For Aclu Sao
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Clarice Lispector
Resumo
O presente trabalho circunscreve a função do delírio na psicose, partindo
do conceito de foraclusão em Lacan para entendermos a construção da metáfora
delirante como um significante que surge para ocupar o lugar em que a metáfo-
ra paterna falhou. Com o significante Nome-do-Pai foracluído, o sujeito se sente
invadido pelo Outro que tudo sabe dele; esse Outro é não barrado, consistente e
o mantém na posição de objeto de gozo. Para defender-se, o sujeito psicótico cria
um saber que lhe é próprio e que é sustentado por uma certeza absoluta. Sem um
ponto-de-estofo que funde uma cadeia significante, é por meio do delírio que o
sujeito busca dar significação aos significantes que ficam soltos na cadeia. O obje-
tivo deste artigo é fazer uma leitura lacaniana de Schreber a partir do conceito de
foraclusão do Nome-do-Pai.
1
Este artigo é resultado da monografia de conclusão do curso de graduação em Psicologia
realizado no Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), sob orientação da Profa. Dra.
Marcella M. M. Laureano.
2
Graduada em psicologia pelo UniCEUB.
3
Psicóloga (UNESP-2001), Doutora em Ciências (área: Psicologia) na FFCLRP/USP com
estágio PDEE na Université Paris 3 – Sorbonne-Nouvelle (Doutorado direto concluído
em 2008); Professora do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB/FACES/Psicologia).
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1 Introdução
Freud (1996) afirma que a psicose é uma defesa contra uma dor insuportá-
vel ao sujeito, uma tentativa dele de se defender contra “uma representação intole-
rável” da realidade. Por sua vez, para Lacan (1998), a psicose é uma falha na inscri-
ção do significante Nome-do-Pai, isto é, a não inscrição do pai como portador da
lei que introduz o sujeito na linguagem. Lembremos que, para Lacan (1964, 1979),
o sujeito é marcado pela linguagem e é no campo do Outro que ele se constitui.
Se, para Freud, a psicose é uma defesa contra um sofrimento que desorga-
niza o sujeito e o deixa em ruínas e, para Lacan, uma não inscrição do sujeito no
mundo simbólico onde ele tem que lidar com a falta do Nome-do-Pai, qual a saída
que o psicótico encontra para se defender e existir num mundo habitado pelo sim-
bólico? A saída é o delírio como tentativa de criar uma nova realidade que sustente
o sujeito em meio à dor e à falta. Souza (1999, p. 39) assinala:
O delírio, tentativa de cura, é um “ensaio de rigor”
parcialmente exitoso. Exitoso por construir uma significação
viável para o psicótico e por fundar uma filiação, uma forma
original de filiação, onde o sujeito se encontra implicado
num elo com o Pai mesmo que – índice de malogro do
delírio – a referência ao Pai se estabeleça no registro do real.
O caso Schreber é um clássico no estudo da psicose, e foi por meio dele que
Freud pôde avançar nos seus estudos sobre essa estrutura psíquica. Freud (1998)
conjectura que o delírio de Schreber tinha três objetivos: primeiro, dar sentindo ao
desmoronamento, à experiência de fragmentação do corpo; segundo, desvendar
um vínculo possível com o outro, sem ter a sensação de não mais existir; terceiro,
restabelecer uma forma de temporalidade, isto é, contextualizar o delírio no tempo
e no espaço.
2 Do espelho ao sinthoma
Falar do Édipo é falar da função do pai. Como afirma Lacan (1999, p. 171),
“não existe a questão do Édipo quando não existe o pai, e, inversamente, falar do
Édipo é introduzir como essencial a função do pai.” A essa idéia, o autor comple-
menta dizendo: “A função do pai no complexo de Édipo é ser um significante que
substitui o primeiro significante introduzido na simbolização, o significante mater-
no” (LACAN, 1999, p. 180). A esse significante, ele chamará de metáfora paterna
ou significante Nome-do-Pai.
Ao se ver num espelho, o bebê acredita, num primeiro momento, que o que
vê é um outro bebê e não ele. A partir daí, ele vai em busca desse outro desconhe-
cido, mas não o encontra e começa a perceber que o que vê no espelho não é um
outro real e sim uma imagem de si. Finalmente, o bebê reconhece a si próprio na
imagem refletida no espelho. No entanto, esse reconhecimento só acontece se o
bebê se vê sendo visto por outro (geralmente a mãe) que faça a ligação da imagem
refletida no espelho com a sua Imago corporal (STEFFEN, 1988).
4
Aimée foi paciente de Lacan e sobre seu caso, ele desenvolveu sua tese de doutorado em
1932, sob o título: Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade.
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Essa falta é produzida quando o pai se interpõe entre a mãe e a criança, se-
parando um do outro e produzindo um corte, portanto, uma falta simbólica (SOU-
ZA, 1999). A partir daí, a criança reconhece a mãe como um ser faltoso, reconhece
que a ela falta algo. É a falta que instaura o desejo no sujeito. Como nos diz Lau-
reano (2008, p. 96): Ser desejante é o ser marcado pela falta e pela dualidade, pois
é o sujeito do inconsciente [jê] que sabe dessa falta, restando ao eu [moi] a busca
eterna por uma completude eternamente perdida.
Assim, para que haja a unificação do Eu é preciso que o sujeito rompa com
a relação dual (mãe-bebê) e passe a investir em outros objetos fora dessa relação.
Esse investimento é feito quando a criança, na passagem do Édipo, aceita a entra-
da de um terceiro (pai), que representa a entrada da lei e das normas do mundo
social e cultural. A partir daí, a criança sai em busca de um ideal de Eu, passando
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a investir em outros objetos além dele mesmo. No entanto, o sujeito psicótico não
passa por todo esse processo, mantendo-se na relação com o Outro Primordial,
em total simbiose com a mãe; ambos vivendo num sistema de retroalimentação do
desejo do outro.
A mãe tudo sabe sobre o filho e o filho nada sabe sobre seu desejo, já que
não há possibilidade de se reconhecer como ser desejante tragado que está no
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Da foraclusão do nome-do-pai: a leitura lacaniana de Schreber
Em O Caso Schreber, Freud (1998) afirma que a paranoia é uma defesa con-
tra o desejo homossexual e deu o nome de projeção ao processo de formação de
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Cromberg (2000) diz que Lacan não compactua da mesma ideia de Freud,
quando ele diz que a paranoia é uma defesa contra a homossexualidade, e sim, que
Lacan entende a paranoia como uma foraclusão (Verwerfung) do Nome-do-Pai.
Quinet (2003, p. 108) afirma que “Lacan propõe uma definição da paranoia
, identificando o gozo no lugar do Outro”. E acrescenta que esse Outro não barrado
pelo significante da castração, para paranoico, é um Outro consistente, isto é, ele
tem nome - é fulano de tal.
Conclusão: o psicótico torna-se para sempre objeto do desejo do Outro; não reco-
nhecendo a falta, ele não tem desejo próprio. Esta é a marca do sujeito psicótico:
não ter desejo, uma vez que permanece identificado com o objeto de desejo da
mãe. Portanto, como afirma Ribeiro (2007, p. 119-120):
[...] a psicose diz respeito à impossibilidade que o sujeito
tem de dizer algo sobre si mesmo em razão do lugar que
ocupa no discurso do outro. O eu só pode se constituir a
partir da linguagem e este constrói-se na dependência do
lugar atribuído a seu corpo.
Se, no segundo tempo, o pai é aquele que priva a mãe do filho, no terceiro
tempo, o pai “intervém como aquele que tem o falo”, isto é, “o pai pode dar à mãe o
que ela deseja e pode dar porque o possui” (LACAN, 1999, p. 200).
O pai é aquele que separa, que impede o gozo absoluto, que impinge a falta
por meio da castração. A falta é uma falta simbólica, é a falta do objeto desde sem-
pre perdido, como dizia Freud, a que o sujeito passa a vida buscando na impossibi-
lidade de encontrá-lo. Essa falta é o que torna o sujeito desejoso, que o inscreve no
campo das identificações e das diferenciações dos sexos; que o tira da posição de
ser o falo para ter o falo, inserindo-o no registro do simbólico.
e o pai real. Em seu seminário sobre a relação de objeto, Lacan (1995, p. 225), ex-
plicando o estatuto de cada pai, conjectura:
O pai simbólico, [...] é uma necessidade da construção
simbólica, que só podemos situar num mais-além, diria
quase que numa transcendência, pelo menos como um
termo que [...] só é alcançado por uma construção mítica.
[...].
O pai imaginário é aquele com quem lidamos o tempo todo.
É a ele que se refere, mais comumente, toda a dialética, a da
agressividade, a da identificação, a da idealização pela qual
o sujeito tem acesso à identificação do pai. [...].
O pai real é a uma coisa completamente diferente, do qual
a criança só teve uma apreensão muito difícil, devido
à interposição de fantasias e à necessidade da relação
simbólica.
O pai simbólico não emerge se o pai real falha, e assim não há lei que se
enuncie, permanecendo o sujeito psicótico submetido ao desejo da mãe, identi-
ficado com o objeto fálico materno, barrado da entrada ao universo simbólico. A
função do pai falha enquanto função simbólica; como consequência, os significan-
tes ficam soltos na cadeia, sem significação própria.
O saber psicótico é um saber sem pai, e como não há um sujeito suposto sa-
ber, o sujeito psicótico constrói um saber que lhe é particular, como nos diz Souza
(1999, p. 83): “Um saber original – relativo à origem e inédito – avesso ao consenso,
inusitado”. Calligaris (1989) complementa Souza, ao dizer que, ao sujeito, cabe a
tarefa de sustentar esse saber. E ele só pode sustentar esse saber com a sua certeza
egoica. Souza (1999, p. 84) acrescenta mais: “É a certeza que faz do saber delirante
um saber suficiente. Suficiente, compacto, sem falha e certo. Uma tal certeza que
advém ao psicótico como intuição, como uma experiência imediata do real, é a
marca registrada que singulariza seu saber”.
dele tudo sabe; e o sujeito se encontra, assim, submetido a um saber absoluto, oni-
potente, que o devasta, que o desagrega, que o degrada, que o despedaça.
Julien (1999) destaca que, segundo Lacan, a diferença está em ter ou ser o
sintoma: na neurose, o quarto anel é da ordem do ter um sintoma; enquanto que na
psicose há uma tentativa de ser o sintoma. Se a tentativa de ser o sintoma funciona,
não há delírio; caso contrário, é o delírio. Joyce conseguiu por meio da escrita ser o
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Lacan (2007, p. 91) assinala: “Joyce tem um sintoma que parte do fato
de que seu pai era carente, [...]. Centrei a coisa em torno do nome próprio, e
pensei que [...] ao se pretender um nome, Joyce fez a compensação da carência
paterna”.
Segundo Sobral (p. 2483), escrever pode ser uma forma de afastar o gozo
do Outro que invade o sujeito psicótico. Segundos suas palavras, escrever é: “Um
ato, onde o sujeito tenta produzir uma borda, uma contenção. Um contorno ao
ilimitado do corpo. Ao escrever, inscreve-se ali um sujeito”.
Foi a partir do caso Schreber que Lacan melhor elaborou sua concepção
acerca da psicose e teorizou a noção de Nome-do-Pai. Foi no discurso delirante
de Schreber que, segundo Nasio (2001, p. 59), Lacan “encontrou respaldo para sua
teoria da função simbólica”.
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Lacan focou seu estudo sobre Schreber nos fenômenos da fala, uma vez
que, como afirma Kaufmann (1996, p. 191): “o simbólico está na fala como efeito
de um sujeito”.
Na psicose o sujeito fica à mercê dos imperativos deste Outro, que faz do
sujeito, objeto de seu gozo. Esse Outro, não barrado na psicose, fala. Segundo
Souza (1999, p. 84), “fala, grita, impõe a sua voz, interpela o sujeito. Acossa-o com
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Quanto às vozes que não cessam de falar a Schreber, Nasio (2001, p. 60)
assinala:
É a fala que liga Schreber a uma forma de realidade,
por mais perturbada que seja. [...]. É Deus quem fala.
Quando a fala pára, Schreber se confronta com o vazio,
com o horror, é “deixado largado”. Largado pelo Outro,
ele não é mais nada. O Outro da linguagem aparece aqui
como tal.
Lacan (2008) afirma que, quando Deus em Schreber recua, o sujeito viven-
cia sensações muito dolorosas, daí o urro que representa uma tentativa de negar
a fragmentação do corpo. Nas palavras do autor: “[...] cada vez que se interrompe
a relação, que se produz a retirada da presença divina, eclodem todas as espécies
de fenômenos internos de dilaceramento, de dor, diversamente intoleráveis” (LA-
CAN, 2008, p. 151).
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Da foraclusão do nome-do-pai: a leitura lacaniana de Schreber
Lacan (2008) conjectura que o delírio é mais sofrido para o sujeito quanto
mais ele não o organiza. É, justamente, quando Schreber aceita a emasculação que
seu delírio se estabiliza. Quinet (2003, p. 43) acrescenta: “A Mulher enquanto No-
me-do-Pai tem a função de amarração, de ponto-de-basta, permitindo ao sujeito
[à Schreber] dar significação aos seus significantes e daí reconstruir o mundo por
intermédio da significação delirante.”
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4 Conclusão
Compreendemos a psicose como um modo que o sujeito encontra para
estruturar sua existência, como uma possibilidade de se organizar no mundo.
Abstract
This article circumscribes the delirium’s function in psychosis, starting
from Lacan’s concept of foreclosure to understand the construction of the delirious
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metaphor that arises to fill in where the paternal metaphor failed. As the Name-
-of-the-father foreclosured, the subject fells invaded by the Other that knows all
about him; this Other is not blocked, consistent and maintains the subject in the
position of object of joy. To defend himself, the psychotic subject creates a wisdom
of its own that is sustained by an absolute certainty. Without a quilting point that
binds a signifying chain, is thru delirium that the subject tries to give signification
to the signifiers loose in the chain. The aim of this article is to make a lacanian in-
terpretation of Schreber from the stand point of foreclosure and name of the father.
Referências
CALLIGARIS, C. Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1989.
QUINET, A. Espelho e eu. In: ______. Um olhar a mais: ver e ser visto na
psicanálise. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002.