição lúcida e forte.
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Com uma excessiva descrição (que muitas vezes cansa o leitor desavisado), o narrador-
personagem discorre sobre sua peregrinação “pelas terras santas”, mas sem deixar de lado,
jamais, a sua ironia fina e a sua crítica social. (exer
Esta jornada à terra do Egito e à Palestina permanecerá sempre como a glória superior da
minha carreira; e bem desejaria que dela ficasse nas letras, para a posteridade, um
monumento airoso e maciço. Mas hoje, escrevendo por motivos peculiarmente espirituais,
pretendi que as páginas íntimas, em que a relembro, se não assemelhassem a um Guia
Pitoresco do Oriente. Por isso (apesar das solicitações da vaidade), suprimi neste
manuscrito suculentas, resplandecentes narrativas de ruínas e de costumes...
Capítulo I
A narrativa se passa na segunda metade do século XIX, em Lisboa, e tem como protagonista
e narrador Teodorico Raposo, o Raposão, órfão de pai e mãe. O primeiro capítulo da obra se
inicia assim:
Meu avô foi o Padre Rufino da Conceição, licenciado em teologia, autor de uma devota
Vida de Santa Filomena, e prior da Amendoeirinha. Meu pai, afilhado de Nossa Senhora
da Assunção, chamava-se Rufino da Assunção Raposo, e vivia em Évora com minha avó,
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Filomena Raposo, por alcunha a “Repolhuda”, doceira na Rua do Lagar dos Dízimos. O
papá tinha um emprego no correio, e escrevia por gosto no Farol do Alentejo.
Teodorico Raposo será criado por uma tia beata e bastante rica! Quando ele chegou à casa da
carola (), foi logo advertido:
Teodorico foi educado de maneira “espartana” () em relação aos preceitos católicos (observe
que já aparece de forma clara a crítica de Eça ao fanatismo lusitano e à crença cega nos
representantes da Igreja). Titi impôs uma formação católica ao garoto, acreditando doentia e
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cegamente nos valores cristãos. Quando rapaz, Teodorico não chegou a ser um ateu convicto,
mas debochou de muitos ritos do catolicismo praticados por sua tia. Em verdade, Eça caçoa
da Portugal piegas dos oitocentos.
Depois de um período estudando nos Isidoros e passando um domingo por mês com sua tia,
Teodorico foi enviado para Coimbra, onde encerrou seus estudos. Lá viveu, de fato, uma vida
desregrada e libertina, apesar das tantas recomendações da tia Patrocínio.
Um dia, o nosso bom procurador disse-me que eu não voltaria mais para os Isidoros, indo
acabar os meus preparatórios em Coimbra, na casa do Doutor Roxo, lente de teologia.
Fizeram-me roupa branca. A Titi deu-me num papel a oração que eu diariamente devia
rezar a São Luís Gonzaga, padroeiro da mocidade estudiosa, para que ele conservasse em
meu corpo a frescura da castidade, e na minha alma o medo do Senhor. O Padre Casimiro
foi-me levar à cidade graciosa, onde dormita Minerva.
Teodorico teve uma vida dupla e dissimulada, pois na rua era o mulherengo boêmio, mas
dentro da casa da tia foi quase “um santo”.
Certo dia, Teodorico encontrou um velho amigo de farra, o Rinchão, que o convidou a ir à
casa de uma amiga sua:
Era o Silvério, por alcunha o Rinchão, meu condiscípulo, e companheiro de casa das
Pimentas. Estivera passando esse mês no Alentejo, com seu tio, ricaço ilustre, o Barão de
Alconchel. E agora, de volta, ia ver uma Ernestina, rapariguita loura, que morava no
Salitre, numa casa cor-de-rosa, com roseirinhas à varanda.
– Queres tu vir cá um bocado, ó Raposão? Está lá outra rapariga bonita, a Adélia... Tu não
conheces a Adélia? Então, que diabo, vem ver a Adélia... É um mulherão!
Era um domingo, noite de partida da Titi; eu devia recolher religiosamente às oito horas.
Cocei a barba, indeciso. O Rinchão falou da brancura dos braços da Adélia; e eu comecei
a caminhar ao lado do Rinchão, enfiando as luvas pretas.
Adélia passou a ser uma constante tentação para Teodorico, e em quase todas as noites o
jovem corria para os braços da rapariga. Uma noite, porém, andando pela antiga Lisboa,
Raposo encontrou o Doutor Margaride, que disse que o jovem tem um “inimigo” no que diz
respeito ao recebimento da herança da tia. Teodorico ficou nervoso e, ao escutar que Jesus era
o seu rival, decidiu lutar contra uma terrível possibilidade: a de sua tia deixar tudo para as
“irmandades de sua simpatia e a padres da sua devoção”. (exer
Passado o susto inicial, Teodorico se animou com o consolo de Margaride: “Você vem a
herdar tudo, se D. Patrocínio, sua tia e minha senhora, se convencer que deixar-lhe a fortuna a
você é como deixá-la à Santa Madre Igreja”. A partir de então, ele exagerava nas encenações
para impressionar a fanática senhora. Esta parte da narrativa chega a ser caricata, pois o
jovem se lança no oratório para se mostrar à tia, porém, na verdade, tudo não passava de
teatralização, pois ele só pensava nos amores e nas riquezas da herança que a tia deixaria para
ele.
Apesar de tantas amostras de fé e de penitências, o jovem se revoltava com a resistência da
velha, pois mesmo bastante doente, sua saúde resistia como uma pedra! Diante da demora
pela morte da tia Patrocínio, Adélia troca Raposo por Adelino, deixando-o bem enfurecido.
Agora sem as “relaxações” com Adélia e sem a possibilidade de concretizar o sonho de
conhecer Paris, a “cidade da luz”, Teodoro Raposo partirá para a Terra Santa, por sugestão do
Padre Casimiro e a “pedido” da beata Titi: “[...] estou decidida a que alguém que me
pertença, e que seja do meu sangue, vá fazer por minha intenção uma peregrinação à Terra
Santa”. Em princípio, a viagem pareceu um estorvo para o boêmio Raposo, mas logo depois
ele começou a pensar nas farras, bebedeiras e mulheres que lá encontraria. E, então, partiu
numa manhã de domingo, 6 de setembro e dia de Santa Libânia, prometendo à tia “trazer uma
tremenda relíquia!”
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Capítulo II
A “peregrinação” de Teodorico Raposo ao lado do “ilustre Topsius” – doutor e sócio do
Instituto Imperial de Escavações Históricas, homem de saber enciclopédico e caricatura dos
“cientistas” do século XIX – começou pela Alexandria.
Foi num domingo e dia de S. Jerônimo que meus pés latinos pisaram, enfim, no cais de
Alexandria, a terra do Oriente, sensual e religiosa. Agradeci ao Senhor da Boa-Viagem. E
o meu companheiro, o ilustre Topsius, Doutor alemão pela Universidade de Bonn, sócio
do Instituto Imperial de Escavações Históricas, murmurou, grave como numa invocação,
desdobrando o seu vestíssimo guarda-sol verde:
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– Egito! Egito! Eu te saúdo, negro Egito! E que me seja em ti propício o teu Deus Ftá,
Deus das Letras, Deus da História, inspirador da obra de arte e da obra de verdade!...
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Em Alexandria, o galanteador Raposão se envolve com Mary, uma luveira que ele chamará
de Maricoquinhas. Esta “caliente senhorita” deixará de lembrança para Raposão uma
camisola com os dizeres: “Ao meu Teodorico, meu portuguesinho possante, em lembrança do
muito que gozamos!” Esta singela lembrança será empacotada em papel pardo pelo
companheiro Alpedrinha e entregue a Teodorico, que a levará na sequência da viagem.
Certa noite, Teodorico tem um sonho com a sua amante de Portugal, Adélia, e com Mary, a
amante da “relíquia”, quando, então, o Diabo aparece. Esse personagem temido e misterioso
está presente também em outras obras de Eça. O estudioso Antônio Augusto Nery (2005)
afirma:
É interessante notar no sonho como o diabo caracterizado por Eça e narrado por
Teodorico diferencia-se daquele conhecido pela tradição. Lúcifer, além de parecer um
tipo bonachão, atrapalhado com os cornos, desvencilhando-os dos galhos das árvores
(QUEIRÓS, 1976, p. 78-81), é caracterizado por Eça como injustiçado. No ambiente
onírico () o narrador / protagonista inusitadamente começa a conversar com Satanás,
momentos antes da ascensão de Cristo. (NERY, 2005, p. 6)
– Que pena! A Titi fazia tanto gosto que fosse daqui, Topsius! A Titi é tão rica!...
Então este sagaz filósofo compreendeu que há razões de família como há razões de
Estado, e foi sublime. Estendeu a mão por cima da árvore, cobrindo-a assim largamente
com a garantia da sua ciência, e disse estas palavras memoráveis:
– D. Raposo, nós temos sido bons amigos... Pode pois afiançar à senhora sua tia, da parte
de um homem que a Alemanha escuta em questões de crítica arqueológica, que o galho
que lhe levar daqui, arranjado em coroa, foi...
– Foi? – berrei ansioso.
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– Foi o mesmo que ensanguentou a fronte do Rabi Jeschoua Natzarieh, a quem os latinos
chamam Jesus de Nazaré, e outros também chamam o Cristo!...
O alemão percebeu que Raposo estava preocupado com a relíquia, pois se ela realizasse, de
fato, algum milagre, estendendo ainda mais a vida de Titi, seria a ruína de Teodorico. Por
isso, o doutor tratou logo de dizer que a coroa de espinhos foi feita de uma outra planta, e não
da “verdadeira”. Após uma longa conversa entre os companheiros, Pote, o guia da viagem,
entrelaçou o galho, dando-lhe a forma exata de uma coroa. E como ainda necessitavam
retornar à Jerusalém, Pote embrulhou a cora “com uma folha de papel pardo e um nastro
escarlate”. Observe, portanto, a semelhança entre os embrulhos da camisola de Mary e o da
coroa de espinhos: ambos estavam em pacotes de papéis pardos.
Capítulo III
É nesta parte que o detalhismo das descrições chega ao ápice.
Havia certamente duas horas que assim dormia, denso e estirado no catre, quando me
pareceu que uma claridade trêmula, como a de uma tocha fumegante, penetrava na tenda,
e através dela uma voz me chamava, lamentosa e dolente:
– Teodorico, Teodorico, ergue-te, e parte para Jerusalém!
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Arrojei a manta, assustado; e vi o doutíssimo Topsius, que, à luz mortal de uma vela,
bruxuleando sobre a mesa onde jaziam as garrafas de Champagne, afivelava no pé
rapidamente uma velha espora de ferro. Era ele que me despertava, açodado, fervoroso: –
A pé, Teodorico, a pé! As éguas estão seladas! Amanhã é Páscoa! Ao alvorecer devemos
chegar às portas de Jerusalém!
Eça capricha ao retratar a paisagem local, a ambientação cultural e a atmosfera que serviram
de fundo para o drama cristão.
Os desbravadores serão “testemunhas vivas” da crucificação de Cristo. Observe a fala do
estudioso Topsius:
– D. Raposo! Esta aurora que vai nascer, e em pouco tocar os cimos do Hébron, é a de 15
do mês de Nizam; e não houve em toda a história de Israel, desde que as tribos voltaram
da Babilônia, nem haverá, até que Tito venha pôr o último cerco ao templo, um dia mais
interessante! Eu preciso estar em Jerusalém para ver, viva e rumorejando, esta página do
Evangelho! Vamos, pois, fazer a santa Páscoa à casa de Gamaliel, que é um amigo de
Hilel, e um amigo meu, um conhecedor das letras gregas, patriota forte e membro do
Sanedrim. Foi ele que disse: “para te livrares do tormento da dúvida, impõe-te uma
autoridade”. Portanto, a pé, D. Raposo!
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Capítulo IV
Ao outro dia, que fora um radioso domingo, levantamos de Jericó as nossas tendas; e
caminhando com o sol para ocidente, pelo Vale de Querite, começamos a romagem de
Galiléia.
Mas ou fosse que a consoladora fonte da admiração houvesse secado dentro em mim, ou
que a minha alma, arrebatada um momento aos cimos da história e batida aí por ásperas
rajadas de emoção, não se pudesse já aprazer nestes quietos e ermos caminhos da Síria —
senti sempre indiferença e cansaço, do país de Efraim ao país de Zebelon.
Teodorico e Tópsius seguiam em sua viagem de volta ao “Velho Mundo”, quando Raposo
perguntou ao doutor sobre a relíquia que daria a tia:
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– Oh Topsius, que chelpa isto me vai render! E diga lá amiguinho, diga lá! Então acha
que eu posso afirmar à Titi que esta coroa de espinhos foi a mesma que...
O doutíssimo homem, por entre o fumo leve, soltou uma solidíssima máxima:
– As relíquias, D. Raposo, não valem pela autenticidade que possuem, mas pela fé que
inspiram. Pode dizer à Titi que foi a mesma!
– Bendito sejas, doutor!
As palavras do alemão merecem uma reflexão crítica dos leitores, pois trata-se da
desconstrução de algo solidificado na história da Igreja Católica: a valorização de todo tipo
de “relíquia”. Aqui, Eça destila, mais uma vez, sua crítica à religiosidade lusitana.
Enquanto isso, Teodorico Raposo, apesar de ainda muito longe de Lisboa, já se vira
oferecendo à tia a bendita e salvadora relíquia, o presente que, de fato, garantiria a ele toda a
herança de D. Patrocínio das Neves.
Capítulo V
Chegando a Lisboa, Raposo segue para a casa da tia, ansioso para lhe entregar a redentora
relíquia. Por conta da viagem à Terra Santa, ele será tratado quase como um santo por todos
que frequentavam a casa, exceto por Padre Negrão, (exer
um oportunista e vigarista que ganhara terreno e o afeto (coisa difícil em Titi) da beata
durante a ausência do sobrinho.
A cena da revelação da relíquia, que se deu no oratório, é hilária para os leitores e trágica
para Teodorico:
– Titi, meus senhores... Eu não quis revelar ainda a relíquia que vem aqui no caixotinho,
porque assim me recomendou o senhor Patriarca de Jerusalém... Agora é que vou dizer...
Mas antes de tudo, parece-me bem a pelo explicar que tudo cá nesta relíquia, papel,
nastro, caixotinho, pregos, tudo é santo! Assim por exemplo os preguinhos... são da Arca
de Noé... Pode ver, senhor Padre Negrão, pode apalpar! São os da Arca, até ainda
enferrujados... É tudo do melhor, tudo a escorrer virtude! Além disso quero declarar
diante de todos que esta relíquia pertence aqui à Titi, e que lha trago para lhe provar que
em Jerusalém não pensei senão nela, e no que Nosso Senhor padeceu, e em lhe arranjar
esta pechincha...
– Comigo te hás de ver sempre, filho! – tartamudeou a horrenda senhora, enlevada.
Beijei-lhe a mão, selando este pacto de que a Magistratura e a Igreja eram verídicas
testemunhas. Depois, retomando o martelo:
– E agora, para que cada um esteja prevenido e possa fazer as orações que mais lhe
calharem, devo dizer o que é a relíquia...
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Por algum descuido, que nem o leitor mais atento saberá ao certo, Raposo trocou os dois
embrulhos, ou melhor, as duas relíquias. Deixou com uma mendiga, no retorno a Lisboa, a
coroa de espinhos, trazendo para sua tia a camisola da amante com quem viveu momentos
intensos de “relaxações”. O engano custou caro, e Teodorico foi vítima da indignação de Titi,
a beata e demonizadora do sexo.
O sobrinho foi expulso de casa, levando apenas a mala com outras “relíquias” que trouxera da
Terra Santa. Depois do fatídico incidente, passou a vendê-las na cidade, mas o negócio logo
saturou por conta dos exageros na oferta, gerando uma queda brusca nas vendas e levando
seu negócio à falência.
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Enquanto Teodorico buscava meios para sobreviver, tomou conhecimento da morte da tia,
que deixou-lhe apenas um óculos como herança. E como era de se esperar, a velha destinou
absolutamente todos os seus bens para algumas irmandades e para os frequentadores dos
jantares em sua casa. Até mesmo a quinta do Mosteiro foi doada como herança ao
insuportável Padre Negrão, que foi o que mais bens recebeu, deixando Teodorico furioso.
Enquanto estava no hotel, diante da “herança” recebida da tia, Raposo, agora arrependido,
teve uma visão fantástica (sonho!). Em um “sonho” (ou “viagem”), Teodorico ouviu “uma
voz repousada e suave ‘do além’”, ou a voz de Jesus, que na verdade era a voz da sua própria
consciência. A sua “consciência”, naquele instante, proclamava a “inutilidade da hipocrisia”
como a lição que ele deveria aprender com aquele episódio.
– Tu dizes que eu te persigo! Não. O óculo, isso a que chamas Profundas Sociais, são
obra das tuas mãos – não obra minha. Eu não construo os episódios da tua vida; assisto a
eles e julgo-os placidamente... Sem que eu me mova, nem intervenha influência
sobrenatural – tu podes ainda descer a misérias mais torvas, ou elevar-te aos rendosos
paraísos da terra e ser diretor de um Banco... Isso depende meramente de ti, e do teu
esforço de homem... Escuta ainda! Perguntavas-me, há pouco, se eu me não lembrava do
teu rosto... Eu pergunto-te agora se não te lembras da minha voz... Eu não sou Jesus de
Nazaré, nem outro deus criado pelos homens... Sou anterior aos deuses transitórios; eles
dentro em mim nascem; dentro em mim duram; dentro em mim se transformam; dentro
em mim se dissolvem;
e eternamente permaneço em torno deles e superior a eles, concebendo-os e desfazendo-(exer
os, no perpétuo esforço de realizar fora de mim o deus absoluto que em mim sinto.
Chamo-me consciência; sou neste instante a tua própria consciência refletida fora de ti, no
ar e na luz, e tomando ante teus olhos a forma familiar, sob a qual, tu, mal-educado e
pouco filosófico, estás habituado a compreender-me... Mas basta que te ergas e me fites,
para que esta imagem resplandecente de todo se desvaneça.
No dia seguinte, casualmente, Teodorico encontrou seu antigo amigo Crispim. Depois de
expor suas dificuldades financeiras, o amigo, “filho da firma Teles, Crispim & Cia”,
ofereceu-lhe um emprego, ao que de pronto o homem deserdado aceitou. Com o passar do
tempo, Teodorico vai mostrando ao patrão que se tornara um homem “melhor”. Um dia,
convidado a um almoço seguido da missa na Ribeira, Teodorico conheceu D. Jesuína, irmã
solteira do patrão; tinha trinta e dois anos e era zarolha. Ao ver Raposo envolvido com sua
irmã, “com um riso de lealdade e estima”, Crispim pergunta se haveria amor verdadeiro à
mana Jesuína. “Amor, amor, não... Mas acho-a um belo mulherão; gosto-lhe muito do dote; e
havia de ser um bom marido.” Enfim, casam-se Teodorico e Jesuína.
Após todos esses ocorridos, Teodorico soube que o odiado Padre Negrão, além de ter ficado
com boa parte da fortuna da Titi, ainda ficara com Adélia, que o havia traído, primeiramente,
com Adelino. Ao saber de mais essa “perda”, Raposão se arrepende pela ausência de ousadia
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para assegurar descaradamente que a camisola de Mary, na verdade, era a camisinha de Maria
Madalena:
Sim! Quando em vez de uma coroa de martírio aparecera, sobre o altar da Titi, uma
camisa de pecado – eu deveria ter gritado, com segurança: “Eis aí a relíquia! Quis fazer a
surpresa... Não é a coroa de espinhos. É melhor! É a camisa de Santa Maria Madalena!...
Deu-ma ela no deserto...”
E logo o provava com esse papel, escrito em letra perfeita: Ao meu portuguesinho valente,
pelo muito que gozamos...
Era essa a carta em que a santa me ofertava a sua camisa. Lá brilhavam as suas iniciais –
M. M.! Lá destacava essa clara, evidente confissão – “o muito que gozamos”; o muito que
eu gozara em mandar à santa as minhas orações para o céu,
o muito que a santa gozara no céu em receber as minhas orações!
E quem o duvidaria? Não mostram os santos missionários de Braga, nos seus sermões,
bilhetes remetidos do céu pela Virgem Maria, sem selo? E não garante a Nação a divina
autenticidade dessas missivas, que têm nas dobras a fragrância do paraíso? Os dous
sacerdotes, Negrão e Pinheiro, cônscios do seu dever, e na sua natural sofreguidão de
procurar esteios para a fé oscilante – aclamariam logo na camisa, na carta e nas iniciais,
um miraculoso triunfo da Igreja! A tia Patrocínio cairia sobre o meu peito, chamando-me
“seu filho e seu herdeiro”. E eis-me rico! Eis-me beatificado! O meu retrato seria
pendurado na sacristia da Sé. O Papa enviar-me-ia uma bênção apostólica, pelos fios do(exer
telégrafo.
[...]
E tudo isto perdera! Por quê? Porque houve um momento em que me faltou esse
descarado heroísmo de afirmar, que, batendo na terra com pé forte, ou palidamente
elevando os olhos ao céu – cria, através da universal ilusão, ciências e religiões.
Aqui aparece o Eça combativo e crítico severo do fanatismo religioso. Portanto, como bem
atesta Pedro Coelho, estudioso de Eça:
Esse é o retrato preliminar que Eça faz da sociedade portuguesa daquele ano de 1887,
quando o romance foi publicado. Uma sociedade onde a religião, leia-se o catolicismo,
tinha uma presença forte numa boa parte do povo português, no contraponto de posturas
hipócritas que essas relações alimentam. Raposão, por assim dizer, encarna a hipocrisia e
o oportunismo que os charlatães da fé se utilizam nos dias de hoje para enriquecer, e sua
madrinha, a ingenuidade daqueles que têm na religião a sua tábua de salvação, desde uma
unha encravada até a garantia de leito do reino de deus. Entre os dois, o charlatão e o
crente – a onisciente e onipresente igreja. (COELHO, 2012.)
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Personagens
Teodorico Raposo
(exer
Apesar do sobrenome ser Raposo, que se aproxima de Raposa, o protagonista não é nem um
pouco astuto, esperto ou ágil como esse animal. Ele se comporta como um homem bobo e
dominado. Em Lisboa, é dominado pela tia e também pela amante, que, inclusive, engana-o.
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– Que se aguente... É o que sucede a quem não tem temor de Deus e se mete com
bêbadas... Não tivesse comido tudo em relaxações...
Cá para mim, homem perdido com saias, homem que anda atrás de saias, acabou... Não
tem o perdão de Deus, nem tem o meu! Que padeça, que padeça, que também Nosso
Senhor Jesus Cristo padeceu!
E não lhe bastava reprovar o amor como cousa profana; a senhora D. Patrocínio das
Neves fazia uma carantonha,
e varria-o como cousa suja. Um moço grave, amando seriamente, era para ela “uma
porcaria”! Quando sabia de uma senhora que tivera um filho, cuspia para o lado, rosnava
– “que nojo!”. E quase achava a natureza obscena por ter criado dous sexos.
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Eça critica a beatice doentia de Titi ao mesmo tempo em que se aproveita da hipocrisia e do
cinismo de Raposão para atacar o abuso da boa-fé e da credulidade: “Corrigi então a minha
devoção e tornei-a perfeita. Pensando que o bacalhau das sextas-feiras não fosse uma
suficiente mortificação, nesses dias, diante da Titi, bebia asceticamente um copo de água e
trincava uma côdea de pão (...)”.
Acordando do seu langor, trêmula e pálida, mas com a gravidade de um pontífice, a Titi
tomou o embrulho, fez mesura aos santos, colocou-o sobre o altar; devotamente desatou o
nó do nastro vermelho; depois, com o cuidado de quem teme magoar um corpo divino, foi
desfazendo uma a uma as dobras do papel pardo...”
Assim, o autor traça um paralelo entre o sagrado – representado pela beatice e pela fé cega de
D. Patrocínio –
e o profano – figurado pela hipocrisia e ambição desmedida, retrato das consequências de
uma sociedade materialista
que, ao mascarar seus valores, dissimula as ações e delineia uma atmosfera hipócrita.
Por fim, Titi será, sim, adjetivada ao longo da obra: a “severa Titi”, “a fria”, “a sovina
castradora”, “pudica, que não morre nem abre os cordões à bolsa verde”. Ela será o invólucro
cobiçado e permissório de todas as ambições de Teodorico Raposo.
Adélia
(exer
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(exer
Foi Rinchão que apresentou Adélia ao amigo Teodorico. Eles terão um caso amoroso, mas ela
o abandonará para ficar com Adelino. É uma mulher preocupada com posses, que, ao final da
narrativa, ficará com o inescrupuloso, e agora rico, Padre Negrão.
Doutor Margaride
Personagem que alertou Teodorico para a possibilidade de sua tia deixar toda a fortuna para
Jesus Cristo, através de irmandades e de religiosos amigos. O doutor fora juiz em Mangualde,
mas agora passava o tempo lendo periódicos e algumas vezes jantava na casa de Titi. Gostava
das hipérboles, pois, quando jovem, escrevera duas tragédias.
Padre Casimiro
Amigo, procurador e companheiro de numerosos jantares na casa da beata. Herdou dela
algumas posses. Representa uma igreja que se fecha aos problemas sociais e vive dentro das
casas dos representantes da abastada classe social de Portugal.
Padre Pinheiro
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Trata-se de outro herdeiro de Dona Patrocínio. Hipocondríaco, ficava o tempo todo a se olhar
no espelho, lamentando possíveis moléstias. Personagem bastante caricato.
Mary
(exer
É a amante de Teodorico em Alexandria. Foi ela que deu a Raposo a fatídica camisola que o
levou à deserdação. O presente era uma recordação dos momentos prazerosos que os dois
viveram. No retorno a Portugal, Raposão doou a uma mendiga um embrulho, pensando tratar-
se da camisola, descobrindo tardiamente que, na verdade, era a “verdadeira relíquia”. A
ironia de Eça aparece mais uma vez, pois o nome dessa amante de Raposo refere-se às
histórias bíblicas, sobretudo à personagem Maria Madalena, “a quem Teodorico no final se
lamenta de não ter atribuído a propriedade da camisola que o desmascarou”, como bem
observou Fernando Marcílio Lopes Couto (QUEIRÓS, 2007).
Doutor Topsius
Personagem caricata, o doutor Topsius representa o “saber ilustrado”, pois, na verdade, não
possui profundidade alguma em seus estudos. Ele sempre usa citações, mas tem um saber
superficial acerca do Oriente. Alto, nariz agudo e pensativo, parece uma cegonha. Será ele
que atestará a veracidade da relíquia que Raposo entregará para a tia. É o grande
companheiro de viagem do protagonista pelo Oriente. Por meio dessa personagem, Eça de
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Padre Negrão
Esse personagem, apesar de só ter aparecido no final da narrativa, terá um papel crucial na
derrocada de Raposo. O dissimulado e interesseiro Padre Negrão cortejará a beata na
ausência do sobrinho e construirá para ela a imagem de um verdadeiro servo de Deus. Por
meio dele, Eça destilará sua crítica ao clero português, seguindo uma tendência dos romances
anticlericais da segunda fase de sua produção. Padre Negrão frequentava a casa de Dona
Patrocínio, pois viera para substituir o Padre Casimiro, seu tio, que adoecera. Negrão vai
herdar a quinta do Mosteiro – perto de Viana de Castelo –, as inscrições do Crédito Público, a
mobília da casa de Santana e o Cristo de ouro.
Também foi herdeiro do tio, Casimiro, e preparava-se para herdar a fortuna do Padre
Pinheiro, a quem vivia empanturrando “com tremendos jantares para lhe apressar o fim”.
Além de herdar a riqueza da tia de Raposo, toma-lhe também a amante Adélia, que já havia
traído o azarado e “sem-nada” Teodorico.
O diabo
A atuação do diabo em um trecho do segundo capítulo de A Relíquia comprova que, apesar
(exer
de ser uma mera personagem secundária, constitui-se um importante ponto de apoio para as
críticas veiculadas por Eça de Queirós à Igreja e à religiosidade institucional. Satanás aparece
em outras obras do escritor.
Outras personagens
Há outras personagens na obra: Vivência, criada de Titi; Justino, o tabelião; Silvério, por
alcunha o Rinchão, amigo que apresentou Adélia a Teodorico; Alpedrinha, que aparece na
narrativa como uma paródia dos grandes e heroicos navegantes portugueses, além de ter sido
quem apresentou Mary a Raposão; Tote, o guia na viagem pela Terra Santa; Crispim, antigo
amigo, posteriormente patrão e cunhado de Teodoro; e D. Jesuína, irmã solteira de Crispim e
futura esposa de Teodoro.
Foco narrativo
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Toda a ação da obra centra-se em torno de Teodorico Raposo, protagonista e narrador. Trata-
se, portanto, de uma narrativa em primeira pessoa, em que Teodorico assume-se como
alguém que vai escrever as suas memórias, com sobriedade e franqueza, submetendo-se ao
duplo foco da história e da fantasia. De acordo com Ana Teresa Peixinho,
[...] no discurso pessoal instaurado pelo narrador, são matizadas as marcas características
do discurso autobiográfico e memorialista, geralmente representativo de quem lança
sobre o passado um olhar distanciado. Recorrendo raramente à anacronias significativas,
o narrador mantém o suspense narrativo e assume o discurso, não como voz ulterior que
rememora o passado de um ângulo mais maduro e experimentado, mas como voz de
Teodorico-personagem, deixando-o conduzir o leitor pelas aventuras e desventuras da sua
juventude. (PEIXINHO, s.d.)
Eça consegue imaginar uma autobiografia de certa personagem que é, ao cabo, muito
reveladora para além do nível de consciência do próprio narrador, e, de fato, induz-nos a
encará-lo, ora como um vulgar espertalhão, afinal logrado, ora como testemunha fiel do
nascimento histórico, dezenove séculos atrás, da sua própria religião - que aliás (e sem
êxito) tentará instrumentar em seu proveito. (SARAIVA; LOPES, 2005, p. 864).
Linguagem
A linguagem utilizada por Eça, na voz do narrador Raposão, é extremamente irônica, pois
através da narrativa o escritor pontifica o cinismo dos exploradores da fé, dos verdadeiros
“raposões” da vida. Por tratar-se de uma personagem-narrador dúplice, observa-se que,
quando dentro de casa, ao lado da odiada tia, o discurso do narrador é extremamente
bajulador e concordante com tudo o que a beata defende. Mas, quando longe da opressora, a
voz narrativa é mais “leve” e bastante crítica em relação às carolices da velha detestada pelo
narrador.
O discurso intertextual está bastante presente ao longo da narrativa, sobretudo no que tange
ao catolicismo, pois o narrador faz uma grande paródia da religiosidade cristã e da crítica
social de sua época. O estudioso Geraldo Chacon (1999) afirma também que Eça
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[...] abandonou o uso de estrangeirismos, tais como chic, toilette, shake-hands, como
fazia em O primo Basílio. Outra curiosidade é que neste romance, em especial, por ser
uma história de padres, já não proliferam tanto os termos e as expressões em latim, como
em O crime do padre Amaro. (CHACON, 1999)
Tempo
Logo no início do prefácio, o narrador-personagem situa o leitor em sua linha do tempo,
mostrando que fará uma “viagem” ao passado (flashback) e contará toda a sua “peregrinação”
até o restabelecimento na quinta do Mosteiro (antigo solar dos condes de Lindoso). Duas
datas são mencionadas de maneira explícita: o ano de 1853, quando o pai de Teodorico
estabeleceu amizade com D. Gaspar de Lorena, bispo de Corazim e quem lhe concedera um
bom emprego; e o ano de 1875, quando Raposão fez a famosa viagem à Terra Santa.
Espaço
Predominam, na obra, Portugal (Lisboa, Coimbra e arredores) e a Terra Santa, mas outros
espaços também merecem ser citados, como Alexandria, no Egito, o Cairo, o Nilo, as
Esfinges e, principalmente, as igrejas, que foram preteridas por Raposão para ele ficar ao lado(exer
de sua amante inglesa, Mary. Na verdade, Raposão pensava quase o tempo inteiro em
“relaxações” e prazeres mundanos. Como já foi mencionado anteriormente, o narrador se
excede nas descrições dos espaços “visitados”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de ser uma obra do Realismo, A Relíquia expõe a dúvida sobre toda e qualquer
verdade estabelecida e todo e qualquer meio para obtê-la. Assim, como atesta o estudioso
Fernando Marcílio Lopes Couto (QUEIRÓS, 2007), a crítica do escritor atinge tanto a
religião quanto a Arte e a Ciência.
Couto também tece comentários acerca das palavras que servem de pórtico para a obra:
“Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”. O crítico afirma que tais
palavras
expressam a opção de fazer referência à verdade sempre tendo em mente sua realização
artística. Ou seja, para falar sobre a verdade, não se pode esquecer o lirismo. O problema
que essas palavras colocam é essencial na obra: fantasia e verdade estão juntas, e às vezes
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é muito difícil distingui-las. Isso significa que é quase impossível saber a verdade sobre o
mundo, porque essa verdade é sempre relativa. (QUEIRÓS, 2007)
A viagem de Teodorico pelo Oriente, sobretudo, tem uma significação espiritual “(de
autodescoberta) e social (de representação da decadência moral do povo português).”
O riso, a paródia e a ironia são muito valorizados nas obras de Eça de Queirós. Em A
Relíquia, são usados para polemizar o real (e Eça é um escritor realista!) por meio de
devaneios e ilusões vivenciadas pelas personagens.
“O tratamento irônico que Eça confere aos assuntos sagrados marca a relação de A Relíquia
com o Naturalismo.” Os aspectos bestiais e impulsivos de Teodorico são características
também do Naturalismo. O cientificismo naturalista, por sua vez, foi bastante ironizado.
A obra apresenta um forte pessimismo, como acontece em tantas outras obras de Eça de
Queirós.
Um dos principais objetivos do escritor português, em sua segunda fase, foi criticar
duramente a sociedade de Lisboa, como fez também em obras como O primo Basílio e O
crime do padre Amaro.
O autor enfoca temas universais: essência versus aparência e o jogo de interesses. Por fim,
Eça denuncia, mais uma vez, o clero lusitano, mostrando a hipocrisia e a dissimulação de
alguns religiosos.
(exer
REFERÊNCIAS
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https://digital.bernoulli.com.br/estudodeobras/areliquia/ 34/35
18/04/2020 Estudo de obras
nota ()
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