A Biologia Do Tea

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Por Audrey Bueno

A BIOLOGIA DO TEA

Mesmo após considerável avanço nas pesquisas acerca do autismo e evidente base genética e biológica para o
transtorno, já observada e defendida desde a década de 70 e que vem apresentando novos dados confirmatórios a
cada ano, desinformação e mitos ainda persistem, inclusive entre profissionais. Hoje, estima-se que pelo menos
80% dos casos de autismo tenham causa genética, conforme descreve um artigo de julho de 2019 da conceituada
revista médica JAMA Psychiatry, publicada pela American Medical Association (Associação Médica Americana).

A genética é algo de complexo entendimento, pois envolve muitos fatores e combinações entre eles. Embora a vasta
maioria das causas genéticas sejam hereditárias, nem todas o são, ou seja, há aquelas derivadas de alterações
espontâneas no material genético, de modo que os genes do autismo não estejam presentes no genoma dos pais, o
que explica o fato de nem sempre haver outro caso de autismo na família.

No entanto, sendo o autismo predominantemente hereditário, é comum que os pais – ou um deles – tenham genes
autistas, que podem ou não se configurar neles próprios de forma a gerar o conjunto de comportamentos
observados no transtorno que leve a um diagnóstico. Assim, enquanto alguns pais podem também ser autistas,
outros podem manifestar apenas um ou outro comportamento, muitas vezes numa versão mais sutil, enquanto
estes mesmos genes tenham se rearranjado de forma mais pronunciada no filho diagnosticado com TEA (Transtorno
do Espectro Autista). Para estes casos em que o pai, a mãe, ou ambos apresentam versões mais brandas de algumas
das características do espectro existe um termo: FAA – Fenótipo Ampliado do Autismo. Quando dizemos que o pai
ou a mãe de uma criança autista também tem ‘alguns traços’, estamos falando de um caso de FAA.

Não existe uma regra em termos de severidade do autismo herdado, uma vez que as mutações ocorrem de forma
individual. Pais autistas leves podem gerar filhos com autismo severo, pais autistas severos podem gerar filhos com
autismo leve, ou filhos que tenham apenas traços sem que o transtorno completo se configure ou podem,
eventualmente, gerar filhos sem autismo (embora estes casos sejam mais raros, dada a forte influência genética do
autismo).

Por fim, acredita-se, ainda, que fatores ambientais possam ter alguma influência na manifestação do autismo. Por
“fatores ambientais”, a medicina entende agentes tais como toxinas (medicações, agrotóxicos, contaminação por
metal pesado, poluição, drogas, dentre inúmeras outras possíveis substâncias), infecções ou complicações na
gravidez, inflamação das células do sistema nervoso chamadas astrócitos (conforme explica o projeto “Fada do
Dente” da USP), oxigenação insuficiente no cérebro ou até mesmo acidentes que possam ter impactado regiões
cerebrais específicas (como o lobo frontal, por exemplo, área responsável pela sociabilidade, atenção e controle dos
impulsos). Ou seja, os fatores ambientais não relacionam-se ao estilo de criação dos pais ou a traumas psicoafetivos,
que nem poderiam ser considerados como causas pelo simples fato de que o cérebro autista se configura como tal,
na maioria massiva dos casos, ainda na vida intrauterina e, também, por serem os déficits do autismo de base
claramente biológica (alteração na fala, andar na ponta dos pés, girar o próprio corpo em movimento de “pião” com
alta frequência e aleatoriamente, dificuldades motoras, impossibilidade de fazer cessar comportamentos repetitivos,
reação emocional constantemente desproporcional à situação, etc.).

Diversos instrumentos de divulgação especializados em neurociências e medicina, como as renomadas


revistas Cell e Mount Sinai, publicaram em janeiro de 2020 os últimos achados obtidos através de um dos maiores
estudos genéticos sobre o autismo feitos até o momento. O estudo, proveniente da associação de pesquisadores
internacionais de diversas instituições, que compartilharam informações de seus bancos de dados e conseguiram
analisar mais de 35 mil amostras, sendo quase 12 mil de pessoas com TEA, identificaram 102 genes associados ao
autismo. Alguns desses genes relacionam-se não apenas ao autismo, mas também a outros transtornos envolvendo
deficiência intelectual e atraso no desenvolvimento.

Os pesquisadores utilizaram uma técnica chamada “sequenciamento de exoma”, que observa todas as informações
genéticas da pessoa que sejam traduzidas em proteínas, sendo, assim, capaz de rastrear mutações genéticas raras
que outros métodos não conseguiriam identificar. O método sofisticado e o tamanho da amostra analisada tornam
este o maior estudo sobre a base genética do autismo realizado até a presente data.
Porém, há diversos outros estudos genéticos de menor porte, porém não menos relevantes, em andamento no
mundo hoje. Alguns focam em analisar genes específicos em vez de identificar uma sequência deles.

Um desses estudos refere-se às deleções ou duplicações de DNA e seu papel na causa do autismo em pessoas com
mutação em um gene chamado PTEN. Algumas mutações no gene PTEN são associadas com manifestações benignas
chamadas de hamartomas (que são de muitos tipos, mas geralmente se parecem com pápulas ou formações císticas
em diversas partes do corpo) e alguns tipos de câncer. O PTEN também é associado ao autismo. Pessoas com essa
mutação podem ter autismo, câncer, ambos ou nenhum deles. “Não está claro por que mais de 75% das pessoas
com a mutação não têm autismo.”, diz o líder do estudo Charis Eng, que é diretor do Instituto de Medicina Genômica
da Clínica Cleveland, em Ohio, Estados Unidos. Foram analisadas 481 pessoas nascidas com a mutação no gene
PTEN, incluindo 110 pessoas com autismo, transtornos desenvolvimentais ou ambos. Descobriu-se que pessoas com
autismo ou atraso no desenvolvimento têm mais variações quanto ao número de cópias em seu DNA. Essas
variações foram encontradas em 10% das pessoas autistas em comparação a apenas 2% das pessoas sem autismo.

Um outro estudo, publicado em 2019, conduzido por uma equipe de pesquisadores da UCLA, universidade
americana que está entre as melhores do mundo, identificou 16 novos genes associados ao autismo. Os resultados,
que também foram publicados na revista Cell, se basearam em estudos com famílias com ao menos dois filhos
autistas. Pesquisadores da UCLA, da Universidade de Stanford e de três outras instituições mapearam o DNA de
2.308 pessoas e encontraram 69 genes que aumentavam o risco de desenvolvimento do Transtorno do Espectro
Autista. Anteriormente, 16 desses genes não haviam sido considerados como possíveis associações.

A Universidade de Harvard também publica periodicamente atualizações acerca dos estudos genéticos sobre o
autismo e informa já ter descoberto dezenas de genes associados ao transtorno. Dentre as descobertas, está a
relacionada a mutações no gene MeCP2, que impacta os centros sensoriais do corpo, lançando luz à questão das
hipersensibilidades sensoriais comuns no autismo. Uma dessas publicações foi traduzida ao final desse artigo e o
texto original em inglês pode ser acessado aqui.

Todos esses estudos e resultados nos mostram que a base genética do autismo é certa, apesar de altamente
complexa, e que nosso desafio agora é mapear os genes específicos restantes e compreender melhor as mutações
existentes e como tudo isso atua na formação do cérebro e na manifestação da sintomatologia do autismo. Apesar
de termos ainda muito trabalho pela frente, a descoberta genética crescente e as novas correlações entre genes que
antes nem se suspeitava que estivessem associados ao autismo tornam evidente o progresso que temos tido em
compreender detalhadamente um transtorno tão intrincado.

Sabemos que o autismo não deriva de um único ponto, ou seja, múltiplos genes e formas de expressão destes,
mutações diversas e diferentes áreas cerebrais impactadas estão envolvidos no transtorno em vez de um único
fator apenas, o que explica a igualmente variada sintomatologia do espectro autista (do verbal ao não-verbal, da
deficiência cognitiva à superdotação, da estereotipia excessiva à estereotipia suave, das variações quanto ao tipo e
intensidade das hipersensibilidades sensoriais, da maior ou menor habilidade nas interações sociais, etc.).

COMORBIDADES

O autismo geralmente coexiste com outras condições, a maioria delas ocorrendo num espectro, ou seja, podendo
variar de manifestação leve à severa. Convulsões ou epilepsia estão presentes em cerca de 30% dos casos de
autismo, mais de 60% têm problemas gastrointestinais e motores e distúrbios do sono são observados em cerca de
50 a 80% dos casos. Estima-se que em torno de 30% dos autistas sejam não-verbais.

O déficit intelectual é uma comorbidade frequente no autismo e está presente em cerca de 50 a 60% dos casos.
Um estudo realizado pelo Instituto de Educação, em Londres, UK, no Departamento de Psicologia e Desenvolvimento
Humano do Centro de Pesquisa em Autismo e Educação (Centre for Research in Autism and Education, Department
of Psychology and Human Development, Institute of Education) avaliou uma amostra de 156 crianças no espectro do
autismo e obteve as seguintes estimativas quanto à função cognitiva: cerca de 55% apresentaram déficit intelectual
(QI menor que 70), 28% foram identificadas com inteligência na média (com QIs em torno de 85 a 115) e 3%
manifestaram QI acima da média (maior que 115). Estes achados parecem correlacionar-se a outros estudos
similares, que chegaram a estimativas parecidas, sendo variações esperadas, no entanto, devido à dificuldade em
mensurar adequadamente o perfil intelectual de crianças no espectro do autismo, às variações e limitações de
métodos, amostras populacionais e instrumentos utilizados. Quanto ao alto QI, parece não haver diferença
significativa entre a estimativa da população superdotada (com QI acima de 130) em pessoas autistas e não autistas.
Estima-se que a superdotação intelectual ocorra em torno de 3 a 5% da população geral.

Dentre os transtornos genéticos sindrômicos, pode haver comorbidade com a Esclerose Tuberosa, a síndrome do X-
frágil e a síndrome de Down. Estima-se que entre 8 e 16% das crianças com síndrome de Down sejam também
autistas, uma prevalência muito maior que a da população geral, em que o autismo ocorre em cerca de 1 a 2% da
população. Crianças com síndrome de Down sem autismo também apresentam comportamento repetitivo, o que
mostra a forte correlação genética para este tipo de comportamento.

Outras das comorbidades mais frequentes são TDAH (presente em cerca de 55% dos casos), TOC (37%), transtornos
de ansiedade (variando amplamente, de 30 a 80% dos casos) e depressão (também variando entre 10 e 50% dos
casos, sendo: CRIANÇAS, em torno de 10% dos casos em comparação a 3% da população geral; ADOLESCENTES,
cerca de 26% dos casos em comparação a 14% da população geral; ADULTOS, aproximadamente 50% dos casos em
comparação a 16% da população geral). A ansiedade e a depressão ocorrem com mais frequência em pessoas com
autismo de alto funcionamento. O TOD está presente em aproximadamente 10% dos casos de autismo, o Transtorno
de Ansiedade de Separação em 12% e a síndrome de Tourette ocorre em torno de 6% dos casos. (Fontes diversas; as
porcentagens aqui descritas são apenas estimativas e apresentam variações conforme o tipo de estudo conduzido.)

A HISTÓRIA DAS TEORIAS SOBRE AS CAUSAS DO AUTISMO E SEUS “EFEITOS COLATERAIS” HOJE

O psiquiatra austríaco Leo Kanner, então radicado nos Estados Unidos, foi, em 1940, o primeiro a descrever o quadro
clássico de autismo. Quase ao mesmo tempo, Hans Asperger, um pediatra vienense, fez sua primeira descrição do
autismo de alto funcionamento, que mais tarde ficaria conhecido como síndrome de Asperger. Porém, as descrições
de Asperger permaneceram pouco conhecidas até a década de 80, não apenas pelo fato do médico possuir menos
contatos influentes na época que difundissem sua obra, como também pela dificuldade em divulgar seus textos que
eram escritos em alemão. Em contrapartida, as descrições de Kanner foram amplamente divulgadas. Hans Asperger
observou que a genética poderia ser a possível principal causa do transtorno que descrevia, sobretudo por
reconhecer traços comportamentais similares nos familiares de seus pacientes, enquanto Leo Kanner seguiu outra
linha de interpretação.

Influenciado pela psicanálise, que era o ponto de vista dominante no meio clínico da época, e que enfatizava a
análise das experiências vividas nos primeiros anos de vida, especialmente quanto à relação mãe-bebê, como causa
para diversos transtornos mentais, Kanner cunhou sua própria teoria sobre as causas do autismo, a que chamou de
“refrigerator mother theory” (“teoria da mãe-geladeira”), disseminando sua ideia de que o autismo fosse causado
pela falta de amor materno.

Vale atentar para o fato de que Leo Kanner tinha pontos de vista fortemente embasados no patriarcado, tanto em
relação às suas crenças religiosas quanto à perspectiva cultural da própria época em que viveu, que não reconhecia
na mulher outra possibilidade que não fosse a dedicação exclusiva a servir ao marido e aos filhos com o máximo de
zelo e dedicação. Por ser relativamente frequente que pais – incluindo as mães – de crianças autistas fossem
intelectuais e manifestassem interesse em seguir uma carreira profissional para além das funções domésticas, fato
este que inclusive estaria em consonância com a tendência progressista de um país como os Estados Unidos, este
talvez tenha sido um ponto de incômodo para a visão pessoal de Kanner sobre a forma com que estas mulheres se
apresentavam. Essa cultura patriarcal reforçava o julgamento negativo para as mulheres que se desviassem da
norma.

Kanner também falhou em considerar que a aparente distância que observava na interação entre mãe e filho
pudesse ser uma resposta ao estilo evitativo da criança, com o qual a mãe já estaria familiarizada, e não o contrário,
como supôs, o que fez crescer seu julgamento acerca da virtuosidade materna. Para ele, a criança evitava o toque ou
não respondia às tentativas de relação social porque a mãe havia causado algum tipo de trauma à criança, sem
considerar que os comportamentos que ele observava eram, na verdade, determinados pelo tipo de configuração
cerebral da pessoa autista, que envolvia hipersensibilidades sensoriais e dificuldades na socialização. Na verdade,
parece ter havido um período em que ele considerou a hipótese do autismo ser de base constitucional, ou seja,
relacionado à formação cerebral, mas toda a influência cultural, de valores pessoais e de pressão dos pares quanto à
emergência da psicanálise o fizeram optar por seguir a linha de pensamento que levou à teoria de que o autismo
fosse causado pelo ambiente, especificamente em relação à criação dos pais.

A teoria de Kanner, como era de se esperar num momento histórico em que a psicanálise vivia seu auge (início da
década de 40) e quando ainda não havia explicações biomédicas para o autismo, ressonou fortemente na população.
Além disso, acreditar que o autismo fosse causado por estilos de criação negativos dos pais – mães em especial – era
uma posição mais cômoda por oferecer mais esperança de um possível tratamento, como propunha tão
veementemente a psicanálise, tratamento este que nunca surtiu efeito em autistas. Para um médico, especialmente
num momento histórico em que a profissão usufruía de grande status e influência na sociedade, e quando muitos
buscavam um ‘lugar ao sol’, inclusive Kanner, que ainda não tinha chegado a um alto posto na profissão, assumir que
não se fazia ideia do que fosse um transtorno e muito menos de qual pudesse ser um tratamento, não somente era
uma posição difícil, mas também temida. Além do mais, nos anos 40, aderir ao proposto pela psicanálise era
sinônimo de fazer parte da nata culta elitizada que se vangloriava de ser a detentora do conhecimento “de ponta”.

Psicanalistas influentes da época, como Bruno Bettelheim, apoiaram a ideia de Kanner e logo a teoria da mãe-
geladeira passou a ocupar as manchetes dos jornais. Bettelheim também era uma figura bastante conservadora dos
valores do patriarcado e interpretava o fato de mulheres terem o desejo de desenvolver uma vida profissional em
vez de apenas se dedicarem à casa e aos filhos como sinal de transtornos mentais. Além disso, foi um sobrevivente
dos campos de concentração, o que lhe causou profundos distúrbios psicoafetivos e possivelmente fez com que
projetasse o ódio que vivenciou em quaisquer que fossem as situações em que a díade “figura de autoridade e figura
vulnerável” estivessem configuradas, sendo a relação entre pais e filhos uma das possíveis representações dessa
configuração. Esse ódio manifestou-se não somente ao atacar figuras de autoridade, como frequentemente fez com
os pais de seus pacientes, como em comportar-se ele mesmo de forma cruel com aqueles em posição de
vulnerabilidade que se encontravam sob os seus cuidados, mostrando o quanto os seus próprios traumas nunca
resolvidos se sobrepuseram ao exercício de sua profissão e guiaram suas análises e relações interpessoais, como se
nunca tivesse deixado o campo de concentração. Suicidou-se no fim da vida, e especula-se que a causa possa ter sido
a perda de credibilidade e as acusações que recebeu por maltratar seus pacientes com deficiências. Um de seus
pacientes na época, Ronald Angres, escreveu um artigo publicado em 1990 contando sobre os maus tratos que
sofreu.

A teoria da mãe-geladeira, criada por Kanner e apoiada por Bettelheim, predominou livremente sem estudos que a
opusessem durante as décadas de 50 e 60, até que, em 1964, Bernard Rimland, um psicólogo que tinha um filho
autista, publicou um livro que destacava a emergente necessidade de uma contra-explicação às concepções
equivocadas acerca do autismo. Seu livro “Infantile Autism: The Syndrome and its Implications for a Neural Theory of
Behavior” (“Autismo Infantil: A Síndrome e Suas Implicações para uma Teoria Neural do Comportamento”) foi a
primeira grande oposição à teoria da mãe-geladeira, uma teoria desastrosa cujo único feito foi intensificar a angústia
e o estado de desamparo e fragilidade em que tantas mães e filhos já se encontravam. Por décadas, quando não por
toda uma vida, estas mães tiveram que conviver com um sentimento de dor e culpa excruciantes. Muitas crianças
autistas foram separadas de suas mães porque, acreditando que a causa do transtorno fosse a falha na relação mãe-
filho, as mandavam para regimes de internação para que se ‘curassem’ e proibiam que os pais as visitassem. Apesar
de todo o estrago que a teoria da mãe-geladeira causou, precisamos ter em mente que não nos é possível assumir a
posição de julgar que Kanner tenha agido de forma cruel, pois ele fez o que imaginou ser o certo no intuito de ajudar
seus pacientes, mesmo que de forma infeliz e inconsequente, quando a própria pressão cultural e filosófica da época
exerceu grande influência em sua forma de raciocínio.

Foi somente nos anos 70 que os primeiros estudos que confirmavam a base genética do autismo foram publicados.
Leo Kanner, anos mais tarde, retratou-se de sua teoria inicial acerca da culpa materna, teoria essa hoje totalmente
desacreditada pela medicina, mas o dano já havia sido feito. A herança cultural de duas décadas de teoria da mãe-
geladeira já havia deixado sua marca na mentalidade da população, marca esta que é sentida até hoje. Embora a
maioria dos países não a considere uma teoria séria e válida, não só pela falta de comprovação como por ter a
ciência validado as bases biológicas do autismo, ainda há alguns poucos lugares, em especial em algumas regiões da
Europa e América Latina, com base fortemente psicanalítica, que insistem em considerá-la. Mesmo quando
universidades renomadas, como a Harvard, publicam suas descobertas no campo da genética, citando que pelo
menos 99 genes já foram relacionados ao autismo, a psicologia do senso comum, que infelizmente adentra até
mesmo as práticas profissionais, ainda se faz presente.

Apesar da psicanálise ter oferecido contribuições em relação a um determinado grupo de estados psíquicos, ela está
longe de deter o posto de explicar todos os fenômenos do comportamento humano como muitos de seus adeptos
ainda continuam a acreditar. Muitos de seus seguidores ainda custam a analisar a sociedade da época em que ela
surgiu. Era uma sociedade marcada pelo patriarcado, onde tudo de negativo era atribuído à mulher e onde a
medicina e a ciência ainda caminhavam de forma precária. Em se tratando da criação dos filhos, uma vez que as
mulheres eram as únicas envolvidas nesse trabalho, era óbvio que quaisquer distúrbios no desenvolvimento dos
filhos acabassem inevitavelmente sendo atribuídos a elas, já que homens não se ocupavam da função de cuidadores.
Tal realidade associada a um período em que os estudos das neurociências e da genética ainda engatinhavam só
poderia ter como resultado a atribuição cega de culpa às mães.

A força com que a culpabilização materna ressoou na sociedade quando da hipótese teórica da mãe-geladeira se
deveu, também, a mais um fator: o arquétipo da Mãe. Na história da humanidade, a figura da mãe sempre carregou
e ainda carrega forte carga emocional, que se sobrepõe muitas vezes à razão. A figura da mãe é repleta de
expectativas, muitas delas míticas, negando à mulher sua condição humana que prevê a existência de necessidades,
falhas e limitações como em qualquer pessoa, além de ser o depositório das angústias existenciais da nossa espécie
quando o ser humano, em sua ânsia de ser amado e especial dentre todos os outros, deposita na figura da mãe toda
a responsabilidade por fazer com que assim se sinta: quaisquer falhas dos filhos devem ser relevadas e estes devem
ser amados independentemente do que façam ou se tornem, numa tentativa da nossa espécie em não se
responsabilizar pelas próprias imperfeições. Assim, a mãe é a figura que representa a aceitação (o amor)
incondicional e qualquer falha dos filhos será atribuída unicamente a ela, livrando os filhos de culpa, que é
majoritariamente remetida à mãe.

A figura materna carrega ainda a angústia existencial humana no tocante à fragilidade que possuímos enquanto
espécie, representada pela vulnerabilidade que temos ao nascer e consequente medo da morte, pela dependência
plena de um outro que não nós mesmos. Diversas correntes psicológicas já analisaram a dúbia relação que crianças
pequenas têm com a figura materna, que tanto representa a satisfação quanto a insatisfação de nossas necessidades
primárias, o que acaba por gerar fantasias nem sempre conscientes tanto positivas (de amor e nutrição) quanto
negativas (de ódio e aniquilação). É essa polaridade negativa que ressoa nas pessoas quando a possibilidade da
existência de uma ‘mãe má ou insuficiente’ é sugerida, fazendo com que a figura materna seja atacada mesmo
quando não existem motivos reais para isso.

Assim, a mãe acaba sendo colocada na posição de bode expiatório da humanidade, carregando consigo toda a carga
de sofrimento humano e desejo de salvação, incluindo a nossa frágil sujeição à roleta russa genética, da qual
nenhum de nós tem qualquer culpa ou poder de controlar.

A cobrança social a que a mulher sempre esteve exposta tem profunda ligação com o fato de que, ainda hoje, muitos
associem os comportamentos autistas a falhas na criação oferecida pelos pais, lembrando que quando falamos em
‘pais’, geralmente é a mãe que está sob julgamento. É comum que, ainda hoje, mães de crianças autistas ouçam
que os déficits neurológicos de seus filhos, tais como não falar ou não ter um funcionamento motor melhor
desenvolvido, sejam culpa delas. Algumas mães já ouviram de profissionais da saúde que seus filhos autistas
severos não falavam porque estavam sendo ‘emocionalmente sufocados’ ou ‘indevidamente estimulados’, ou que as
crises oriundas de um estado de descompensação do humor e sobrecarga sensorial comuns no autismo fossem ‘falta
de limites’ ou ‘manha’, e que a culpa, portanto, seria da criação que ofereciam. Tais afirmações mostram claramente
a prevalência de crenças sobre fatos e informação e a influência do arquétipo materno em sua polaridade negativa,
que remete à ideia de insuficiência.

Curiosamente, não consideraram a realidade de que muitas dessas crianças têm irmãos com desenvolvimento
adequado ou que as milhares de crianças diagnosticadas com autismo atualmente não poderiam ter sido, todas elas,
privadas de tamanha falta de estimulação, quando a maioria frequenta a escola desde cedo, vive em centros
urbanos e tem acesso à mídia ou a outras pessoas em seu convívio, assim como também não seria possível que
todas as crianças diagnosticadas com autismo no mundo hoje tivessem mães com exatamente a mesma
personalidade ‘sufocante’. E, ainda, que tantas crianças criadas em lares diferentes por pais diferentes em diferentes
culturas e partes do mundo tenham todas o mesmo conjunto-base de comportamentos que constituem os critérios
diagnósticos para o autismo.

Como se tudo isso já não fosse suficiente para provar como certas acusações são completamente desprovidas de
sentido lógico, há ainda um desconhecimento – ou negação – dos achados científicos no campo das neurociências
que mostram claramente quais déficits são observados quando há lesão neurológica, sendo a fala e a perda de
controle motor alguns deles. Se pensarmos em pessoas que sofreram um derrame cerebral, vemos quantas delas
tiveram perda da capacidade da fala e danos motores. Mesmo estimuladas a recuperar essas funções, há diferenças
orgânicas e tipos diferentes de lesões, de modo que embora algumas consigam se recuperar, outras jamais
conseguem, não importando o quanto tenham de estimulação. Pessoas que se acidentam e lesam a parte frontal do
cérebro apresentam, muitas vezes, comportamentos similares aos do autismo, assim como pessoas com
intoxicações por metais pesados. Comportamentos autistas já foram até mesmo reproduzidos em ratos de
laboratório, ao serem removidos determinados genes, como descrevem cientistas do Laboratório Cold Spring
Harbor, em Nova York, que observaram que algumas crianças autistas têm uma pequena supressão no cromossomo
16, que afeta 27 genes, e resolveram remover esses mesmos genes em ratos, que passaram, então, a apresentar
comportamento repetitivo e dificuldade na socialização, como é observado no autismo em humanos. Ou seja, nosso
potencial de desenvolvimento e aquisição de habilidades está intrinsecamente subordinado ao nosso aparelho
orgânico.

“É hora de pararmos de ser tão críticos e cheios de julgamento em relação aos pais de uma criança de 8 anos que
não consegue se sentar como esperaríamos, um adolescente de 12 anos que não consegue parar de lavar as mãos
ou um de 15 anos com depressão. Muito do que atribuímos à boa qualidade da criação dos pais é, na verdade, sorte
no sorteio genético.”

Dra. Justine Larson – Psiquiatra da Infância e da Adolescência

Encerramos esta seção observando que a história do autismo nos traz um importante ensinamento: um alerta sobre
a responsabilidade que temos enquanto formadores de opinião, quando o orgulho em fazer a própria opinião valer
leva pessoas a disseminarem crenças sem qualquer comprovação ou conhecimento aprofundado a respeito, e o
quanto isso pode ser especialmente nocivo em se tratando de pessoas em posição de poder, que na atualidade são
representadas não apenas pelos médicos, como também por psicólogos, professores, assistentes sociais e pela
sociedade com livre acesso às redes sociais. O status conferido a muitos profissionais funciona, frequentemente,
como uma espécie de ‘carta branca’, como se a palavra deles fosse lei incontestável e como se jamais pudessem
estar errados. Nos esquecemos que são pessoas, com limitações, histórias de vida e conteúdos internos próprios que
moldam sua visão de mundo, e que o aproveitamento tanto oferecido quanto conseguido em cursos de formação
profissional podem ser insuficientes.

Ficamos, a seguir, com a tradução de um informativo da Universidade de Harvard, que não nos deixa dúvida da
causa predominantemente genética do autismo e que garante às mães – e pais, pois, embora em menor escala,
estes também foram julgados – a justiça que merecem, uma vez que não cabe às mães e pais qualquer culpa pelo
autismo de seus filhos, muito menos a crueldade em julgar as pessoas que mais se esforçam com os poucos recursos
de apoio para o transtorno do espectro do autismo que a nossa sociedade oferece, para criar seus filhos da melhor
maneira possível.

Que possamos, enquanto sociedade, trabalhar para oferecer a essas famílias apoio e não apenas mais sofrimento,
substituindo achismos por informação e julgamentos por empatia. Conhecer a história é fundamental para evitar
que os erros do passado se repitam.

Tradução livre, por Audrey Bueno. O texto original pode ser acessado aqui.

Transtorno do Espectro Autista

Pesquisa de Ponta

Por Universidade de Harvard


Os Transtornos do Espectro Autista (TEA) descrevem um grupo de transtornos do neurodesenvolvimento
comumente associados com dificuldades na socialização, comportamentos repetitivos e déficits na comunicação. A
genética do TEA constitui a principal área de interesse. Os neurocientistas da Harvard já identificaram dezenas de
genes associados ao TEA em humanos. Em conjunto com o trabalho de pesquisadores que usam um sistema
computacional para estudar o genoma humano, muitas outras mutações relevantes ao TEA estão ativamente sendo
mapeadas e estudadas. O modo com que essas mutações no TEA impactam o funcionamento do sistema nervoso
envolve um grande esforço de pesquisa em Harvard. Um tipo de TEA, a síndrome de Rett, é causada por mutações
no gene MeCP2, gene este crítico para o desenvolvimento sináptico e plasticidade. Os pesquisadores de Harvard têm
encabeçado nosso conhecimento sobre como sinais moleculares impactam o desenvolvimento sináptico. Essa linha
de pesquisa examina como o programa de refinamento sináptico afeta as células cerebrais e as sinapses num
desenvolvimento normal, e no contexto do TEA. Este programa oferece estrutura de comprovação a respeito de
como anormalidades genéticas impactam a célula e as sinapses, e irá proporcionar conhecimento essencial sobre
como os sintomas centrais do TEA surgem.

Recentemente, ratos projetados para abarcar uma mutação no MeCP2, exatamente como a mutação humana,
proporcionaram uma nova e crucial descoberta acerca de outra característica comum no TEA: a sensação alterada ao
toque. Crianças com TEA reportam desconforto ao toque. Investigadores em Harvard mostraram que a mutação
MeCP2 também impacta os centros sensoriais táteis do corpo, tornando as periferias sensoriais hipersensíveis até
mesmo ao mais leve toque.

Estudos como estes nos oferecem a biologia básica por trás de um transtorno complexo de neurodesenvolvimento.
O conhecimento multidisciplinar da Harvard traduzirá uma compreensão mecanicista do TEA em conhecimento que
fará a diferença na vida dos pacientes.

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