Resí duosGóticosGotas
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UBERLÂNDIA
2021
QUELI CARNEIRO DAVANÇO
UBERLÂNDIA
2021
RESUMO
Ao comentar sobre o gótico literário, os escritores, geralmente, lembrados são Edgar Allan
Poe, Lovecraft e Bram Stoker. Quando a lembrança é a literatura gótica brasileira, a lista tem
autores como Álvares de Azevedo, Afonso Celso, Inglês de Sousa e até mesmo Machado de
Assis, que publicou contos com um olhar sobre o sobrenatural. Entretanto, parece ainda
como um subgênero de natureza juvenil, popular e circunscrito a uma imagem equivocada de
narrativas sombrias, de ambientação medieval, em que os efeitos de terror e medo, elaborados
artisticamente, são apressadamente considerados como apenas obras de alto apelo
mercadológico, mero entretenimento rápido. Tal inquietação me levou a pesquisar o que resta
das definições clássicas da literatura gótica para a compreensão de obras literárias escritas, na
atualidade editorial brasileira, sob a expressão de uma ficcionalidade de sugestão gótica. O
que resta do gótico inaugural e a pervivência dele em produções mais atuais.
Introdução 5
Conclusão 20
Referências Bibliográficas 20
Introdução
Seria então a partir da produção feita por Walpole que ocorreu um impacto no
Brasil para influenciar autores nacionais a realizar produções góticas? Certamente
não, pois enquanto essa publicação era lida por ingleses em um período inicial da
revolução industrial, o Brasil literário, ainda se encontrava no Barroco e caminhava
para as primeiras intervenções do Arcadismo. Por conta do baixo número de
leitores, pelo poder que a Coroa portuguesa exercia no âmbito escolar e também em
relação à acessibilidade sobre as obras impressas no país. A vinda de uma
narrativa gótica não teria uma recepção sustentável neste período histórico..
Além desse fato histórico, a crítica brasileira sobre a literatura gótica é árdua.
No livro História Concisa da Literatura Brasileira, Bosi comenta sobre os romances
vinculados com o desdobramento da literatura gótica. Utilizando o termo
subliteratura, veja a apresentação do termo a seguir: “Marca a ficção subliterária de
Teixeira e Sousa o aspecto mecânico que nela assume a intriga.” (BOSSI, 2006,
p.108). Deixando um julgamento de alto valor sobre esse gênero e também deixa
perceber que essas leituras são reservadas para um consumo popular. Já Candido
menciona o termo literatura de carregação: “Os livros traduzidos pertenciam, na
maior, ao que hoje se considera literatura de carregação; mas eram prezadas,
muitas vezes, tanto quanto obras de valor.” (2009, p.440). De novo temos a ligação
de uma produção criada somente com o objetivo de consumo rápido e voltada para
um grande público. Sem dúvidas o autor encaixaria a literatura gótica nessa
categoria. Tanto Alfredo Bosi como Antonio Candido são grandes críticos e suas
produções para conhecimento do fazer literário brasileiro possuem um valor
insuperável. Entretanto não podemos dizer que não existem lacunas em suas
teorias.
Você, leitor, acreditava que ali, sob o alpendre; meu olhar se fixasse
nos ponteiros de um velho relógio redondo de estação, cravados
como alabardas, no esforço inútil de fazê-los girar para trás e
percorrer ao contrário o cemitério das horas passadas, que se
estendem desfalecidas em seu panteão circular. (CALVINO, 2003,
p.20)
Esse leitor, no caso você que está lendo, na narrativa vai à uma livraria e
acaba se deparando com o novo lançamento de Ítalo Calvino, que é o próprio nome
da obra, Se um viajante numa noite de inverno. Ou seja, temos uma história dentro
de uma história, retomando algo bem semelhante a outra obra: Mil e uma noites.
O leitor leva o livro para casa, procura uma posição boa para iniciar a leitura e
quando a começa acaba percebendo que todo o livro é repetição das mesmas
páginas. Ao retornar à livraria encontra outra leitora, Ludmilla, que também por
coincidência comprou uma edição com o mesmo erro. E juntos perceberam que
seus livros não somente possuíam essa repetição de páginas como também havia
uma mistura de um outro romance: Distanciando-se de Malbork, do polonês
Bazakbal. O leitor movido pela curiosidade e interesse resolve continuar o livro que
começou, antes de ir embora troca seu número com a leitora Ludmilla. Quando volta
a narrativa do livro, o leitor percebe que não era a mesma história que tinha lido no
dia anterior. E mesmo fazendo outra tentativa de leitura da obra polonesa que
estava no livro, ele se choca com outro erro de edição que é a variação entre
páginas impressas e páginas em branco.
Indignado o leitor recorre a um telefonema para Ludmilla e comenta que tem
uma suspeita de que desse outro volume presente no exemplar, não se passaria na
Polônia, mas sim, na Ciméria. O Leitor aqui passa pela mesma situação que
Raphael Montes, tendo a mesma dificuldade de prosseguir sua busca por respostas.
Afinal, não há muitos resultados quando se trata de uma nação onde o povo, a
cultura e a língua foram apagadas pelo tempo. Mas ambos retomam sua esperança
por meio da assistência do mesmo personagem. Dessa conversa que tem com
Ludmilla, a leitora expõe que conhece um professor universitário que ensina
literatura ciméria:
Novamente vemos outro paralelo entre as obras, pois tanto Raphael como os
leitores de Calvino, conversaram inicialmente com Uzzi-Tuzii por telefone e somente
depois tiveram um encontro pessoalmente. Ambos também recebem esse auxílio do
professor, todavia de modo perfunctório. Da mesma forma que nós leitores somos
inseridos na obra de Calvino, o autor Raphael Montes se insere como autor-narrador
ao fazer o papel de tradutor dos diários.Tanto que no desfecho prefácio, temos a
assinatura do escritor seguido de uma vírgula e a titulação “o tradutor”. O termo
utilizado para falar sobre essas histórias dentro de histórias se nomeia como
narrativa em moldura.
2. O vilarejo é um romance moldura (frame-store)
De início parece que nosso vilarejo vai contra essa proposta, porque por mais
que não sabemos a localização geográfica que se passa toda a narrativa, não é um
lugar completamente isolado. E por meio das ilustrações, que também são um fator
de grande influência e valor que falarei mais adiante, temos uma perspectiva de uma
região florestal. Porém com a leitura da obra vemos um ambiente com pessoas
não-confiáveis onde a neve prende e arruína até as almas mais inocentes, criando
um espaço topofóbico, sem saída. “O frio e a umidade são característicos dos locais
topofóbicos.” (BORGES, 2012, p. 570). Além de provocar todas essas sensações
ruins, perante a leitura somos conduzidos por um dos sentimentos mais antigos da
humanidade: O medo. De acordo Delumeau em seu livro História do medo do
Ocidente “o medo (individual) é uma emoção-choque, frequentemente precedida de
surpresa, provocada pela tomada de consciência de um perigo presente e urgente
que ameaça, cremos, nós, nossa conservação”(DELUMEAU, 1996, P. 23)
Essa emoção presente tanto atualmente como no decorrer da história da
humanidade, foi essencial para a sobrevivência e para construção das sociedades
com um maior desenvolvimento social e racional. E já que essa presença é visível
em nossa criação, não seria diferente a utilização do medo das manifestações
artísticas, como na literatura. Fornecendo efeitos de aflição e sentimentais para
quem quer aventurar no desconhecido. Júlio França (2017) propôs em seus estudos
que há três elementos que criam uma boa base de estrutura gótica e quando bem
articuladas conseguem trazer medo ao leitor. São elas o retorno fantasmagórico do
passado, o personagem monstruoso e o locus horribilis. A partir do locus horribilis é
realizado todo procedimento para a efetivação do medo na prosa do vilarejo.
É importante realçar que esses elementos que Júlio França aborda não são
exclusivos das narrativas góticas, mas quando utilizados, eles criam mecanismos de
suspense capazes de produzir o efeito do medo e outras comoções semelhantes.
Logo após isso Anatole fica aterrorizada com a imagem que vê adiante. Não
só os corpos de seus três filhos estão desmembrados, mas também os de outros
integrantes do vilarejo. Chocado com o que sua mulher fez, ele pede uma
explicação, enquanto Felika continua com um sorriso no rosto e com discurso que
deveriam comemorar sua chegada com um grande banquete.
O que seria o pecado da gula? O conto pode até nos enganar no sentido de
pensarmos que o desejo de comida foi tão grande que a personagem comete o
canibalismo. Porém podemos ir além e pensar que a gula está mais ligada com o
desejo de comer mais do que pode. Assim como é descrito no final. Não foi
suficiente para Felika matar somente seus filhos para não passar fome, como
desejou mais e por isso também matou outros moradores do vilarejo. Tudo isso para
fazer um grande banquete. O autor já aborda o mesmo tema em outro de seus
livros, O Jantar Secreto.
No próximo conto temos a representação da inveja, o demônio Leviathan.
Esse é o conto mais famoso do livro, como também é o que a história se interliga
com o posfácio.Nessa narrativa temos três irmãs, Vália é a mais velha e Velma e
Vonda são gêmeas. Apesar de ambas as gêmeas terem a mesma aparência física,
é retratado que Vonda nasceu com uma mancha vermelha em seu rosto, porém faz
de tudo para escondê-la. Vália, por ser a mais velha, já possui um pretendente aos
seus pés, que é o jovem Krieger. Em um passeio envolvendo as irmãs, Krieger e
uma amiga das gêmeas, é quando vemos o sentimento de inveja, tema central do
conto, crescer. Velma, uma das gêmeas, nutre o sonho de ser escritora e com isso
brinca constantemente de inventar histórias junto com Vonda e sua amiga
Jekaterina. Até que ela decidiu fazer essa brincadeira sobre o namorado de sua
irmã mais velha. Uma história onde Krieger se envolveria em um triângulo amoroso
com as gêmeas. Vonda ao ouvir a narração da irmã, se desconecta da realidade e
revela para os leitores que tem um certo interesse pelo jovem pretendente de sua
irmã.
Quanto mais a história inventada se estende, mais vemos toda a inveja que
escorre da personagem. A cada parágrafo temos a intensificação desse desejo de
ter o que a irmã tem. A ficção ansiada se mistura com a realidade distante. Quando
Vonda se prende no pensamento de finalizar essa história criada,na qual anseia um
final feliz para ela, acaba criando um plano diabólico que será executado de forma
real.
Ela estabelece uma estratégia após seus pensamentos intensos sobre como
conseguir um desfecho feliz para si própria. E a resposta final seria somente uma:
Assassinato. Então planejou a morte de Krieger, pois Vonda confessou que seria
improvável assassinar uma de suas irmãs. E com a morte do galã da história, Vália
teria mais tempo para brincar como antes com ela e sua irmã.
Desse modo, ela começa a articular o seu plano, enviando por meio de um
papel amassado um convite para Krieger assinado com o nome de Velma para
procurá-la à noite no descampado. Para fazer ele ir, ela acrescenta que o assunto
gira em torno de Vália e que ele não poderia deixar de ir.
No começo, o plano segue bem, Krieger chega no local na hora e Vonda
consegue atingir ele com uma pedra fazendo-o desmaiar. Ela o arrasta para os
trilhos do trem e se esconde para observar. Porém o jovem acaba despertando e na
tentativa de sobreviver, ele se rasteja para sua salvação. Ele acabou não morrendo,
entretanto o trem atingiu suas pernas.
Vonda vendo que seu plano fracassou, que Krieger não morreu e ainda a
viu, acaba entrando em um desespero retornando imediatamente para casa. Afinal,
não queria ser presa e a partir desse sentimento, cria coragem para realizar outra
estratégia perversa. Dessa forma, ela escreveu uma carta de suicidio, adquiriu a
arma que seu pai utilizava, foi até o quarto de sua irmã Velma e atirou em sua
têmpora esquerda (atentando-se ao fato de sua irmã ser canhota). Rapidamente
colocou seu casaco coberto de sangue na irmã junto com o bilhete que entregou ao
Krieger no início e também a carta de suicídio que tinha acabado de escrever.
Correu para seu quarto e esperou a corrida de Vália para checar o barulho do
disparo. Os gritos de sua irmã mais velha confirmaram o encontro do cadáver de
sua gêmea. A mensagem de suicídio foi clara:
Sei o que estou fazendo. Vália, desculpe ter tentado matar o Krieger.
Soube de coisas que o fazem merecer a morte. Coisas que ele fez
comigo, mas vai negar até o fim que realmente tenham ocorrido. Ele
é mau. Ele abusou de mim. Afaste-se dele. É sério. Peço desculpas
por tudo. Não posso mais viver com isso. Vonda, você é uma ótima
irmã. E uma excelente escritora também. Amo vocês e a mamãe.
Adeus. (MONTES, 2015, p.29)
No fim, mesmo sendo Velma que ansiava ser uma escritora, quem conseguiu
armar e finalizar a história foi Vonda. No prefácio, nosso autor-narrador nos informa
o desfecho e a resposta para o mistério de quem é a dona dos diários. Depois que
complicou com seu papel de tradutor, Raphael obteve o número de Ana, a possível
bisneta de Elfrida. Ao ligar, ele reparou uma certa impaciência pela parte dela e
desinteresse pelo o que faria com os manuscritos. Ela também falou que Elfrida em
seus últimos anos de vida ficou imobilizada em uma cama de hospital, com muitas
dores e pesadelos. Raphael, antes de finalizar a ligação com Ana, pediu para que
ela enviasse se possível uma foto, antiga ou recente, de sua bisavó. E na última
página do livro temos a imagem de uma senhora que tem uma mancha vermelha do
lado esquerdo do rosto. As mesmas descrições dadas a personagem Vonda.
A ideia motivadora desta pesquisa foi o projeto gráfico do livro. Ele parece se
aproximar dos livros ilustrados, catalogados como literatura infantil.Marcel Dam é o
autor das ilustrações. Elas participam de maneira pulsante das possibilidades de
sentido das narrativas. O jorro de vermelho das ações são ampliados pelas
imagens. A problematização inicial era pensar O vilarejo como um livro concebido
para um público leitor jovem. Como existem livros infantis utilitários, livros ilustrados
esteticamente questionáveis, lançados pelas editoras para uma venda mais
facilitada e conformadora, pensar um livro ilustrado para jovens alienados, talvez
seja a leitura crítica apressada do gótico ainda hoje.
Nada disso. As imagens não são meros recursos para ilustrar o texto verbal .
E o livro não demonstra ser endereçado comercialmente a jovens ávidos por
narrativas de terror.
O romance moldura de Raphael Montes é um desafio para os leitores
acostumados aos enredos fixos do universo de terror. Não há um desfecho
previsível. Os corpos despedaçados, jorrando sangue, em narrativas do terror, são
apresentados de uma maneira contida, seca. A surpresa ocorre em todos os finais
das narrativas enfeixadas no romance moldura,não há índices, sinais na construção
da trama que encaminhem os desfechos.
Não há nada conformador na obra. Os diabos vencem.
Retomando Álvares de Azevedo, no final de Macário, quando Satã observa
jovens devassos numa taverna, como a visão da concepção de Noite na Taverna,
não custa nada desejar a elaboração de um Macário escrito, por exemplo, por
Raphael Montes.
Conclusão
Ainda são poucos os estudos que focam mais sobre a estética gótica,
principalmente ligada à produção literária nacional. Porém como analisamos,
Raphael Montes é um nome que tem tido visibilidade e que também persiste na
realização de narrativas do terror para a atualidade. As críticas negativas sobre tal
literatura, presumo, que nunca se cessarão por completo. Afinal, aceitar um olhar
para o mundo de uma maneira crua, cruel e sem esperanças é atemorizador. No
entanto, é necessário. Essa tradição de sangue pode ter sido tardia, mas apesar
disso ela resiste e está presente nas obras contemporâneas. E para aqueles que
estudam essa temática: nunca permitam que esse sangue cesse.
Referências Bibliográficas
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.
MAGALHÃES JR., R. A arte do conto: sua história, seus gêneros, sua técnica,
seus mestres. Rio de Janeiro: Bloch, 1972.
POE, Edgar Allan, Medo clássico: coletânea inédita de contos do autor. Rio de
Janeiro: Darkside Books, 2007.