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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

QUELI CARNEIRO DAVANÇO

RESÍDUOS GÓTICOS EM GOTAS VERMELHAS NA LITERATURA BRASILEIRA:


TRADIÇÃO, PROBLEMAS E DESEJOS.

UBERLÂNDIA

2021
QUELI CARNEIRO DAVANÇO

RESÍDUOS GÓTICOS EM GOTAS VERMELHAS NA LITERATURA BRASILEIRA:


TRADIÇÃO, PROBLEMAS E DESEJOS.

Trabalho de Conclusão de Curso do curso


de Letras: Português e Literaturas de
Língua Portuguesa na Universidade
Federal de Uberlândia.
Orientador: João Carlos Biella

UBERLÂNDIA
2021
RESUMO

Ao comentar sobre o gótico literário, os escritores, geralmente, lembrados são Edgar Allan
Poe, Lovecraft e Bram Stoker. Quando a lembrança é a literatura gótica brasileira, a lista tem
autores como Álvares de Azevedo, Afonso Celso, Inglês de Sousa e até mesmo Machado de
Assis, que publicou contos com um olhar sobre o sobrenatural. Entretanto, parece ainda
como um subgênero de natureza juvenil, popular e circunscrito a uma imagem equivocada de
narrativas sombrias, de ambientação medieval, em que os efeitos de terror e medo, elaborados
artisticamente, são apressadamente considerados como apenas obras de alto apelo
mercadológico, mero entretenimento rápido. Tal inquietação me levou a pesquisar o que resta
das definições clássicas da literatura gótica para a compreensão de obras literárias escritas, na
atualidade editorial brasileira, sob a expressão de uma ficcionalidade de sugestão gótica. O
que resta do gótico inaugural e a pervivência dele em produções mais atuais.

Palavras chave: Literatura gótica ; Contemporaneidade; Raphael Montes; Literatura


Brasileira.
SUMÁRIO

Introdução 5

1. Intertexto do personagem Uzzi-Tuzzi com Se um viajante numa noite de inverno


de Calvino 9

2. O vilarejo é um romance moldura (frame-store) 11

3. Prosa de O vilarejo e os elementos góticos 12

4. Análise dos contos 14

5. Comparação com Noite na taverna, de Álvares de Azevedo 18

6. Um projeto gráfico pulsante 19

Conclusão 20

Referências Bibliográficas 20
Introdução

Quando falamos sobre o gótico, automaticamente vem em nossas mentes autores


como Edgar Allan Poe, Lovecraft, Bram Stoker e outros do mesmo contexto.
Quando prolongamos esse mesmo diálogo e comentamos sobre a literatura gótica
brasileira, seguimos outra lista de autores renomados, como Álvares de Azevedo,
Afonso Celso, Inglês de Sousa. Porém quando aprofundamos mais sobre o assunto
e chegamos à leitura de autores atuais, temos uma carência em estudos voltados
para o Gótico na literatura contemporânea brasileira.
Isso se dá muitas vezes por meio da rejeição acadêmica de escritores mais
recentes, uma suspeita sobre o que talvez seja considerado um mercadoria
meramente comercial e também pela falta de reconhecimento dos mesmos. Diante a
essa falta de acervo para estudos, o trabalho tem como um dos objetivo criar uma
ponte entre o passado e o presente. Ou seja, perante a tradição, esse rastro de
sangue deixado na nossa literatura, observar os paralelos, as diferenças e as
características que marcam nossas obras atuais de gênero terror.
Primeiramente comentarei os princípios sobre o que é a literatura gótica, seu
impacto e como essa narrativa se consolida na literatura brasileira. Na metade do
séc.XVIII, surge com a autoria de Horace Walpole o romance O castelo de
Otranto, publicado em 1764. Seu subtítulo também ganha destaque quando se
refere à produção literária como uma A Gothic Story . Essa obra é modelo para uma
série de características que até o presente momento vemos e lemos quando nos
aventuramos em ingressar desse gênero Aqui vão alguns exemplos desses
aspectos que se encontram em O castelo de Otranto e que pervivem como a
referência gótica inicial: a ambientação em castelos (ruínas) mal-assombrados, a
volta do passado muitas vezes por meio de aparições fantasmagóricas ou
demoníacas, a resolução de mistérios e mortes violentas. O básico e o que hoje
chamamos de clichê.Uma perspectiva afirmada por Carpeaux, por exemplo, em seu
tempo histórico, para a prescrição do gótico :
É o romance dos espectros em castelos arruinados, de mocinhas
presas em cárceres subterrâneos por criminosos, de monges
desenfreadamente debochados, uma caricatura do mundo medieval,
com fortes tendências anticlericais, como convém ao Século das
Luzes, e tudo é colocado num país pitorescamente exótico, às mais
das vezes na Itália, não importa, pois no gosto oficial da época, que
continua o Classicismo, tudo aquilo que não é Antiguidade greco
romana ou França, é exótico. A literatura popular ou “trivial” da época
acreditava tudo isso. Mas os leitores cultos, estes sabiam melhor: o
país exótico para o qual se refugia o anticlassicismo é o país de
todas aquelas novidades – da poesia da natureza e da noite dos
túmulos, do romance sentimental e do romance “gótico” é a
Inglaterra. (CARPEAUX, 1987, p.160)

Seria então a partir da produção feita por Walpole que ocorreu um impacto no
Brasil para influenciar autores nacionais a realizar produções góticas? Certamente
não, pois enquanto essa publicação era lida por ingleses em um período inicial da
revolução industrial, o Brasil literário, ainda se encontrava no Barroco e caminhava
para as primeiras intervenções do Arcadismo. Por conta do baixo número de
leitores, pelo poder que a Coroa portuguesa exercia no âmbito escolar e também em
relação à acessibilidade sobre as obras impressas no país. A vinda de uma
narrativa gótica não teria uma recepção sustentável neste período histórico..
Além desse fato histórico, a crítica brasileira sobre a literatura gótica é árdua.
No livro História Concisa da Literatura Brasileira, Bosi comenta sobre os romances
vinculados com o desdobramento da literatura gótica. Utilizando o termo
subliteratura, veja a apresentação do termo a seguir: “Marca a ficção subliterária de
Teixeira e Sousa o aspecto mecânico que nela assume a intriga.” (BOSSI, 2006,
p.108). Deixando um julgamento de alto valor sobre esse gênero e também deixa
perceber que essas leituras são reservadas para um consumo popular. Já Candido
menciona o termo literatura de carregação: “Os livros traduzidos pertenciam, na
maior, ao que hoje se considera literatura de carregação; mas eram prezadas,
muitas vezes, tanto quanto obras de valor.” (2009, p.440). De novo temos a ligação
de uma produção criada somente com o objetivo de consumo rápido e voltada para
um grande público. Sem dúvidas o autor encaixaria a literatura gótica nessa
categoria. Tanto Alfredo Bosi como Antonio Candido são grandes críticos e suas
produções para conhecimento do fazer literário brasileiro possuem um valor
insuperável. Entretanto não podemos dizer que não existem lacunas em suas
teorias.

“Ao contrário, devemos relativizar conceitos que são marcas de


preconceitos de época, preencher as lacunas deixadas pelos
grandes estudos e beneficiar outros pontos de vista, como por
exemplo a existência de produções literárias que não possuem
nenhum tipo de intenção em participar dos grandes debates
nacionais” (DE FREITAS, 2018, p. 481)

O estudioso Júlio França se faz revolucionário nesse contexto ao esclarecer


que : “tentar encontrar o gótico brasileiro não seria, assim, um método para entender
melhor o gótico, mas, para entender melhor o Brasil.” (FRANÇA , 2018, p.1101)
O estudo do meu corpus, se dá em uma tentativa de realçar e valorizar a
leitura de autores dessa área no contexto contemporâneo. A obra escolhida foi O
vilarejo do autor Raphael Montes, publicada em 2015 e que possui o total de 7
contos com prefácio e posfácio . Nascido em 1990, na cidade do Rio de Janeiro.
Raphael Montes é escritor e roteirista. É o autor de diversos romances como: Dias
perfeitos, Suicidas, entre outros. É mais conhecido por ser o criador e produtor da
famosa série da Netflix Bom dia, Verônica. Que também é um livro do autor com a
escritora e criminóloga brasileira Llana Casoy.
No livro que será analisado, o autor se insere dentro da narrativa virando
autor-narrador. Criando uma história por trás daqueles contos em seu prefácio e
posfácio . Ele relata, de forma ficcional, que está apenas traduzindo os manuscritos
de uma senhora chamada Elfrida Pimminstoffer que havia sido encontrada em um
sebo. Esses textos se encontravam em cimério, uma língua morta de vínculo
botno-úgrico. Raphael relata que só encontrou um profissional que estudava esse
ramo, marcou um encontro com ele e após comentar sobre o que se tratava, esse
professor nega ajudá-lo, mas oferece um dicionário de cimério-italiano. Assim o
próprio autor desempenha na obra o papel de tradutor, no prefácio vemos ele
tentando investigar mais a fundo quem foi Elfrida e é revelado para o leitor que a
mesma seria uma das personagens de um dos contos.
É de grande importância comentar sobre as referências dos títulos dos
contos. Ainda no prefácio é descrito que na parte interior da capa de cada um dos
cadernos é encontrado um nome: Peter Binsfeld. Esse nome se refere a um padre
alemão conhecido por classificar demônios. Mais especificamente ele comentou
sobre os sete reis do inferno que seriam: Asmodeus, Belzebu, Mammon, Belphegor,
Satan, Leviathan e Lúcifer. Todos eles seriam os responsáveis por invocar um
pecado capital, respectivamente em ordem: luxúria, gula, ganância, preguiça, ira,
inveja e soberba. E esses são os nomes dos contos. Para a pesquisa não ser mais
extensa, a análise mais sistematizada será em torno de dois contos do livro: Belzebu
e Leviathan.
Todos circunscritos em análises e interpretações sobre um paradigma do
gótico como rastro, pervivência de uma criação literária, segundo Carpeaux (1987,
p. 160), inglesa. Temas como o terror, o mal , o medo, a morte, o abjeto são citados
como marcas dessa produção ficcional. Tal modalidade, contemporaneamente,
poderia ser compreendida de que maneira epistemológica mínima? O que resta das
definições clássicas da literatura gótica para a compreensão de obras literárias
escritas , na atualidade, sob a expressão de uma ficcionalidade de sugestão gótica.
O que resta do gótico inaugural e as produções mais atuais dele?
O reflexo do gótico e da literatura: Por mais que a situação que lemos seja
ficcional, quando fechamos o livro pensamos que aquele medo e aquela angústia
não sairão daquelas páginas. Entretanto lembramos da realidade que vivemos e da
crueldade que a humanidade se move.

“(...) a literatura gótica detém o dom (ou a maldição) de contaminar a


realidade empírica, tediosa e burguesa, com os venenos (ou
antídotos) inebriantes, excitantes e transgressores das Artes das
Trevas, assustadores, aterrorizantes, horrendas, pavorosas e abjetas
porque o lado negativo da existência, sempre tolhido pelas luzes
disciplinadoras da racionalidade. (ROSSI, 2018, p. 101)
1. Intertexto do personagem Uzzi-Tuzzi com Se um viajante numa noite de
inverno de Calvino

É importante realçar de princípio a intertextualidade no início do livro O


vilarejo de Raphael Montes. Sua narrativa começa logo no prefácio no qual o
escritor conta para nós leitores que recebeu de maneira inusitada manuscritos de
uma senhora chamada Elfrida Pimminstoffer. No entanto, os cadernos estavam
escritos em uma língua desconhecida que somente em seguida o autor descobre
que se tratava de uma língua morta: o cimério. Após buscas incessantes para
realizar uma possível tradução, ele encontra um professor e estudioso na área,
Uzzi-Tuzzi, o chefe do departamento de línguas botno-úgrico, para auxiliá-lo.
Caso não tenha se familiarizado, esse é o mesmo nome dado a um
personagem existente na obra de Ítalo Calvino, Se um viajante numa noite de
inverno. Resumidamente dessa leitura o leitor tem a experiência não somente de ler
mas também de participar da prosa como um leitor-personagem. Tanto que o livro
inteiro corresponde a segunda pessoa do discurso:

Você, leitor, acreditava que ali, sob o alpendre; meu olhar se fixasse
nos ponteiros de um velho relógio redondo de estação, cravados
como alabardas, no esforço inútil de fazê-los girar para trás e
percorrer ao contrário o cemitério das horas passadas, que se
estendem desfalecidas em seu panteão circular. (CALVINO, 2003,
p.20)

Esse leitor, no caso você que está lendo, na narrativa vai à uma livraria e
acaba se deparando com o novo lançamento de Ítalo Calvino, que é o próprio nome
da obra, Se um viajante numa noite de inverno. Ou seja, temos uma história dentro
de uma história, retomando algo bem semelhante a outra obra: Mil e uma noites.
O leitor leva o livro para casa, procura uma posição boa para iniciar a leitura e
quando a começa acaba percebendo que todo o livro é repetição das mesmas
páginas. Ao retornar à livraria encontra outra leitora, Ludmilla, que também por
coincidência comprou uma edição com o mesmo erro. E juntos perceberam que
seus livros não somente possuíam essa repetição de páginas como também havia
uma mistura de um outro romance: Distanciando-se de Malbork, do polonês
Bazakbal. O leitor movido pela curiosidade e interesse resolve continuar o livro que
começou, antes de ir embora troca seu número com a leitora Ludmilla. Quando volta
a narrativa do livro, o leitor percebe que não era a mesma história que tinha lido no
dia anterior. E mesmo fazendo outra tentativa de leitura da obra polonesa que
estava no livro, ele se choca com outro erro de edição que é a variação entre
páginas impressas e páginas em branco.
Indignado o leitor recorre a um telefonema para Ludmilla e comenta que tem
uma suspeita de que desse outro volume presente no exemplar, não se passaria na
Polônia, mas sim, na Ciméria. O Leitor aqui passa pela mesma situação que
Raphael Montes, tendo a mesma dificuldade de prosseguir sua busca por respostas.
Afinal, não há muitos resultados quando se trata de uma nação onde o povo, a
cultura e a língua foram apagadas pelo tempo. Mas ambos retomam sua esperança
por meio da assistência do mesmo personagem. Dessa conversa que tem com
Ludmilla, a leitora expõe que conhece um professor universitário que ensina
literatura ciméria:

Ei-lo na universidade. Ludmilla anunciou ao professor Uzzi-Tuzii a


visita de ambos a seu departamento. Ao telefone, o professor se
mostrou satisfeito em pôr-se à disposição de quem se interessa
pelos autores cimérios. (CALVINO, 2003, p.53)

Novamente vemos outro paralelo entre as obras, pois tanto Raphael como os
leitores de Calvino, conversaram inicialmente com Uzzi-Tuzii por telefone e somente
depois tiveram um encontro pessoalmente. Ambos também recebem esse auxílio do
professor, todavia de modo perfunctório. Da mesma forma que nós leitores somos
inseridos na obra de Calvino, o autor Raphael Montes se insere como autor-narrador
ao fazer o papel de tradutor dos diários.Tanto que no desfecho prefácio, temos a
assinatura do escritor seguido de uma vírgula e a titulação “o tradutor”. O termo
utilizado para falar sobre essas histórias dentro de histórias se nomeia como
narrativa em moldura.
2. O vilarejo é um romance moldura (frame-store)

A palavra em alemão, Rahmenerzählung, corresponde a expressão que se


encaixa no significado do romance moldura ou narrativa em moldura ou narrativa
enquadrada. Lê-se:

As mais famosas coleções de contos, aparecidos durante a


Idade Média e na época do Renascimento, se incluíam no gênero
que os alemães qualificaram de Rahmenerzählung (novela
enquadrada). Eram narrativas apresentadas dentro de um quadro ou
moldura, que geralmente supunha uma reunião de pessoas, por um
motivo qualquer, passando cada uma delas a contar uma história,
para deleite dos circunstantes, a fim de matar o tempo. (Magalhães
Jr., 1972, p. 27)

Mas para aprofundar ainda mais na teoria, é importante comentar pontos


essenciais sobre a participação do narrador e suas classificações Aguiar e Silva
considera que "caracteriza-se, ainda, pela sua relação, como instância produtora do
discurso, com o nível da diegese construída pelo discurso” (1988, p.762). Nesse
modo, a classificação do narrador que será retratado se baseia por meio do
discurso, se organizando como extradiegético ou intradigético.
Extradiegético é quando o narrador ocupa uma posição de narrativa primária
e sua relação é externa considerando os eventos que estão sendo narrados. O
narrador intradigético é a narração interna a narrativa primária, ou seja, a narração
de um personagem pertencente a aquele mundo ficcional.
A partir da informação do prefácio, fica mais claro a posição que o autor toma.
Fazendo não só a narração dos acontecimentos do vilarejo como também
selecionando a ordem das histórias.

Como tradutor, tomei a liberdade de ordenar as histórias como me


pareceu ideal. De todo modo, é bom que se diga que elas podem ser
lidas em qualquer ordem, sem prejuízo da compreensão, pois se
relacionam de maneira difusa, mas com personagens e fatos em
comum, todos situados no mesmo vilarejo. (MONTES, 2015, p.9)

3. Prosa de O vilarejo e os elementos góticos

Por meio dos contos, acompanhamos as diversas histórias macabras que


ocorrem em um vilarejo afastado de todos e obstruído por neve. O autor selecionou
a ordem desses acontecimentos do modo que achou melhor para o seguimento das
histórias, embora não seja na ordem cronológica. Como vimos logo no fim do
primeiro conto, a morte de vários personagens que posteriormente em suas
respectivas narrativas ainda estão vivos. Para a produção dessa obra e seu aspecto
grotesco é utilizado uma série de elementos que contribuem para a construção
desse cenário. Entre eles comentarei sobre o espaço, o medo e utilização das
ilustrações exibidas no desdobrar-se das páginas.
Para o estudo seguimos a linha teórica da Topoanálise, que é a investigação
em torno do espaço e suas minúcias, dentro desse âmbito temos questões de
espaços topofóbicos e topofílicos. O espaço topofilico é aquele que consegue
transmitir sentimentos positivos, bons e agradáveis. Enquanto os espaços
topofóbicos são essa contraposição, sendo assim, ele apresenta espaços que
trazem sentimentos ruins, negativos e intimidadores. Metodologia proposta no livro
Espaço e literatura: Introdução à Topoanálise (2007), de Ozíris Borges Filho.
Podemos observar um bom exemplo de como a escolha do espaço tem sua
importância para definir uma atmosfera assustadora no ensaio do renomado escritor
Edgar Allan Poe. Ao escrever a Filosofia da composição, Poe relata sobre como foi
sua experiência ao redigir seu poema mais famoso, “O corvo”. Além de abordar
pontos mais poéticos como ritmo, som e repetição, o autor revela como foi a seleção
para suas escolhas finais de enredo e clímax existentes nos versos. Pois havia
dúvidas como: qual seria o animal que repetiria a frase “nunca mais”, o que seria o
motivo que causaria a melancolia no protagonista e, é claro, a questão do espaço.

A sugestão mais natural seria em uma floresta em um campo, mas


sempre me pareceu que a restrição de um espaço fechado era
absolutamente necessária para criar o efeito de um incidente isolado,
como uma moldura em um quadro. (POE, 1846, p.349)

De início parece que nosso vilarejo vai contra essa proposta, porque por mais
que não sabemos a localização geográfica que se passa toda a narrativa, não é um
lugar completamente isolado. E por meio das ilustrações, que também são um fator
de grande influência e valor que falarei mais adiante, temos uma perspectiva de uma
região florestal. Porém com a leitura da obra vemos um ambiente com pessoas
não-confiáveis onde a neve prende e arruína até as almas mais inocentes, criando
um espaço topofóbico, sem saída. “O frio e a umidade são característicos dos locais
topofóbicos.” (BORGES, 2012, p. 570). Além de provocar todas essas sensações
ruins, perante a leitura somos conduzidos por um dos sentimentos mais antigos da
humanidade: O medo. De acordo Delumeau em seu livro História do medo do
Ocidente “o medo (individual) é uma emoção-choque, frequentemente precedida de
surpresa, provocada pela tomada de consciência de um perigo presente e urgente
que ameaça, cremos, nós, nossa conservação”(DELUMEAU, 1996, P. 23)
Essa emoção presente tanto atualmente como no decorrer da história da
humanidade, foi essencial para a sobrevivência e para construção das sociedades
com um maior desenvolvimento social e racional. E já que essa presença é visível
em nossa criação, não seria diferente a utilização do medo das manifestações
artísticas, como na literatura. Fornecendo efeitos de aflição e sentimentais para
quem quer aventurar no desconhecido. Júlio França (2017) propôs em seus estudos
que há três elementos que criam uma boa base de estrutura gótica e quando bem
articuladas conseguem trazer medo ao leitor. São elas o retorno fantasmagórico do
passado, o personagem monstruoso e o locus horribilis. A partir do locus horribilis é
realizado todo procedimento para a efetivação do medo na prosa do vilarejo.

o locus horribilis: a literatura gótica caracteriza-se por ser ambientada


em espaços narrativos opressivos, que afetam, quando não
determinam, o caráter e as ações das personagens que lá vivem. Os
ambientes podem variar conforme o contexto cultural de cada
narração, mas tanto regiões selváticas, quanto áreas rurais e os
grandes centros urbanos são descritos, de modo objetivo ou
subjetivo, como locais aterrorizantes. Os loci horribiles da narrativa
gótica são um elemento essencial para a produção do medo como
efeito estético, já que expressam a sensação de desconforto e
estranhamento que as personagens – e, por extensão, o homem
moderno – experimentam ante o espaço físico e social em que
habitam. (FRANÇA, 2017, p.117)

É importante realçar que esses elementos que Júlio França aborda não são
exclusivos das narrativas góticas, mas quando utilizados, eles criam mecanismos de
suspense capazes de produzir o efeito do medo e outras comoções semelhantes.

4. Análise dos contos

Os contos escolhidos para a análise foram Belzebu (Um banquete para


Anatole) e Leviathan (as irmãs Vália, Velma, Vonda). Os dois primeiros contos do
livro, que como dito antes, cada demônio presente no título representa um pecado
capital. E cada conto consegue expressar de maneira direta cada pecado
expressado.
Começando primeiramente com Belzebu, o demônio que simboliza a Gula.
No conto em questão temos Felika, a mãe de uma família em situação de fome,
entretanto não é somente ela e seus filhos que estão nesta condição, mas também
outras famílias do vilarejo. Como estratégia, Ferika armazena comida debaixo da
neve para assim alimentar as crianças até seu esposo voltar. Anatole, seu marido,
havia saído para uma busca por mais suprimentos, pois disse que se ficassem
parados iriam morrer de fome ou congelados. Porém já haviam se passado alguns
dias desde sua jornada e ele não tinha regressado ainda.
Apesar dos pensamentos de Felika estarem no retorno de Anatole, ela recebe
uma visita de alguém alegando que algo de estranho está acontecendo. A sra.
Helga, uma mulher de idade e cega, bate na porta de Felika dizendo que o vilarejo
está vazio e que alguém havia matado e arrancado toda carne de seu cachorro.
Restando apenas os ossos do animal, Helga suplica para que a deixasse entrar, no
entanto, Felika desconfia que ela esconde algo em uma de suas mãos e nega a
hospedagem da vizinha em sua moradia. Após a saída da velha, se escutou novas
batidas na porta, porém dessa vez era Anatole trazendo consigo o pouco de sua
caça. Ele dialoga com a esposa e repara como ela parece sadia e com saúde até
demais diante das circunstâncias dadas..

“ — Você está ótima, querida! — diz o marido, enquanto aperta


suas bochechas. Espanta-se que a esposa esteja tão sadia e corada.
— Tenho dado meu jeito — gaba-se Felika.
— Parece até um tanto mais... gorda!
— Ora, não seja bobo, Anatole!” (MONTES, 2015, p.15)

Logo após isso Anatole fica aterrorizada com a imagem que vê adiante. Não
só os corpos de seus três filhos estão desmembrados, mas também os de outros
integrantes do vilarejo. Chocado com o que sua mulher fez, ele pede uma
explicação, enquanto Felika continua com um sorriso no rosto e com discurso que
deveriam comemorar sua chegada com um grande banquete.
O que seria o pecado da gula? O conto pode até nos enganar no sentido de
pensarmos que o desejo de comida foi tão grande que a personagem comete o
canibalismo. Porém podemos ir além e pensar que a gula está mais ligada com o
desejo de comer mais do que pode. Assim como é descrito no final. Não foi
suficiente para Felika matar somente seus filhos para não passar fome, como
desejou mais e por isso também matou outros moradores do vilarejo. Tudo isso para
fazer um grande banquete. O autor já aborda o mesmo tema em outro de seus
livros, O Jantar Secreto.
No próximo conto temos a representação da inveja, o demônio Leviathan.
Esse é o conto mais famoso do livro, como também é o que a história se interliga
com o posfácio.Nessa narrativa temos três irmãs, Vália é a mais velha e Velma e
Vonda são gêmeas. Apesar de ambas as gêmeas terem a mesma aparência física,
é retratado que Vonda nasceu com uma mancha vermelha em seu rosto, porém faz
de tudo para escondê-la. Vália, por ser a mais velha, já possui um pretendente aos
seus pés, que é o jovem Krieger. Em um passeio envolvendo as irmãs, Krieger e
uma amiga das gêmeas, é quando vemos o sentimento de inveja, tema central do
conto, crescer. Velma, uma das gêmeas, nutre o sonho de ser escritora e com isso
brinca constantemente de inventar histórias junto com Vonda e sua amiga
Jekaterina. Até que ela decidiu fazer essa brincadeira sobre o namorado de sua
irmã mais velha. Uma história onde Krieger se envolveria em um triângulo amoroso
com as gêmeas. Vonda ao ouvir a narração da irmã, se desconecta da realidade e
revela para os leitores que tem um certo interesse pelo jovem pretendente de sua
irmã.

Ouvindo a irmã falar com tanta desenvoltura sobre a beleza de


Krieger, Vonda fica encabulada. Cora sem perceber. Há um tempo,
nutre um sentimento estranho pelo namorado de Vália. Não pensa
que é amor, porque o amor é um sentimento muito forte para ela —
uma menina de treze anos — ficar sentindo por aí. Talvez seja
apenas admiração. Sabe que Krieger é um rapaz mais bonito e
inteligente que os outros no vilarejo. (MONTES,2015, p.22)

Quanto mais a história inventada se estende, mais vemos toda a inveja que
escorre da personagem. A cada parágrafo temos a intensificação desse desejo de
ter o que a irmã tem. A ficção ansiada se mistura com a realidade distante. Quando
Vonda se prende no pensamento de finalizar essa história criada,na qual anseia um
final feliz para ela, acaba criando um plano diabólico que será executado de forma
real.
Ela estabelece uma estratégia após seus pensamentos intensos sobre como
conseguir um desfecho feliz para si própria. E a resposta final seria somente uma:
Assassinato. Então planejou a morte de Krieger, pois Vonda confessou que seria
improvável assassinar uma de suas irmãs. E com a morte do galã da história, Vália
teria mais tempo para brincar como antes com ela e sua irmã.
Desse modo, ela começa a articular o seu plano, enviando por meio de um
papel amassado um convite para Krieger assinado com o nome de Velma para
procurá-la à noite no descampado. Para fazer ele ir, ela acrescenta que o assunto
gira em torno de Vália e que ele não poderia deixar de ir.
No começo, o plano segue bem, Krieger chega no local na hora e Vonda
consegue atingir ele com uma pedra fazendo-o desmaiar. Ela o arrasta para os
trilhos do trem e se esconde para observar. Porém o jovem acaba despertando e na
tentativa de sobreviver, ele se rasteja para sua salvação. Ele acabou não morrendo,
entretanto o trem atingiu suas pernas.
Vonda vendo que seu plano fracassou, que Krieger não morreu e ainda a
viu, acaba entrando em um desespero retornando imediatamente para casa. Afinal,
não queria ser presa e a partir desse sentimento, cria coragem para realizar outra
estratégia perversa. Dessa forma, ela escreveu uma carta de suicidio, adquiriu a
arma que seu pai utilizava, foi até o quarto de sua irmã Velma e atirou em sua
têmpora esquerda (atentando-se ao fato de sua irmã ser canhota). Rapidamente
colocou seu casaco coberto de sangue na irmã junto com o bilhete que entregou ao
Krieger no início e também a carta de suicídio que tinha acabado de escrever.
Correu para seu quarto e esperou a corrida de Vália para checar o barulho do
disparo. Os gritos de sua irmã mais velha confirmaram o encontro do cadáver de
sua gêmea. A mensagem de suicídio foi clara:

Sei o que estou fazendo. Vália, desculpe ter tentado matar o Krieger.
Soube de coisas que o fazem merecer a morte. Coisas que ele fez
comigo, mas vai negar até o fim que realmente tenham ocorrido. Ele
é mau. Ele abusou de mim. Afaste-se dele. É sério. Peço desculpas
por tudo. Não posso mais viver com isso. Vonda, você é uma ótima
irmã. E uma excelente escritora também. Amo vocês e a mamãe.
Adeus. (MONTES, 2015, p.29)

No fim, mesmo sendo Velma que ansiava ser uma escritora, quem conseguiu
armar e finalizar a história foi Vonda. No prefácio, nosso autor-narrador nos informa
o desfecho e a resposta para o mistério de quem é a dona dos diários. Depois que
complicou com seu papel de tradutor, Raphael obteve o número de Ana, a possível
bisneta de Elfrida. Ao ligar, ele reparou uma certa impaciência pela parte dela e
desinteresse pelo o que faria com os manuscritos. Ela também falou que Elfrida em
seus últimos anos de vida ficou imobilizada em uma cama de hospital, com muitas
dores e pesadelos. Raphael, antes de finalizar a ligação com Ana, pediu para que
ela enviasse se possível uma foto, antiga ou recente, de sua bisavó. E na última
página do livro temos a imagem de uma senhora que tem uma mancha vermelha do
lado esquerdo do rosto. As mesmas descrições dadas a personagem Vonda.

5. Comparação com Noite na taverna, de Álvares de Azevedo

Como já dito inicialmente e no decorrer do artigo, a vinda do gótico para o


Brasil foi prolongada e somente em 1855 temos os primeiros resquícios da chegada
de uma literatura de horror. Álvares de Azevedo, em seu livro Noite na Taverna,
revela os elementos macabros e sombrios no decorrer de sua produção nacional.
Em Noite na taverna temos um narrador que apresenta para nós leitores um
cenário e os personagens que ali estão. Contudo esse narrador, após o primeiro
capítulo, desaparece dando espaço para cada personagem contar suas histórias de
aventura. Histórias perturbadoras expondo temas como violência, incesto, necrofilia,
morte, vigança, entre outros similares.
Essa comparação entre essa obra e O Vilarejo tem como objetivo destacar os
pontos semelhantes. Para vermos o que permaneceu do começo e o que se alterna,
fazendo uma ponte entre o passado e o presente. São elas:

(i) A Narrativa em Moldura: conceito já tratado anteriormente e


que também é referido na obra de Álvares de Azevedo. O
narrador no começo é um narrador extradiegético que logo
cede a narrativa aos personagens apresentados para que eles
narram sucessivamente suas próprias (intradiegese)

(ii) Um horror nosso: Não temos os elementos da presença


fantasmagórica do passado e nem sequer uma personagem
monstruosa em nenhuma das obras. O medo e apreensão que
é criado em ambas, são realizados a partir da perversidade
humana. O pecado que vem na carne que facilmente
encontramos na vida real.
(iii) Retomada aos clássicos: Tanto Raphael como Álvares,
trazem em suas obras referências de outras produções
literárias. Em O vilarejo vimos um personagem que está
inserido no livro Se um viajante numa noite de Inverno, de Italo
Calvino. E em Noite na Taverna, no último capítulo essa
retomada se dá quando vemos o suicidio de dois amantes,
para ficarem juntos na morte. Uma grande alusão a obra de
Shakespeare, a própria epígrafe do capítulo é uma frase de
Romeu.

6. Um projeto gráfico pulsante

A ideia motivadora desta pesquisa foi o projeto gráfico do livro. Ele parece se
aproximar dos livros ilustrados, catalogados como literatura infantil.Marcel Dam é o
autor das ilustrações. Elas participam de maneira pulsante das possibilidades de
sentido das narrativas. O jorro de vermelho das ações são ampliados pelas
imagens. A problematização inicial era pensar O vilarejo como um livro concebido
para um público leitor jovem. Como existem livros infantis utilitários, livros ilustrados
esteticamente questionáveis, lançados pelas editoras para uma venda mais
facilitada e conformadora, pensar um livro ilustrado para jovens alienados, talvez
seja a leitura crítica apressada do gótico ainda hoje.
Nada disso. As imagens não são meros recursos para ilustrar o texto verbal .
E o livro não demonstra ser endereçado comercialmente a jovens ávidos por
narrativas de terror.
O romance moldura de Raphael Montes é um desafio para os leitores
acostumados aos enredos fixos do universo de terror. Não há um desfecho
previsível. Os corpos despedaçados, jorrando sangue, em narrativas do terror, são
apresentados de uma maneira contida, seca. A surpresa ocorre em todos os finais
das narrativas enfeixadas no romance moldura,não há índices, sinais na construção
da trama que encaminhem os desfechos.
Não há nada conformador na obra. Os diabos vencem.
Retomando Álvares de Azevedo, no final de Macário, quando Satã observa
jovens devassos numa taverna, como a visão da concepção de Noite na Taverna,
não custa nada desejar a elaboração de um Macário escrito, por exemplo, por
Raphael Montes.

Conclusão

Ainda são poucos os estudos que focam mais sobre a estética gótica,
principalmente ligada à produção literária nacional. Porém como analisamos,
Raphael Montes é um nome que tem tido visibilidade e que também persiste na
realização de narrativas do terror para a atualidade. As críticas negativas sobre tal
literatura, presumo, que nunca se cessarão por completo. Afinal, aceitar um olhar
para o mundo de uma maneira crua, cruel e sem esperanças é atemorizador. No
entanto, é necessário. Essa tradição de sangue pode ter sido tardia, mas apesar
disso ela resiste e está presente nas obras contemporâneas. E para aqueles que
estudam essa temática: nunca permitam que esse sangue cesse.

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