A Voz de Narciso
A Voz de Narciso
A Voz de Narciso
A voz de Narciso
Descrio da linguagem narcsica e de suas manifestaes contemporneas na educao e
na psicanlise
A voz de Narciso
Descrio da linguagem narcsica e de suas manifestaes contemporneas na educao e
na psicanlise
ndice
p. 6
p.23
narcsica.
Sobre o narcisismo
p.42
3.1 O mito
p.45
3.2 Freud
p.49
3.3 O espelho
p.61
p.73
Narrativa e subjetivao
p.91
p.100
p.113
p.121
p.137
p.151
p.166
p.170
p.173
Ento...
p.202
Concluso
p.212
Referncias bibliogrficas
p.219
solto e
Claro que nem sempre era assim. Muitas vezes (a maioria delas, eu
acho) intervim com sentido e significado mais precisos. Nem por isso, tais
experincias deixaram de me incomodar. Caminhando pelo campus da
universidade, relembrava a situao e procurava compreend-la sob dois
aspectos: por que me pus a falar to atiradamente, to inconsequentemente,
sem pensar antes no contedo de minha fala? E por que me incomodava tanto
constatar que no me compreenderam?
A primeira questo obteve de mim uma resposta mais simples: era um
tempo de muita agitao na minha vida. Casamento, filha, trabalho.
Urgncias cotidianas que sempre me tomaram por completo, quero dizer,
sempre me animei frente possibilidade de dar conta de vrias coisas ao
mesmo tempo. Fui seduzido pela velocidade, pela quantidade e pela vaidade
de ser considerado capaz de cuidar de mltiplos afazeres. Nem sempre,
percebo agora, foram atitudes pensadas. Nem sempre foram opes.
Atribuladas como muitas das minhas falas, percebi que minhas situaes de
vida muitas vezes careciam de um sentido pessoal que as interligassem, que
tecessem entre elas uma rede de significados coerentes.
Passaram-se anos da primeira constatao de que a minha linguagem
pudesse ter relao to profunda com minhas experincias cotidianas. Claro
que hoje isso parece ter mais sentido. Um sentido at bvio demais, pois no
me parece nada original supor que uma vida atribulada pudesse gerar falas
atropeladas, com vacuidades e incompreenses. O problema est em saber o
quanto o acmulo de experincias velozes e superficiais poderia interferir na
produo de discursos superficiais e desconexos. Naquele momento, pareceu-
fazia discursos,
proferia palestras
em
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... Agostinho concebe esse pensamento da criao com uma profundidade jamais alcanada pelos filsofos gregos.
Para Plato, por exemplo, deus o demiurgo, o artfice divino do mundo que ordena e conforma o caos, ou seja, o caos
preexiste a ele. Porm, Agostinho entende que dessa forma o poder de Deus prejudicado. Mas tudo depende do poder de
Deus. Se ele ilimitado, no pode haver nada que preceda sua vontade criadora e, portanto, tambm nenhum caos que
subsista por si mesmo. A criao tem de ser assim verdadeiramente entendida como criao a partir do nada. Essa
concepo, de resto extremamente paradoxal para o pensamento antigo, culmina na representao de Deus como poder
absoluto, para a qual Agostinho incessantemente impelido toda vez que reflete sobre Deus. ( Weischedel, 1999. p. 87)
1
O padre Jos Kentenich escreveu vrias obras, publicadas por editoras do Movimento Apostlico de
Schoenstatt, em vrias lnguas. Entre suas obras: Desfios de nuestro tiempo(1986) e Linhas fundamentais
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de uma pedagogia moderna para o educador catlico (1984) esto referencias no final desse trabalho. Seu
pensamento pedaggico foi sintetizado por Strada, A. Propuesta pedaggica. (1991).
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filmes de terror eram as nicas possveis para ele, pois a construo de uma
narrativa de sua vida estava impossibilitada naquele momento. Mas no se
tratava de um caso de falta de significado! Tudo fazia sentido, era coerente,
porm, sob o prisma de uma metfora terrvel: filmes de terror da t.v. Quando
descobri a chave, no consegui definir qual era a metfora mais medonha ou
dolorida para a narrativa de sua vida: o filme, o terror ou a t.v. Todas elas
apontavam para um hiato entre a vida e a experincia, um alheamento, uma
observao distante da prpria vida. E o pior, o medo de viver a vida, a vida
como uma ameaa medonha. Seus filmes prediletos pertenciam a duas
sries: Sexta-feira, 13 e A hora do pesadelo. Conversamos longamente sobre
Freddies Krugers e Jasons, sobre vidas, mortes, pesadelos e at sexo. Ora
meu paciente era Freddie Kruger, ora era Jason, ora era uma de suas vtimas,
transitando entre o medo e o desejo de experimentar esse perigoso roteiro do
filme chamado vida. Foi um alvio, para mim, encontrar o sentido. E atravs
dele, reencontar o fio da trama, o indcio significativo possibilitador da
narrativa do garoto. Havia, enfim, uma narrativa significativa por trs de
tudo.
A histria desse tratamento3 mostrou-me que no era na superfcie das
coerncias externas do discurso que eu deveria buscar a chave da minha
pesquisa, mas nas tramas internas da intencionalidade. Mais importante era
compreender a inteno das narrativas que atentar apenas e focalmente para a
coerncia de sua construo.
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construda,
naturalmente,
partir
dos
desejos
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experincias que vive, mas tem na narrativa de sua vida o elo que d sentido
a tudo. Suas narrativas ingnuas mantm ainda o resqucio moralizante das
narrativas edificadoras da tradio romntico-liberal. Ele descreveria a vida
como uma folha outonal levada pelo vento: tudo nela tem um sentido, uma
causa, uma beleza, mesmo que escondida, misteriosa. No se sabe onde vai
pousar, mas v-la descrevendo crculos no ar reconfortante, porque, para
ele, a metfora da pena alada lembra o ciclo vital, a morte que gerar novas
vidas e cujo relato significativo vale a pena preservar. J Burnham relata
experincias fracassadas, cujo sentido conhece bem, mas das quais est
definitivamente separado. Para ele, a folha de papel apenas uma ironia, um
resduo de lixo urbano, levada pelo vento, vazia de sentido. Nada nela est
escrito, registrado, preservado. Ela o lixo, e o vento a brincar com ela
confere-lhe uma poesia esvaziada. Ela no significa nada, no pousar em
nenhum lugar especial, no tem nenhuma mensagem digna de ser lida e sua
imagem no ar apenas um significante esvaziado, mas pronto (no sentido
industrial do termo) para ser tomado por algum como uma profunda ou
conveniente lio de vida, um ditado postulador de sentido, um guia
espiritual ou coisa parecida.
Mas a diferena entre os dois narradores superficial: algo os une
alm da citao metafrica. A narrativa de Forest tem uma inteno
moralizante mais clara: mostrar ao pblico que a vida contempornea tem um
sentido que, embora oculto, no se encerra e pode ser reencontrado a
qualquer momento, recuperado num novo ciclo de vida, assim que o inverno
ps-moderno seja superado. J Lester faz outra coisa: seu relato frio, cnico
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Comecei esse captulo pelo estudo das cenas iniciais desses dois
filmes porque elas me servem como exemplo do que pretendo desenvolver
nesse livro.
Meu trabalho objetiva descrever e analisar a relao entre narcisismo
e a linguagem. Procurar estudar as narrativas cotidianas de alunos meus,
bem como de filmes, propagandas, msicas e outras manifestaes culturais e
lingusticas, para identificar nelas estruturas lingusticas que julgo
caracterizar um tipo de linguagem que chamarei de narcsica.
As duas cenas relembradas acima podem ser registradas como
metforas disparadoras dessa anlise. Forest o "contador de histria" psmoderno. Esboo caricatural de uma figura antiga, superada, ligada uma
Nesse caso, nem mesmo com os chamados heris da saga americana, pois quando Forrest encontra-se com
os heris e viles da moderna saga americana, esse encontro se d num ambiente de casualidade informal - ele
no planejou estar naquele lugar, naquele momento. A falta de intensionalidade de Forrest aponta para uma
sugesto de que os heris apenas surgem da casualidade: esto no lugar certo, na hora certa.
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Penso que o termo cabvel aqui ironia, mesmo, e no cinismo. Embora, no caso de Beleza Americana, o
cinismo esteja presente tambm. Claro, trata-se de uma interpretao, mas ao meu modo de ver, em Forrest
Gump, a pergunta irnica "H como resgatar a ingenuidade herica em nossa histria?" tem uma resposta
evidente j no seu enunciado: houve heris na saga americana moderna? Eles foram ingnuos? No e no.
Trata-se, portanto, de uma pergunta retrica, irnica.
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Todas as referncias obra de Freud sero da edio eletrnica brasileira, editada em 2000, pela Imago.
Nesse caso, refiro-me ao texto Narcisismo: uma introduo, de 1914.
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Entretanto, o
esquema aponta para qualidades distintas entre a modernidade e a psmodernidade, alm de relacionar atitudes, posturas, mentalidades presentes
nas expresses culturais e lingusticas que estudarei nos captulos seguintes.
Lyotard (1998) conceitua as metanarrativas como os conjuntos de
relatos autoreferenciados com os quais a modernidade explicava-se a si
mesma. Dessa forma, grandes relatos, como a dialtica do esprito, por
exemplo, eram convocados para explicar a modernidade, mas apenas o
faziam sob a gide das regularidades aceitas internamente no prprio relato.
De forma um pouco mais esquemtica, os marxistas, por exemplo, entendiam
o mundo sob o ponto de vista de enunciados marxistas que legitimavam no
s o ponto de vista defendido, mas tambm a viso de mundo acarretada por
esse ponto de vista. Metarrelato, , portanto, um conjunto de enunciados e de
regras de enunciao que fundamentam um ponto de vista, uma leitura, uma
argumentao, baseando-se em preceitos fundamentados em si mesmo.
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agitao
dos
enunciados
paratxicos
ps-modernos,
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disso, espero abrir caminhos para uma compreenso mais profunda da cultura
contempornea e suas manifestaes artsticas e educacionais e de como o
narcisismo pode ser considerado uma marca cultural do nosso tempo.
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3-
Sobre o narcisismo
Quando acontece um grande amor/ Assim como voc e eu/ O tempo passa
por ns dois/ No lembro o que aconteceu
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Mas nem por isso vou ficar/ A questionar os erros meus/ Voc precisa
procurar/ Achar o que voc perdeu
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3.1-
O mito.
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O poeta Ovdio viveu entre 43 a.C. e 17 d.C. Sua obra marca um importante retrato da cultura latina. O
mito de Narciso encontra-se no livro "Metamorfoses".
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Freud, 2000.
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H, por outro lado, uma verso becia, registrada por Grimal (1965): o
belo e jovem Narciso desperta o amor de outro jovem: Amnias.
Como no o quer, Narciso lhe envia, de presente, como compensao,
uma espada. Amnias no aceita o presente e utiliza-o para se matar, mas
antes pede aos deuses uma maldio contra Narciso. a maldio do
espelho, que se repete. Quando se v no espelho de uma fonte, Narciso
apaixona-se to desesperadamente que, ao ver-se impossibilitado de alcanar
a imagem refletida, mata-se. No local, nasce a flor.
Essa verso tambm contribui com um dado importante: o desejo
homossexual, que, embora no mito no esteja presente inicialmente no jovem
Narciso, a causa de sua maldio. Seu suicdio tambm outro dado
interessante, pois encontra sua motivao no fato de que a imagem refletida
no lago um ideal inatingvel. Freud tambm discute a relao entre o desejo
homossexual, organizador da libido, o ideal do ego e o narcisismo. Veremos
isso tambm, adiante.
Grimal (1982) e Grimal (s/d) registram ainda uma terceira verso, ainda
mais interessante. Nela, Narciso tem uma irm gmea, to bela quanto ele.
Ela morre e o jovem jamais se conforma com a tragdia. Narciso, que queria
estranhamente a irm, mergulha em pesada dor. Ao encontrar a fonte d'gua,
por alguns instantes, sentiu-se reconfortado e passou, desde ento, a mirar-se
longamente no espelho da gua, mesmo sabendo que o reflexo no era o de
sua irm. Nessa verso, concorre uma outra figura clnica associada ao
narcisismo: a melancolia.
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3.2-
Freud
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Mas se no
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Como acontece sempre que a libido est envolvida, mais uma vez
aqui o homem se mostra incapaz de abrir mo de uma satisfao de
que outrora desfrutou. Ele no est disposto a renunciar perfeio
narcisista de sua infncia; e quando, ao crescer, se v perturbado
pelas admoestaes de terceiros e pelo despertar de seu prprio
julgamento crtico, de modo a no mais poder reter aquela
perfeio, procura recuper-la sob a nova forma de um ego ideal. O
que ele projeta diante de si como sendo seu ideal o substituto do
narcisismo perdido de sua infncia na qual ele era o seu prprio
ideal. (Idem, 2000).
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Peter Pan o protagonista criado por Barrie (1998). Simboliza o desejo de no crescer para no enfrentar
as dificuldades cotidianas da vida adulta.
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3.3-
O espelho
Localizei nas pastas do meu computador um poema que fiz nos anos
adolescentes:
O gato se v no
fora?
espelho.
No se entende.
No se entende.
Odeia.
Seus
Espera,
olhos
rebrilham
no
espelho
o outro no parte.
sua
Esquece,
alma.
o outro ignora.
No se entende.
Enfurece,
Levanta
contra a imagem
sua
perna,
se arrebenta.
o outro tambm.
Finge indiferente,
Um
gato
mia
o outro no liga.
solitrio
Vai embora,
na escurido da
o outro no fica.
madrugada
Volta, desconfia,
tremenda.
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A palavra drama ser usada aqui e adiante como a narrativa resultante dos variados papis sociais
desempenhados pelos indivduos em suas relaes sociais.
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Creio que a relao que o Sujeito construir com seu tempo, seu mundo e sua
sociedade estar marcada por esse momento identificatrio inicial. Trata-se
de uma matriz simblica moduladora das simbolizaes posteriores do
indivduo.
A viso que o indivduo tem de si nesse momento de identificao
primordial transformar-se- na sua narrativa pessoal, no seu drama a ser
representado por toda a vida. Assim, o jogo da performance ps-moderna
insere-nos numa rede de identificaes primrias, de narrativas constituintes
subjetivas, de dramas pessoais primordiais. Cada pessoa representa um
personagem que busca aproximar-se o mximo possvel daquela matriz
simblica, daquele reflexo efmero que marcou o incio da construo do
ego.
Mas o ponto importante que essa forma situa a instncia do eu, desde
antes de sua determinao social, numa linha de fico, para sempre
irredutvel para o indivduo isolado - ou melhor, que s se unir
assintoticamente ao devir do sujeito, qualquer que seja o sucesso das
snteses dialticas pelas quais ele tenha que resolver, na condio de eu,
sua discordncia da prpria realidade. (Idem, 1998)
Penso que essa busca de sntese pessoal, a qual Lacan se refere, pode
tornar-se to intensa e aproximar tanto o indivduo do desejo de compreenso
de si, ou melhor, do desejo de resgate dessa identificao primria, que o
efeito o mesmo de quando um sujeito aproxima-se demasiadamente do
espelho em que se observa refletido: perde-se a noo do objeto refletido. A
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Assim, essa Gestalt, cuja pregnncia deve ser considerada como ligada
espcie, embora seu estilo motor seja ainda irreconhecvel, simboliza, por
esses dois aspectos de seu surgimento, a permanncia mental do eu, ao
mesmo tempo em que prefigura sua destinao alienante; tambm
prenhe das correspondncias que unem o eu esttua em que o homem se
projeta e aos fantasmas que o dominam, ao autmato, enfim, no qual
tende a se consumar, numa relao ambgua, o mundo de sua fabricao.
(Idem, 1998.)
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construdo busca seu lugar numa pea de teatro a ser escrita, ainda, por um
terceiro nessa relao.
A pea, o roteiro, o filme, o romance representam a incluso do
indivduo numa narrativa simblica, qual estar preso e qual buscar
compreender, atuando da forma mais adequada possvel. Trata-se da estrutura
social e lingustica em que o indivduo estar inscrito, como um novo
significante, numa extensa e longnqua cadeia de significantes anteriores e
posteriores. Uma cadeia que ele herdar como sua, atravs da qual a Lei ser
transmitida e qual ele dever se submeter, como seguidor, defensor e
portador da Lei. Nessa cadeia estar inscrito seu nome e o nome de seu pai, e,
futuramente, nela tambm estar inscrito o nome de seu filho.
assim que Lacan descreve a transposio do Ego Ideal, instncia do
imaginrio e do desejo, identificado com o desejo da me, ao Ideal do Ego,
instncia da linguagem e, portanto, da lei e do pai. Narciso e dipo estaro
em conflito incessante, numa arena de luta e interao, durante a constituio
do indivduo. Trata-se, assim, da descrio lacaniana da constituio do
sujeito e resoluo do conflito edpico: na primeira etapa, a identificao
narcsica, geradora da Imago que se constituir na matriz simblica do
indivduo; numa segunda etapa, a identificao com o desejo do outro,
representado pela me; na terceira etapa, a castrao em relao ao desejo
identificado do filho e da me, o rompimento simblico representado pela lei
e pelo nome do Pai.
Entre Narciso e dipo flutua o falo. Como um cetro, um objeto que
encerra a significao buscada, o indivduo identifica o falo primeiro em si
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desorganizado,
anterior
gestalt
narcsica.
Incluo
nessa
relao
Desde de muito cedo, o homem fica preso a uma iluso, da qual procurar
se aproximar pelo resto da vida. Ser um heri, ser Superman ou o
Cavaleiro Solitrio, ser um gnio, no so mais do que verses do
processo imaginrio. Portanto, vemos que o estgio do espelho no
apenas um momento do desenvolvimento do ser humano. uma estrutura,
um modelo de vnculo que operar durante toda a vida. (Bleichmar &
Bleichmar, 1992)
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contempornea.
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Uma sociedade constituda a partir dos elogios e da busca de autoafirmao pode supor uma nova organizao, fundamentada no na
autoridade patriarcal clssica, mas na performance dirigida pelo elogio. Podese dizer que h um enfraquecimento do superego social, dos mecanismos de
controle, submetidos mais aprovao pessoal, aos ndices teraputicos de
auto-estima que ao bem estar social. Entretanto, esse clima de liberao
individualista no gera, ao contrrio do que se poderia supor, um pensamento
liberal. Ao contrrio, a insegurana resultante dessa situao gera um
superego severo, capaz de fundamentar-se em ideologias extremamente
opressivas, criadoras de mecanismos eficazes de controle social. O
surgimento de grupos extremamente rgidos e reacionrios em tempos de
suposta liberdade individual est explicado nessa relao: trata-se de buscar
extratos fundamentalistas com valores rgidos e claros para sentir-se seguro
frente s infinitas possibilidades da liberdade individual. H, paralelamente,
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situao
construda
assim
gera
uma
tica
baseada
na
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narcisistas
apresentam-se
tambm
em
caractersticas
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do
narcisismo
contemporneo,
autor
justifica
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nessa oposio, Lasch abre caminho para seu questionamento central: seria o
"egosmo" uma forma de "sobrevivencialismo", ou um estgio de
desenvolvimento em que uma mnima proteo do "eu" possibilite o
surgimento de uma nova cultura, contrria introspeco, ao narcisismo e ao
escapismo. Sob esse ponto de vista, frente a um meio ambiente hostil e
implacvel, o indivduo busca a auto-gesto como o primeiro passo para
evitar a escravizao pelo medo.
Nesse ponto, Lasch (1986) destaca as estratgias cotidianas de
sobrevivncia, muitas vezes tomadas como atitudes egostas: o planejamento
de cada detalhe, tomando a estratgia como ponto de apoio para qualquer
atitude que possa levar ao sucesso; o truque de observar-se como se os
acontecimentos pessoais se dessem, na verdade, com outrm; o desempenho
de um papel como forma de resguardar o ntimo verdadeiro, adotando a cor
do meio ambiente como a sua prpria cor; a infinita gama de possibilidades
combinatrias para a concepo de identidade, etc.
As situaes extremas so tomadas como fontes pedaggicas de
extrema coerncia e propriedade. Assim, entender como as pessoas
sobrevivem a grandes holocaustos, a grandes acidentes, torna-se uma fonte de
inspirao cotidiana. E mais, trata-se de uma tentativa de compreender como
o ser humano capaz de sobreviver a situaes de vitimizao extrema e at
de superar os traumas resultantes da tenso psquica prpria de tais situaes.
H, na base dessa aprendizagem, uma ideia fundamentada nos mecanismos
adaptativos da espcie e, segundo essa concepo, os sobreviventes s
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Esta uma das razes pelas quais, medida que uma sociedade passa do
erotismo sexualidade, da crena em aes emocionais para a crena em
estados emocionais, foras psicolgicas destrutivas so trazidas baila.
um sinal da destrutividade desencadeada quando uma sociedade nega at
mesmo a Eros uma dimenso pblica. (Sennet, 1988)
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experincias
profissionais,
que
moldam
indivduo
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Inerente em todo risco est a regresso mdia. Cada rolar dos dados
aleatrio. Posto em outros termos, falta matematicamente ao risco a
qualidade de uma narrativa, em que um acontecimento leva ao seguinte e
o condiciona. As pessoas podem, claro, negar o fato da regresso. O
jogador faz isso quando diz que est com sorte, numa mar de sorte,
quente; fala como se os lances dos dados estivessem relacionados, e o ato
de arriscar portanto assume as qualidades de uma narrativa. (Idem, 1999).
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4-
Narrativa e subjetivao
Anteriormente, referi-me a oposio entre modernidade e psmodernidade, atravs de um conjunto de qualidades opostas. Dualismos
reducionistas, talvez, mas com fora didtica. L, a ironia e o cinismo so
apontados como marcadores presentes na interpretao ps-moderna da
realidade. Entretanto, que cinismo e que ironia pode, por exemplo, teria
resistido ao ataque terrorista de onze de setembro de 2001? A ferida narcsica
provocada no povo americano por esse ato de terrorismo poderia supor a
possibilidade de alguma metalinguagem capaz de traduzir ou questionar os
acontecimentos terrveis? H algum romance possvel a ser escrito sobre esse
acontecimento? A arte tenta aproximar-se atravs de dois longos fachos de
luz azul projetados na direo do cu noturno, que agora podem substituir as
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A prefeitura da cidade de Nova Iorque lanou um concurso para projetos artsticos e arquitetnicos para
suprir o espao deixado pelas torres gmeas. Um dos projetos consistia num memorial formado por dois
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que quero contar - uma eterna e insupervel incompatibilidade de interessesou, talvez, nas diferentes situaes enunciativas e discursivas em que eu e o
outro nos encontramos. So tantos os motivos de desencontro (ou
desencanto?) que no me parece incompreensvel estar presenciando a
ausncia de narrativas.
Outra razo encontro nas reunies constantes que fao com
educadores e estudantes de pedagogia. Se no os controlo, nossas reunies se
alongariam numa enfadonha sucesso de relatos de experincias de sala de
aula. Seriam uma forma de compartilhamento? Creio que no. As reunies
servem para discutir temas pedaggicos questionadores da prtica educativa
de cada um de ns. O que percebo na interminvel fila de relatos uma
afirmao desesperada de um lugar, de um modo de ser educador, marcada
inexoravelmente pela macabra expresso: "Eu, por exemplo, ...".
Nada de reflexo. Nada de compartilhamento. Nada de crescimento
com a experincia dos outros. Sucessivos relatos esvaziados, cujo significado
nico est na busca de um reconhecimento externo para as atitudes pessoais.
J encontrei esse tipo de relato em outras experincias. Por exemplo, com
pais de alunos meus. A dificuldade em visar o filho era grande. Ao falar das
relaes entre os pais e os filhos, muitos pais comeavam seus relatos por
"eu, por exemplo, ...". Tanto numa como noutra reunio, a sensao final era
de profundo esvaziamento. Nenhuma narrativa para ser lembrada,
compartilhada, vivida em conjunto.
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obra de James Joyce e o cita vrias vezes. Seu interesse certamente encontrase no fato de ter usado, o escritor irlands, o ato de narrar como organizador
de sua subjetividade. Franz Kafka escreve a seu pai e exorciza a figura
castradora e impiedosa que dominava sua alma. Guimares Rosa utiliza a
linguagem como re-criadora do universo sertanejo, no qual ele prprio
desejava inserir-se. Enfim, no haveria espao para relacionar todos os
escritores que utilizaram sua arte na busca de uma escrita de si mesmos,
de uma autocompreenso.
As narrativas mitolgicas cumpriam tambm esse papel nos
primrdios da humanidade. Sua funo teraputica sobre os indivduos
residia no fato de que os incluam na histria social de seu povo. Davam a
eles o sentimento de pertena, de similaridade, de incluso cultural. Eram
para eles a fonte de identidade, de significado, de possibilidade de construo
de sentido para sua vida dentro da comunidade em que viviam. Por outro
lado, a funo teraputica17 das narrativas mitolgicas atingia tambm a
coletividade. Atravs delas, o grupo construa um conjunto de valores sociais
indicadores da identidade coletiva, de uma conscincia grupal. de uma
unidade transcendente ao sujeito, mas, por isso mesmo, capaz de permitir a
16
Lacan (1998), p. 28 e p. 72
Etimologicamente, terapeuta aquele que cuida, mas tambm o servidor ou adorador de um deus. A
palavra terapia tambm refere-se ao cuidado religioso, ao respeito pelos pais, pelos animais e plantas.
(Machado, 1967). Dessa forma, justifica-se a aproximao dos termos terapia e narrativa mitolgica.
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A narrativa,
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Leia-se, sobre esse assunto, Freud (1906): Se a finalidade do drama, como se supe desde os tempos de
Aristteles, consiste em despertar terror e comiserao, em produzir uma purgao dos afetos, pode-se
descrever esse propsito de maneira bem mais detalhada dizendo que se trata de abrir fontes de prazer ou
gozo em nossa vida afetiva, assim como, no trabalho intelectual, o chiste ou o cmico abrem fontes similares,
muitas das quais essa atividade tornara inacessveis. Para tal finalidade, o fator primordial ,
indubitavelmente, o desabafo dos afetos do espectador; o gozo da resultante corresponde, de um lado, ao
alvio proporcionado por uma descarga ampla, e de outro, sem dvida, excitao sexual concomitante que,
como se pode supor, aparece como um subproduto todas as vezes que um afeto despertado, e confere ao
homem o to desejado sentimento de uma tenso crescente que eleva seu nvel psquico. Ser espectador
participante do jogo dramtico significa, para o adulto, o que representa o brincar para a criana, que assim
gratifica suas expectativas hesitantes de se igualar aos adultos. O espectador vivencia muito pouco, sentindose como um pobre coitado com quem no acontece nada; faz tempo que amorteceu seu orgulho, que situava
seu eu no centro da fbrica do universo, ou, melhor dizendo, viu-se obrigado a desloc-lo: anseia por sentir,
agir e criar tudo a seu bel-prazer em suma, por ser um heri.
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Sobre essa relao de identificao, Gabler (1999, p. 187, 188, 189) aponta a descrio de atitudes pessoais
aprendidas atravs das atitudes dos personagens de cinema: saber vencer por ter assistido ao filme "Top Gun",
ou saber revoltar-se por ter assistido James Dean em "Assim caminha a Humanidade". Isso demonstra como a
mdia tem poder de identificao. Adiante, mostrarei como interfere na prpria construo da narrativa sobre
o processo de subjetivao.
100
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Muitas vezes, estarei me referindo a textos mimeografados, sem data, distribudos em cursos e seminrios
promovidos por membros do LAEL (Laboratrio de Anlise e Estudos Lingusticos), da Pontifcie
Universidade Catlica de So Paulo. A referncia bsica a obra de Jean-Paul Bronckart sobre o
interacionismo scio-discursivo (Bronckart, 1999). Outros trechos faro referncia a obras de Schneuwly e
101
num
certo
sentido,
exige
distanciar-se,
isentar-se,
Dolz, ainda no traduzidas, ou com tradues no autorizadas para publicao. Nesses casos, o leitor
encontrar na bibliografia a referncia aos textos originais.
102
103
23
A comparao feita a seguir refere-se a duas anlises distintas: Defoe citado por Benjami, 1994. J a obra
de Amyr Klink trabalhada por Roxane Rojo, em texto mimeografado, referenciado na bibliografia. O que
fao a seguir comparar dados dessas duas anlises e empreg-los a favor da minha argumentao.
104
no pode encontrar
105
106
no
relato,
mas
nele
descomprometido, desimplicado.
transformam-se
em
algo
impessoal,
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110
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ser um jogador
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113
114
desmoralizado.
destinatrio,
que
inicialmente
115
identificava-se com o remetente, comea, atravs desse novo lance, a sentirse confuso e a considerar a possibilidade de que, uma vez que o remetente
no confivel, o referente inicial tambm pode ser questionado: talvez
bruxas existam. O poder que legitima, representado pela universidade, que
pede o trabalho, e pelo ritmo de documentrio jornalstico, impresso no filme
dos garotos, deixa de ser uma referncia segura. Talvez esses poderes no
saibam mais o que verdade, e seus enunciados no sejam mais confiveis.
Vale a pena determo-nos no enunciado inicial. O contexto dos
remetentes (universitrios, ricos, futuros jornalistas) leva-nos a enunciar algo
que coincide com a opinio do destinatrio. Quando essa coincidncia ocorre,
o enunciado "no est sujeito a discusso nem a verificao pelo
destinatrio, que encontra-se imediatamente colocado no novo contexto
assim criado." (p. 16) e o destinatrio assume uma posio de compartilhado
saber com o remetente. Ambos colocam-se como sabedores do contedo
referenciado.
Na medida em que os fatos se desenrolam, o medo toma conta dos
estudantes. Eles se perdem no meio da floresta, vem-se andando em
crculos, sentem-se perdidos, ouvem sons. Tudo registrado pelas cmeras
que carregam, num ritmo de reportagem ao vivo, nos moldes das que se
tornaram populares nas televises brasileiras. O efeito sobre o espectador o
mesmo. Eles se sentem igualmente perdidos, numa circularidade narrativa
que os envolve e os deixa sem referncias. O dia e a noite so recortados
pelos breves momentos em que a cmera dos estudantes est ligada. O que a
platia v a imagem permitida pela pouca luz da cmera de mo e das
116
Enun
Conativo
Interrogativo
Prescri
Ciado
tivo
Bruxas
Remetente
Destinatrio
no
Bruxas
existem.
existem?
Isso fico.
Isso fico?
Socorro!
Isso
no
fico!
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118
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120
mal focadas, que so os significantes reveladores/ocultadores do mito. Tratase de uma narrativa metonmica, porque construda atravs das partes,
reveladora por extenso do todo oculto. Esse todo o lugar do mito. E
nesse lugar que se esconde o "eu". Metonimizado, referenciado, oculto,
transformado em informao, mas revelado atravs das suas partes num todo
significativo.
Eis que a vida imita a arte e Donald Trump eleito presidente dos
EUA. Donald Trump a Bruxa de Blair. Ningum poderia supor sua eleio.
A grande narrativa democrtica nos confortou durante dcadas: um sujeito
como Trump jamais venceria as eleies numa democracia informada e
informatizada como a americana. Mas esse enunciado conativo logo tomou a
forma avassaladora da prescrio: ele venceu. E instalou o medo nos seus
interlocutores, a grande plateia mundial. A eleio de Trump a consagrao
da proposta ps-moderna de deslegitimao das metanarrativas democrticas.
Metonimicamente, partes conservadoras e isoladamente identificveis da
sociedade americana criaram uma metfora terrvel: bruxas existem e esto
soltas. Os contedos sombrios da personalidade humana foram e sempre
sero fonte confivel de grandes narrativas. Assim como nos trechos escuros
e apavorantes dos contos de fada, sempre haver uma floresta densa e
cinzenta onde radicais de direita, nazifascistas de planto e terroristas
podero esconder suas intenes nefastas. Nada de novo, com certeza. A no
ser o fato de que desmoralizamos as narrativas morais de fundo pedaggico,
enterrando com elas a certeza dos finais felizes.
121
122
Andava
sempre
cabisbaixo
falava
pouco,
quase
123
mais pobre. A queixa foi formulada pela me: extrema timidez, dificuldades
escolares, retraimento social. A me o descrevia como um bobo,
infantilizado. O garoto tinha estudado por seis anos em classes especiais para
deficientes mentais e crianas com dficit intelectual severo. Agora estava
estudando numa classe comum. Eu cursava o segundo semestre do ltimo
ano do curso. Sob superviso, apliquei no garoto os testes psicolgicos de
praxe: WISC, CAT, HTP, entre outros. Seu WISC indicou certo retraimento
intelectual, mas nada que representasse um dficit significativo ou que
justificasse sua incluso em classe especial. Encaminhei-o tambm para uma
anlise psiquitrica e o laudo mdico tambm no apontou para nenhum
distrbio grave.
Naquele tempo, terminei a graduao e continuei a terapia com Ed
Silva no consultrio que acabara de montar. Na verdade, ele foi meu primeiro
paciente. Curioso, afinal, cada vez que retomo seu caso descubro algo
invisvel para mim no momento do primeiro contato com ele. Algumas vezes
penso que esse foi meu primeiro, e, de certa forma, nico caso, pois temo ter
enfrentado, como terapeuta e como pessoa, sempre as mesmas questes que
ele me trazia.
Formulou-me numa sesso o que buscava na terapia: vencer a
vergonha. Uma vergonha sobre a qual ele pouco sabia, mas que o impedia de
levantar a cabea na frente de outras pessoas e de lhes dirigir a palavra. Uma
vergonha revelada nas sesses de terapia como uma herana, pois era, ao
mesmo tempo, a vergonha da raa, da situao social, do corpo em formao,
124
125
126
Sobre esse colega, Ed disse uma vez: " um anjo, porque no conversa.
legal ser quieto, porque a professora nunca briga." Compara esse colega
com outro, da sua rua: "Um moleque da rua bonzinho, mas tem algo de
errado. Ele pega uma pedra, coloca uma linha e joga na rvore do meu pai.
Meu pai fica bravo. O pai dele no d educao. Se o meu pai fica bravo,
porque isso est errado. O pai do garoto no cuida bem dele. Meu pai disse
que o pai do garoto bobo, pois no d educao."
O pai a grande referncia de Ed Silva. O que no nada incomum.
O interessante como a fala do pai vai invadindo a de Ed, a tal ponto que,
algumas ocasies, era possvel ouvir o pai na sesso, falando pelo garoto.
Uma espcie de incorporao. A fala de Ed mistura trechos em que a fala do
pai narrada indiretamente (Meu pai disse que...) com outras em que a fala
do pai surge numa espcie de discurso indireto livre, intercalada fala de Ed,
substituindo-a algumas vezes: "mas tem algo de errado", "o pai dele no d
educao", "o pai do garoto no cuida bem dele".
O pai de Ed tinha seis irmos. Foram todos morrendo aos poucos, at
que sobrou apenas ele e uma irm. Essa irm cuidava do pai vivo. Com o
tempo, morreram ambos: o pai e a irm. Sobrou ele. E a casa do pai como
herana. Teve que casar logo, porque precisava de algum para cuidar da
casa. Em seis meses casou. Esse o relato da me de Ed sobre o pai. Ela
completa dizendo que o pai de Ed muito inteligente. Estudou com
sacrifcio, porque a escola era longe de casa. Era muito catlico. Ia a todas as
missas e procisses. Em casa, o pai acompanha a vida de Ed. Assiste tev
com o filho. J o levou ao cinema. Faz comentrios. Acompanha a vida
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131
132
vezes vindas da mdia, outras vezes da famlia, sem qualquer carga aparente
de emoo. medida que esse discurso tem espao no processo teraputico,
parece surgir uma permisso para pequenas falas de si, dos medos, das
angstias, das incertezas. O eu s pode surgir se amparado por um discurso
prvio, esse de carter estereotipado, seguro, testado.
Penso que esse discurso padro miditico apresenta-se como fonte de
segurana no processo de Ed Silva.25 Seu enunciado serve como uma espcie
de teste de segurana, uma forma prvia de elaborao da realidade do
interlocutor, para saber se possvel tocar num tema, revelar um medo, expor
um ponto de vista. Para tocar no tema "racismo", Ed Silva usou duas sesses
descrevendo personagens de uma novela. Na metade da segunda sesso,
focou uma das personagens, racista, e perguntou: Criana racista existe ou
s em novela? No final, concluiu: Deixar de gostar de mim s porque sou
preto? Eu no! Quem no gostava de mim era porque eu era bagunceiro. Eu
no era quieto, quando era pequeno.
Ed utiliza uma narrativa externa, possvel de ser analisada,
compreendida de modo objetivo, para entender sua narrativa pessoal, a qual
est tentando construir, apesar das lacunas.
Uma vez convidei-o para assistir uma gravao de um programa de
tev. Sua resposta foi pontual e firme: Vou preferir ver a tev sem saber
como ela feita.
25
Nesse caso, ganha uma tonalidade diferente do discurso discrito por Gabler (1999, P. 188), em que se
teoriza sobre um "eu" mediado pelo entretenimento. Algo como atores que representam seus personagens
tambm na vida cotidiana, como forma de marcar um trao de personalidade e ser lembrado por ele. Aqui, Ed
utiliza-se da mdia como construtora do seu discurso. Usa os personagens de novelas e filmes como
representantes de si mesmo, no exatamente como substitutos.
133
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135
pode, por outro lado, desvel-lo se for tomado como metfora da narrativa
oculta. Assim como no filme "A bruxa de Blair", mesmo que no se tome o
mito como base da construo narrativa, ele est l, disperso nas
informaes, pronto para ser re-construdo. Trata-se de uma narrativa
ocultada, disposta para construo. Uma subjetividade ocultada pelas
referncias, espera de uma narrativa que lhe d sentido e substncia. O
relato referencial, abundante na mdia, tomou um lugar paralelo s narrativas
de performance, herdeiras dos romances do sculo XIX. Novelas, sries,
filmes, reality shows, reportagens investigativas, todos esses programas so,
na verdade, herdeiros do prisma individualista dos romances do sculo XIX.
No contam nada sobre a comunidade, mas sobre o indivduo e sua
performance dentro do grupo social a que pertence. No de estranhar que
sejam tomados como uma luva para justificar e narrar a construo da
subjetividade. Por um lado, servem de defesa para o ego fragilizado, por
outro, so como uma performance disponibilizada, sem falhas, pronta para
ser adaptada ao desvelamento egico. Para o indivduo restou um conjunto
de referncias s quais ele tenta dar um sentido, costurar atravs delas uma
narrativa que fale de si. E que, ao mesmo tempo, revele e oculte a construo
de sua subjetividade.
Nesse caso, o resultado da construo mais terrvel do que as
representaes apontadas por Gabler (1999), sobre artistas de cinema que
comeavam a narrar suas vidas a partir do prisma de personagens
representados por eles no cinema. "Para comear, os atores comearam a
viver como se estivessem num filme, tirando inspirao para a prpria vida
136
"No que se refere aos lifies pessoais, havia tantos enredos a ser
usados para moldar a prpria vida num arco dramtico quanto havia
pessoas. Alguns deles altamente originais (...) A maioria, entretanto, era
como os enredos dos filmes convencionais: seguia uma frmula. O
indivduo via um gnero de vida ao qual aspirava e com o qual se sentia
confortvel e comeava a entrar no papel que se encaixasse no enredo. Se
quisesse ser um jovem profissional de sucesso, comeava a se adequar s
convenses do enredo de outros jovens profissionais bem-sucedidos,
como tinha visto na mdia e no prprio filme-vida. (...) " (p. 219)
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26
Grifos meus.
Mantive o termo utilizado pelo aluno, "avalizao", por remeter tanto "avaliar" quanto ao termo
"avalizar", o que torna a frase especialmente rica.
27
141
28
Lasch (1983), na pgina 47, marca a presena do vazio interior e da falta de sentido na existncia em
variados estudos acerca do narcisismo.
29
Conforme Sennet, 1999, p. 32 e 33.
30
O tar mitolgico um jogo de cartas em que esto representados em desenhos variados mitos gregos.
Nessa atividade, disponho as cartas para o grupo e cada um, individualmente, escolhe a carta que mais lhe
chama a ateno. Em seguida, conto qual o mito representado pela carta escolhida e peo que a pessoa me
relate as semelhanas que encontra entre sua vida e o mito representado na carta escolhida.
142
ferramentas que poderei usar para conseguir esse feito. Em todas essas
atividades fica marcada a busca dele por um sentido, uma direo perdida,
uma rota ou um caminho que pudesse preencher de sentido suas experincias
to distintas entre a cidade cosmopolita e o interior, entre o ator e o
administrador, entre esses espaos pessoais em que um sentido perdeu-se.
Est em busca da construo de uma narrativa que faa sentido. 31
Nesse mesmo grupo, uma garota que chamarei de Ana traou um
perfil semelhante ao de Julian. Sua carta de inscrio usou o mesmo modelo
formal de Julian, o que me indicou um contato entre eles. No sei quem teve
a ideia inicial de redigir uma carta to formal para ingresso num grupo
operativo sobre autoconhecimento, mas, de qualquer forma, essa ideia foi
compartilhada por ambos. O texto da carta de Ana foi o seguinte:
31
Ao contrrio de Ed, o discurso de Julian procura um roteiro formal no qual possa encaixar-se, um
personagem que se disponibilize para ser vivido, especialmente, um personagem de sucesso. Refiro-me, claro,
s reflexes de Gabler, 1999, p. 219.
143
144
ordens...".
32
Ou um papel num roteiro pr-determinado, um personagem que gostaria de interpretar. (Gabler, 1999, p.
219)
145
no serve como referncia para o novo passo: aqui dentro no tenho como
crescer e j rendi o que tinha de render.
No discurso de Ana, o medo frente vida no est explcito, como no
texto de Julian. Ele est subliminarmente presente na idealizao do futuro e
dos desejos de realizao profissional. Ele se esconde na descrio do
presente ambiente profissional, cheio de armadilhas e ambies imorais. O
lema apresentado por Ana tambm emblemtico: Uma vida (pessoal /
profissional) de sucesso feita de alegria, determinao, compreenso e
amor, tendo como ponto chave fatores motivacionais e surpreendentes.
Tambm nesse lema, a busca de uma resposta performaticamente bem aceita
passa por chaves do sucesso profissional, como "determinao" e "fatores
motivacionais". Ao mesmo tempo, mistura-se com expresses do seu desejo
de auto-aceitao, reflexos de seu medo de sentir-se frustrada como pessoa
em sua carreira profissional: "alegria", "compreenso", "amor" e a busca de
uma vida "surpreendente", incomum e diferente, longe do cotidiano
profissional enfastiado.
Quando lhe pedi um smbolo que a representasse, ela desenhou uma
menininha, com laos nos cabelos e um coraozinho vermelho desenhado
no vestido. Um desenho bastante infantilizado. Sobre esse smbolo (que
talvez lhe sirva como um cone), escreveu:
Toda vez que rabisco alguma coisa, sempre desenho essa menininha.
Inclusive, ando com o desenho de uma na carteira.
Acho que ela se parece comigo, pois esse desenho me lembra alegria,
energia positiva e entusiasmo.
146
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148
fundamentam
num
discurso
baseado
na
performance
33
Nesses casos, a personalidade , o charme e o estilo parecem ganhar um valor mais destacado na carreira
profissional que a experincia e o preparo.
149
34
Parecem ser experts nos manuais de sucesso descritos por Lasch (1983, p. 86), em que as imagens de
vitria contam mais que o desempenho, a atribuio mais que a realizao.
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151
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36
35
Segui nesses trabalhos toda a metodologia proposta para trabalhos com gneros do discurso pela escola de
Genebra, exposta nesse captulo.
36
Gordon, N. O fsico. So Paulo. Rocco. 2000.
153
154
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156
- Por qu? Por qu, meu Deus? O que fiz para merecer isso? se
perguntava.
Mas Paulo tomou uma deciso e no poderia tomar outra: retornaria
Roma, sua terra natal, voltando a viver uma vida normal ao lado dos
tios. No teria condies de sobreviver sozinho nos Estados Unidos. Era
um pas totalmente desconhecido para ele.
Na manh do dia 05 de agosto, decidiu que viajaria de avio, afinal,
tinha muito dinheiro e poderia, perfeitamente, comprar uma passagem de
avio. Partiu naquela noite.
Sentiu pela primeira vez como era viajar de avio. Chegou na sua
terra, Roma, na tarde do dia 06 de agosto e quis ir correndo para sua casa,
sabia direitinho o caminho. Como sentia falta de Newt naquele momento.
Havia vendido o cavalo numa pequena fazenda de New York,
aumentando sua renda.
Quando se viu de frente sua antiga casa, se emocionou vendo os
tios no jardim. No se conteve, pois alcanara seu objetivo. Soltou um
berro, e seus tios, Clausto e Mara, olharam assustados para Paulo, mas
logo reconheceram o sobrinho, que vinha em seu encontro, abra-los.
- Graas a Deus voc voltou, Paulo! Ficamos sabendo de toda a
histria. Mas o importante que voc voltou para viver conosco disse
Clausto.
Mara e o marido contaram a Paulo a forte dificuldade financeira que
atravessavam, mas Paulo assegurou que o seu dinheiro, que quase
estourava a maleta, resolveria esse problema.
Paulo ajudaria os tios tambm, voltando a trabalhar como engenheiro
naval. Recomeou no dia 15 de agosto, tendo emprego assegurado na
Charge Company, tentando esquecer os acontecimentos de Qubec.
Paulo estava muito feliz com a vida que conseguira acertar na companhia
dos tios, mas no fundo tinha que admitir: foi a New York, buscando a
ajuda dos tios, porm, no fim, Paulo acabou ajudando os tios que estavam
em grandes dificuldades.
157
158
159
160
161
Certo, mame.
Os dois garotos saram correndo, se atropelando.
E cuidem do arroz!!!gritou a me quando eles j estavam a uma certa
distncia.
Shinji,disse Todji ao irmoPise o trigo enquanto eu vou l.
Shinji pisou pois sabia que trigo pisoteado produz fortes razes. Resiste
geada, ao vento e neve, cresce forte e vioso.
Enquanto isso Todji andou lentamente para o rio Saotome, pensando
ainda nos mistrios da grande montanha que se estendia suave ao fundo."
37
Diz-se do ato de unir trechos de diferentes msicas numa nica e nova produo musical.
162
conseguiu
alugar
um
pequeno
armazm,
porm
163
Pablo Ferrera
31de outubro de 1867
164
165
experincia dos garotos, no como narradores, mas como jogadoreslegitimadores. Foi o fato de saberem lidar com as informaes referenciais e
utiliz-las como instrumentos de legitimao de suas narrativas. Essa
habilidade tpica do nosso tempo foi fundamental para o sucesso das
narrativas criadas.
Suas narrativas tm um grande potencial de simulao. So perfeitos
simulacros da realidade. Elas no so refgios ou esconderijos para os
narradores, mas so narrativas criadoras de narradores. Elas no esto a
servio da revelao do "eu", mas de sua virtualizao. A existncia da
narrativa pressupe um "eu" criador, mas esse "eu" no est projetado em
nenhum momento da narrativa: ele no o narrador, ele no o estilo, ele
no o enredo. Onde ele est, ento. Est oculto na forma e na habilidade de
manipular dados informativos para criar a narrativa. Est por trs da colagem,
no da histria. Est na maneira de fazer surgir a narrativa, no naquilo que
est sendo narrado. Est na criao do simulacro.
Os garotos no esto fingindo, quando criam suas narrativas de
viagem e suas aventuras hericas. No fingimento, a realidade est presente e
sua diferena em relao ao fingido notada claramente, pois est apenas
mascarada, disfarada (Bauman, 1998, p 158). Eles criam uma simulao, e,
dessa forma, colocam em risco, questionam, a diferena entre o real e o
imaginrio, entre o verdadeiro e o falso. E nisso so apoiados pelas
referncias informativas que lhes servem como instrumentos legitimadores.
166
167
mais, substitui o prprio fato narrado por uma interpretao, uma simulao,
uma performance.
Trata-se de uma narrativa inacessvel. A no ser que o interlocutor
muna-se de um espelho e procure ver, no jogo especular, os reflexos do
narrador oculto atrs dos personagens, atrs dos enredos, atrs das
simulaes. A ateno no deve estar naquilo que contado, mas na forma
como est sendo contado. O narrador narcisista um ator, que no se
reconhece como tal. Vale-se do disfarce para revelar-se. Mas s vai revelarse se assim o quiser. Trata-se de um ator perverso, cuja representao no
exatamente uma forma de dividir as emoes, mas de dar notcias delas. O
reflexo do espelho diferente da realidade refletida, pois ele no apanhvel.
No se pode atingir um reflexo. como se houvesse um ator nunca disposto
a deixar seu personagem. Nesse jogo, o ego mantm-se a uma distncia
segura de qualquer interlocutor, guardado num invlucro de referncias,
informaes, relatos casuais, etc.
Dessa forma, para o narcisista, o relato mais til que a narrativa.
Nessa, algo de si, o reflexo, ainda pode ser percebido, notado, seguido. No
relato, no. Nesse, o ego insinua-se numa cortina de referncias e
informaes, e s sua silhueta pode ser percebida, talvez, na escolha e no
arranjo que o narcisista faz daquelas informaes.
A narrativa narcsica serve para o ego narcisista como a cmera do
filme A bruxa de Blair: um ocultador da bruxa. Revela seus atos, suas
marcas, seus ndices de presena assustadora, mas no a revela, no lhe serve
168
exposio performtica.
A narrativa a servio de uma performance supostamente esperada
pelo social outra caracterstica do discurso narcsico. Nesse sentido,
podemos detectar uma subcategoria importante do discurso narcisista: a
ambivalncia. Caracterstica apontada por Bauman (1998) como uma das
fontes de mal estar da civilizao ps-moderna, a ambivalncia surge nas
narrativas narcsicas como um momento em que um lampejo do ego
desacredita a corrente enunciativa da narrao. o que ocorre no texto de
Ana, quando diz querer ser uma executiva de sucesso, mas no gosta de
mandar em ningum. A ambivalncia surge no hiato entre o desejo expresso
na narrativa alinhada com a atitude socialmente esperada e a insegurana
expressa pelo ego oculto. Isso surge em outros pontos das narrativas, em que
termos ambivalentes surgem aproximados na narrativa: "sou feliz" x "sintome sozinho", por exemplo. Ou ainda: "passo alegria, energia positiva e
entusiasmo" x "sou considerada por muitos uma pessoa fechada", em que a
viso socialmente esperada e percebida no coerente com a auto-imagem.
169
170
171
complementao
est
impedida,
no
segundo
caso,
pela
172
pelo narcisista, porque o objeto que lhe falta. Na sua linguagem, o outro
uma lacuna, uma inexistncia.
Talvez
173
que
Todas as crianas crescem - menos uma. E bem cedo elas ficam sabendo
que vo crescer. O jeito de Wendy ficar sabendo foi assim. Um dia,
quando ela tinha dois anos, estava brincando no jardim, pegou mais uma
flor, e correu com ela para junto da me. Imagino que ela devia estar uma
gracinha, porque a senhora Darling ps a mo no corao e exclamou:
- Ah! Por que que voc no pode ficar assim para sempre?
Foi s isso que se passou entre as duas sobre esse assunto. Mas da para
a frente, Wendy ficou sabendo que tinha que crescer. Depois dos dois
anos, voc sempre fica sabendo. Dois anos o comeo do fim.
claro que eles moravam no nmero 14 e, at Wendy chegar, a me
dela era a principal pessoa da casa. Era uma senhora adorvel, com uma
174
175
em
reas
do
conhecimento
tidas
como
"perigosamente"
176
38
177
para cur-lo? Para esclarecer esse ponto creio ser necessrio voltar a alguns
conceitos pertinentes linguagem e psicanlise.
O primeiro deles o conceito de significante. Sobre esse conceito h
uma velha polmica entre lingistas e psicanalistas. Definido, inicialmente,
por Saussure, como a imagem sonora indissocivel a um contedo, chamado
significado, teve, ao longo do tempo, um lugar bem definido na representao
grfica do signo lingustico:
sdo
ste
Para Saussure, o signo lingustico era como uma folha de papel, com duas
faces distintas: uma face representaria o significado (tomado como conceito
psicolgico da coisa representada) e de outra face o significante, sua contrapartida
sonora. No possvel separar esses dois planos que compem o signo lingustico, e
que nele se associam de forma arbitrria. Dessa forma, no possvel estabelecer
entre eles uma hierarquia: ambos compem igualmente aspectos do signo
lingustico, e, por isso, so representados dentro de um crculo fechado. A
representao grfica de Sausurre mostra essa correlao entre os dois planos do
signo lingustico atravs das duas setas inversas desenhadas lateralmente.
178
S
s
que se l: significante sobre significado, correspondendo o sobre
barra que separa as duas etapas. (Lacan, 1998).
descreve
experincia
edipiana,
base
de
todo
179
180
181
39
Sei que essa uma crtica tambm feita por Lacan ao prprio movimento psicanaltico de sua poca, de que
a psicanlise como experincia no deve basear-se num saber sobre o sujeito, apenas, mas deve facilitar a
subjetivao da experincia.(Lacan, 1998, P. 461 e seguintes). Entretanto, tento aqui esclarecer o caminho do
meu entendimento sobre o uso feito por Lacan da teoria saussuriana. Como se ver , terminarei concordando
com Lacan, adiante.
182
183
184
40
Nos jogos de
185
seramos
capazes
de
distinguir
luz
da
escurido,
e,
186
187
188
189
significantes,
velar-se
nos
anagramas,
revelar-se
por
190
191
192
Curso de lingustica geral, citado por Jakobson: 2a. ed. Paris, 1922, p. 68 a 170.
193
194
42
195
Um afsico deste tipo no pode passar de sua palavra aos seus sinnimos
ou circunlocues equivalentes, nem a seus heternimos, isto ,
expresses equivalentes em outras lnguas. A perda da aptido bilnge e
a limitao a uma nica variedade dialetal de uma s lngua constituem
manifestao sintomtica dessa desordem. (Idem, p. 47)
Em Memrias pstumas, Machado de Assis cria um narrador que descreve sua vida aps ter morrido, o
que lhe permite o acesso sem culpa a toda gama de ironias possveis em torno das relaes sociais em que est
envolvido.
43
Idioleto a forma de falar especfica de um indivduo num determinado momento. Para alguns lingistas,
trata-se apenas de uma construo terica, impossvel de realizao concreta, uma vez que toda forma de
linguagem , basicamente, socializada.
42
196
197
essencialmente metonmica.
A dificuldade em metaforizar est ligada ao fato de que a metfora
depende mais da interpretao. (Na metonmia, a parte representada no todo
j d pistas para uma possvel interpretao). O contexto, nesse caso, est
ligado presena de um interlocutor. Sem o interlocutor e a valorizao do
contexto comunicacional, a metfora fica sem espao.
O discurso narcsico lida tambm com certos traos de outro tipo de
afasia, descrito por Jakobson. Trata-se de distrbios ligados funo de
contigidade da linguagem. Nesses casos, o afsico tem dificuldade em
utilizar-se das estruturas gramaticais para compor um discurso coerente. Na
fala de tais pacientes, as frases acabam por se resumirem a frases menores, s
vezes de apenas uma palavra, devido dificuldade de reunir as palavras em
frases contguas e estas num discurso coerente. Perde-se, nesses casos, a
capacidade de decompor as palavras em radicais e desinncias, ocorrendo,
desta forma, uma dificuldade na ordenao das palavras na continuidade da
frase. A frase vai se decompondo, mas o termo mais resistente, aquele que
permanece, o sujeito. O sujeito nas afasias de contigidade o termo menos
destrutvel. O inverso ocorre no outro tipo de afasia, em que a sequncia
metonmica de significantes tende a fazer diluir-se o sujeito gramatical da
frase. No se trata de associar o narcisismo s afasias, mas de verificar que o
estado narcsico poderia gerar situaes de linguagem semelhantes aos
estados afsicos, seja pela dificuldade em estabelecer um discurso
coerentemente construdo (afasia da contigidade) ou pela dificuldade em
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6 Ento...
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relaes amorosas nas sries de tv. Enfim, uma longa lista de produes
artsticas e comerciais demonstram que a fragmentao da linguagem uma
forma de expresso comum em nossos dias.
Dessa forma, a fragmentao, a descontinuidade, a sobreposio e a
colagem so caractersticas de variados discursos na ps-modernidade. Nem
todos eles poderiam ser classificados como narcsicos. Mas, com certeza, o
discurso do narcisista incorpora essa esttica e a coloca a servio da
ocultao do eu. Paradoxalmente, atravs do seu discurso fragmentado e
descontnuo, o narcisista procura reconstruir os sentidos de sua relao com o
mundo. Nesse trabalho, mostrei como isso se dava, nos textos dos meus
alunos ou no relato do caso de Ed Silva. Nesses casos, no se tratava de
exemplos de afasia, mas de uma maneira de expressar no mundo, numa
forma, enfim, de subjetivao.
O discurso descontnuo, s vezes ambivalente, do narcisista serve-lhe
como ocultao, como velamento. O que ele quer proteger, mais que
esconder? o seu prprio ego fragilizado frente s vicissitudes
contemporneas: violncias pessoais, culturais, sociais e lingusticas,
desemprego, pobreza, uma lista infindvel de fracassos possveis, inclusive
(talvez, principalmente) no campo das relaes pessoais, papis sociais,
sexuais, polticos, etc. Enfim, no vivemos um tempo fcil para a
estruturao do ego. E o processo de subjetivao no pode parar, regredir,
congelar-se. Ele deve se dar, independente de todas essas ameaas. E se d,
como pode se dar. Por isso, fundamental distinguir narcisismo do conceito
popular de egocentrismo, individualismo ou egosmo. O narcisista busca o
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coerente sobre si mesmo. Essa dificuldade j foi apontada por Sennet como
corrosiva ao carter humano.
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A estruturao sinttica da linguagem pode ocorrer atravs da coordenao de ideias de igual valor
semntico ou sinttico, processo chamado parataxe, ou atravs da subordinao de uma ideia a outra,
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determinante da significao frsica. Esse ltimo processo chamado hipotaxe. Tais processos gramaticais
tambm recebem, simplesmente, o nome de coordenao e subordinao, respectivamente.
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7 Concluso
Penso que esse texto transitou entre duas reas: a crtica da cultura e
as possibilidades psicanalticas de escuta. No primeiro campo, procurei
descrever como, na minha opinio, o pano de fundo descrito por Lyotard
como ps-modernidade propcio para o surgimento de um discurso que
procurei caracterizar como narcsico. No segundo campo, procurei buscar
marcadores descritivos de um discurso que pudesse ser chamado de
narcisista. Os dois campos, porm, confluem, no final, para a questo do
resgate da experincia, seja nos entremeios das relaes pessoais no psmodernismo, quanto no mbito da relao psicanaltica.
Parti da minha prpria experincia como aluno e como professor, e
posteriormente
como
analista.
Descrevi,
algumas
vezes
de
modo
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8 Referncias bibliogrficas
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