Programa de Garantia de Empregos No Brasil

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Artigo

Programa de
Garantia de Empregos
no Brasil

David Deccache [email protected]


Doutorando em Economia pela Universidade de Brasília (UnB). Assessor econômico na
Câmara dos Deputados e professor voluntário no Departamento de Economia da UnB.

Caio Vilella [email protected]


Professor substituto do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Doutorando em Economia pela UFRJ, pesquisador associado ao GESP/UFRJ1.

Caroline Jorge [email protected]


Doutora em Economia pela UFRJ e Assessora Econômica na Câmara dos Deputados.

Introdução
A população brasileira conta hoje com quase 14 milhões de desempregados e, somando-se os desalentados
– aqueles que desistiram de procurar emprego, o número chega a 19 milhões de pessoas. Em um arcabouço
macroeconômico pautado pelo Regime de Metas para Inflação e pela busca de “equilíbrio” das contas públi-
cas, com a regra fiscal mais rígida do planeta (a EC 95/20162), o emprego acaba ficando em segundo plano,
considerado, em tese, um resultado “natural” do sucesso deste arcabouço, mas que nunca é atingido.

Se o pleno emprego não é um resultado natural da estabilidade de preços e de qualquer resultado a priori
das contas públicas, ele deveria ser um objetivo concreto da política econômica de um governo que visa o
bem-estar de toda a sua população. É neste sentido que a Modern Money Theory (MMT), remontando à ideia
originalmente de Hyman Minsky, defende o Job Garantee Program, um programa governamental que garanta
1 1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES)
- Código de Financiamento 001.
2 A Emenda Constitucional n° 95 estabeleceu que as despesas primárias da União serão corrigidas, anualmente, de acordo com
a inflação dos últimos 12 meses, até junho do ano anterior (IPCA). Isso quer dizer que haverá redução, ano a ano, do orçamento
público em proporção ao PIB, queda essa que será potencializada pelo crescimento demográfico.

• Brasília Volume 12, e2201, 2022 • pgs 5 – 17 • www.assecor.org.br/rbpo


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para todos os cidadãos um emprego digno com salário correspondente. O Programa de Garantia de Emprego
(PGE) deverá garantir emprego para toda a população que deseje trabalhar pelo salário vigente no programa
que, por sua vez, será um farol para o mercado de trabalho da economia.

A proposta ganhou espaço no debate econômico internacional e vem sendo discutida por Tcherneva (2018;
2020), Haim (2021), Wray (2018), Wray, Kelton, Tcherneva, Fulwiller & Dantas (2018), Antonopoulos, Adam, Kim,
Masteson & Papadimitriou (2014), dentre outros. Ainda que não ocupe um lugar de destaque na academia
brasileira, a viabilidade de um PGE neste país é colocada em xeque por críticos que se fundamentam em
argumentos financeiros. Ora este argumento aparece como escassez de recursos orçamentários, ora como
causador de efeitos indesejados, como elevação de juros e inflação. Dadas as mazelas sociais causadas pelo
supramencionado volume de desempregados, desalentados e até mesmo trabalhadores informais subem-
pregados, a necessidade de se aprofundar o debate sobre tal programa urge e o presente trabalho pretende
preencher esta lacuna teórica e operacional. Afinal, os tempos atuais exigem o enfrentamento do desemprego
de outra forma que não como mero resultado esperado de um regime macroeconômico que vem se mostrando
falido nas diversas economias nas quais foi aplicado, resultando em baixo crescimento, ampliação estrutural
do desemprego, precarização do mercado de trabalho e aumento das desigualdades interseccionais.

Para tanto, o artigo se divide em três seções, além desta introdução. A segunda discute as origens teóricas
do programa e traz um panorama do mercado de trabalho brasileiro. A terceira seção trata do desenho e
financiamento do programa, desmitificando sua maior crítica que é a falta de recursos para sua execução. A
quarta seção problematiza seus efeitos sobre juros e inflação, seguida da seção que conclui o artigo.

Contexto histórico-teórico e desenho do Programa


A Grande Recessão de 2008 iniciou uma mudança de paradigma da teoria econômica tradicional. A crise que se
iniciou no mercado hipotecário americano e se espalhou pelo mundo colocou em xeque a hipótese ortodoxa de
eficiência dos mercados. Não tardou até que o distúrbio econômico ficasse conhecido como “Momento Minsky”,
em referência ao autor que ganhou notoriedade pela sua hipótese de instabilidade financeira (WHALEN, 2008).
Nesta construção teórica, Minsky (1986) sugere que a redução dos colchões de segurança, em momentos de
euforia do mercado, logo pavimentaria o caminho para a próxima crise. Para o autor, os ciclos econômicos
seriam endógenos ao bom funcionamento sistêmico e fruto do otimismo compartilhado pelos agentes, de
forma que a estabilidade conduziria à instabilidade.

Além do caráter cíclico supramencionado, economias periféricas se diferenciam das centrais por estarem sujei-
tas a outras fontes de instabilidade, como os ciclos internacionais de liquidez, já que estão inseridas de modo
subordinado no Sistema Monetário Internacional. Quando da eminência de momentos adversos que envolvem
perdas de capital, o investidor estrangeiro busca recompor sua carteira nos países centrais em detrimento
do volume anteriormente investido nos países periféricos. Dada a necessidade sistêmica destes últimos em
financiar a conta comercial, a escassez de liquidez pode representar restrições do balanço de pagamentos,

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levando, no limite, à necessidade de desacelerar a atividade doméstica para reduzir o volume importado e
melhorar o saldo da conta comercial do Balanço de Pagamentos. Ou seja, por razões que fogem ao controle da
autoridade econômica doméstica, a economia periférica é submetida a sucessivos ciclos econômicos, como
mostra o gráfico 1, em que a linha preta representa a taxa de variação real do PIB brasileiro e as colunas cinzas
são choques externos selecionados3.

Gráfico 1 – Taxa de Variação Real do Produto Interno Bruto (PIB) Brasileiro (1962-2020).

Fonte: BCB elaboração própria dos autores

Além da dificuldade de conduzir e manter a economia no pleno emprego pelas razões acima expostas, é im-
portante ressaltar problemas estruturais do mercado de trabalho e os desafios que uma política de geração
de pleno emprego tende a enfrentar em países periféricos. O gráfico 2 mostra que mesmo quando o mercado
de trabalho brasileiro estava no seu momento agregado mais aquecido (4º trimestre de 2013), a taxa de deso-
cupação entre as mulheres ainda era da ordem de 7,6%.

3 Em ordem cronológica temos representados o primeiro choque do petróleo, choque de juros do Volcker, crise financeira japo-
nesa de 1987, crise asiática do final dos anos 1990, bolha da “dotcom” americana, Grande Crise Financeira Global e a crise da
COVID-19.

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Gráfico 2 – Taxa de Desocupação por Sexo no Brasil (2012-2020)

Fonte: “IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contra trimestral”

Com o aumento do desemprego, as desigualdades no mercado de trabalho se tornam ainda mais evidentes. A
PNAD Contínua mostra que enquanto a taxa de desocupação de homens de cor branca era, em média, 7,44%
(em 2020), as mulheres brancas sofriam com média de 10,06% de desocupação, e as negras com 16,77%. O ren-
dimento médio habitual real dos homens brancos no quarto trimestre de 2019 era, em média, aproximadamente
32% superior ao das mulheres brancas, que por sua vez, tinham rendimento médio habitual real 77% superior ao
das mulheres negras (IBGE, 2019). Como em um ciclo vicioso, sem acesso a serviços como cuidado de idosos
e de crianças, a quantidade de horas de trabalho semanal não remunerado destas mulheres também é superior.

Desta forma, além de lidar com os ciclos econômicos, queremos destacar que não basta “criar empregos”, é
preciso gerar o emprego certo para a pessoa certa. Para que isso seja feito, um primeiro passo seria separar
a decisão de empregar da lógica da lucratividade e o único agente capaz de fazer isso é o Estado. Apesar de
ganhar notoriedade pela hipótese da instabilidade financeira, Minsky (1986), ao concluir sobre a endogeneidade
das crises capitalistas, sugere que o Estado atue como Empregador de Última Instância, o que ficou amplamente
conhecido como PGE. Tal programa consiste basicamente na ideia de o Estado engendrar um programa de
empregos que funcione como um amortecedor automático dos ciclos econômicos.

Para Minsky (1986) o PGE teria papel fulcral no combate à pobreza, não só por eliminar o desemprego, como
também por regular o mercado de trabalho. Durante os ciclos recessivos, o PGE seria responsável por absorver
a mão de obra demitida pelo setor privado, oferecendo-lhes um salário decente com condições dignas. Já
quando os mecanismos fiscais fossem acionados e a economia se recuperasse, bastaria que as empresas
oferecessem um salário minimamente acima do oferecido pelo programa para que a mão de obra migrasse
do PGE de volta para o setor privado, mantendo a força de trabalho sempre ocupada. Adicionalmente, o sa-
lário estabelecido pelo programa, combinado com as condições do emprego, regularia as condições básicas
de trabalho a qual o setor privado estaria submetido. As minorias representativas, atualmente preteridas no
mercado de trabalho privado, passariam a encontrar uma opção decente para se inserir no mercado laboral a
partir de prestação de serviços que beneficiam a comunidade ao seu redor.

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Nesse contexto, o programa deve visar populações periféricas em situação de vulnerabilidade social (TCHERNEVA,
2018). Centros locais de emprego seriam criados nos munícipios, onde o trabalhador poderia se inscrever no
PGE para conseguir um posto de trabalho próximo da sua residência (FORSTATER, 2013). Esses centros se-
riam formados pela própria comunidade local, responsável pela alocação de mão-de-obra de acordo com as
necessidades locais e as diretrizes gerais do programa (detalhadas adiante). Essa descentralização é importante
para evitar ingerências do governo central e tornar a sociedade local parte integrante do programa, decidindo
onde e quais serviços serão prestados, além de focalizar a demanda de emprego em setores mais necessários.

Apesar de localmente administrado, o programa seria custeado por meio de transferências de verbas da União
(WRAY, 1997). Os detalhes da forma de financiamento serão tratados na próxima seção.

O PGE também deve abarcar um programa de treinamento, de modo que o trabalhador, localmente cadastrado
e empregado por verbas da União, teria sua jornada dividida entre um período de prestação de serviço e outro
período dedicado à capacitação para melhor inserção futura no mercado de trabalho. Ou seja, o programa
de treinamento visaria qualificar o trabalhador para que ganhos de produtividade da força de trabalho sejam
verificados no âmbito macroeconômico. É esperado que tais ganhos ajudem a mitigar pressões inflacionárias,
bem como aliviar a pressão sobre o Balanço de Pagamentos4. No caso do Brasil, em que cerca de 29% da
população adulta é considerada analfabeta funcional, aulas de reforço de educação básica como português
e matemática já podem surtir grande efeito sobre a força de trabalho. Porém, para aqueles trabalhadores que
já tenham formação básica de qualidade, deverão ser oferecidos cursos profissionalizantes que os coloquem
em vias de competir equilibradamente com aqueles que não perderam seu emprego durante o ciclo recessivo.
Este aspecto do programa de treinamento visa combater a histerese do mercado de trabalho, em que o último
trabalhador a ser contratado no período de expansão costuma ser o primeiro demitido em períodos de crise
(TCHERNEVA, 2020).

A coordenação no âmbito nacional, por sua vez, determinará as diretrizes gerais do programa, como por exem-
plo, a exigência de que o trabalho seja em uma distância próxima da residência do trabalhador para mitigar
os incentivos migratórios (Li, 2013). Além disso, é sugerido que o governo ofereça conteúdo informativo para
que os centros locais destinem sua força de trabalho prioritariamente para setores de baixíssimo conteúdo
importado, reduzindo, assim, a parcela da demanda convertida em importações. Ademais, Tcherneva (2020)
ressalta que o programa produziria bens e serviços a serem utilizados pelos próprios trabalhadores, como
consertos e pequenas obras de espaços públicos, cuidado de crianças e idosos, aulas de reforço escolar, pro-
jetos artísticos e esportivos, produção de comida orgânica para a própria comunidade, atividades de reflores-
tamento e proteção ambiental entre outras demandas de cada comunidade local. Este arcabouço amplificaria
o efeito multiplicador do gasto dentro da própria comunidade, fazendo o dinheiro girar mais intensamente
nestes espaços e provocando uma série de externalidades positivas, como fomento de pequenos comércios
locais. Acrescenta-se ainda que os serviços como cuidados de idosos e crianças terão externalidades positivas
sobre os empregados do setor privado, reduzindo a supramencionada quantidade de horas de trabalho não
remuneradas e melhorando a qualidade de vida da comunidade como um todo.
4 Para mais detalhes sobre estes efeitos ver Tcherneva (2020) e Vilella (2021).

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A remuneração do PGE deve incidir sobre as horas trabalhadas e as horas dispendidas no programa de trei-
namento e ser negociada por um Conselho de Barganha Salarial. Este conselho seria formado por sindicatos
patronais, sindicatos dos trabalhadores e demais entidades de classes participantes do conflito distributivo
da economia, objetivando definir, através de um processo de negociação, o valor de reajuste dos salários do
programa. Vale destacar que uma vez em funcionamento, o salário pago pelo PGE seria o salário-mínimo de
fato da economia, já que as empresas deveriam oferecer um salário, no mínimo, igual ao do programa para
serem capazes de atrair mão-de-obra (TCHERNEVA, 2020). Este Conselho visa reproduzir uma institucionali-
dade similar a dos países nórdicos do pós-guerra, que conseguiram manter pleno emprego com estabilidade
de preços por décadas (ANDERSEN, 1990). Esta centralização pelo Conselho visaria, através da mediação
estatal, regular o conflito entre trabalhadores e empresários para evitar que esta disputa ganhe contornos
drásticos e pressione preços.

Apesar de o programa de treinamento possivelmente ampliar a produtividade da força de trabalho e o Conselho


de Barganha mediar o conflito distributivo, choques inflacionários poderão emergir pontualmente devido a
descompassos entre demanda e oferta. Por mais que no longo prazo a capacidade produtiva se ajuste ao
crescimento da demanda, é preciso de tempo para que a oferta se modele aos novos parâmetros da demanda.
Sunkel (1958) chamou a atenção para o fato de que a estrutura de oferta de países periféricos tende a ser pouco
compatível com a demanda doméstica e majoritariamente voltada para atender a demandas exportadoras.
Desta forma, a implementação por etapas seria uma maneira eficiente para injetar demanda gradualmente e
oferecer tempo para que oferta se ajuste.

As etapas iniciais seriam destinadas a pessoas em situação de alta vulnerabilidade social. Não existe um número
ideal de etapas até que o programa esteja totalmente implementado, mas um aumento gradual do número de
elegíveis ao programa ajudará nas adaptações necessárias que os desafios práticos venham a exigir. O ideal
é que os primeiros postos de trabalho gerados visassem a produção de alimentos orgânicos em comunidades
periféricas e áreas rurais a fim de destinar a produção para aqueles que estão em vulnerabilidade alimentícia,
assim como revitalização de espaços públicos nestas áreas. Etapas posteriores deveriam incluir cuidados
de crianças, idosos, atividades culturais, segurança comunitária, saneamento, reflorestamento, atividades
ambientais e o que mais a comunidade local julgar desejável.

Como financiar um programa de garantia estatal de empregos?


As consequências econômicas e sociais do desemprego não podem ser minimizadas. O desemprego tende a
deteriorar o tecido social em diferentes esferas: piora dos índices de fome e pobreza; agravamento de proble-
mas relacionados à segurança pública; desestruturação familiar com efeitos nocivos, principalmente, sobre
as crianças; aumento da incidência de problemas psiquiátricos, inclusive a elevação do número de suicídios e
da dependência química. Tais efeitos são ainda mais cruéis para parcelas da população já marginalizadas por
uma série de fatores estruturais, como as mulheres, a população negra e indígena e os LGBTs. Além disso, o

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medo do desemprego atua como elemento disciplinador e desorganizador da classe trabalhadora, conforme
descrito por Kalecki (1983).

Dito isso, é sintomática a relativa tolerância com que os políticos e formuladores de políticas econômicas lidam
com este distúrbio social tão grave. Ao invés da busca por soluções estruturais e definitivas para o desemprego,
costuma-se naturalizá-lo e remediá-lo com meras políticas compensatórias.

Um dos possíveis motivos para a alta tolerância com o desemprego por parte dos policy-makers, incluindo
aqueles que já foram convencidos dos enormes custos sociais gerados, é a intuição de que não há viabilidade
financeira para a sustentação de um programa que trate do problema de forma definitiva. Tal percepção, no
geral, decorre da forma como as pessoas – incluindo grande parte dos economistas e políticos – enxergam as
finanças públicas do ente monetariamente soberano: com base em frágeis analogias com economias familiares
ou empresariais de meros usuários de moeda5.

Sem a pretensão de esgotar o debate teórico e operacional, a presente seção buscará trazer os elementos
necessários para afastar a tese de constrangimento financeiro para o emissor de moeda soberana. Com isso,
ficará respondido, também, o questionamento sobre a viabilidade financeira da implementação de um programa
de garantia estatal de emprego no Brasil, um país emissor de moeda soberana.

Seguindo a abordagem da MMT, há pelo menos duas diferenças fundamentais entre os emissores de moeda6
e os usuários de moeda. A primeira é que um governo monetariamente soberano emite dinheiro toda vez que
realiza um gasto, sem a necessidade de obtenção prévia de recursos. Ou seja, não há restrição financeira em
moeda doméstica no sentido convencionalmente adotado. A segunda é que o próprio governo, através do seu
Banco Central, tem o poder de determinar a taxa básica de juros da economia.

A análise convencional sobre a restrição fiscal do governo costuma ser sintetizada pela seguinte fórmula: G
+iD = T + ΔM0 + ΔD. O lado esquerdo da fórmula expressa os dispêndios do governo, sendo G os gastos com
bens e serviços e iD os gastos com a dívida pública, no qual i é a taxa de juros incidente sobre a dívida pública
D. Do lado direito temos as supostas possibilidades de financiamento dos gastos públicos, onde T representa
a tributação; ΔM0 a variação da base monetária e ΔD a variação da dívida pública. Desta identidade, o argu-
mento convencional extrapola que os déficits públicos (G +iD > T) terão de ser financiados por crescimento
da dívida pública (ΔD) e/ou monetização da dívida (ΔM0). Neste arcabouço, a sequência do argumento é
de que o financiamento do déficit via aumento da dívida pública tende a levar ao crescimento das taxas de
juros e o financiamento por emissão de moeda, além de ser vedado no Brasil (o Banco Central é proibido pela

5 Conforme Blanchard et al. (1991, p.8): “Sustainability [of fiscal policy] is basically about good housekeeping”.
6 Segundo Dalto et al (2020), um país tem soberania monetária quando o Governo possui a prerrogativa de determinar qual a mo-
eda de conta oficial, de deter o monopólio sobre a emissão do dinheiro emitido na moeda de conta oficial, de impor obrigações
não recíprocas (principalmente impostos, mas, também, multas, taxas, tarifas dentre outros) e de decidir o que entregará para
realizar pagamentos e transferências ao setor privado.

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Constituição Federal no artigo 164 de emprestar ao Tesouro), acarretaria em pressões inflacionárias7 (DALTO
et al, 2020; GREMAUD et al, 2004).

Entretanto, a Teoria Monetária Moderna demonstra que a relação de causalidade convencionalmente adotada
para a identidade acima está equivocada, senão invertida. O gasto público (G +iD) sempre se dá pela emissão de
dinheiro (ΔM0) que, posteriormente, é reduzida pelo pagamento de tributos (T) e/ou pela conversão em títulos
da dívida pública (ΔD), sendo a variação da base monetária (ΔM0) observada no final do período o resíduo do
que não virou tributo nem título da dívida pública. Desta forma, a identidade que os economistas convencionais
adotam como a restrição orçamentária do governo é apenas o resultado ex-post dos processos de política
fiscal iniciados pelos dispêndios públicos via emissão monetária (DALTO et al, 2020).

De forma mais específica e operacional, nas economias modernas os bancos têm contas especiais no Banco
Central, chamadas contas de Reservas Bancárias. Quando o governo, através do Tesouro, realiza qualquer gasto,
seja primário ou financeiro, simplesmente envia uma ordem de pagamento em nome do beneficiário do gasto e
o Banco Central credita o saldo na conta de Reservas Bancárias do banco em que o destinatário possui conta
corrente. As reservas bancárias criadas pelo governo aumentam o que chamamos de base monetária (papel
moeda em poder do público mais reservas bancárias). O banco, por sua vez, registra o acréscimo de depósito
na conta bancária do destinatário do pagamento pelo governo no mesmo valor correspondente ao crescimento
das suas reservas bancárias (Wray, 2015). No caso do Brasil, o processo se dá com o registro de um débito na
Conta Única do Tesouro (passivo não monetário do Banco Central e ativo do Tesouro) e de um crédito na conta
de reservas bancárias do banco receptor (componente do passivo monetário do Banco Central).

A conclusão lógica deste processo é que se qualquer obrigação financeira é devida em reais, o governo brasileiro
sempre tem os meios financeiros para pagá-la, sendo preciso apenas a autorização do Congresso para que o
Tesouro e o Banco Central façam as operações necessárias. Na maior parte dos casos, essa autorização deverá
ser acompanhada da suspensão ou revogação legislativa de regras fiscais autoimpostas, como veremos adiante.

O ponto central é que está sempre nas mãos do governo a capacidade e a decisão para realizar tais pagamentos.
Não é necessário que se ampliem tributos ou que se realizem empréstimos junto ao setor privado previamente
à realização do gasto. Trata-se, antes de tudo, de decisão política que, por sua vez, não dispensa a observância
dos aspectos reais da economia. Foi exatamente assim na aprovação das medidas extraordinárias de combate
à pandemia em 2020, quando o Brasil, em meio a uma das maiores quedas de arrecadação da história, adotou
um regime fiscal extraordinário que resultou em gastos diretos com combate ao Covid-19 de R$ 524 bilhões,
sendo 55,9% destinados ao pagamento do auxílio emergencial.

7 Segundo Gremaud et al (2004, P. 526), no caso do financiamento por emissão de moeda “trata-se de uma forma eminente-
mente inflacionária”. E no segundo tipo de financiamento ocorre “elevação da dívida pública, e o governo, para colocar esses
títulos à disposição do público, necessitará oferecer taxas de juros mais atraentes.”

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Agora vamos introduzir o segundo aspecto mencionado: a determinação exógena da taxa básica de juros pelo
governo, ou seja, por que é o governo que escolhe e determina a taxa básica de juros da economia e não o
mercado, ao contrário do que o senso comum costuma indicar.

Com relação ao patamar dos juros, vasta literatura mostra que a taxa de juros é uma variável exógena determi-
nada pelo Banco Central [i.e Fullwiller (2008), Lavoie (2014), Moore (1988)]. Ser exógena não significa que sua
determinação ocorre no vácuo. Em uma economia periférica, deve-se levar em conta um spread em relação a
moedas consideradas mais seguras, como os Treasuries americanos (Braga e Aidar, 2019). Mas não é o mer-
cado que determina a taxa de juros com seu “poder de barganha”. Quem tem poder de barganha é o Tesouro
Nacional e o Banco Central, que juntos, são poderosos o suficiente para enfrentar qualquer “aposta” do mercado.

Simplificadamente, quando os gastos do governo são maiores que a tributação, o saldo da Conta Única do
Tesouro, tudo o mais constante, é alterado e a base monetária ampliada. Este excesso de reservas no sistema
bancário tende a pressionar para baixo a taxa de juros que vigora no mercado de reservas bancárias. Contudo,
como o Banco Central deseja manter a taxa de juros básica efetiva (Selic Over) próxima à meta estabelecida
pelo Copom (Selic Meta), atua vendendo, com compromisso de recompra, títulos públicos do Tesouro que
possui em sua carteira (nas chamadas operações de mercado aberto), absorvendo todo e qualquer excesso
de reservas até alcançar a meta de taxa de juros.

É importante notar também que os bancos criam moeda endogenamente, sem a necessidade de receberem
depósitos prévios e/ou reservas, por meio dos empréstimos que realizam junto ao público. As reservas bancárias
são necessárias apenas ex-post, seja para o cumprimento de exigências legais; para o regaste de depósitos
à vista que clientes queiram converter em papel-moeda ou ainda para fazer liquidações de pagamentos com
outros bancos. Para satisfazer essas necessidades ex-post, os bancos possuem linhas diretas de crédito de
reservas com o Banco Central, chamadas de redesconto ou financiamentos de liquidez. Ainda mais relevante
é o fato de que essa demanda por reservas por parte dos bancos precisa ser sempre satisfeita para que o
sistema de pagamentos seja estabilizado. Portanto, se os bancos não encontrassem reservas suficientes,
ou seja, se o Banco Central simplesmente optasse por não acomodar totalmente a demanda por reservas a
uma dada taxa de juros, observaríamos as taxas de juros de curto prazo subindo sem limites e o sistema de
pagamentos entraria em colapso. Por essa razão, mesmo quando o Tesouro é proibido por uma autoimposição
legal de vender títulos diretamente ao Banco Central (caso do Brasil) ele não enfrenta limitações para emitir
títulos à taxa de juros básica vigente. (Dalto; Conceição; Deccache, 2021).

Do que foi visto até aqui, conclui-se que o ente monetariamente soberano realiza seus gastos criando dinheiro
(reservas bancárias) e determina exogenamente a taxa básica de juros, o que implica ausência de restrições
financeiras em moeda doméstica. Contudo, isso não quer dizer que não há nenhum tipo de limite para os gas-
tos públicos em moeda nacional, mas sim que estes limites nada tem a ver com possibilidade de escassez da
moeda que só o Estado pode emitir e que o faz toda vez que gasta.

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Desta forma, as verdadeiras restrições para os gastos públicos residem na disponibilidade dos recursos reais
que podem ser obtidos com a moeda nacional. Os governos não podem usar sua moeda para comprar o que
não está à venda em sua moeda, mas em uma nação que tem recursos ociosos, conhecimento tecnológico e
pessoas dispostas a trabalhar, ele sempre poderá pagar para mobilizar a plenitude desses fatores (WRAY, 2003).

Portanto, quando questionamos a possibilidade de o Estado garantir emprego para todos que possam e dese-
jam trabalhar, o primeiro passo deve ser avaliar se há os recursos reais e operacionais necessários para tal. O
desafio, portanto, é sobre como fazer e não como pagar. Ou seja, é preciso determinar se temos capacidade
operacional e recursos materiais para atender a essas necessidades. Se os recursos estão disponíveis ou podem
ser disponibilizados, a capacidade de creditar contas bancárias é resolvida com uma simples autorização de
crédito orçamentário pelo Congresso e da revisão de algumas regras fiscais autoimpostas.

No Brasil, dentre as muitas regras disfuncionais que engessam a capacidade de mobilização dos recursos
materiais e tecnológicos disponíveis e a venda na nossa moeda, destacamos as três que consideramos mais
restritivas: a) a primeira, e mais agressiva, é a Emenda Constitucional nº 95 (EC 95), apelidada como teto de
gastos; b) as metas de resultado primário contidas na Lei de Responsabilidade Fiscal8 e c) a regra de ouro que,
quando operando em conjunto com a EC 95, gera fortes constrangimentos fiscais9.

Por fim, por questões de agilidade, eficiência e segurança jurídica para a consolidação e perenidade do programa,
seria importante a aprovação de um dispositivo no nosso arcabouço legal e/ou constitucional garantindo que
os gastos com o programa de garantia de emprego sejam considerados uma despesa obrigatória não limitada
pelas regras fiscais vigentes, o que não implica, de forma alguma, ausência de mecanismos legais de controle,
fiscalização e publicidade.

Impactos sobre inflação, juros e perfil da dívida


Se, conforme discutido nas sessões anteriores, não há restrição estrutural ao financiamento do programa, e
diante de um cenário frequente de desemprego estrutural, costuma-se dizer que o entrave ao programa se daria

8 Promulgada em 2000, a LRF determina que a Lei de Diretrizes Orçamentárias deve definir metas fiscais, com critérios para limitações de
empenho, caso haja possibilidade de descumprimento da meta fiscal. Dessa forma, se por alguma razão o governo projetar uma frustra-
ção no cenário de receitas e/ou despesas, deve ajustar sua programação orçamentária para adequar a política fiscal ao cumprimento do
resultado primário. Esse mecanismo tem um caráter fortemente pro-cíclico: quedas na receita, geralmente, são consequências
de desaceleração econômica, sintoma de menor renda disponível no setor privado. Ao ajustar as despesas públicas (com cortes),
o governo reforça a tendência de desaceleração econômica.
9 A regra de ouro, criada pela Constituição de 1988, estabelece que o governo só pode emitir dívida para financiar investimentos
ou rolar o pagamento de amortização de dívidas passadas. O maior problema dessa regra é quando funciona paralelamente
com o novo regime fiscal (EC 95): com o teto dos gastos, quase 95% do orçamento dos próximos anos serão com despesas
obrigatórias, sobrando em torno de 5% para as discricionárias (onde se inclui os investimentos públicos). Após a promulgação
da Constituição de 1988, a regra de ouro valia apenas para o orçamento empenhado, portanto, não era conferido se as despesas
de capital executadas eram iguais as operações de crédito. O que fez a regra de ouro se tornar concretamente restritiva foi a
LRF, que obrigou que fosse apurado o equilíbrio das operações de crédito e das despesas de capital executadas no exercício.

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no âmbito dos impactos sobre inflação e juros. Sem desemprego, a maior quantidade de dinheiro circulando
na economia geraria inflação ou, diante do aumento do gasto público, os emprestadores de crédito só aceita-
riam comprar os títulos de dívida da União a juros elevados, o que provocaria uma elevação desta variável na
economia como um todo. Vejamos.

Existem dois tipos de inflação, a inflação de demanda e a inflação de custos. A primeira ocorre quando todas
as forças produtivas estão na sua capacidade máxima e a oferta não pode mais se expandir em resposta a um
aumento da demanda. Ou seja, o estímulo à economia não poderia ser respondido com aumento de produção,
plantas, fábricas, ou estabelecimentos, e o aumento da demanda seria, para os produtores, uma oportunidade
para aumentar preços. Acontece que antes de chegar a esse ponto, o chamado PIB potencial, um aumento da
demanda estimula a expansão de empresas, a abertura de novas lojas, e a contratação de novos trabalhadores.
A oferta produtiva se expande em resposta ao estímulo econômico, neste caso, proporcionado pelo programa.

Portanto, se a inflação de demanda é de fato uma questão sobre a qual o programa deve estar atento, é
importante ressaltar que esse tipo de inflação somente seria provocado se o programa estimulasse a economia
a tal ponto de levá-la para além de sua capacidade máxima correspondente ao chamado PIB potencial. No
entanto, como já traçamos até aqui, a ideia é que o programa seja um amortecedor da economia em tempos
de recessão, e, fora dela, que ele seja um complemento, não um substituto ou concorrente do setor privado.
É um complemento para garantir emprego a todos quando o setor privado não estiver estimulado suficiente-
mente a fazê-lo, ou, conforme argumentamos na segunda seção, para garantir emprego àqueles que não são
absorvidos pelo mercado de trabalho e/ou para desenvolver atividades que não fazem parte da lógica lucrativa
capitalista, promovendo bem-estar coletivo às comunidades locais.

Outro tipo de inflação ocorre quando há aumento de preços relacionados a fatores de custos, como desva-
lorização do câmbio, aumento do preço das commodities, ou alguma ocorrência ambiental que desarranje a
produção agrícola, como a seca. Esses fatores não dependem necessariamente da demanda ou do nível de
atividade próximo à capacidade máxima da economia. É aqui que se enquadra também a inflação de salários,
cujos traços já mencionamos na segunda seção. Seria um tipo de inflação causado por pressões altistas nos
salários, refletindo um conflito distributivo sobre a renda. No caso do PGE, vale lembrar, a existência de um
Conselho de Barganha para controlar o preço dos serviços do programa ajudará no controle deste tipo de
inflação, um dos principais componentes do conflito distributivo no Brasil.

Sobre este aspecto, cabem algumas considerações. Ao retirar pessoas da miséria e sinalizar um salário digno
no mercado de trabalho, é possível que de fato haja uma mudança de preços relativos devido a um aumento de
salários repassados aos preços. No entanto, se desejamos uma sociedade mais igual e justa, os salários da base
têm de crescer mais do que o do topo da pirâmide, para com isso haver distribuição de renda. Se o aumento
de salários não for totalmente repassado para os preços (caso em que o aumento salarial seria integralmente

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corroído pelo aumento dos preços), podemos até dizer tratar-se de inflação desejável. Em outras palavras, uma
inflação transitória e que tem a melhora na distribuição da renda como resultado10.

Um outro fator de custo importante é o câmbio, seja como resultado de gargalos produtivos que o Programa
venha a esbarrar (pressionando importações), seja por oscilações exógenas à economia doméstica. Assim, o
câmbio também poderia ser considerado um entrave à manutenção do programa (VILELLA, 2021). Oscilações
abruptas da taxa de câmbio podem influenciar a maneira como empresários e trabalhadores abordam o
conflito distributivo supramencionado, intensificando as demandas salariais e, eventualmente, engendrando
uma espiral inflacionária (BASTIAN e SETTERFIELD, 2020). Apesar de raros os exemplos históricos de espirais
inflacionárias, o controle de capital se mostra uma ferramenta importante para evitar que o conflito se inten-
sifique. Desenhos institucionais de controle de capital fogem ao escopo deste trabalho, mas a eficiência do
caso brasileiro no segundo semestre de 2012 evidenciada por Rossi (2016, p.153-154), pode oferecer lições
importantes. Esta regulação combinava controles de capital, oneração de posições dos bancos e impostos
sobre derivativos. Regulações como estas experimentadas em 2012 ajudariam a evitar os efeitos negativos
das oscilações cambiais, contendo eventuais intensificações do conflito distributivo.

No que se refere a gargalos produtivos, caso o programa estimule setores com elevado coeficiente de impor-
tação, poderia haver inflação como resultado da pressão cambial resultante dessas importações, além da
possibilidade de se esbarrar na restrição externa – quando os dólares gerados pelas exportações ou recebidos
por investimentos estrangeiros não são suficientes para pagar as importações, e o país precisa se endividar em
moeda estrangeira. Se, alternativamente, o programa de emprego trabalhar em áreas que podem ser supridas
pela produção interna, ou em serviços que independem de importados tal como sugerido na primeira sessão,
este problema fica contornado.

Do exposto até aqui, o programa garantidor de emprego deve se preocupar em não deslocar a economia na
direção de superaquecimento e mediar o conflito distributivo subjacente à disputa da renda agregada na forma
de salários e lucros.

Ainda assim, um programa como este muitas vezes é considerado inexequível porque haveria a possibilidade
de o mercado ameaçar interromper o financiamento do Tesouro Nacional, conforme mencionado na segunda
sessão deste artigo. Alguns autores sugerem que esta ameaça se concretizaria através do aumento da taxa de
juros incidente sobre a dívida pública, provocado pela crença da insustentabilidade desta em relação ao PIB.

Primeiramente, importa notar que a relação dívida/PIB de um país é endógena. Isso significa que se o PGE
evitar recessões econômicas, o PIB que é o denominador dessa relação, não apresentará quedas prolongadas,
logo, a relação dívida/PIB tende a se estabilizar ao longo do tempo. E se o PGE gerar crescimento econômico, o
programa paulatinamente perde importância relativa – trabalhadores preferirão outras colocações profissionais
com salários mais elevados, reforçando a estabilização do índice. É este justamente o objetivo do programa,
10 Há ainda, a possibilidade deste choque inicial engendrar uma espiral no conflito distributivo. Para um debate desta possibilidade
e seus efeitos ver Vilella (2021).

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complementar o setor privado enquanto este ainda não é capaz de empregar toda a população desejosa de
trabalhar.

Respeitada a restrição externa (que, junto com a inflação de demanda, devem estar no radar do PGE), não há
razões para o Tesouro não conseguir seguir emitindo dívida por meio dos leilões de títulos que realiza. Basta
oferecer qualquer spread em relação à taxa básica da economia, determinada pelo Banco Central, e será mais
vantajoso para as instituições financeiras adquirirem este título a deixarem suas reservas bancárias com
rendimentos inferiores. Em momentos de turbulências econômicas, os títulos de fato acabam sendo vendi-
dos com o chamado “prêmio de risco”, isto é, um spread mais acentuado acima da taxa básica determinada
pelo Banco Central (no Brasil, a Selic). Na verdade, isso é normal no sistema monetário capitalista. Ocorreu
no Brasil em 2003 (eleição do Lula), em 2008 (crise subprime nos EUA) ou em momentos que tivemos rebai-
xamento da nota de grau de investimento por agências de rating. Mas em todas essas ocasiões, os prêmios
dos títulos retornam para um patamar próximo à Selic e à expectativa da trajetória futura desta. O mercado
visa oportunidades rentáveis e arbitra em função dessa expectativa de juros futuro em relação ao corrente,
e nesse sentido, sempre estará disposto a compor suas carteiras com títulos de dívida pública, garantindo o
ganho com esta composição.

Não existe ameaça do mercado contra um Tesouro Nacional e um Banco Central alinhados em seus objetivos.
O Banco Central do Brasil, por exemplo, tem uma carteira de R$1,23 trilhão em títulos da dívida pública para
realizar as operações compromissadas, além da capacidade de atuar na curva de juros, na ponta curta e longa.
Já o Tesouro possui um saldo de R$1,6 trilhão registrado na sua Conta Única junto ao Banco Central11. Além
disso, se para o Tesouro não for momentaneamente vantajoso vender título longo e prefixado, porque o mercado
faz propostas nos leilões com prêmios muito elevados, há sempre a possibilidade de se colocar títulos mais
curtos e pós-fixados. O Tesouro não tem problema de rolagem nesses papéis. Em condições mais favoráveis,
poderá alongar e prefixar a dívida, se assim o desejar. Aliás, é sabido: se a composição da dívida pública em
mercado for longa e pré-fixada, mas os bancos começarem a apresentar muita perda de capital por qualquer
razão, em geral o TN faz leilão de recompra, para evitar prejuízo sistêmico dos bancos.

Sendo assim, conclui-se que a dívida pública jamais será um empecilho para o PGE, se TN e BC atuarem
coordenadamente para estipular o custo médio da dívida pública. Ato contínuo, tampouco podemos afirmar
que a implementação de um PGE levará inexoravelmente à um descalabro inflacionário. Assim, a eliminação
do desemprego em massa e o caminho para uma sociedade mais justa passa por um planejamento político
adequado do programa aqui proposto. Isto é, um planejamento que se atente para os focos de pressão infla-
cionária, seja através de salários, câmbio ou demanda de curto prazo, como também inclua uma coordenação
entre TN e BC no sentido de atuar ao longo da curva de rendimentos dos títulos públicos, reduzindo o ônus
distributivo que o pagamento de juros da dívida carrega consigo.

11 Valores referentes a setembro de 2021, segundo o Banco Central do Brasil.

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Conclusão
Os tempos atuais exigem uma nova abordagem no enfrentamento ao desemprego. O arcabouço econômico
pautado no controle da inflação e em um suposto equilíbrio das contas públicas já se mostrou devidamente
insuficiente, levando milhões de pessoas a uma situação de vulnerabilidade social e econômica, como é o caso
do Brasil atualmente, com mais de 19 milhões de pessoas desempregadas e desalentadas.

O presente artigo buscou discutir a possibilidade do Estado como empregador de última instância, trazendo o
emprego como um dos objetivos primordiais da política econômica de um governo. A crise de 2008 e a pande-
mia do coronavírus colocaram o debate econômico internacional em outro patamar, com o setor público como
impulsionador da saída da crise. Países mundo afora implementam pacotes de investimentos em infraestrutura
e economia verde. Deste modo, é necessária uma mudança de postura em relação aos problemas econômicos
do Brasil e o PGE poderia ser uma nova forma de encarar o papel do setor público como indutor do crescimento.

Mostramos que, se bem desenhado, um Programa de Garantia de Emprego pode ser financiado pela União, sem
gerar problemas incontornáveis em termos de juros, câmbio e inflação. Concluímos que o grande entrave, reside,
pois, no âmbito político, e não econômico. Enfrentar os grupos de poder e os atores sociais que se beneficiam
de alguma forma de um exército de mão de obra subempregado, e de uma estrutura de renda profundamente
desigual, não é tarefa fácil. A vontade política não reflete a voz de milhões de trabalhadores sem esperança
e o debate econômico insiste em dogmas ultrapassados. O PGE poderia inaugurar uma nova perspectiva no
enfrentamento do desemprego no Brasil, de forma séria, eficiente, justa e solidária.

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Job Guarantee Program in Brazil


Recebido 09-nov-21 Aceito 22-nov-21

Resumo O presente artigo discute a necessidade, possibilidade e operacionalidade básica de um programa go-
vernamental que garanta para todos os cidadãos um emprego digno com salário correspondente e que também
seja adaptado às especificidades da economia brasileira. Para tal, apresentou-se as origens e fundamentos
teóricos deste tipo de proposta, que remonta à ideia original de Hyman Minsky. Visando justificar a necessi-
dade de um programa do tipo para o Brasil, bem como adaptá-lo às nossas peculiaridades, foi apresentado um
panorama do mercado de trabalho brasileiro. O artigo também responde aos mais comuns questionamentos e
óbices aos programas de garantia de emprego, demonstrando a viabilidade fiscal de financiamento e os efeitos
da proposta sobre as taxas de juros e de inflação.

Palavras-chave Teoria Monetária Moderna; Finanças funcionais; política fiscal; programa de garantia de em-
prego; Estado como empregador de última instância.

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Abstract This article aims to discuss the basic operation and possibilities around a governmental program to
guarantee a decent job and wage for all citizens, as well as the specificities of its implementation in Brazil. The
theoretical foundation of this proposal, which goes back to the original ideas of Hyman Minsky, was presented.
The Brazilian labor market is briefly discussed in order to justify the reasons for implementing such a program in
Brazil. The article also responds to the most common questions around job guarantee programs, such as public
financing and the effects on interest and inflation rate.

Keywords Functional finance; Modern Monetary Theory; fiscal policy; job guarantee; Employer of last resort.

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