Hans Jonas
Hans Jonas
Hans Jonas
EDITORIAL 1
Sarah Moura
Além de ter sido um enorme prazer, foi também uma grande honra ter participado
da organização deste encontro tão profícuo e marcado por um clima fraterno, e que
concretiza suas contribuições na publicação deste número especial.
Sarah Moura
Doutoranda e Mestra em Filosofia pela UFRJ
Graduada em Medicina e Filosofia pela UFRJ
COMITÊ CIENTÍFICO
Hans Jonas and The Fragility of God: The Theological Element in The Anthropocosmic Ethical Responsibility
INTRODUÇÃO
niilista como uma retomada do logos interno animador e estruturador do gnosticismo. Ora, o que
ele chama no título do ensaio e em seu desenvolvimento de “existencialismo” acaba se
identificando com a expressão filosófica contemporânea que torna perceptível o caráter
neognóstico da modernidade. Jonas pretende, portanto, realizar uma “leitura „gnóstica‟ do
existencialismo” (JONAS, 2004, p. 234), invertendo o que fizera em sua tese doutoral, a saber,
uma leitura existencialista do gnosticismo. Se o que ele entende por existencialismo – que chega a
abarcar Heidegger e Sartre, mas cujo caráter niilista encontra-se anteriormente em Pascal e
Nietzsche – serviu de princípio hermenêutico do gnosticismo, então, se for possível utilizar o
gnosticismo como princípio interpretativo do pensamento existencialista, tal compatibilidade
deixa ver certa identificação por essência. “Noutras palavras, as funções interpretativas se
invertem e tornam-se recíprocas [na relação entre gnosticismo e existencialismo] – a fechadura se
transforma em chave, e a chave em fechadura” (Idem). Interessa-nos, aqui, tão-somente o modo
como Jonas entende o caráter essencial do gnosticismo e como dois dualismos acabam são
essenciais a ele. Como, então Jonas caracteriza o gnosticismo? Uma passagem de “Gnose,
existencialismo e niilismo” ajuda-nos a responder essa questão:
O traço comum que importa realçar é o clima radicalmente dualista em que se baseia a atitude
gnóstica como um todo, e que perpassa unificadamente suas diferentes manifestações, mais ou
menos sistemáticas. As doutrinas dualistas se articulam sobre esta base primordialmente humana,
e apaixonadamente vivida, de uma experiência do eu e do mundo. Existe o dualismo entre ser
humano e mundo, e paralelamente a este o dualismo entre mundo e Deus. Trata-se de um
dualismo não de grandezas complementares, mas sim de grandezas contrárias. E é um só, pois o
dualismo entre ser humano e mundo repete no plano da experiência o dualismo entre mundo e
Deus, dele se derivando como seu fundamento teórico; isto para não dizermos, inversamente, que
a doutrina transcendente do dualismo mundo-Deus procede da experiência imanente da divisão
homem-mundo, como sua base de experiência. (...) Em seu aspecto teológico esta doutrina afirma
que o divino é estranho ao mundo e não tem nenhuma parte no universo físico; que o verdadeiro
Deus, absolutamente transmundano, não é nem revelado pelo mundo nem por ele apontado,
sendo por isso o desconhecido, o totalmente outro, que não pode ser reconhecido por nenhuma
analogia mundana. Correspondendo a isto, o aspecto cosmológico da doutrina diz que o mundo é
alheio a Deus, o alheio por excelência; que ele não é criação da divindade mas sim de um
princípio inferior, cuja lei realiza. (Ibidem, p. 239)
Como fica claro no texto acima, para Jonas, o que se entende por cosmovisão dualista
gnóstica (Cf. CULDAUT, 1996), em verdade, deve ser pensado pluralmente. Há o dualismo entre
o eu e o mundo e o dualismo entre Deus e mundo. Ambos se referem diretamente à experiência
vivida do eu e do mundo. Contudo, o dualismo eu-mundo é compreendido como derivado do
dualismo Deus-mundo. Tais dualismos não são complementares, pois mundo/Deus e eu/mundo
são grandezas contrárias. A presença de um dos termos exclui a possibilidade de integração do
outro. Ora, no que tange à relação Deus-mundo, se ambos os termos são grandezas contrárias, o
mundo jamais pode ser entendido como partícipe de Deus. Isso impede que se pense em relações
analógicas que permitam falar de Deus, a partir das perfeições ontológicas que estruturam o
mundo. Daí a conclusão de que Deus é alheio, o totalmente outro, o que não toma parte no
mundo. Por isso a afirmação de Jonas em A religião gnóstica: “o „estranho‟, em termos absolutos, é
a totalidade transcendente, o „mais além‟ é um eminente atributo de Deus”. (JONAS, 2000, p.
85). Deus é, portanto, Deus absconditus. A divindade que se relaciona com o mundo não pode ser o
totalmente outro, mas um princípio divino mau, inferior ou cego, muitas vezes representado pela
tradição gnóstica como um Deus menor ou então como o Deus judaico criador do mundo (Gn
1), ou seja, a divindade criadora não é a divindade suprema. Disso decorre o fato de o mundo
estar sempre sob o “império do demiurgo” (BAZÁN, 1978, p. 45) e não de Deus mesmo,
independentemente da imagem que se faça desse demiurgo. Daí ser possível concluir: o Deus
criador não liberta, encarcera (Cf. CABRAL, 2015).
O Deus que se esconde do mundo só pode relacionar-se salvificamente com o ser
humano, se algo no ser humano não se imiscuir com o mundo, uma vez que este é um obstáculo,
como vimos, para a experiência do Deus supremo. A condição de possibilidade da relação entre
ser humano e Deus está em uma antropologia peculiar, de estrutura triádica. Se o platonismo de
modo geral compreende o ser humano como corpo e alma e entende, no mais das vezes, essa
relação de modo contrastivo e conflitivo, nas tradições gnósticas, na maior parte das vezes, o ser
humano é compreendido como dotado de corpo, alma e espírito, o que forma a tipologia
existencial do homem somático, homem anímico e homem pneumático, homem espiritual ou homem interior.
Corpo e alma não levam o ser humano para além do espaço e do tempo, não emancipam o ser
humano da volatilidade do devir das coisas exteriores. Homens somáticos e anímicos são sempre
escravos da exterioridade; são escravos da divindade demiúrgica. Eles necessitam de emancipação
e essa libertação, que se identifica coma experiência da gnose, só pode ser alcançada pela
interioridade, que nada mais é que a vida do homem pneumático, ou seja, a vida segundo o
espírito (Cf. Ibidem, p. 52-55; JONAS, 2004, p. 238-242). A lei emancipadora não pode vir do
mundo, nem do corpo que com ele se relaciona, tampouco da alma, cuja atividade está ainda
submetida ao horizonte mundano. A libertação vem de fora e atua naquilo que está escondido no
ser humano, a interioridade humana. Deus absconditus e homo absconditus se pertencem. Seu casamento
depende de um afastamento do corpo, da alma e do mundo.
Se os pares eu-mundo e Deus-mundo são considerados dualismos de grandezas contrárias,
as relações corpo-alma-mundo e Deus-espírito podem ser consideradas dualismos de grandezas
complementares ou de correlação. Levando em conta que o conceito gnóstico de espírito assinala a
ipseidade mais própria do ser humano, então deve-se dizer que somente fora do mundo, o ser
humano vem a ser plenamente quem ele é. O tornar-se si mesmo pressupõe necessariamente um
evidente acosmismo, ou seja, ser salvo é ser liberto do mundo. Justamente essa relação entre
conquista de si e afastamento do mundo, que caracteriza essencialmente o gnosticismo, retorna
sob novas roupagens na modernidade. Em verdade, a modernidade é caracterizada por aquilo
que Jonas chamou de “niilismo cósmico” (Cf. JONAS, 2004, p. 238). Trata-se do esvaziamento
do mundo como habitat essencial da ipseidade humana, índice sem o qual o ser humano não
poderia vir a ser efetivamente quem ele é. Se o logos cósmico fora entre os estoicos, por exemplo,
signo de harmonia, a modernidade o transformou em “destino cósmico escravizador” (Ibidem, p.
240). Os exemplos de Jonas não são aleatórios. Uma primeira caracterização do acosmismo
moderno e de seu caráter niilista foi realizada por meio da referência aos pensamentos de Pascal e
Nietzsche. Retomando em síntese os argumentos que expusemos alhures (Cf. CABRAL, 2015),
Pascal afirma ser o coração o “lugar” em que o ser humano, por meio da fé, relacionar-se-ia com a
transcendência absoluta de Deus, divindade essa que, ainda que pensada sob os moldes da
ortodoxia católica, não toma parte com o mundo, uma vez ser este, enquanto coisa extensa (res
extensa), somente fonte de medo, já que no mundo experimentamos a indiferença do universo e
nossa total vulnerabilidade diante dele. Dito de outro modo: “A extrema contingência de nossa
existência no todo priva do sentido do ser humano este todo como possível sistema de referência
para a compreensão de nós mesmos” (JONAS, 2004, p. 236). Por outro lado, o famoso
fragmento póstumo de Nietzsche que diz “O niilismo está à porta: de onde nos vem esse mais
sinistro de todos os hóspedes?” (NF/FP 2 [127]) assinala que o niilismo, por ter entrado em
nossa “casa”, já retirou de nós a antiga familiaridade com o mundo, transformando-nos em
estrangeiro na própria pátria. O acosmismo acaba, portanto, se identificando com a experiência
de niilismo: nada no mundo é dotado de plena significatividade, o que nos impele a ir para além
do mundo na esperança de sermos nós mesmos. Sem entrar em seus pormenores, deve-se
observar que essa “lógica” niilista do acosmismo moderno, segundo Jonas, encontra nos
“existencialismos” uma voz privilegiada.
Para se compreender a crítica de Jonas ao dualismo gnóstico e a todo niilismo que lhe é
inerente, uma excelente porta de entrada é a constatação jonasiana de que a tradição ocidental
construiu-se sobre um esquecimento peculiar: o esquecimento da vida em sua unidade e
multiformidade constitutivas. No lugar do esquecimento do ser heideggeriano (Cf.
HEIDEGGER, 2006, § 1), Jonas interessa-se pelo esquecimento da vida. Como Jonas mostra em
O princípio vida, as culturas antigas são pan-vitalistas. Isso aparece tanto no animismo, quanto no
hilozoísmo. “A „alma‟ ocupava o todo da realidade, e ela se encontrava a si própria em toda parte.
A matéria „pura‟, isto é, matéria „morta‟, não fora ainda descoberta – já que esta suposição, hoje
tão familiar a todos, nada possui de evidente” (JONAS, 2004, p. 17). Somente séculos depois, já
separou da integração geral das coisas na totalidade da natureza, de modo que ficou diante do
mundo introduzindo, assim, a tensão entre „ser e não ser‟ na segurança anterior indiferente da
posse da existência” (Ibidem, p. 18). Isso equivale a dizer que a irrupção da vida é concomitante à
introdução do fenômeno da finitude, ou seja, da morte. Daí a equação: ser vivo = ser mortal.
Desse modo, a vida é marcada radicalmente por vulnerabilidade.
Se Jonas considera a liberdade “um conceito-guia capaz de orientar-nos na tarefa de
interpretar a vida” (Ibidem, p. 106), então é ela que concentra em si os caracteres ontológicos
essenciais na constituição dos seres vivos. Nesse caso, liberdade, como elemento ontológico
essencial, não se identifica com livre-arbítrio ou mesmo com a autoafirmação da vontade de um
ser racional. Antes disso, a liberdade assinala a relação dialética de todo ser vivo com o meio em
que vive. Por um lado, o ser vivo metabolicamente modifica o meio; por outro, tal tarefa criativa
aparece como uma necessidade, pois sem ela a vida não acontece. Daí a relação dialética entre
liberdade e necessidade (Ibidem, p. 107), sem a qual nenhum ser orgânico desdobra seu ser.
Concomitantemente, a vida só é possível se estiver aberta ao meio ambiente. Ser-no-mundo é o
caráter de todo vivente e não somente da condição existencial do ser humano (Cf.
HEIDEGGER, 2006, § 15-18), o que abre o campo para sua vulnerabilidade, ao mesmo tempo
que o obriga a transformar criativamente o meio em que vive. Ora, tal vulnerabilidade, que se dá
na relação umbilical com o mundo, não é abstrata, mas individualizada. Isso porque só existe vida
na individualidade de cada vivente. Dessa forma, a relação do vivente com o mundo não pode ser
de subsunção, seja de si, seja do mundo. Antes, o vivente, por ser “individualidade autocentrada,
existindo para si e em oposição a todo resto do mundo, com um limite essencial entre o dentro e
o fora” (JONAS, 2004, p. 101), relaciona-se com o mundo agonisticamente, por meio de uma
multiplicidade de trocas. Disso surge a característica de todo vivente: ser autoafirmador. Ele
afirma a si mesmo por meio de uma relação de apropriação seletiva dos diversos elementos do
mundo. Somente assim a ipseidade (mesmidade) do vivente se forma. Não se trata, é claro, de
uma identidade substancialmente fundada, mas de uma identidade “que se faz de momento a
momento, que sempre de novo se afirma forçando as forças igualizadoras da mesmidade física,
encontra[r]-se em uma tensão essencial com o todo das coisas” (Ibidem, p. 106). Daí a
temporalidade insuprimível da vida. Ora, disso é possível se destacar o fato de o vivente
necessitar sempre do meio, para afirmar a cada vez a si mesmo; contudo, essa afirmação se
estrutura por meio de uma relação agonística de apropriação e seletividade com o meio. Somente
nessa relação de tensão dialética se explica como a vida desdobra-se entre o ser e o não-ser e
necessita transcender os múltiplos elementos do mundo e as formas de si já configuradas, para a
cada vez (re) criar a sua ipseidade. Vida, transcendência, agonística, temporalidade, finitude e
mundo se interpenetram essencialmente.
Com o aparecimento do espírito (humano) no seio da vida, a liberdade assume novos
contornos. O ser humano produz um sistema teleológico para organizar, legitimar suas ações e
consumar sua vontade. Não somente isso. O ser humano consegue agir em consonância com
certo conhecimento dos efeitos de suas ações. Isso porque a liberdade humana ou a liberdade
“transanimal” (JONAS, 2010, p. 30) permite-o transcender a situação e “estabelecer metas
transcendentes” (Idem). Na liberdade humana, há também a possibilidade de o eu fazer de si seu
próprio tema. Justamente esse movimento reflexivo transforma a subjetividade do eu em objeto
de avaliação axiológica: o eu “torna-se sujeito ao julgamento da consciência moral” (Ibidem,
p.32). Por meio dessa relação reflexiva de cunho ético, o eu cuida de realizar, nas múltiplas
relações com os seres mundanos, os valores que determinam sua interioridade. Ora, como o
espírito humano é irredutível às situações em que ele se determina, os valores éticos podem
assumir caráter infinito ou absoluto, fundando a insuprimível diferenciação entre bem e mal. É
claro que muitas vezes o mal disfarça-se de bem e as boas ações transformam-se em máscaras
para atualização de força destruidora do mal. Isso, contudo, não retira do ser humano a
responsabilidade pelos efeitos de sua ação e pelos seres que compõem o meio onde ele mesmo
vive e sem os quais ele não pode afirmar seu ser. Eis, portanto, a copertinência de ontologia da
vida e responsabilidade ética. Ora, à luz do que fora dito, deve-se dizer: se a responsabilidade
ética está fundada na estrutura ontológica da vida; se a vida humana depende de sua relação com
o mundo; se uma das condições da vida é a temporalidade, então, não é possível pensar a
responsabilidade ética à luz de valores trans-históricos de caráter metafísico. Isso porque, como
disse Ricoeur, “o objeto ou, melhor dizendo, o correspondente da responsabilidade é o perecível
enquanto tal” (RICOEUR, 1996, p. 230). Por isso, a responsabilidade ética deve se fundar na
universalidade da vulnerabilidade dos seres e na necessidade de afirmar a perpetuação da multiplicidade de modos
de a vida se manifestar, para que as condições propícias para a vida tenham futuro e a vida como tal siga adiante.
Disso decorre as três formulações do imperativo ético jonasiano, em O princípio responsabilidade,
que tornam visível a responsabilidade humana pela vulnerabilidade dos seres e pelo futuro da
vida:
“Age de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de
uma autêntica vida humana sobre a Terra‟; ou, expresso negativamente: „Age de modo a
que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade de uma tal vida‟
(...) „Não ponhas em perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da
humanidade sobre a Terra‟ (...) „Inclui na tua escolha presente a futura integridade do
homem como um dos objetos do teu querer‟” (JONAS, 2006, p. 47-48).
que não somente permite ressignificar o problema do mal, como sobretudo confrontar as
teodiceias da tradição judaico-cristã, exigindo delas uma profunda transformação discursiva. Isso
aparece paradigmaticamente no texto O conceito de Deus após Auschwitz. Esse texto, além de
reposicionar a questão da divindade a partir dos terrores dos campos de concentração, permite-
nos compreender por que razão a questão da divindade leva Jonas afirmar eticamente a
necessidade de respondermos pela multiplicidade de alteridades que compõem o tecido da vida
na Terra. Como, então a divindade é pensada por Jonas à luz de Auschwitz? Como já deve ter
ficado claro, não se trata de mais uma narrativa teológica fundamentada metafisicamente, com a
pretensão de dizer o que é Deus nele mesmo. Lembrando o que fora dito, trata-se de uma
narrativa mítica com o propósito de elevar o pensamento a um âmbito de inteligibilidade mais
originário que aquele das simples explicações lógico-analíticas. Para entendermos a compreensão
jonasiana de Deus, vejamos sucintamente os contornos mais significativos desse conceito, à luz
do ensaio O conceito de Deus após Auschwitz.
Segundo o mito criado por Jonas, Deus criou o mundo e inseriu-se totalmente na criação,
passando a viver segundo suas [da criação] possibilidades e limites. Nos seres inorgânicos, Deus
encontrou certas possibilidades de afirmação de si que não encontrou nos vegetais. O mesmo
aconteceu nos animais e, por fim, na condição humana. Deus se fez sujeito ao devir criatural, ou
seja, Deus tornou-se vulnerável ao devir. Como Jonas mesmo afirma: “para que possa existir o
mundo, Deus renuncia a seu próprio ser; despoja-se de sua divindade para tornar a recebê-la da
odisseia do tempo, carregada com a colheita ocasional de experiências temporais imprevisíveis,
sublimada ou talvez também desfigurada por elas.” Não só isso. “Nesse abandono de si mesmo
da integridade divina a favor do devir incondicional não se pode supor nenhum outro saber
prévio salvo o que se refere às possibilidades que o ser cósmico oferece devido às suas próprias
condições: precisamente a estas condições entregou Deus sua causa quando se alienou a favor do
mundo” (JONAS, 1998, p. 199). Em meio ao devir do espírito humano, Deus encontrou-se à
mercê das vicissitudes de sua liberdade e, por isso, suas transformações passaram a relacionar-se
com os efeitos dos atos humanos. Por isso, a afirmação de Jonas afirma em “Imortalidade e
existência atual”, texto presente em O princípio vida: “O surgimento do ser humano significa o
surgir de conhecimento e de liberdade, e com esse duplo fio extremamente cortante a inocência
do mero sujeito de uma vida que se autoplenifica cede lugar à tarefa da responsabilidade situada
sob a disjunção do bem e do mal.” Daí a conclusão: “Pela primeira vez a realização da causa
divina está, de agora em diante, confiada à chance e ao risco dessa dimensão, sem êxito oscilando
na balança” (JONAS, 2010, p. 266-267). Se o ser humano decide moralmente seu destino, então,
na realidade humana, o ser de Deus é decidido moralmente, o que equivale a dizer que Deus
assume o risco dos efeitos dos comportamentos éticos dos seres humanos. Ele sofre o bem e mal
na “pele”. Ora, os atos humanos incidem em Deus não pelo que o ser humano realiza com a
transcendência divina, mas por meio do modo como moralmente o ser humano responde pelos
viventes. Isso possibilita-nos dizer que o ser de Deus é essencialmente atingido pelos atos morais
do ser humano. Vejamos a passagem completa em que Jonas descreve o seu mito da criação,
segundo aparece em O conceito de Deus após Auschwitz:
Desse mito da criação segundo o qual Deus se inscreve totalmente (sem sobras) na
criação (Deus é ser-no-mundo, e não somente o ser-aíheideggeriano) e assume as possibilidades
fornecidas pela finitude de cada ser criado, surgem novos e importantes atributos divinos, que
Jonas resume em três, a saber: a) a passibilidade divina – Deus é sofredor –; b) mutabilidade divina–
Deus está em devir –; e c) não indiferença divina – Deus preocupa-se consigo e com a criação. Deus
é sofredor, em um duplo sentido. Primeiramente, ele sofre as transformações do curso da criação.
Aqui, mais que em qualquer outro lugar, Jonas está levando adiante uma forte tendência do
pensamento judaico contemporâneo em desconstruir a apatia divina, tal como as narrativas
metafísicas quase sempre entenderam. Que bastem aqui dois exemplos. O primeiro se refere ao já
clássico Abraham Heschel.Em sua obra Os profetas, Heschel assinalou a não indiferença do Deus
de Israel, ou seja, afirmou o caráter teopática da experiência judaica de Deus. Trata-se do pathos
divino, que segundo sua análise do profeta Isaías, nada tem a ver com um “páthos como emoção”,
mas refere-se “a um páthos em ação” (HESHEL, s/d, p 164). Justamente esse páthos em ação se
traduz em aflição e intervenção divinas. Como afirmou o teólogo protestante Jürgen Moltmann,
ao interpretar o pensamento de Heschel: “[O páthos de Deus] Não tem nada que ver com emoções
humanas irracionais, como o desejo, a raiva, a ansiedade, a inveja, ou a simpatia, mas descreve a
maneira com a qual Deus é afetado pelos eventos, ações humanas e sofrimento na história”
(MOLTMANN, 2014, p. 344). Em segundo lugar, Deus sofre as consequências dos atos morais
humanos, inclusivo os maus atos, que produzem dor. “Se o que disse tem sentido, este sentido é
que a relação de Deus com o mundo inclui um sofrimento desde o momento da criação”
(JONAS, 1998, p. 203). Trata-se da teopatia: o ser de Deus é afetado radicalmente pela criação.
Isso só se explica porque Deus é suscetível ao devir da criação. Em outros termos: Jonas retira de
Deus a imutabilidade que a metafísica tradicional concebera como um de seus principais
atributos. Por isso, ele não somente sofre o devir das criaturas, como também está em devir –
Deus vem a ser quem ele é por meio do devir criatural. Nas suas palavras: “[Deus é] afetado pelo
que acontece no mundo, e „afetado‟ significa „alterado‟, transformado em seu estado” (Ibidem, p.
204). Essa teopatia, essa afecção divina, que transforma Deus em um ente em devir, traz à baila o
cuidado divino pela criação, não no sentido de que Deus intervém na criação, mas no sentido de
que ele preocupa-se com ela e consigo, pois depende do curso da criação para dela receber as
possibilidades de apropriar-se de si mesmo. Jonas chega a dizer: “também [ele] é um Deus
ameaçado, um Deus com um risco próprio” (Ibidem, p. 205). É o risco que faz de Deus um ente
preocupado – seja consigo, seja com a criação. Ora, se o grande risco divino está na moralidade
humana, então, por causa da liberdade do espírito, Deus depende do ser humano. Essa razão por
que Jonas, em Matéria, espírito e criação, cita um belíssimo texto/oração da judia Etty Hillesum,
morta em Auschwitz, em 1943.
Irei a qualquer canto desta terra, aonde Deus me enviar, e estou disposta a
testemunhar em qualquer situação e até a morte, [...] que não é de Deus a culpa
por tudo ter sobrevindo assim, mas nossa.
[...] E se Deus não mais me ajudar, então devo ajudar a Deus [...] esforçar-me-ei
sempre em ajudar a Deus o quanto me for possível [...]
Eu quero ajudá-lo, Deus, a não me abandonar, embora não possa garantir mais
nada daqui para frente. Apenas uma coisa está se tornando cada vez mais clara
para mim: que o Senhor não pode nos ajudar, mas nós é que devemos ajudar o
Senhor a nos ajudar e, desta forma nos ajudamos, por fim, a nós mesmos.
Eis a única coisa que importa: salvar em nós próprios algo de ti, Deus [...] Sim,
meu Deus! Não há mesmo o que quer que seja que o Senhor possa fazer a
respeito de nossa situação [...] Não peço justificação alguma de ti; será o Senhor
que mais tarde nos exigirá justificações. E a cada batida de meu coração torna-
se mais claro que o Senhor não nos pode ajudar, mas nós é que temos que
ajudar o Senhor, e assim defender sua morada em nós até o fim. (JONAS, 2010
b, p. 67-68)
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
que se inscreve na natureza, sem ter ele mesmo a mesma dignidade ontológica da natureza,
produz um reencantamento do horizonte ético e transforma o ser humano em ser essencialmente
messiânico. Somente a fragilidade de Deus faz traz ao ser humano a sua vocação messiânica.
REFERÊNCIAS
BAZÁN, Francisco García. Aspectos incomuns do sagrado. São Paulo: Paulus, 2005.
BRILL, E.J. (Org.) The NagHammadi Library in English. Leiden: The Netherlands, 1996.
BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Academia Cristã, 2008.
___________. Le christianisme primitif dans le cadre des religions antiques. Paris: Petite
Bibliotèque Payot, 1969.
FIORILLO, Marília. O Deus exilado: uma breve história de uma heresia. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008.
HESCHEL, Abraham. Los profetas: elhombre y suvocación. Buenus Aires: Paidos, s/d.
___________. A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2002.
PUECH, Henri Charles. Enquête de la Gnose. Paris: Gallimard, 1978. Vol. I: La Gnose et
letemps.
SCHOLEM, Gershon. Conceptos básicos del judaísmo: Dios, Creación, Revelación, Tradición,
Salvación. Madrid: Trotta, 2008.
RESUMO: O tema central desse trabalho é a filosofia do organismo de Hans Jonas. Desse
modo, o objetivo da presente pesquisa consiste em analisar a liberdade dialética nos organismos
que sobrevivem graças à capacidade metabólica, segundo o sistema filosófico jonasiano. A
metodologia utilizada foi a analítica sintética em que se percorreu as principais obras de Jonas
sobre o tema, sobretudo, sua obra O princípio vida e de comentadores que auxiliaram no
desenvolvimento do trabalho. Com o resultado da pesquisa constatamos que a liberdade já pode
ser encontrada nos primeiros estágios de vida, mas de modo diferente daquele que se expressa
nos seres humanos. Partindo do darwinismo, Jonas compreende que os estágios de liberdade vão
se construindo de liberdade inferior à liberdade superior, camada sobre camada, em um sentido
de evolução. É nesse sentido que Jonas afirma que o metabolismo é o elemento pelo qual o ser se
distingue da mera materialidade sem objetivo, ao mesmo tempo que abre a possibilidade para a
existência da subjetividade na matéria, colocando o ser orgânico na polarização entre o si mesmo
e o mundo. Para manter seu ser, a vida precisa realizar seu fazer. Aqui é exposto o caráter
precário da liberdade, pois na medida em que o orgânico escolhe a vida, ele precisa,
necessariamente, o fazer, pois deixar de fazer significa morrer. É pela transcendência, pelo ter o
mundo, que a vida orgânica afirma sua liberdade, que nesse contexto, tem predominância sobre a
necessidade.
PALAVRAS-CHAVE: Liberdade dialética; Vida; Ontologia.
1. INTRODUÇÃO
Esta pesquisa objetiva analisar os aspectos subjetivos do ser orgânico oriundos de sua
soberana primazia no reino da matéria, a saber, do metabolismo. Sendo assim, o trabalho analisa
o entendimento jonasiano da atividade metabolizante e quais os caracteres interiores que ela traz
em si para a vida orgânica. Para tal fim utilizamos a leitura de textos filosóficos, em que
percorremos as obras dos autores, com ênfase em O princípio vida1, e em diversas obras de
comentadores da área.
Para que a compreensão do tema ocorra de forma mais satisfatória possível, dividimos o
presente trabalho em três seções principais: identidade e liberdade: uma análise do que aparece
objetivamente do ser vivo a partir da leitura filosófica de Jonas do sistema metabólico, no qual analisaremos o
fundamento da liberdade no sistema filosófico de Hans Jonas a partir do metabolismo;
interioridade, teleologia, e transcendências do organismo primitivo: uma análise dos aspectos subjetivos da vida, em
que analisaremos as consequências do pensamento anterior, isto é, a interioridade, e em que
medida ela contribui para a compreensão da liberdade; e liberdade dialética, no qual
compreenderemos como é possível falar de liberdade em um mundo marcado pela necessidade.
Se analisarmos, como Jonas fez, que herdamos da Modernidade uma ontologia da morte
na qual todos os seres vivos foram submetidos aos princípios da res extensa, logo perceberemos
que a reflexão sobre a ontologia da vida é de extrema importância devido às complicações que
essa postura teórica trouxe para o campo ético. Ao remover da vida seu caractere de dignidade, o
discurso do monismo materialista promoveu uma espécie de justificação de todo tratamento dos
seres viventes (em especial da extra-humana) com um status ontológico como qualquer outro.
Aliás, conceituar um termo como “vida” se tornara uma tarefa difícil em nosso tempo, e isso
graças à definição que em geral adotamos de “matéria”. Para o período moderno e o pensamento
que se seguiu dele, a vida nada mais é do que um processo puramente mecânico de permutação
material sem objetivos ou finalidades próprias. O problema, no entanto, é que essa concepção de
vida não é suficiente para explicar a vida em sua totalidade uma vez que ela ignora os aspectos
subjetivos da vida em nome de uma verdade objetiva. É por este motivo que precisamos alterar
nossa concepção de vida e atribuir às demais espécies do planeta um processo que vai muito além
1 O princípio vida tem duas principais edições: originalmente publicado em 1966 em inglês sob o título de The
Phenomenon of Life. Toward a Philosophical Biology, e posteriormente com o título de Organismus und Freiheit - Aufsätze
zu einer philosophischen Biologie no idioma alemão (VIANA, 2014, p.393). Chamamos atenção para essas duas versões,
pois ela se faz relevante para a presente pesquisa. No prefácio de 1972 desse mesmo livro, Jonas nos relata (2004,
p.9) que o quarto capítulo não fora publicado na edição inglesa. Ora, fizemos tal distinção, pois a tradução na qual
recorremos é a da versão alemã de 1973 e apenas ela traz em sua configuração o capítulo harmonia, equilíbrio e devir –
conceito de sistema e sua aplicação ao terreno da vida, seção importante para o desenvolvimento da nossa pesquisa. Desse
modo, devemos lembrar ao estudarmos o conceito de sistema na filosofia jonasiana a partir de O princípio vida
estamos nos referindo à segunda edição da obra.
da mecanicidade dos encadeamentos químicos que o constitui. Desse modo, estudaremos nesta
pesquisa o conceito de vida orgânica para Jonas e suas implicações, tais como o conceito de
identidade, e de liberdade aplicada ao organismo. Ora, de acordo com Jonas (2004, p.14), o
estudo da liberdade é importante pois ela é o fio de Ariadne para interpretação daquilo que
entendemos por vida. Assim, compreendemos que liberdade está intimamente conectada à vida, e
a compreensão de uma nos ajuda na compreensão da outra. Nesse sentido, a pergunta que
expressa a problemática que buscamos resolver é: como podemos diferenciar esses organismos
da mera materialidade do mundo físico no sentido de podermos atribuir a uma classe de sistemas
uma característica como a liberdade?
Antes de prosseguirmos com nossa pesquisa, precisamos ter claro em mente desde já o
que Jonas entende por liberdade, ou nos espantaremos com a afirmação de que um ser apenas
dotado com o metabolismo é já dotado de liberdade. Desse modo, quando, no decorrer do
presente artigo, utilizamos o termo “vida”, temos em mente um processo pelo qual um
aglomerado de corpos materiais se distingue do reino da matéria pura através do metabolismo
(JONAS, 2004, p.107), ou seja, a absorção de nutrientes do meio e a descarga de algum material
para o mundo.
No prefácio da obra O princípio vida, Jonas afirma que “já o metabolismo, a camada
básica de toda existência orgânica, permite que a liberdade seja reconhecida – ou que ele é
efetivamente a primeira forma de liberdade” (JONAS, 2004, p.13). Isso implica que toda vida,
isto é, um organismo possuidor de metabolismo, é um ser que carrega em si a forma mais
primitiva de liberdade (que tem seu ápice no ser humano).
Mas o que exatamente Jonas tem em mente quando ele utiliza o termo “metabolismo”
como definição do ser vivente? O termo alemão metabolismo é designado por Stoffweschsel e tem o
significado de troca de matéria (COMÍN, 2005, p.44). Porém, esse conceito de metabolismo,
quando tomado isoladamente não é o suficiente para definir o que é vida, e nos leva a dois
problemas: a) se tomamos a definição de ser orgânico vivo pelo único critério do metabolismo,
isto é, a capacidade de um agregado de matéria de absorver e ejetar substâncias fundamentais
para seu funcionamento, podemos (e devemos) atribuir vida à máquina que absorve combustível
e expele algum material que não lhe é mais necessário; b) além disso, o fato da vida orgânica estar
com sua materialidade em constante transformação devido sua necessidade de nutrição, levaria a
absurda afirmação de que em dois cortes temporais o organismo seria outro, não mantendo sua
identidade como algo fixo. Os dois problemas, porém, não se encontram juntos, mas o segundo
decorre da solução do primeiro.
Quando compreendemos troca de matéria com o meio, a analogia da máquina torna-se
inevitável: afinal de contas, em que medida seria o ser orgânico diferente de um maquinário
submetido à necessidade de absorver e expelir materiais?
A analogia da máquina, para Jonas (2004, p.98), não se sustenta como verdadeira, já que
no caso do equipamento sem vida a identidade material é sempre a mesma, ou seja, o
“metabolismo” (nesse caso, o “motor”) não está envolvido na mudança de si mesmo no processo
de troca de matéria com o mundo. Isso faz, segundo Jonas, a máquina se diferenciar do
organismo, pois a primeira tem um sistema autoidêntico interno, já a segunda uma identidade
material que está em constante mudança.
Além disso, devemos levar em conta também que a máquina não precisa de uma
autocontinuidade, uma vez que podemos desligar o motor e voltar a ligá-lo quando nos aprouver,
que a equipamento continuará funcionando. Quando desativamos o maquinário por um período
de tempo, sua permanência material no espaço e tempo permite que ele seja idêntico em todos os
momentos (salvo se ocorrer uma intervenção externa à máquina que a altere de alguma forma),
nos permitindo assim definir sua identidade como a “lógica do vazio A=A” (JONAS, 2004, 104).
Do ponto de vista do que é material, átomos, cadeiras, espelhos, etc., mantém sua identidade
apenas pelo “estar aí” (JONAS, 2009, p.268). Assim, se olharmos um agregado de substâncias
mais complexas, como uma bactéria através de um olhar analítico, veríamos que o organismo tem
os mesmos traços gerais que as outras matérias (JONAS, 2012b, p.14). Isto quer dizer que somos
levados a concluir erroneamente que um ser orgânico e uma gota de água adquirem o mesmo
valor ontológico. Em outras palavras, a existência atual dos objetos não depende de nada além do
que eles são agora, ou seja, da identidade material, e não precisam de autoafirmação a todo
momento (JONAS, 2009, p.268).
Sistema aberto e sistema fechado2, eis os conceitos fundamentais para compreender como
Jonas distingue o ser vivo, dotado de liberdade, da mera matéria morta. Enquanto o primeiro é
marcado pela alteração do seu constituinte material, o segundo tem sua identidade definida por
2 Atribuir aos seres vivos a reflexão na qual eles são tomados como sistemas aparece primeiramente na Teoria Geral
dos Sistemas de Ludwig von Bertalanffy, a qual Jonas menciona em seu O princípio vida, e a partir da qual funda sua
ontologia do organismo. Devemos lembrar aqui que há diferenças fundamentais entre as duas teorias, como a mais
crucial delas: “Diferentemente de Bertalanffy, Jonas insiste no fato de que o significado formal do organismo - que é
sua característica ontológica particular – não pode ser completamente explanada pelas fórmulas matemática-
quantitativas de um de um sistema” (TIBALDEO, 2015, p.20, tradução nossa). Como já exposto na introdução, este
importante conceito da filosofia do organismo jonasiana não está presente na edição The Phenomenon of Life, mas
apenas na versão alemã de 1973.
sua materialidade, por seu estar aí. Mas antes de nos aprofundarmos nessa distinção, precisamos
antes de mais nada, compreender o que Jonas entende por sistema.
O objetivo de Jonas ao trabalhar o conceito de sistema em sua ontologia da vida é
resolver o problema deixado pelo monismo materialista, a saber, a diferença entre material vivo e
material morto. Em outros termos: como explicar a existência de uma unidade que se destaca da
matéria que é em si mesma destituída de interesse como uma forma de ser que tem em si uma
finalidade intrínseca? Jonas consegue encontrar essa diferenciação identificando um
comportamento diferente do sistema do corpo vivo do que nos sistemas do restante da matéria.
O filósofo define um sistema da seguinte maneira: “Quais são as características gerais de
um sistema? „Sistema‟ significa a união de um sistema de coisas, uma combinação (um sistema é
uma unidade de uma pluralidade)” (JONAS, 2012a, p.201, tradução nossa). Isso quer dizer, de
acordo com Jonas (2004, p.76), que o conceito de conjunto determina o sentido de sistema e
pressupõe uma pluralidade que esteve junta pela relação do conjunto, e que não pode existir de
outra maneira que não seja por esta relação. É nesse sentido que Viana afirma que para Jonas “o
organismo vivo é entendido como um sistema cujas partes são organizadas por um princípio
elevado” (VIANA, 2014, p.394). Mas definição ainda não nos é suficiente para compreender
como o conceito de sistema pode dar unidade ao conceito de vida. Para o entendermos melhor,
de acordo com Jonas, precisamos analisar os critérios adotados para a definição dessa unidade.
As regras precisam ser definidas uma vez que o princípio da semelhança pode ser usado de
acordo com a vontade do indivíduo que está observando o sistema, já “os princípios do
fundamento ou das condições, obriga que o pensamento assuma certos compromissos” (JONAS,
2004, p.76). Seguindo essa perspectiva Jonas argumenta que em uma poça de água as diversas
gotas deixam de existir como uma pluralidade para se tornarem uma unidade (a própria poça de
água). No entanto, a gota ainda é um sistema formado pelas moléculas, pois ela comporta um
número finito de moléculas com a característica de gota. Isso implica que não pode existir um
sistema infinito, mas também tampouco pode existir um sistema extremamente simples. Em
suma, “o sistema é um meio termo entre o absolutamente uno e o infinitamente plural” (JONAS,
2004, p.77), o que permite nos dizer (pela finitude do sistema) que ainda existe um fora que
distingue o sistema do restante do mundo3. No entanto, segundo Jonas (2004, p.76), para o ser,
esta condição precisa significar que ele está conectado a si mesmo, ou seja, ele forma uma união
de dependências, e quando alcança esta ligação, ele é um todo, e não apenas uma multiplicidade.
3Nesse sentido, o universo é um sistema na medida em que as forças que o constitui atuam em um campo finito de
ordenação (JONAS, 2004, p.76). Nessa perspectiva, para Jonas (2012b, p.201), o sistema solar seria um sistema
enquanto o Sol mantiver os corpos que o circundam unidos, de maneira que o movimento dos corpos dependa do
movimento de outros.
Um meio termo entre o devir e o perecer, entre o ser e o não ser. Um meio-
termo, porém, não no sentido indiferente de ele simplesmente se encontrar
entre duas coisas, e sim no sentido crítico de manter o equilíbrio, de que pelo
fato de existir ele detém a queda mas que no próprio exercício de sua função
4 Ainda tomando o exemplo do sistema solar, podemos compreendê-lo como um sistema com historicidade na
medida mesma medida em que os corpos celestes descrevem uma espiral em direção ao sol, deixando assim o
sistema sempre em decaimento, ao contrário do sistema harmônico no qual os planetas descreveriam trajetos
perfeitos e inconstantes ao redor da estrela solar.
repetidora, ele não pode deixar de ir caindo, já que só pela queda pode
conseguir os meios termos para detê-la, tendo a cada movimento representar o
„meio‟ em um ponto mais rio abaixo (JONAS, 2004, p.82).
Dentro dessa perspectiva, cada um dos momentos do ser vivo acrescenta-lhe algo
sempre novo, o que não acontece no fora do âmbito dos seres metabólicos, pois eles são sempre
definidos por seus elementos simultâneos fazendo que seus estados sejam a expressão contínua
de uma multiplicidade espacial que é definida de uma vez por todas (JONAS, 2004, p.81). É
nesse sentido que Jonas afirma que o conceito de equilíbrio é como um correspondente moderno
do conceito de harmonia da antiguidade. Ou seja, o sistema, justamente pelo fato de existir,
detém em si sua própria queda. Por esse motivo no campo da vida esse aspecto do sistema tem
um caráter particularmente adequado, uma vez que o vivente é sempre obrigado a sucumbir, e é a
cada momento empurrado para a morte (JONAS, 2004, p.82).
A vida, isto é, um sistema aberto:
Chegamos aqui aos fundamentos da teoria jonasiana que nos permitirá encontrar traços
no organismo primitivo, pois é a partir dessa oscilação entre ser e não-ser que será possível
estabelecer a intencionalidade (portanto, liberdade) orgânica. Ora, é devido ao estado dinâmico da
metabolização do sistema que o organismo altera substancialmente a si mesmo. Para que o
sistema funcione, seu desequilíbrio (falta de nutrientes) precisa rapidamente ser “restaurado” ao
estado de equilíbrio “original”, o que leva o ser orgânico a buscar no mundo a matéria necessária
para sua sobrevivência.
Esse fato de mutação de si do ser vivo exige que a identidade não possa ser mais
encontrada na matéria uma vez que ela é mera transitoriedade e está sujeita às mudanças
constantes. O processo pelo qual organismo tem sua identidade não depositada na materialidade
é chamado por Jonas de “revolução ontológica” (JONAS, 2004, p.104). Nessa perspectiva,
Moura 2015, p.582) afirma que a identidade de si mesmo é um caráter ontológico que se mantém
operante ante a modificação da matéria, fazendo a liberdade manifesta surgir como forma
independente do reino material. Percebemos desse modo como Jonas resolve o problema da
identidade, visto que a matéria transicional é sempre o pano de fundo no qual o organismo
seres ainda não conscientes, mas que estão mais “evoluídos” no processo de gradação da
subjetiva. Assim sendo, nos dizeres de Lopes, a psique para Jonas “encontra expressão em
qualquer forma de impulso como tal, e a outra [ipseidade] se refere ela sim à esfera propriamente
da individualidade, onde então já se pode falar de um sujeito” (LOPES, 2010, p.60). É papel da
psique e não da ipseidade carregar a interioridade orgânica. Nesse contexto, “o que Jonas
compreende como „subjetividade em estado latente‟ poderia ser traduzido em „subjetividade ainda
exteriorizada‟, isto é, uma estrutura finalista ainda não consciente, como acontecerá no espírito
humano” (VIANA, 2015, p.572).
Para não pensarmos que o termo subjetividade tem uma relação direta com o que
comumente entendemos por ter uma subjetividade, precisamos levar em conta que a esfera subjetiva
em Jonas está além da existência cerebral ou neuronal e vai dos mais elevados graus da vida até os
primitivos estágios dos organismos através do que Jonas chama de “salto qualitativo” (JONAS,
2010, p.32). Mais ainda, Jonas (2010, p.19) chega a dizer que a subjetividade é um fato empírico
(o aparecimento da vida a partir de arranjos químicos-morfológicos da matéria), porém não o é o
horizonte interno que se abre a partir daí.
Em suma, o ser vivente parte da troca química de matéria com seu entorno e com isso
define os limites espaciais da sua identidade, mas ao fazê-lo, o organismo abre em si a camada
subjetiva da vida. Nesse sentido, a identidade orgânica junto com o metabolismo é responsável
por trazer à luz a dimensão subjetiva do ser vivente.
Partindo do conceito de interioridade orgânica, percebemos que “por estar aberta para
fora, a identidade interior é o polo subjetivo da comunicação com o mundo” (MOURA, 2015,
p.579). A abertura do organismo para o mundo, isto é, sua transcendência para buscar fora de si a
matéria necessária para a autoconservação, é ela toda a iniciação da identidade ontológica, que é,
por sua vez, o início do subjetivo no ser orgânico, isto é, da interioridade teleológica. Em suma, a
independência da forma em relação à matéria (primeira expressão da liberdade orgânica), já forma
a possibilidade de interioridade, e a interioridade se efetiva no real ato de transcender no espaço e
no tempo. Mas o que é essa interioridade? Vejamos a definição de Jonas:
modos de relação eletiva, que com sua peculiaridade e urgência substituem para
o organismo o lugar da integração geral das coisas materiais em sua vizinhança
física (JONAS, 2004, p.109).
Isso quer dizer que a existência orgânica em sua dimensão de interioridade, através da
atividade metabólica, expressa seu interesse pela vida a partir da intencionalidade. Ou, como nos
mostra Moura 2015, p.579), não pode existir organismo sem interioridade, nem interioridade sem
teleologia, de modo que interioridade e teleologia estão intimamente conectadas. Para Jonas
(2004, p.109) o horizonte aberto do organismo significa afetabilidade e espontaneidade, de modo
que ao se expor ao exterior, o organismo chega ao exterior, pois é assim, isto é, sendo sensitiva,
que a vida é ativa. Segundo Weber (2002, p.189), a própria afetabilidade, na filosofia do
organismo de Jonas já é um eu rudimentar, pois o que é sentido é sempre sentido a partir de um
eu.
Ora, podemos ver que é justamente nesse ponto que Jonas fundamentará
intencionalidade orgânica, isto é, na abertura com o mundo que inclui uma intencionalidade em
preservar a vida pelo metabolismo, que é, essencialmente, uma abertura para a exterioridade. E
nesse ponto relembramos as investigações de Jonas a respeito da atividade metabólica, pois como
nos lembra Lindberg (2005, p.8), é o metabolismo que é o responsável pela divisão entre
interioridade e exterioridade, de tal modo que a atividade metabólica produz interioridade e
exterioridade de maneira inter-relacionadas, não existindo, portanto, primeiro um e depois o
outro. Podemos comprovar esse ponto de vista se lermos ao texto de Jonas e percebermos que
na metabolização, ao ser afetado por algum estranho, o ser que é afetado sente a si próprio de
maneira tal que sua identidade (mesmidade) é definida pelo que vem de fora. Isso quer dizer que
é pela relação do mundo com o organismo que a vida sente a si mesma, fortalecendo assim o
aspecto da interioridade, ou, “sua mesmidade e como que iluminada pela outridade do fora”
(JONAS, 2004, p.109).
Podemos dizer que há uma dinâmica de passividade e atividade que pode ser percebida
em dois níveis (aqui apenas didaticamente separados): do metabolismo enquanto troca de energia
com o meio, e da interioridade enquanto constituição do “si mesmo” e efetivação da liberdade no
organismo. Esse é o aspecto passivo do organismo, que é sempre afetado pelo que chega do
exterior (DUARTE, 2015a, p.55). Nesse ponto já é possível destacar o caráter de liberdade
necessitada, na medida em que o organismo depende do que afeta e da afetabilidade que atua sobre
ele para afirmar a mesmidade no mundo. É a partir daqui que Jonas pode buscar no ser vivo sua
subjetividade, no sentido de encontrar um “eu” que faz uma oposição ao “mundo”, uma
mesmidade que é oposta a tudo que é a outridade, ainda que essa mensagem seja fraca e obscura
(JONAS, 2004, p.109).
Uma vez que vimos que a interioridade implica em uma intencionalidade, estudaremos
no decorrer dessa subseção a teleologia orgânica e sua manifestação no ser metabólico. Mas o
que é teleologia para Jonas? Como pode a matéria, algo em si mesmo indiferente em teleologia,
ter em suas formações uma intencionalidade?
5Teleologia e intencionalidade podem ser tomados como sinônimos. No entanto, segundo Lindberg (2005, p.11),
quando Jonas adota o termo teleologia ao invés de intencionalidade, ele tem em mente três fatores: intencionalidade
é um termo que pode ser incluído dentro do termo teleologia; o termo teleologia „prepara o terreno‟ para o campo
ético, ao qual Jonas leva sua filosofia do organismo; e o terceiro motivo que é incluído pela comentadora, seria que
teleologia permite um diálogo com o século XIX, que é a motivação mais ou menos secreta de todas fenomenologias
da vida. De qualquer modo, o primeiro e o segundo fator são importantes para nosso trabalho, pois eles nos
mostram como intencionalidade e teleologia podem ser utilizadas como sinônimo
Segundo Duarte (2015a, p.54), Jonas entende teleologia de duas formas: teleologia como
sendo imanente ao organismo, ou como teleologia transcendente, que precisa de uma entidade
exterior no processo com seu propósito exterior a ser executado. Jonas adota para sua filosofia
do organismo a teleologia imanente, a qual é expressa pela intencionalidade da vida orgânica de
permanecer na existência (DUARTE, 2015a, p.54).
Para Jonas (2004 p.25), intencionalidade, isto é, a inclinação para um objetivo, ocorre
nos seres vivos de uma maneira manifestamente subjetiva, mas que também ocorre de modo
objetivo e causal pelo processo metabólico. Teleologia é, para Jonas, um movimento do ser em
relação à sua matéria (LINDBERG, 2005, p.11), expressando assim sua conexão com a liberdade
como sendo independência da forma em relação ao material.
Contudo esse movimento do metabolismo de “causalidade é teleológico e não
unicamente mecânico” (WEBER, 2002, p.188, tradução nossa). Percebemos assim que não seria
possível sequer reduzir o organismo aos processos químicos nesse contexto, pois tal redução
pressuporia o desconhecimento da natureza teleológica da causalidade interna do ser orgânico.
Nesse sentido, a teleologia para Jonas pode ser concebida de modo que o:
Universo que acolhe finalidades desde o seu núcleo mais ínfimo, é a própria
concepção de um finalismo no interior do próprio vir-a-ser da natureza; uma
espécie de finalismo que [...] [se insere] na perspectiva de um mundo em
processo (LOPES, 2010, p.61).
Isto quer dizer que o mundo tem em si a capacidade para a teleologia da vida. Nas
palavras de Jonas (2004, p.26), as causas finais precisam ser admitidas dentro do conceito
causalidade universal. Essa maneira de Jonas conceber a teleologia como algo possível dentro do
próprio reino material é chamada de “neo-finalismo” (LOPES, 2010, p.60). O ser orgânico é,
portanto, um ser teleológico, pois suporta em sua estrutura básica a capacidade para viver
segundo objetivos.
O organismo ao metabolizar realiza um ato exclusivamente seu, que impulsionado pela
necessidade vital, realiza a liberdade no encontro com o mundo e com o mais-além. Em suma,
podemos dizer que para Jonas (2004, p.108), os dois modos de transcendência orgânica ocorrem
a partir da separação entre o si mesmo e o mundo pelo processo metabólico. A afirmação
anterior é de grande importância para a nossa pesquisa, pois é neste campo de transcendência
pelo metabolismo que encontraremos o ato de liberdade e de necessidade da vida orgânica.
que o ser orgânico encontra sua interioridade. Isto é, essa dupla face da transcendência ocorre
para dentro (dimensão temporal), e para fora (dimensão espacial):
Assim como seu aqui estende-se para o ali, assim também seu agora estende-se
para o logo-mais, e a vida se encontra ao mesmo tempo nos dois horizontes
“além” de sua própria imediatez. Ou mesmo: ela só olha para fora porque
através da necessidade de sua liberdade olha para a frente, de modo que a
presença no espaço por assim dizer se clareia ao ser iluminada pelo logo-mais
no tempo, ambas passando para a realização e também apara a decepção
(JONAS, 2004, p.110).
Isto é, o organismo está projetando seu interesse na vida também para um futuro
próximo, um futuro pelo qual ele está metabolizando a matéria em seu entorno para sobreviver
aos diversos riscos que a vida apresenta consigo. Jonas (2004, p.110) também argumenta que é
pela relação transitória entre forma e matéria que esse interesse da vida por se manter viva se
manifesta, isto é, a fase interior do organismo que se estende até a seguinte, é a que constitui o
tempo biológico, um correspondente ao tempo do sistema no mundo orgânico do qual já
falamos. A abertura do organismo para o mundo, ou para o não-ele-mesmo, corresponde ao
material necessário para a constituição biológica do ser orgânico.
É a transcendência do ser orgânico que implica tanto seu caráter de liberdade, quanto de
necessidade. Vimos que esse processo ao qual está a vida obrigada a se submeter para manter sua
existência não se limita somente ao ser necessário do organismo, como também atinge sua esfera
de liberdade. Mas em que sentido é possível de falar em liberdade em um mundo marcado pela
necessidade?
Antes de respondermos à indagação anterior, buscaremos conceituar necessidade no
pensamento de Jonas, para que possamos compreender melhor a liberdade no organismo
primitivo. O que Jonas entende por necessidade? A necessidade seria a cadeia causal do mundo, o
jogo de forças da matéria que no campo da vida determina certas regularidades, a saber, a
obrigação da nutrição e a obrigação de evitar a morte (WOLIN, 2003, p.172). Se para a tradição
moderna o metabolismo era apenas um jogo de reações químicas que impulsionava a vida sempre
para frente, mas sem nunca impor finalidade a ela, para Jonas esse dever do organismo representa
sua própria manifestação de liberdade. O que há no orgânico é uma coexistência entre liberdade e
necessidade, o que garantiria a unidade psicofísica do organismo. Não se trata, portanto, de
entidades separadas e incomunicáveis em que necessariamente, excluir-se-iam mutualmente, mas
da manifestação do orgânico que mostra seus dois modos de existir, um pelo poder, e outro pelo
dever.
CONSIDERAÇÕES FINAIS.
orgânica. Foi a partir do conceito de sistema aberto que analisamos a diferença entre o organismo
vivo e organismo não vivo dentro da filosofia jonasiana.
Enquanto identidade orgânica, o ser vivo abre na troca de matéria com o ambiente a
dimensão interioridade. A vida passa a ser marcada pela relação entre o ser e o mundo, o “si
mesmo e o “eu” que é portador daquela intencionalidade.
Aqui encontramos o ponto de união de liberdade e necessidade pela transcendência.
Mas vimos também que existem diferentes níveis de liberdades no pensamento filosófico
jonasiano, sendo a liberdade primitiva o modo germinal de ser da liberdade presente nos seres
humanos e nos animais que se dividem em outras instâncias e ajudam a formar a totalidade dos
seres mais complexos. A liberdade vai crescendo então de forma ascendente, dos organismos
menos evoluídos para os mais evoluídos.
Uma vez que o pensamento filosófico de Jonas costuma se encontrar tão distante das
nossas reflexões comuns, isto é, de atribuir aos organismos primitivos a liberdade, toda a
dignidade é devolvida ao reino extra-humano, o que nos permite assim levar em consideração
não apenas o pensamento ético antropocêntrico, como também uma nova ética biocêntrica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DUARTE, Michelle Bobsin; FILHO, Edgard José Jorge. Hans Jonas: Da crítica à ontologia da
morte ao fundamento da ontologia da vida. 2015. 88 f. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. Disponível em:
<http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/25625/25625.PDF>. Acesso em: 28 mar. 2015a
JONAS, Hans. Lecture 1. In: ______. Major Systems of Philosophy. Freiburg: Rombach
verlag, 2012a. Disponível em: <
http://www.lettere.uniroma1.it/sites/default/files/649/jonas_dottorandi.pdf> Acesso em: 28
mar. 2015a.
______. O princípio vida: fundamentos para uma biologia filosófica. 2. ed. Petrópolis: Vozes,
2004.
______. Pensar sobre Dios y otros ensayos. Trad. Ângela Ackermann. 3 ed. Barcelona: Heder,
2012b.
______. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio
de Janeiro: Contraponto, 2006
LINDBERG, Susanna. Hans Jona‟s theory of Life in the face of Responsibility. In: LEMBECK,
Karl-Heinz; MERTENS, Karl; ORTH, Ernst Wolfgang (ed.) Phänomenologische
Forschungen. [S.l], 2005. Disponível em:
<http://www.helsinki.fi/teoretiskfilosofi/personal/Lindberg/Lindberg_HansJonas.pdf>.
Acesso em: 28 mar. 2016.
TIBALDEO, Roberto Franzini. The meaning of life. Can Hans Jonas‟ philosophical biology
effectively act against reductionism in the contemporary life sciences?. Humaniora.
Czasopismo Internetowe, n. 01, p.13-24, 2015. Disponível em:
<http://humaniora.amu.edu.pl/sites/default/files/humaniora/Humaniora%20nr%209/H
um_1_15_Tibaldeo.pdf>. Acesso em: 25 jan. 2015
VIANA, Wellistony Carvalho. O monismo integral de Hans Jonas contra o fisicalismo. In:
Aurora, v. 26, n. 38, jan-jun p. 391-403, 2014.
______. A filosofia da natureza de Hegel e Jonas. In: CARAVALHO, Marcelo, et al. Filosofia
Política Contemporânea: Coleção XVI Encontro ANPOF. São Paulo: ANPOF, 2015.
WEBER, Andreas. Feeling the signs: The origins of meaning in the biological philosophy of
Susanne K. Langer and Hans Jonas. Sign Systems Studies, v. 30 n.01, p. 183-200, 2002.
Disponível em: <http://philpapers.org/rec/WEBFTS-2> Acesso em: 25 jan. 2016.
WOLIN, Richard. Hans lonas: el filósofo de la vida. In ______. Los hijos de Heidegger.
Hannah Arendt, Karl Lwith, Hans Jonas y Herbert Marcuse. Trad. María Candor. Madrid:
Cátedra, 2003.
INTRODUÇÃO
A questão da técnica teve o seu nascimento com a difusão da técnica maquínica pela
Europa ocidental no início do século XIX. Essa declaração de nascimento num momento
relativamente recente e bem preciso subentende que a questão da técnica, tal como está posta
desde então até os dias de hoje, não equivale à interrogação “o que é a técnica?”. Interrogação
semelhante já havia sido feita na Antiguidade por Platão e Aristóteles em suas considerações
sobre a téchne1. No entanto, o que faltava ali e parece ser fundamental para a formação da questão
1 A interrogação acerca da téchne entre os gregos está ligada, em linhas gerais, ao esforço de hierarquização das
atividades humanas conforme o seu valor cognitivo. Trata-se de saber a que distância as téchnai se encontram, por um
lado, do conhecimento científico (epistème) e, por outro, da empiria característica dos ofícios manuais. Também
importa determinar se a formação do caráter ou exercício das virtudes éticas deixa-se pensar como técnica ou
depende em algum grau de tal atividade. Em Platão encontramos a interrogação acerca da técnica nos diálogos Íon
propriamente dita é o sentido de urgência. Este implica a convicção de que a técnica é um fator
decisivo para a sorte do gênero humano sobre a terra; a convicção de que a história da
humanidade está estreitamente entrelaçada com a do desenvolvimento técnico e, portanto, pensar
a técnica é tarefa de primeira hora.
Da Antiguidade à Modernidade ocorreram mudanças significativas não somente no
interior do fazer técnico, mas também, e paralelamente, no modo como o recepcionou o círculo
restrito dos eruditos e pensadores. Em Maquinismo e filosofia examina Pierre-Maxime Schuhl a lenta
transformação mental concluída no século XVIII graças a qual as artes mecânicas foram
resgatadas do lugar depreciado a que até o fim da Idade Média haviam sido relegadas na oposição
com as artes liberais. À luz da nova mentalidade, as artes mecânicas não mais deveriam ser
identificadas com o penoso e rotineiro labor manual das classes servis, nem mais inteiramente
dissociadas da investigação teórica e dos lazeres estudiosos, atividades consideradas pela tradição
como as verdadeiramente dignas de um homem. Os moinhos de água e de vento, as soluções de
engenharia obtidas por Leonardo da Vinci e as navegações de longa distância convenciam os
sábios de que a ocupação com instrumentos e aparatos, embora envolvesse os procedimentos
tateantes típicos de toda aplicação prática, não redundava na ignorância acomodada e
autossuficiente dos ofícios rotineiros e, longe de atar os homens às tarefas materiais da vida,
permitia-lhes um maior alívio de seu fardo (1938/1955, pp.39-45).
Surge assim a ideia de uma ciência capaz de diminuir os sofrimentos humanos através do
melhoramento das técnicas, o ideal por assim dizer de “uma magia natural e benfazeja”. Essa é a
ideia de Francis Bacon, para quem o conhecimento da natureza e de suas leis dará aos homens o
poder de subjugá-la; do mesmo Bacon que lhes quer ensinar a serem “os obreiros de sua própria
fortuna, os artesãos de seu destino”, e que “sonha com uma Nova Atlântida”, na qual haveria
“mil inventos maravilhosos” a tornar “a vida mais fácil e larga” (SCHUHL, 1938/1955, p.115f).
Tal é também a ideia de Descartes, que embora baseie num “idealismo matemático” a sua
concepção da nova ciência, entrevê nesta uma orientação análoga à de Bacon: aplicar as noções
gerais da física a problemas particulares com vista ao bem de todos, buscar uma “filosofia
prática”, pela qual as forças e os elementos conhecidos pelo homem encontrarão um emprego
benéfico (SCHUHL, 1938/1955, p.50).
No entanto, o otimismo crescente com que a atividade técnica foi recepcionada ao longo
de quase quatro séculos começou a arrefecer com o nascimento da grande indústria no século
XIX. Quando as máquinas – esses mecanismos de funcionamento autônomo que ainda numa
(2011), Górgias (1972a, 449d-452a, pp.279-289) e Philebo (1972b, 56b-58d, pp.403-411). Em Aristóteles, ela figura,
entre outros, no capítulo primeiro do livro Alfa da Metafísica (1989, 981a) e no sexto livro da Ética a Nicômaco (1998,
1139a-1140b, pp.26-36).
fase incipiente de desenvolvimento haviam feito Descartes sonhar com a liberação dos homens
dos trabalhos pesados (SCHUHL, 1938/1955, pp.51f;116) – justamente quando as máquinas
atingiram um nível de aprimoramento suficiente para o seu emprego generalizado, irromperam
fenômenos que contrabalançavam os ganhos alcançados e abrandavam as expectativas nelas
depositadas havia muito tempo. Nesse contexto de expansão da máquina e da indústria erguem-
se as primeiras vozes que, ao assumirem para si a tarefa de sanar as mazelas do progresso técnico,
buscam consequentemente entender as causas do problema a partir de uma reflexão sobre o
fenômeno técnico em geral.
Pode-se dizer, portanto, que a questão da técnica, enquanto inquirição teórica plenamente
consciente da importância de seu objeto para a sorte da humanidade, nasce em meio à urgência
em resolver dificuldades concretas suscitadas pelo progresso técnico. Antes do infortúnio das
máquinas no século XIX havia entre pensadores da Modernidade apenas um deslumbramento
diante das possibilidades técnicas, o que é por certo necessário, mas não suficiente para disparar
um questionamento sério e radical. Com efeito, a técnica só se tornou uma questão para os
filósofos porque a máquina havia se tornado um problema para a gente comum.
Mas em que consiste propriamente o problema que deu nascimento à questão da técnica?
Esse problema, evidenciado com a expansão das máquinas no século XIX, poderia muito
sensatamente ser intitulado o problema da ambiguidade da técnica. Por um lado, o largo emprego
das máquinas preencheu a expectativa, que alguns visionários do passado haviam depositado
nelas, de que facilitariam as tarefas materiais da vida. Elas levaram a um incremento sem
precedentes da produção de bens úteis e à diminuição de seu preço, tornando possível o
abastecimento de um grande contingente populacional. Um dado levantado pelo economista
político Werner Sombart revela o efeito quase prodigioso da introdução massiva das máquinas na
vida europeia no século XIX. Desde o início da história europeia no século VI até o ano 1800 –
portanto em doze séculos – a Europa jamais havia ultrapassado a cifra de 180 milhões de
habitantes. De 1800 a 1914, no período aproximado de um único século, a população europeia
salta de 180 a 460 milhões (SOMBART apud ORTEGA Y GASSET, 1930/2016, p.120).
Essa abrupta proliferação de homens deve-se à diminuição da taxa de mortalidade
conjugada ao aumento da de natalidade, ambos frutos da facilitação do acesso de bens à
população; em suma: o maquinismo foi um fator decisivo, senão o principal responsável pelo
crescimento do nível de vida da população europeia. Pense-se apenas que um homem de classe
baixa habitando um centro urbano europeu no século XIX tem acesso a utensílios e víveres que
na Idade Média estavam vedados a muito fidalgo, ou então noutros tempos eram privativos de
uma elite.
Por outro lado, a expansão inédita das máquinas trouxe uma série de consequências
desfavoráveis, que naturalmente não haviam sido previstas e para as quais tampouco se havia
preparado. Tais prejuízos são percebidos com nitidez crescente no curso do século XIX,
manifestando-se nos níveis material, social e moral. Ficaremos em apenas três exemplos dessas
consequências indesejáveis a fim de dar uma ideia da multidimensionalidade do problema com a
máquina.
A primeira e mais rapidamente sentida consequência do maquinismo foi a desocupação
maciça dos trabalhadores concomitantemente a um incremento sem precedentes na escala de
produção. Resultado: muitos bens despejados sobre um mercado com poucos consumidores, ou
seja, crise de superprodução.
Outra consequência, pouco menos vistosa, foi a transformação no modo como desde há
milênios se trabalhava. Houve, mesmo, uma degradação do trabalho. Diferente do artesanato, em
que o artefato obedece e se conforma aos movimentos do trabalhador, no trabalho fabril este
tem de se ajustar ao funcionamento do mecanismo, convertendo-se ele próprio numa espécie de
autômato.
Mais grave é uma consequência insidiosa do maquinismo que parece nascer tão somente
da natureza deste, sem maior participação de contingências exteriores como legislação trabalhista
em vigor ou a ganância do patronato: A expansão das máquinas dá-se em um processo imperioso
e irrefreável, o qual avança em cadeia sobre todos os níveis de produção, transformando
paisagens e ameaçando ecossistemas até então intocados. Contudo, a onipresença paisagística da
técnica esconde o fato ainda mais drástico de que as máquinas logo se tornaram o pressuposto da
vida moderna, o fator sem o qual teria sido impossível a multiplicação sem precedentes da
população e a manutenção desta num nível elevado de vida. Com a expansão das máquinas tem-
se pela primeira vez a clara impressão de que os inventos são para os homens tão cogentes
quanto uma necessidade natural, algo por relação ao qual eles se sentem em dependência vital. Se
repentinamente as máquinas fossem suprimidas ou parassem de funcionar, o grande contingente
populacional que se nutre e se mantém por elas teria a sua vida literalmente impossibilitada.
à alçada deliberativa e decisória dos homens, ganhando por isso o caráter de um destino. Dada a
autonomia do acontecer técnico, a atitude sensata diante deste seria buscar apreender a dinâmica
intrínseca de seu curso, prevenindo contra o esforço baldado e enganador de guia-lo segundo as
melhores intenções humanísticas. Esse tópos é comumente chamado fatalista2.
Humanismo e fatalismo nem sempre equivalem, respectivamente, a otimismo e pessimismo,
termos também amiúde utilizados para designar posições assumidas diante da técnica. Se
entendermos otimismo como a convicção íntima de que o curso vindouro de acontecimentos
será o melhor possível para nós e pessimismo como a convicção contrária, então nem todo
humanismo é otimista e nem todo fatalismo é pessimista. O humanista, que se esforça por
disciplinar o uso da técnica, não possui necessariamente a certeza de que seus esforços
pedagógicos ou políticos levarão ao bom fim desejado. O fatalista, convencido por sua vez da
existência de uma dinâmica própria da técnica, pode perfeitamente acreditar, como Marx e Kapp,
que contrariamente à catástrofe total o desenvolvimento técnico conduzirá “fatalmente” à
redenção social ou ao aperfeiçoamento da humanidade.
Mas há uma possibilidade de compreender otimismo e do pessimismo que os torna
correspondentes, respectivamente, do humanismo e do fatalismo. Pois em sentido básico, o
otimismo constitui-se pela convicção de que por mais duro e desanimador o diagnóstico da
situação atual pode-se fazer alguma coisa para transformá-lo, isto é, o otimista acredita que ações
individuais ou coletivas têm o poder de influenciar o curso dos acontecimentos históricos. Em
contrapartida, o pessimismo fundamental reside em achar que o movimento histórico, em suas
linhas essenciais e definitivas, é completamente indiferente ao agir humano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
2 No núcleo do pensamento de Spengler sobre a técnica, cujos registros se encontram no capítulo final de A
decadência do Ocidente (1918) e em O homem e a técnica (1931), está a ideia de que a vontade de dominar a natureza está a
tal ponto entranhada na alma ocidental que a consciência temerosa dos potenciais efeitos devastadores do
maquinismo de nada adiantaria para frear a expansão deste e impedir a consumação do destino trágico dessa cultura.
Marx e Kapp também enxergam uma necessidade intrínseca no desenvolvimento da técnica, ainda que sob a
perspectiva positiva de um melhoramento da humanidade. O primeiro reconhece no maquinismo, cuja expansão é
descrita no Capital como um processo em cadeia (1867/1968, cf. O desenvolvimento da maquinaria, pp.391-407), um
momento de aguçamento do antagonismo social e um fator de superação da contradição interior ao capitalismo na
marcha inexorável rumo ao apaziguamento definitivo da sociedade. O segundo enxerga no advento das máquinas um
ponto alto do caminho evolutivo pelo qual o homem, conhecendo-se progressivamente por analogia com os seus
próprios artefatos, atinge a autoconsciência (1877). Heidegger, por sua vez, recupera a ideia de destino em sua
interpretação da atual época da técnica, encarando-o como um modo predominante de compreensão basal dos entes,
um modo de “desencobrimento” sobre o qual os homens não decidem (1954/1962, p.24ff). De resto, Heidegger
pensa que a tendência dominante entre os homens de se representarem como mestres da técnica é na verdade um
sintoma de que ela ameaça lhes escapar do controle (1954/1962, p.6f).
É do tipo mais básico de otimismo que precisa em boa dose a reflexão sobre a técnica,
sobretudo nesses tempos em que esta exibe um poder inédito na figura da biotecnologia e da
informática. Pois aceitar – como no passado o fizeram alguns dos primeiros que depararam com
o maquinismo – que a técnica é um ser independente de nós, portador de sua própria dinâmica,
significa tirar de si e de seus congêneres o fardo da responsabilidade perante as desgraças que dela
possam advir; significa, portanto, anular-se como sujeito ético. Do extremo oposto a essa
tendência algo perversa de lavar as mãos espreita por sua vez o perigo de os humanistas mais
propensos à ação exagerarem na dose de otimismo ao ponto de inebriarem-se com a própria
capacidade realizadora e com os seus ideais-mestres, precipitando-se num voluntarismo engajado
que já não pode mais assumir o distanciamento requerido para um questionamento sério da
técnica.
Em O princípio responsabilidade assume Hans Jonas o posicionamento humanista com
aquela carga de otimismo indispensável às reflexões minimamente sadias sobre a técnica. A
tentativa de encontrar uma ética para a civilização tecnológica seria completamente descabida, se
partisse da convicção fatalista de que a técnica, e com ela a história, segue um caminho inapelável
aos esforços do homem. Tal tentativa, pois, não pode senão radicar no pressuposto de que o
futuro depende de alguma forma de decisões e ações feitas no âmbito da liberdade humana. Isso
não leva porém ao exagero otimista que desconhece os limites do agir humano diante de grandes
movimentos ou processos históricos. Jonas parece assimilar também parte dos ensinamentos
emanados do fatalismo, ao reconhecer que a técnica moderna adquire uma ordem de grandeza de
tal modo inédita, envolvendo uma longa cadeia de efeitos cumulativos e a impessoalidade de
agentes e ações, que se projeta para fora do campo de visão e da esfera de ação dos indivíduos
(1979/1984, pp.14-30). Talvez caiba a um estudo mais detido mostrar em que medida a busca de
Jonas por uma ética, ainda que não mais circunscrita ao estreito raio de ação individual, seria
também uma resposta às colocações fatalistas sobre a dinâmica impessoal e coercitiva da técnica
moderna. Teríamos aqui mais um momento no debate iniciado há mais de dois séculos com a
expansão das máquinas.
Referências bibliográficas
ARISTOTELES. Metaphysik. Neubearbeitung der Übersetzung von H.Bonitz, Mit Einleitung und
Kommentar herausgegeben Von H.Seidl, Griechisch-Deutsch, Felix Meiner, Hamburg, 1989
(Bücher I - VI), 429p.
ARISTÓTELES (1998). Nikomachische Ethik VI (H. G. Gadamer, org. e trad., edição bilíngue).
Frankfurt am Main: Klostermann, 70p.
HEIDEGGER, M. (1954/1962). Die Frage nach der Technik. Em Die Technik und die Kehre (pp.5-
36). Stuttgart: Klett-Kotta, 47p.
JONAS, H. (1979/1984). Das Prinzip Verantwortung: Versuch einer Ethik für die technologische
Zivilisation. Frankfurt am Mainz: Suhrkamp Taschenbuch, 426p.
MARX, K. (1867/1968). Das Kapital – Erster Band, Buch I. Em Karl Marx- Friedrich Engels Werke
(Bd. 23). Berlin: Dietz, 955p.
ORTEGA Y GASSET, J. (1930/2016). A Rebelião das Massas (introdução Julian Marías, trad. F.
Denardi). São Paulo: Vide Editorial, 362p.
PLATÃO (2011). Íon (C. Oliveira, trad.). Belo Horizonte: Autêntica, 88p.
PLATÃO (1972a). Górgias. Em G. Eigler (org.) Werke in acht Bänden:Griechisch und Deutsch (F.
Schleiermacher, trad., vol.2, pp.269-504). Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 606p.
PLATÃO (1972b). Philebos. Em G. Eigler (org.) Werke in acht Bänden:Griechisch und Deutsch (F.
Schleiermacher, trad., vol.7, pp.255-443). Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 449p.
SPENGLER, O. (1918/1963). Der Untergang des Abendlandes: Umrisse einer Morphologie der
Weltgeschichte (vollständige Aufgabe in einem Band). München: C.H. Beck, 1249p.
SPENGLER, O. (1931). Der Mensch und die Technik. München: C.H. Beck, 89p.
RESUMO: A presente pesquisa tem como objetivo compreender abordagem temática sobre a
“ética da responsabilidade” proposta pelo filósofo alemão Hans Jonas em sua mais influente
obra: O Princípio Responsabilidade: Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica,
apresentando uma discussão acerca de como seus fundamentos ético-filosóficos se encontra em
sintonia com a proposta política de decrescimento, assim como, em contrapartida demonstrar
apontamentos pelos quais o autor se afasta das concepções do atual modelo de desenvolvimento
sustentável. Esta pesquisa possui caráter bibliográfico, e efetiva uma análise acareando um
posicionamento consequencialista frente ao descompasso entre a factual imprevisibilidade dos
atos praticados pela humanidade e a degradação do meio ambiente promovida pela “Era da
Civilização Tecnológica”. Intenciona refletir sobre o posicionamento humano em relação à
natureza ressaltando seu antropocentrismo exacerbado, perpassando a proposta de
decrescimento como possibilidade de mediação responsável que atenda cuidados para com as
gerações futuras e a vida planetária.
1 INTRODUÇÃO
O questionamento fundamental neste momento crítico não é mais apenas o ser humano,
mas sim a vida como um sistema complexo interligado, onde a causa e efeito se tornam uma
coisa somente. Jonas afirma que:
O futuro da humanidade é o primeiro dever do comportamento coletivo humano
na idade da civilização técnica, que se tornou toda poderosa no que tange ao seu
O imperativo Jonasiano neste caso busca garantir a preservação das condições futuras
para que a vida humana e extra-humana continue com sua autenticidade, referenciando a
reciprocidade que deve haver entre elas. A grande provocação de Jonas está no dever, dever este
nato em função do perigo, onde seu primeiro balbuciar está clamando por uma ética de
preservação, e não por uma ética de progresso ou aperfeiçoamento (2006, p.232).
Quando a Política do Decrescimento trata solidariamente sobre o progresso, atribui à
conotação de ateísmo econômico como uma forma de suspender a crença de que o crescimento é
a alternativa e propósito último das sociedades. Faz-se necessário estar liberto da concepção de
desenvolvimento e crescimento, entretanto, isto não implicam em renúncia as instituições sociais
econômicas, mas sim, inseri-las em outra lógica que não seja a de produzir mais e consumir mais
(LATOUCHE, 2010, p.19).
Este mundo, como montado, não se sustenta e o efeito rebote é o argumento central para
o decrescimento, ou seja, a redução dos impactos ambientais não pode ser produzida sem uma
diminuição do desenvolvimento econômico. Necessário se faz a redução da exploração dos
recursos do planeta, pois como primeiro impacto terá a escassez da matéria prima, seguida pela
inflação nos valores dos produtos, que por consequência reduzirá significativamente o poder de
compra, gerando assim enorme estagnação econômica (BECK, 2010, p.241). O ponto crucial está
em estabelecer ações verdadeiramente eficientes e preventivas, realocando o consumo para
rumos que nos tragam benefícios ambientais.
3 DECRESCIMENTO
Decrescimento é uma linha de pensamento econômico e também político que teve sua
origem na década de 1970, alicerçado nas teses do economista romeno, precursor da
bioeconomia, Nicholas Georgescu-Roegen, as quais foram publicadas em sua obra The Entropy
Law and the Economic Process (1971).
A teoria do decrescimento esta baseada na hipótese de que o crescimento econômico
entendido também como aumento constante do Produto Interno Bruto (PIB) não é sustentável
para o ecossistema global. Essa ideia é oposta ao pensamento econômico dominante, segundo o
qual a melhoria do nível de vida seria decorrência do crescimento do PIB, e, assim, o aumento do
valor da produção deveria ser um objetivo permanente da sociedade (LATOUCHE, 2006, p.19).
1Sine qua non ou conditio sine qua non é uma expressão que originou-se do termo legal em latim que pode ser traduzido
como “sem a/o qual não pode ser”. Refere-se a uma ação cuja condição ou ingrediente é indispensável e essencial.
Para Serge Latouche a principal questão é a que os recursos naturais são limitados, e,
portanto, não existe crescimento infinito. A melhoria das condições de vida deve, portanto, ser
obtida sem aumento do consumo, mudando-se o paradigma dominante. O conceito de
decrescimento não está pontuado em contrariedade ao consumo, já que seus fundamentos são
propostos a partir do produtivismo, entretanto, afirma que não há nenhuma possibilidade de
crescimento infinito num planeta finito (LATOUCHE, 2006, p.33). Serge Latouche opõe-se,
portanto, ao consenso generalizado de que o crescimento econômico é o fundamento primeiro
do bem-estar humano. Além disso, o aumento constante do PIB mundial por mais 50 anos,
afetará a pegada ecológica da humanidade, que segundo ele, o impacto das nossas sociedades no
ambiente já ultrapassa em quase 30% a capacidade regenerativa do planeta.
Latouche (2006, p.36) quando aborda sobre o decrescimento afirma não se tratar de um
estado estacionário como propostos em velhos clássicos, tão pouco uma forma de regressão,
recessão ou crescimento negativo. Denota sim, que com todo rigor que deve ser entendido e
chamado de acrescimento, fazendo menção ao ateísmo, pois em analogia contrária demonstra a
fé e crença no PIB, em crescimento infinito, e na condição de solucionar problemas sociais
apenas pelo viés econômico.
Sob o prisma proposto pela Política do Decrescimento, para que aconteça a conversão
ecológica da economia, devemos reduzir o consumo e produção de acordo com as nossas
necessidades reais, liberando tempo para investir em atividades criativas de riqueza social e
ecológica. Em suma, devemos optar por cidadania, educação, justiça social e ambiental, em outras
palavras, vamos apostar em viver melhor com menos. Latouche apregoa que se deve buscar o
mesmo nível de satisfação sem a necessidade de recorrer ao sistema mercantilista, em suas
próprias palavras: “El impacto es un retroceso del PIB y en consecuencia de la huella ecologica
para mayor felicidad de todos (salvo tal vez para los comerciantes...)”, (LATOUCHE, 2006,
p.101).
Em continuidade afirma que não se deve entender o decrescimento como uma alternativa
única e substituidora do modelo atual, mas um aviso sobre os riscos da situação em que vivemos,
um grito por mudança. O decrescimento estaria para a humanidade como uma proteção mínima
que possibilitaria iniciar a desconstrução do imaginário comum de que para avançar é necessário
consumir.
Entende Latouche (2006, p.49) que o valor principal deva estar nas relações sociais e numa
harmoniosa convivência de todos com a parte ecológica. Para tanto, faz-se necessário uma
profunda mudança de valores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
deste conhecimento, para objeto de manipulação e controlado. Jonas ao se defrontar com tal
disparate propõe com extrema primazia uma ética que possibilite a não destruição humana, a
preservação da natureza extra-humana e da manutenção das futuras gerações, entendendo não ser
mais possível a regulação das ações do homem sob um prisma ético tradicional. Agrega a sua tese
a necessidade de impreterivelmente não sujeitar a uma sorte temerária a biosfera planetária
Neste aspecto, a proposta da Política de Decrescimento de Serge Latouche ao se aliar a
proposta do pensador alemão coadunará em fortalecer um pensamento ético de preservação
planetária, a qual promoverá conscientização para cuidados com a biosfera de monta global.
Em resultado, o conjunto de partes coordenadas pelo consumismo insiste em não
observar os assustadores sinais já emitidos pelo meio ambiente. O furor da técnica apresentada
nesta pesquisa por meio de seu tentáculo mais subliminar, o consumo exacerbado, fomenta
através de mecanismos e estratégias a sequência viciosa que manipula o indivíduo a sempre
buscar a felicidade e o bem-estar na aquisição de bens. Entretanto, e como já vimos
anteriormente, manifestadamente se consome recursos naturais não renováveis para esta
produção
Sob o prisma da Política do Decrescimento tal problemática também é diagnosticada com
formulação que transita sobre os mesmos trilhos de Hans Jonas, principalmente quando Serge
Latouche aponta que a sociedade moderna utilize para uso próprio aproximadamente 30% a mais
do que a biosfera é capaz de se regenerar, chegando ao ponto de sugerir inclusive a possibilidade
de um o controle massivo da população ou a redução do consumo (LATOUCHE, 2009, p. 31).
A luz das afirmações de Jonas e Latouche, ambas apresentam convergências, visto a
necessidade prática das teorias, Jonas define qual é objeto a ser defendido e quais os valores
morais e éticos a serem utilizados e Latouche se manifesta apresentando como e onde atualmente
o freio voluntário proposto pelo Princípio Responsabilidade encontrará resultado mais efetivo.
A proposta jonasiana trabalha a questão político ambiental trazendo inferências sobre o
idealismo socialista e a democracia capitalista, mas de forma cautelosa não atribuí única e
exclusivamente juízo de valor em ambos os sistemas (JONAS, 2006, p.241).
Mas ainda na esfera política Jonas invoca a responsabilidade política no papel do homem
público, neste caso definido por ele como político e não pelo cargo técnico do funcionário, no
qual menciona a potencialidade da missão deste homem quando identifica que fez o melhor que
pode por aqueles sobre os quais detinha poder (JONAS, 2006, p.172).
Na visão de Serge Latouche a política fica incumbida de tratar de ações públicas que
visem ao bem-estar das sociedades, primando pela construção de atitudes individuais formatadas
em rede pensadas a partir de uma articulação aberta de movimento. Apresenta o capitalismo
diferença entre estes dois termos) que seja possível de desassimilação de um desejado resultado
breve favorecendo determinado resultado de longo prazo (2006, p.74).
Em detrimento as éticas tradicionais, as quais laboram sobre pressupostos já
experimentados, a ética da responsabilidade transita no âmbito exploratório de novas
necessidades emergentes. Quando transpomos o foco de tal teoria para a análise do contexto
ambiental marcado pelo consumismo antropocêntrico, nos deparamos com a complexidade da
evolução humana e a imprevisibilidade que voeja sobre suas atitudes. Diante desta, Jonas aponta
para uma proposta que busque identificar com antecedência a possibilidade de antever eventual
deformação do homem, quando este aposta em ações sem a prévia análise futura das
consequências, conforme suas próprias palavras: “só sabemos o que está em jogo quando
sabemos que isto ou aquilo está em jogo” (2006, p.71). Jonas também ambiciona no sentido de
que a incerteza dos prognósticos de longo prazo não possui possibilidade estática de ser
dimensionada através de princípios da esfera dos fatos, os quais consideravam apenas aquilo que
nos é próximo, deixando que o futuro cuidasse de si mesmo (2006, p.83). Ao concernir o
progresso tecnológico e o consumismo humano crescente, o tratamento da incerteza nos obriga
incondicionalmente em assumirmos a responsabilidade pelo que se apresentará como resultado
de nossas ações, sendo então necessário através da heurística do temor tratar como certo o que se
apresenta como duvidoso, primando sempre à possibilidade que previsionará o prognóstico com
maior valor negativo, evitando assim arriscar interesses futuros se baseando fatos e riscos
presentes, estaria tal ação comparada a construir um edifício sem escadas, visando futuramente
suplantar a teoria da gravidade (2006, p.85).
Conforme posto anteriormente no corpo desta pesquisa, a política do decrescimento não
está inerte a conjuctura dos riscos futuros e sua imprevisibilidade. Latouche afirma que mesmo
que as eminentes catástrofes não abarcassem a destruição prevista, em seu prognóstico mais
negativo, estas seriam promotoras de uma educação significativa em um conceito pedagógico, e
trariam a pauta ensinamentos que relatariam os fatores de risco e os perigos do delírio
produtivista (LATOUCHE, 2009, p. 95). Afirma ainda que ao mesmo tempo em que a
debilitação do meio ambiente nos traz padecimento, também oportuniza as condições de
conscientização. Nesta proposição Latouche entende a Heurística do Temor de Jonas como a
necessidade de inserir no conjunto humano conteste os perigos ambientais eminentes, evitando
assim um otimismo suicida da técnica e consumo. Latouche cita o filósofo francês Jean-Pierre
Dupuy, que em sua a obra O Tempo das Catástrofes – quando o impossível é uma certeza (2011)
afirma: “o que pode nos salvar é justamente o que nos ameaça”.
Na visão de Edgard Morin (2011, p.61) o qual se exprime de forma concludente com a
formulação herança de morte para se direcionar a alusão da herança ofertada pelo século XX às
sociedades contemporâneas, sabendo que este, trata sobre o aumento progressivo do poderio
destruidor da técnica e consumo na transformação humana, que sobre uma perspectiva simplista
pode nos levar sem a menor dúvida a uma morte ecológica.
Assim, a pesquisa em voga, por meio da sistematização dos assuntos elencados, busca
desenvolver a possibilidade de reflexão junto à sociedade humana deste novo milênio,
robustecendo cada indivíduo a tratar a problemática da técnica e consumo através de uma
conotação ética que os liberte do ciclo vicioso ora instalado.
Insuflado por suas recorrentes descobertas seja perante o prolongamento da vida, o
controle do comportamento humano ou a manipulação genética, o resgate do homo faber à sua
condição de natureza se fará iniciado pela observância do próprio poder que o aprisiona. Neste
caso o comportamento humano atribui força na movimentação da techné. Este comportamento
por ser progenitor do circuito em que se autoderiva o indivíduo, deve ser trabalhado de forma se
encontrar uma fenda na armadura onde se possibilitará libertar o objeto homo faber à reflexão,
gerando assim a possibilidade de se frear o movimento doutrinador. Nas palavras de Hans Jonas
(2006, p.91): “Pode-se dizer que os perigos que ameaçam o futuro modo de ser são, em geral, os
mesmos que, em maior escala, ameaçam a existência; por isso, evitar os primeiros significa a
fortiori evitar os outros”.
Caberá então a filosofia oferecer ao ser humano orientação para o futuro, não mais
travando uma inútil luta com os galhos, mas sabendo sim, que é no troco onde se encontra a
tessitura do conjunto, no qual sua abertura através do conhecimento possibilitar-se-á a este
refletir sobre sua condição moral frente às mudanças da natureza e sua preservação.
REFERÊNCIAS
________. O princípio vida: Fundamentos para uma biologia filosófica. Petrópolis (RJ):
Vozes, 2004.
MORIN, Edgard. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 2. ed. São Paulo:
Cortez; Brasília: UNESCO, 2011.
RESUMO: Minha pesquisa tem como foco a elucidação dos pontos principais do sistema
teórico elaborado pelo filósofo alemão Hans Jonas, em especial no que tange à sua ética. Para
Jonas, o advento da técnica moderna modificou em grande medida a forma como os seres
humanos interagem com a natureza e consigo mesmos. A humanidade não apenas dispõe de
novos meios para realizar ações sobre o planeta como lhe foge, por vezes, o controle e a
capacidade para prever os resultados de seus empreendimentos. Estes e outros aspectos de nossa
civilização tecnocientífica suscitam problemas cujas soluções não foram pensadas por éticas
tradicionais o que, para Jonas, indica a necessidade do desenvolvimento um novo sistema ético
centrado no princípio responsabilidade, de fundamento ontológico, para dar conta do risco que
correm seres humanos e não humanos em virtude das novas dimensões espaçotemporais das
ações do homem. Nesse sentido, a ética jonasiana é também uma ética do futuro, uma vez que
busca englobar ainda ações da técnica moderna cujas consequências negativas talvez levem muito
tempo para aparecer. Tendo como principal fonte de pesquisa o livro Princípio Responsabilidade, de
Jonas, procurei apontar e esclarecer conceitos elementares de seu pensamento, além de
brevemente traçar seu lugar em relação a algumas tendências filosóficas também questionadoras
do papel da ciência e da tecnologia modernas na sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: Hans Jonas; ética; responsabilidade.
ABSTRACT: My research focuses on the elucidation of the main points of the theoretical
system elaborated by the German philosopher Hans Jonas, especially with regard to his ethics.
For Jonas, the advent of modern technology has greatly changed the way humans interact with
nature and with themselves. Humanity not only has new means to carry out actions on the planet
but sometimes it lacks the control and the ability to predict the results of its ventures. These and
other aspects of our technoscientific civilization give rise to problems whose solutions were not
proposed by traditional ethics. Jonas sought to develop a new ethical system centered on the
ontological principle of responsibility to account for the risk that human and non-human beings
have in virtue of the new spatio-temporal dimensions of human actions. In this sense, Jonasian
ethics is also aimed at the future, since it seeks to include actions of modern technique whose
negative consequences may take a long time to appear. Having as main research source the book
The Imperative of Responsibility, I tried to point out and clarify elementary concepts of his
thought, as well as to briefly trace his place in relation to some philosophical tendencies that also
question the role of modern science and technology in society.
KEYWORDS: Hans Jonas; ethics; responsibility.
INTRODUÇÃO
Hans Jonas (1903-1993) propõe o resgate de finalidades naturais imanentes como base
para a fundamentação do dever do homem em relação ao mundo e seus habitantes. Em O
Princípio Responsabilidade, Jonas trava debate com inclinação teórica cientificista de alguns saberes
de sua época, marcada pela influência do positivismo comteano disseminado ao longo do século
XIX (DARTIGUES, 1992). De acordo com o positivismo, explicações científicas objetivas sobre
a realidade são os paradigmas de todo conhecimento válido, de modo que “somente são reais os
conhecimentos que repousam sobre fatos observados” (COMTE, 1973, p.11).O método das
ciências naturais, renovado pela Revolução Científica que deu origem à ciência moderna no
século XVII, ameaçaria assim ser estendido a outros campos, comprometendo o estudo de áreas
como a Ética, cujos postulados não seriam verificáveis pela simples observação factual ou pela
experimentação empírica controlada. Muitos pensadores identificaram as complicações derivadas
da noção de ciência proposta pelo positivismo e procuraram criticá-la.
Por exemplo, Max Weber se refere à ciência e à religião ocidentais como instrumentos de
um “desencantamento do mundo”, isto é, do processo pelo qual fenômenos da realidade
passariam a ser explicados de forma gradualmente menos mística e cada vez mais mecânica,
desprovida de sentido próprio1. Também Edmund Husserl afirma que a pretensão de redução do
conhecimento como um todo ao que pode ser produzido pela ciência empírica constitui o
„objetivismo‟, sob o qual o acesso da ciência ao real seria entendido como puro e totalmente livre
de elementos subjetivos. Confunde-se assim a realidade com sua representação matematizada,
com uma “veste de ideias” (HUSSERL, 1976, p.60). Cumpre dizer que o objetivo de tais críticas
não foi eliminar a ciência como modo de verificação e produção de conhecimento, mas expor
suas limitações quando tenta propor modelos totais de descrição do mundo. Isto equivale a
1Cf.SHULL, K.K. Is the Magic Gone? Weber‟s “Disenchantment of the World” and its Implications for Art in
Today‟s World. Anamesa, New York, v.3, i. 2, p.61, fall. 2005.
afirmar que o método científico é eficaz quando busca o conhecimento de objetos e a enunciação
de suas relações através de leis, mas que não consegue abarcar todos os aspectos do real.
Na esteira desses pensamentos, Hans Jonas busca problematizar um dos principais frutos
desta tendência cientificista: a técnica moderna. Para Jonas, a técnica moderna, pela primeira vez
na história da humanidade, coloca em risco a existência da espécie humana como um todo assim
como da natureza orgânica da qual faz parte. Isso ocorre porque os mecanismos e o dinamismo
das criações tecnológicas começam a ultrapassar em grande medida o poder de previsão e de
controle do homem sobre suas invenções. Para Jonas, é necessário que a ciência, separada da
filosofia a partir da modernidade e compreendida desde então como domínio do empírico e do
experimental, também seja pensada à luz da ética. É imperativo questionar a distinção essencial
entre dever e ser pressuposta pela ciência, que parece recusar “qualquer direito teórico de pensar
a natureza como algo que devamos respeitar – uma vez que ela a reduziu à indiferença da
necessidade e do acaso, despindo-a de toda dignidade de fins.” (JONAS, 2006, p.43)
Nesse ponto, Jonas coloca uma questão não levantada por filosofias morais tradicionais:
o risco da destruição total do mundo e da impossibilidade das gerações futura sem virtude de
ações humanas irrefletidas e a indispensabilidade da criação de um novo sistema ético com a
finalidade de impedir a aniquilação do Ser. A Ética deve adentrar a esfera antes eticamente neutra
da techne, isto é, da relação do ser humano com a “natureza” entendida como tudo que não é
humano ou sua criação.
Jonas foi profundamente influenciado pela obra de Martin Heidegger, de quem, não por
acaso, foi aluno. A filosofia heideggeriana se funda no que Heidegger denomina “diferença
ontológica”, isto é, na distinção entre os conceitos de “ser” e de “ente”. Para ele, ente “é tudo de
que falamos dessa ou daquela maneira, ente é também o que e como nós mesmos somos”
(HEIDEGGER, 2006, p.42), é o que designamos quando afirmamos que algo “é”. Em suma,
qualquer coisa no campo da experiência humana é um ente, um animal, uma planta, um
pensamento e até mesmo nós, entes que investigam os entes em geral (ANDRADE, 1982). O
ser, por sua vez, é “o que determina o ente como ente, o em vista de que o ente já está sempre
sendo compreendido, em qualquer discussão” (Ibidem, p.41). Para Heidegger, o ser é aquilo que
é sempre de um ente (Ibidem, p.77), que se desvela e se vela sempre a partir dos entes, mas nunca
é, ele próprio, desvelado por completo. Ele se oculta e se mostra segundo modos de ser dos entes
em virtude da natureza temporal da compreensão.
Sob ótica heideggeriana, a técnica se apresenta como a própria forma de vir a ser dos
entes, de maneira que a realidade como tal é apreendida através da ótica tecnocientífica. Ora, a
crítica ao positivismo e à sua influência então torna-se indispensável, dado que, para além do
plano epistemológico, a generalização da perspectiva instrumental e minimalista da ciência não
influencia apenas novos saberes, como também cada aspecto da vida humana. A realidade se
desvela como “disponível”, isto é, como dotada de único sentido: o de possível instrumento para
empreendimentos tecnocientíficos em geral.
Nesse sentido, a ética jonasiana foca em dois pontos bastante amplos. Em primeiro lugar,
na questão existencial da responsabilidade como modo de ser do homem, isto é, como sentido
possível de ser da realidade. A possibilidade da responsabilidade deve ser preservada pelo
trabalho fenomenológico de desvelamento deste modo de ser humano, que se funda no próprio
aparecer imanente da realidade em suas diferentes formas e finalidades. Este aspecto da teoria
jonasiana será melhor explicado adiante. Em segundo lugar, além do resgate dos fins imanentes
intrínsecos à natureza, Jonas põe em questão o risco do não-Ser como possível consequência do
advento da técnica moderna. Ele reivindica a necessidade do desenvolvimento de uma ética em
que a “responsabilidade” em relação à natureza seja um apelo ao dever humano fundado em
bases ontológicas.
Como aponta Jonas, a modernidade assinala o ponto decisivo de ruptura com um cenário
histórico em que a relação do ser humano com a natureza era notavelmente distinta. Havia uma
diferença clara entre o âmbito artificial da invenção humana, como a cidade, marcada por
permanência que não se sustentava a longo prazo, e o mundo natural, que incluía o ser humano e
se caracterizava por sua sustentação inexorável. Em tempos pré-modernos,
sua vida [do ser humano] desenvolveu-se entre o que permanecia e o que
mudava: o que permanecia era a natureza, o que mudava eram suas próprias
obras. A maior dessas obras era a cidade, à qual ele podia emprestar um certo
grau de permanência por meios que inventava e aos quais se dispunha a
obedecer. Mas essa permanência, artificialmente produzida, não oferecia
nenhuma garantia de longo prazo. [...] Estados erguem-se e caem, dominações
vêm e vão, famílias prosperam e degeneram – nenhuma mudança é para durar.
No final, na compensação recíproca de todos os desvios passageiros, a
condição do homem permanece como sempre foi. (Ibidem, p.33)
se encontra assim como pelas futuras gerações humanas, as quais dependem de condições
favoráveis em seu planeta para existirem.
Jonas busca um novo imperativo ético que dê conta dos problemas colocados pela nova
forma de agir humana modulada pela técnica moderna. Ele se volta, primeiramente, para uma das
mais célebres tentativas filosóficas de universalidade no caso da ética, o imperativo categórico, de
Kant, que afirma: “Aja de modo que tu também possas querer que tua máxima se torne lei geral.”
(Ibidem, p.47) O enunciado kantiano traça os limites normativos do conjunto de ações que
devem ser realizadas pelo sujeito racional: aquelas que o sujeito, através de sua vontade livre,
pode conceber como possivelmente realizadas por todos os outros em circunstâncias similares.
Jonas aponta que, no imperativo categórico,
2O estatuto de “hipotética” atribuído por Jonas à universalização do imperativo categórico tem por objetivo a crítica
ao modelo lógico a partir do qual se desdobra o imperativo, considerado insuficiente pelo filósofo. O termo não
FUNDAMENTAÇÃO ONTOLÓGICA
Para Jonas, a distinção entre ser e dever pressuposta por “nosso tempo” é equivocada e
constitui um dogma: ode que não há verdade metafísica (Ibidem, p.95). Jonas observa que o
minimalismo materialista – que postula o ser como separado do dever – pressupõe também uma
metafísica:
deve ser confundido com uma indicação da tradicional distinção kantiana entre imperativo categórico e imperativo
hipotético.
O abandono da metafísica em favor da ciência é qualificado como arbitrário, uma vez que
ambas têm como fundo uma concepção positiva de realidade (o que Jonas parece considerar
equivalente à noção de metafísica entendida como estudo “do que é”). O mesmo vale para éticas
imanentes em geral. A separação entre ser e dever apenas dificulta a tarefa do teórico que busca
fundar metafisicamente suas suposições, o qual se vê obrigado a desenvolver um sistema que
efetue a ligação entre o que é e o que deve ser. Ele necessita “ao menos de um argumento
ontológico racional para a sua suposição mais exigente”.
No caso do defensor da distinção dever/ser, basta que ele se refugie na “superioridade
ontológica da suposição mínima” e invoque “Ockham”. Jonas faz aqui alusão ao conhecido
princípio da parcimônia ou “navalha de Ockham”, derivado da obra do filósofo medieval
Guilherme de Ockham. O princípio, em sentido metafísico, postula “que devemos acreditar no
menor número possível de objetos. Como princípio metodológico, a „navalha de Ockham‟ diz-
nos que qualquer explicação deve apelar ao menor número possível de fatos‟” (BRANQUINHO,
MURCHO e GOMES, 2006, p.536). A navalha, neste caso, é apontada por Jonas como simples
instrumento de direcionamento do ônus da prova para o metafísico, que se vê forçado à incursão
na ontologia da qual se livra o materialista.
Jonas nega o caráter supostamente ilusório da finalidade e a pensa como bem em si. Ela
existe na natureza à medida que esta segue fins, como, por exemplo, a própria vida, que é veículo
para a afirmação do Ser sobre o não-ser.
Em cada finalidade o Ser declara-se a favor de si, contra o nada. Contra esse
veredicto do Ser não há réplica, pois mesmo a negação do Ser trai um interesse
e uma finalidade. Ou seja, o simples fato de que o Ser não seja indiferente a si
mesmo torna a diferença de si, em relação ao não-Ser, o valor fundamental de
todos os valores; o primeiro „sim‟, a princípio. (Ibidem, p.151)
Desta maneira, os próprios seres vivos sensíveis tornam-se afirmadores do ser, uma vez
que são fins em si mesmos em sua luta pela sobrevivência a cada momento da ontogênese.
Analogamente, a natureza manifesta fins ao dar origem à vida assim como as estruturas de
sistemas orgânicos. “[...] na oposição entre o Ser e a morte a afirmação do Ser torna-se enfática.”
(Ibidem, p.152) Se os seres vivos são fins imanentes por si mesmos, considerá-los como valores é
dever do homem pois é próprio e exclusivo de seu ser o reconhecimento de tais fins. Ele pode se
apropriar deste “bem” presente na natureza e torná-lo sua tarefa, fazendo com que a finalidade,
que reivindica sua realização, torne-se para ele um valor. Isto pode apenas ser realizado se o
homem fizer também do reconhecido objeto de sua ética alvo de sua vontade.
A “vontade”, neste caso, constitui o aspecto afetivo da ética em contraste com sua parte
teórica. Jonas faz uma pequena recapitulação da função do sentimento em filosofias morais
anteriores:
o agente deve responder por seus atos: ele é responsável por suas
consequências e responderá por elas, se for o caso. [...] Basta que [...] tenha sido
a causa ativa. Mas isso somente se houver um nexo causal estreito com a ação,
de maneira que a imputação seja evidente e suas consequências não se percam
no imprevisível (Ibidem, p.165)
Neste caso, a responsabilidade não tem por função a culpabilização com finalidade de
reparação de ordem anterior à execução da ação, mas a legitimação da potencia das atividades
desempenhadas pelo ator. Objetos concernidos pelo horizonte causal de suas ações são,
portanto, dignos de responsabilidade antes mesmo da efetuação dessas ações de maneira que o
dever decorre do poder de atuação. As duas formas principais dessa responsabilidade são a
política, de cunho estatal e artificial, e a dos pais em relação a seus filhos, imputada pela própria
natureza (Ibidem p.173). Jonas reconhece essa última forma como arquetípica para a essência da
responsabilidade.
Abre-se caminho para uma “responsabilidade ontológica pela ideia do homem” (Ibidem,
p.94), cujo peso não cai sobre os homens futuros por si próprios, mas sobre a ideia de homem
que já inclui a presença de sua concretude no mundo. O ser humano é tomado então não como
ente substancial fechado em si mesmo, mas como integrante do conjunto total de significação
constituído pelos elementos que compõem o mundo. A existência humana deve ser preservada,
pois traz consigo um “dever ser”, a saber, o dever de sua manutenção enquanto possibilidade de
ser o que acaba por implicar também a continuação existencial de seu mundo, imprescindível
para essa possibilidade.
O recém-nascido é arquetípico para tal responsabilidade, pois é o que traz esse “dever
ser” de modo mais imediato. Ele representa a maneira mais radical da fragilidade presente em
todos os seres vivos engajados na conservação de suas próprias existências e sujeitos à
degradação temporal. Como diz Jonas, o recém-nascido “reúne em si a força do já existente, que
se autorreconhece, e a queixosa impotência do „não ser ainda‟; o incondicional fim em si de todos
os viventes e o „ainda ter de se tornar‟ das suas próprias capacidades, para garantir esse fim.”
(Ibidem, p.223) O apelo da existência do recém-nascido deve ser atendido uma vez que lhe falta
autossuficiência para a satisfação de suas necessidades básicas. Trata-se aqui de manutenção da
possibilidade da responsabilidade, já que, quando completado o desenvolvimento da criança, ela
própria será locatária da responsabilidade incontornável oriunda de sua humanidade. Isso, é claro,
CONCLUSÃO
Para Hans Jonas, o atual funcionamento da técnica moderna traz grandes riscos para a
existência tanto da natureza como do ser humano. Os resultados de sua aplicação não podem ser
previstos com exatidão em virtude de seu descomunal alcance espacial e temporal. Faz-se
necessária a elaboração de uma ética para a reivindicação da prudência em relação aos atos do
homem. Sua fundamentação metafísica se alicerça na existência de valores objetivos próprios da
natureza, embasada em finalidades imanentes em si. Estas carregam o dever de sua realização,
que é um apelo para o homem, único vivente dotado de poder para atender ao chamado da
responsabilidade. Este deve assim ser incentivado por um “dever ser” próprio dos viventes, que,
por sua própria existência e luta pela vida, constantemente reafirmam o Ser. São fins em si
mesmos.
É necessário, portanto, garantir a possibilidade das futuras gerações pois, com o advento
da técnica moderna, o não-Ser tornou-se possível. Sendo assim, o dever da preservação da
própria ideia de ser humano é o primeiro imperativo do qual se derivam todos os outros. Do ser
provém uma responsabilidade para com o homem que, por sua vez, carrega consigo a
possibilidade futura da própria responsabilidade.
BIBLIOGRAFIA:
COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva, trad. Coleção “Os Pensadores”, São Paulo: Abril
Cultura, 1973.
DARTIGUES, Andre. O que é fenomenologia?. 3a ed. Trad. Maria José de Almeida. São Paulo:
Moraes, 1992.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 10a ed. Petrópolis: Vozes, 2006.
HEIDEGGER, Martin.Ensaios e conferências. 8a ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
HUSSERL, Edmund. La crise des sciences européenes et la phénoménologie transcendentale. trad. Fr. Paris:
Gallimard, 1976.
JONAS, Hans.O Princípio Responsabilidade: Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica.Rio de
Janeiro: Contraponto: Editora PUC-Rio, 2006.
JONAS, Hans. Técnica, medicina e ética: sobre a prática da responsabilidade. Tradução do Grupo de
Trabalho Hans Jonas da ANPOF. São Paulo: Paulus, 2013.
SHULL, K.K. Is the Magic Gone? Weber‟s “Disenchantment of the World” and its Implications
for Art in Today‟s World. Anamesa, New York, v.3, i. 2, p.61, fall. 2005.
Guilherme T. M. Schettini
Mestrando - UFRJ (Bolsa Capes)
RESUMO: Neste artigo, avaliaremos a consistência interna da Ética de Hans Jonas a partir
das seguintes questões: i) Da anterioridade do Princípio Vida em relação ao Princípio
Responsabilidade, e dos problemas que isso evita; ii) Do imperativo categórico de Jonas, e
dos problemas que isso engendra; iii) Da suposta instrumentalização da vida humana pela
Ética de Jonas; e iv) Do suposto caráter híbrido (deontológico e teleológico) da Ética de
Jonas.
ABSTRACT: This article analyzes the consistency of Hans Jonas Ethics and is based on
the following questions: (i) the antecedence of the Phenomenon of Life in relation to the
Imperative of Responsibility, and the problems it avoids; (ii) the categorical imperative of
Jonas, and the problems it engenders; (iii) the supposed instrumentation of human life by
Jonas‟s Ethics; and (iv) the supposed hybrid character (deontological and teleological) of
the Ethics of Jonas.
1. APRESENTAÇÃO
Tendo em vista as questões abordadas no curso Filosofia Social II1 e, é claro, a nossa
formação em Filosofia, que, a despeito de genérica, tem dado ênfase na chamada Filosofia
Analítica, pretendemos analisar aqui, sob quatro aspectos distintos, a consistência interna
da Ética de Hans Jonas.
Por consistência interna de uma dada teoria entendemos a propriedade lógica que nos
impede de chegar a conclusões contraditórias com os postulados da teoria dada. No caso
da Ética de Jonas, os seus postulados (ou, em um linguajar menos técnico, os seus pilares)
1Curso oferecido pela professora Sarah Moura no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, entre
outubro de 2015 e março de 2016.
2. DESENVOLVIMENTO:
Pode-se dizer que os dois pilares metafísicos da Ética de Hans Jonas são o
Princípio Vida e o Princípio Responsabilidade. Diante deste binarismo original, é natural
da maneira mais convencional possível: ela designaria a vida da espécie humana, vale dizer,
do homo sapiens, e só desta.
Se, no entanto, o Princípio Vida fosse concebido como anterior ao Princípio
Responsabilidade (em tempo: a “anterioridade” a que nos referimos é puramente lógica,
isto é, não implica nenhuma supremacia de ordem prática de um princípio sobre o outro;
talvez seja o caso de se pensar que ambos os princípios são igualmente relevantes para a
Ética de Jonas), este mal entendido seria desfeito: neste caso, não poderíamos mais
interpretar a expressão “vida humana”, tal como exposta no “imperativo categórico”, de
uma maneira convencional; ela passaria a ter o significado preciso que encontramos no
“Princípio Vida”. E que significado é este? Ora, já vimos: a de vida humana como uma
unidade psicofísica inseparável da natureza. Preservar a vida humana pressupõe e implica,
portanto, preservar a natureza (com todas as espécies que ela contém).
Assim, parece-nos necessário conceder uma anterioridade lógica ao Princípio Vida
sobre o Princípio Responsabilidade. A própria ordem em que Jonas os apresenta em sua
obra já nos indica isso (o Princípio Vida foi primeiramente publicado em 1966; o Princípio
Responsabilidade, em 1978). Ademais, o título da dissertação de Sarah, Da ontologia da vida a
uma ética para a civilização tecnológica, nos autoriza a mesma interpretação.
como indução pessimista de Montaigne, não nos advertiria para o risco de se sustentar a
Metafísica, que, por definição, é uma disciplina que trata de proposições eternas e
universalmente válidas, nas ciências naturais cambiantes?
O ponto exato a que queremos chegar é o seguinte: será que não se afigura a Jonas
a possibilidade de, com o passar do tempo, o próprio entendimento do que seja uma “vida
humana autêntica” se transformar? E se, como advogam os mais entusiastas da Inteligência
Artificial, a “vida humana” não passar de um algoritmo possível de ser reproduzido em um
programa de computador? Ainda que hoje esta nos pareça uma tese extravagante, com que
certeza podemos asseverar a sua falsidade absoluta, e, neste cenário hipotético, de que
valeriam as preocupações de Jonas quanto à preservação da vida futura?
A resposta a todas estas questões só pode ser sincera: com efeito, Jonas é um
filósofo do seu tempo (ou melhor, do nosso tempo, já que o seu tempo é o nosso), e não é
mais pretensão de nossa Filosofia, ao contrário do que talvez tenha sido até a Idade
Moderna, chegar ao conhecimento “certo, indubitável, eterno e imutável”. A Ética de
Jonas, ao seguir a concepção sistêmica de vida, ainda que corra o risco de se apoiar em um
terreno instável, a saber, o das crenças científicas, cumpre a sua função maior de oferecer
princípios para as ações humanas, princípios estes que, diga-se de passagem, até agora não
se revelaram problemáticos do ponto de vista lógico.
Pensemos, uma vez mais, no imperativo categórico de Jonas. Não haverá nesta
asserção uma ideia instrumentalizada da vida humana, isto é, Jonas não estará concebendo
a vida dos que vivem hoje (nós, nomeadamente) como um simples meio para a vida dos
que virão no futuro?
Cumpre de imediato observar que certamente o indivíduo Hans Jonas pensava no
ser humano como tendo um fim próprio, e na vida humana, por conseguinte, como tendo
um fim próprio. A certeza com que asseveramos isso é resultante do curso que acabamos
de realizar, e do contato mais amplo com as ideias do autor que tivemos nesse curso. Mas,
olhando apenas para o imperativo categórico de Jonas (pois, para quem investiga a
consistência de uma teoria, variáveis como o contexto não são relevantes, mas apenas as
proposições dessa teoria – como nos ensinou Derrida, não há nada fora do texto), não será
oportuno perguntar coisas como as do parágrafo precedente?
Para por lenha nesta fogueira, e também aproveitando-nos de uma escrita mais
madura do que a nossa, vejamos a posição de quem, pelo menos no terreno da Ética,
diverge consideravelmente das ideias de Jonas, ainda que não faça referência direta a este
filósofo: Miguel de Unamuno. Em seu Sentimento Trágico da Vida, nos diz Unamuno:
Ainda que, por diversas razões, nos sintamos muito mais atraídos pelo pensamento
de Jonas do que pela filosofia de Unamuno, há algo no argumento deste filósofo que
merece consideração, sobretudo se confrontado com a máxima de Jonas: trata-se da
questão “quem recebe o fruto desse sacrifício?”.
De fato, no caso da atual geração agir sempre com vistas à manutenção da vida
autêntica no futuro, e isso exigirá, é evidente, a privação de muitas das coisas que ela se
acostumou a ter, ou que poderia ter mas, em face da preocupação com o futuro, não terá,
quem receberá o fruto desse sacrifício? Poder-se-ia apressadamente dizer: ora, as próprias
gerações futuras serão as beneficiadas, dado que terão a sua existência autêntica garantida.
Mas, alto lá: estas não terão também que seguir o imperativo de Jonas, e, portanto, não
terão também que se sacrificar? (pois, ao que consta, não há uma data de validade para este
imperativo). E as gerações seguintes, por sua vez, não terão que se sacrificar em nome das
vindouras?
É fácil observar que a dinâmica anterior nos conduz ao infinito, e, infelizmente,
parece deixar sem resposta a pergunta de Unamuno. Antes de esboçarmos alguma solução
para este problema, mencionemos um último contra-argumento à Ética de Jonas, já
bastante conhecido dos estudiosos desse autor: como falar em direitos para as gerações
futuras (pensemos no direito à vida autêntica, para nos restringirmos ao imperativo
categórico), se estas gerações concretamente não existem, isto é, se elas só existem
enquanto possibilidade?
2 Infelizmente, possuímos apenas uma versão digitalizada de Sentimiento Trágico de La Vida. Nesta versão, não
consta quem digitalizou o livro, nem em qual edição se apoiou – isto é, o texto é apresentado diretamente e
sem nenhuma referência à edição impressa. Desculpamo-nos, assim, pela ausência de indicação das páginas
citadas, uma vez que tampouco encontramos o material digitalizado na internet, e informamos que a primeira
publicação do livro ocorreu em 1913.
Quanto a este último ponto, cabe mais uma palavra: talvez seja o caso de se pensar
que proposições do tipo “o planeta está sendo destruído”, “a nossa vida está em perigo”
etc. não convençam o público para a necessidade da ação comedida e razoável. Queremos
dizer: talvez o ser humano não tenha amor próprio. Se isso for mesmo verdade, não há
outra solução senão a adotada por Jonas: que apelemos, então, para o futuro de nossos
filhos e descendentes.
portanto, à perspectiva das normas, e engloba todas as proposições do tipo “deve-se fazer
X”, em que fazer X é “certo” e não fazer X é “errado”.
A perspectiva teleológica, por sua vez, se fundamenta na noção de fim (finalidade)
e, muitas vezes, também na noção de bem, e tem como exemplo mais conhecido o
utilitarismo de Stuart Mill. Para esta concepção, são vários os valores possíveis de verdade
(digamos, o “excelente”, o “melhor”, o “razoável”, o “pior”, o “péssimo” etc.). A
perspectiva teleológica corresponde, portanto, à perspectiva dos valores, e engloba todas as
proposições do tipo “é melhor fazer X”.
Se considerarmos uma vez mais (e pela última vez!) o imperativo categórico de
Jonas, nos parecerá evidente alocar a sua Ética na perspectiva deontológica, pois agir com
vistas à preservação da vida autêntica no futuro, antes de um valor, é um dever para Jonas.
Além do mais, a proposição que expressa o imperativo categórico não comporta vários
valores de verdade, mas apenas dois: o “certo” e o “errado” (é “certo” se preocupar com as
gerações futuras, e é “errado” não fazer isso).
No entanto, considerando a obra de Jonas no seu todo, são vários os indícios de
que a sua Ética comporta vários valores de verdade, e que se adéqua, portanto, a uma
perspectiva teleológica. Por exemplo, ao criticar os regimes capitalista e socialista,
atribuindo ao último um valor moral superior ao primeiro, mas, ao fim e ao cabo,
condenando-o também pela sua obsessão com noções como o “progresso” e a “utopia”,
Jonas, a despeito de apontar para a insuficiência de ambos os sistemas no que se refere à
preservação da autenticidade da vida futura, parece fazer uma distinção entre um “mal mais
condenável” e um “mal menos condenável”.
Estes matizes se manifestam de maneira ainda mais evidente nas medidas
defendidas por Jonas para o combate à destruição do planeta, dentre as quais o
desenvolvimento de fontes alternativas de energia e a diminuição do nível de consumo se
destacam. Nestes casos, é de se presumir que, para a Ética de Jonas, quanto mais um
Estado desenvolver alternativas energéticas e reduzir o nível de consumo, melhor será, e
quanto menos o fizer, pior será, mas que não há um ponto fixo a partir do qual se diga: este
Estado faz o “certo” ou este Estado faz o “errado”.
Chegamos, assim, a uma aparente incoerência: a Ética de Jonas parece aliar-se ora à
perspectiva deontológica, ora à perspectiva teleológica. Como sairemos desta emboscada?
Ora, sairemos de uma maneira muito simples: com efeito, se alguém nos abordasse
com uma questão desse tipo, replicaríamos: “a rigor, o que nos obrigaria a „encaixar‟ a Ética
de Jonas em uma destas duas perspectivas? Qual seria o constrangimento lógico de que se
elaborasse uma nova perspectiva na qual, para algumas proposições, fossem apenas dois os
valores de verdade, e para as demais, fossem vários os valores de verdade? E, neste caso, a
Ética de Jonas não seria satisfeita? Ora, a sua dúvida, meu caro interlocutor, parece deveras
artificial”.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIA
MOURA, Sarah. Sobre a Ética do Futuro, de Hans Jonas. Dissertação de Mestrado. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2013.
Paths and astray paths between The Imperative of Responsibility and The Übermensch
nome de uma proposição metafísica de que o homem deveria dominar a natureza e que esta
deveria servi-lo.
A crítica nietzschiana à modernidade se dá na denúncia que ele faz dos ideais da
modernidade: a razão como guia da humanidade, progresso técnico-científico resolvendo todos
os problemas, esperança de uma sociedade justa e livre, ideia de progresso continuo da economia,
etc. A valorização destas utopias e a crença no poder de resolver as dores humanas traz um
grande mal para o tipo humano. Segundo Nietzsche estes conceitos tem um lado nefasto, pois
são falsos e negam a vida tornando o homem um “animal de rebanho”. Ao torná-lo essa
“criatura domesticada” a força que o levaria ao seu crescimento e aperfeiçoamento também é
neutralizada. Para ele o mundo ocidental está se tornando niilista, ou seja, um mundo aonde
todos os valores supremos vão sendo desvalorizados.
Durante o século XX o mundo ocidental sofreu com as falhas de seus projetos
ideológicos na política, na economia, no trabalho, na ciência, na vida quotidiana, etc. As
promessas de um mundo melhor ficaram por terra depois de duas grandes guerras, crises
econômicas, sistemas políticos totalitários, epidemias, fome, desigualdade social e por fim uma
crise ambiental que é vista por pesquisadores como grande ameaça à existência futura da
humanidade . Ao longo do século passado as promessas nascidas na modernidade pareciam se
tornar cada vez menos possíveis de serem concretizadas. Podemos perceber a importância da
crítica nietzschiana a ideia de progresso dada à impossibilidade de manutenção de exploração de
recursos naturais que o cenário contemporâneo expõe bem como um determinado nível de
acerto dos apontamentos nietzschianos. A crise contemporânea do meio ambiente pode ser
entendida como uma crise ética ou do movimento de desvalorização de todos os valores
supremos (niilismo) que o mundo ocidental vive, segundo Nietzsche, logo podemos perceber a
importância do pensamento deste para essa crise.
Hans Jonas parte da mudança que a técnica tem na modernidade. Se na antiguidade a
técnica tinha um papel se subordinação à natureza e procurava basear-se nela em seu
desenvolvimento, na era moderna a técnica aparece como uma ferramenta de domínio do
homem sobre a natureza. Assim o sucesso da técnica moderna aparece como um perigo. Este
perigo vem do poder de destruição da própria natureza. Surge então a questão de uma ética que
consiga lidar com as novas condições do homem na terra. Jonas aponta que as morais
tradicionais (aristotélica e kantiana) não levam em consideração a técnica e ao principio da
responsabilidade é cabido sua superação. Diante do possível perigo dos avanços da técnica, deve-
se assumir uma posição de responsabilidade; esta posição é levada pelo medo5. No entanto, Jonas
5 LIMA, M. de. O princípio responsabilidade de Hans Jonas e a crítica de Karl-Otto Apel. Seara Filosófica, 2010.
admite a transformação do medo em coragem para ser responsável pela garantia da vida no
futuro.
Dado o exposto o objetivo deste trabalho é mostrar os pontos de encontro e desencontro
entre o princípio da responsabilidade (Hans Jonas) e o conceito de Übermensch (Nietzsche).
Pretende-se mostrar a visão de Nietzsche da relação do homem com a natureza e sua crítica. Em
seguida expor os apontamentos de Hans Jonas sobre a relação do homem com a natureza e por
fim apontar os caminhos e descaminhos entre os dois autores.
O termo híbris é grego e designa um ato de ultraje que deve ser punido 7. Essa forma de
tratar a natureza vem de uma moral estabelecida por um determinado tipo psicológico. Nietzsche
diz que ao determinar como o homem deveria ser, ou seja, ao tentar mudar a natureza do homem
foi preciso negar o mundo. Então, foi se criando um novo mundo onde não existem paixões (os
instintos são negados)8. Para melhorar o homem com essa moral, foi preciso torná-lo manso, ou
seja, “castrar” seus instintos primitivos. Logo, quando esse homem tentou melhorar o mundo ao
seu redor foi preciso extrair a rudeza que existe na natureza.
Essa extração pode ser entendida como violentação (ou excessiva exploração dos
recursos naturais) que os avanços tecnológicos possibilitaram à civilização moderna. Isto
6 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009a,
p. 94-5.
7 Vale reproduzir nota de Paulo César de Souza sobre o termo: “„Híbris‟: palavra com que os antigos gregos
designavam todo comportamento arbitrário, arrogante, desrespeitador dos direitos do próximo e das normas da
comunidade. No sentido mais geral, aquele em que é empregada por Nietzsche, era – é – a violação das leis divinas
ou naturais”. A nota se encontra na página 149 de Genealogia da Moral, edição da Companhia das Letras, 2009.
8 NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006,
p. 37.
desencadeou uma crise ambiental que pode ser entendida como as previsões catastróficas de
sobre a finitude dos recursos naturais e das consequências do aquecimento global para a vida de
todos os animais no planeta.
Segundo Giacoia essa crise parece fazer com que o sonho moderno se torne um
pesadelo9, mesmo assim abre espaço para um tema da filosofia de Nietzsche como proposta de
superação do atual estado. Dado o inegável poder técnico-científico de autodeterminação cabe ao
homem, e não a forças metafísicas ou científicas, a tarefa de autodeterminação. As ideias
nietzschianas conduzem para a transvalorização dos valores como forma de superação do
“último homem”10 que o mundo ocidental cultivou. Na Genealogia da Moral ele buscou revelar a
origem de nossos valores morais e suas consequências no mundo moderno, no entanto pode-se
extrair uma leitura onde a superação do homem (ou de seus valores morais) levaria à superação
da crise ambiental.
Uma questão que pode ser posta como hipótese é se a genealogia da moral feita por
Nietzsche aponta, entre outras coisas, os pressupostos filosóficos da relação ética do homem
com a natureza que engendraram a atual crise ambiental, além de repensar esta relação em vias de
apontar, seguindo o pensamento de Nietzsche, formas de superação desta ética e, logo, do
problema ambiental.
É interessante salientar que o problema ambiental pode ser entendido como um
problema político, logo vale observar os apontamentos de Nietzsche sobre a política. Segundo a
leitura que Delbó faz sobre uma possível filosofia política em Nietzsche, pode-se entender que
este faz uma crítica à política em sua época que se faz à tendência da criação de estados
democráticos. A democracia seria uma herança cristã, logo levaria a moralidade cristã em seus
fundamentos. Então o estado democrático faria com que os valores do tipo fraco (moral dos
escravos) prevalecessem, levando adiante apenas os seres mais debilitados (ou incapacitados).
Neste cenário o que Nietzsche chama de “acasos felizes” da humanidade correria risco de não
existirem. Estes acasos são os tipos que tem valores mais nobres e fortes (moral dos senhores).
Para Nietzsche a política deveria elaborar a cultura e melhorar a organização social visando o
engrandecimento e autoelaboração da humanidade11. No entanto suas críticas se justificam pela
forma como os valores são instituídos, como Delbó diz:
É porque a tarefa de instituir os valores a cada coisa ocorre a partir da
perspectiva típica de um mercador e atinge as funções do estadista, dos povos e
dos partidos, que Nietzsche mantém seus inúmeros ataques à política
democrática. As preocupações do mercador são, para ele, nocivas para a
política e para todas as outras elaborações da vida de um povo. E é por ver toda
a cultura envolta por estimativas de valor reduzidas à oferta e à demanda, que
os vínculos entre política e cultura na modernidade, são para, ele perniciosos.12
12 Ibidem, p. 162.
13 NIETZSCHE, Friedrich. Para Além do Bem e do Mal. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2001a, p. 110.
escravos se dá devido a incapacidade do homem simples (escravo) se tornar forte como o tipo
aristocrata (senhor). Assim essa segunda forma de valorar o mundo nasce desse tipo comum, ou
escravos, que a partir de sua incapacidade de ser como os primeiros tipos (os senhores) invertem
os valores daqueles criando outra dupla “bom e mal” onde esse valor negativo, “o mal”, é
exatamente designado pelas atitudes da moral dos senhores e o “bom” são os que não são
daquele jeito, ou seja, os escravos. Esses escravos têm valores reativos, pois nascem da reação que
têm ao se deparar com a outra moral14.
Segundo Nietzsche por toda a história da humanidade houve uma guerra entre essas duas
morais, a mais árdua e longa guerra já travada. E saiu desta uma vencedora, mas antes vale
destacar uma metáfora que Nietzsche usa para descrever como esses tipos se viam:
Que as ovelhas tenham rancor às grandes aves de rapina não surpreende: mas
não é motivo para censurar às aves de rapina o fato de pegarem as ovelhinhas.
E se as ovelhas dizem entre si: „essas aves de rapina são más; e quem for o
menos possível ave de rapina, e sim o seu oposto, ovelha - este não deveria ser
bom?‟, não há o que objetar a esse modo de erigir um ideal, exceto talvez que as
aves de rapina assistirão a isso com ar zombeteiro, e dirão para si mesmas: „nós
nada temos contra essas boas ovelhas, pelo contrário, nós as amamos: nada
mais delicioso do que uma tenra ovelhinha‟.15
O desenvolvimento desta luta milenar deu-se com a maneira como a moral dos senhores
foi envenenada pela moral dos escravos e fez com que estes últimos predominassem.
[...] não é de espantar que os afetos entranhados que ardem ocultos, ódio e
vingança, tirem proveito dessa crença, e no fundo não sustentem com fervor
maior outra crença senão a de que o forte é livre para ser fraco, e a ave de
rapina livre para ser ovelha - assim adquirem o direito de imputar à ave de rapina
o fato de ser o que é...16 (grifo do autor)
A crença que ele está falando é na liberdade, pois se acreditando que se é livre
para ser forte (ou fraco) e mostrando que ser forte é mal e que é melhor ser fraco se envenena a
moral dos senhores. Aquela moral envenenou e transformou a “ave de rapina” em “ovelha”, para
usar um termo de Nietzsche, fazendo com que esta veja com misericórdia a “ovelhinha
oprimida” e acredite que sua postura é uma escolha fazendo que no fim aquela se torne também
uma “ovelha”. Nietzsche aponta que a moral dos escravos dominou o mundo ocidental desta
maneira e trouxe consequências negativas para o futuro da humanidade.
A partir do domínio desta última sobre mundo ocidental Nietzsche faz sua crítica à
metafísica, ao modelo socrático-platônico, a moralidade cristã, ao antropocentrismo, a crença no
poder da ciência, a ideia de progresso, a modernidade e ao homem moderno que herda todos os
aspectos desta “moral escrava”. Para ele esses ideais modernos nascem do domínio da “moral
dos fracos” no mundo ocidental. Pode parecer que Nietzsche está criticando todos, ele faz isso,
por acreditar que todas as esferas da atividade humana estão contaminadas por essa “doença” que
vem do modo de valorar o mundo voltado para a fraqueza, embora existam outras maneiras de
valorar o mundo. Como ele diz:
A moral é hoje na Europa uma moral de animal de rebanho. Portanto, na nossa
opinião, apenas uma espécie particular de moral humana, ao lado ou antes ou
depois da qual são possíveis ou deveriam ser possíveis muitas outras morais,
principalmente morais superiores.17 (grifos do autor)
Como essa moral se espalhou pelo mundo ocidental, Nietzsche percebe que há uma
decadência da cultura, que o mundo está ficando niilista, que o animal homem está ficando mais
pobre, que há uma negação da vida e entre todos esses “sintomas” está o homem moderno. Para
ele a vida pode ser entendida como um conjunto de energias, pulsões e instintos naturais em
constante luta e que a moral pode afirmar a vida, fazendo-a crescer e expandindo a capacidade de
agir da humanidade, ou nega a vida, fazendo-a pequena e reduzindo a capacidade humana.
Segundo Nietzsche, este homem também está “doente”, e “cansado da vida”; por isso que ele
nega a vida, ou seja, não consegue lidar com sua incapacidade.
Tal relação do homem com a natureza, supomos ter surgido da tradição da modernidade
filosófica. Na modernidade surgem alguns ideais como a liberdade (livre-arbítrio), a crença no
progresso capitalista trazendo riqueza para todos, a esperança de que a ciência resolveria os
problemas humanos, etc. Deste último surge a ideia de dominar a natureza em proveito da vida
humana criando uma relação sujeito/objeto. Com Descartes o ser humano é separado da
natureza (o sujeito do objeto), o mundo é reduzido em partes para melhor se explicar a vida.
Galileu percebe uma linguagem matemática na natureza e começa a fazer experimentos e
descobertas sobre o funcionamento da mesma. Bacon introduz o método indutivo que pode
descobrir as leis da natureza. Pode-se perceber a necessidade de dominar e controlar a natureza
que os conceitos destes pensadores traziam18.
Nietzsche tem uma visão do cosmos como regido por forças plurais, e a vida nasce de
uma dessas forças que se manifesta de forma orgânica. No entanto, ele aponta que existem forças
ativas e forças reativas. Estas últimas teriam guiado o nascimento da moral dos fracos a partir de
um olhar ressentido sobre o mundo. Nasce daí uma maneira do homem se relacionar com a
natureza que implica em exploração dos recursos da natureza. É possível entender que a
valorização de um mundo perfeito e a tentativa de dominar e modificar a natureza vem do
domínio da moral dos escravos. Com a incapacidade de lidar com o mundo como ele é estes
tentariam torná-lo um lugar livre das dores e que proporcionasse conforto material para todas as
pessoas. Assim uma reação é produzida da incapacidade de lidar com a natureza como ela se
apresenta, criando assim um ideal de natureza que serve ao homem. Para Nietzsche estes ideais
modernos são falsos e entende a modernidade “como uma época histórica cuja principal
característica é a negação da vida, pela imposição de valores morais que reduzem o homem a
mero animal gregário”19. Os valores morais que ele está falando fazem parte da moral dos
escravos que no lugar de enriquecer o ser humano estariam empobrecendo-o.
A dominação dessa moral também é entendida como a desvalorização de todos os valores
que ele chama de niilismo. Vale ressaltar o quê este termo vem a ser entendido na filosofia de
Nietzsche. Segundo Deleuze o niilismo em Nietzsche tem dois significados. O primeiro é um
niilismo negativo onde a vida é negada em nome de valores superiores como Deus, o bem, o
verdadeiro. Neste caso o mundo é apresentado como mundo das aparências e este mundo é
negado em nome do mundo-verdadeiro (o paraíso ou o mundo das ideias de Platão). O segundo
é o niilismo reativo onde “o niilista nega Deus, o bem e até mesmo o verdadeiro, todas as formas
do supra-verdadeiro”20. Como Nietzsche diz no aforismo 125 de A Gaia Ciência:
„Para onde foi Deus?‟, gritou ele, „já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu.
Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos
beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte?
Que fizemos nós, ao desatar a terra de seu sol? Para onde se move ela agora?
Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos
continuamente?21
A expressão “morte de Deus” pode ser entendida com o final da era moderna e de seus
fundamentos como sugere Vattimo. Esse evento marcaria a entrada na pós-modernidade onde é
revelada a insignificância dos ideais que fundaram a modernidade22. No entanto, o niilista ao
negar os valores superiores e se voltar para a vida, ainda encontra uma vida negada e sem valor.
Se antes a vida era negada em nome de valores suprassensíveis agora esses valores também são
negados e resta ficar em um mundo cada vez mais sem valor; cada vez mais niilista. O homem
reativo “coloca-se no lugar de Deus: não conhece mais valores superiores”. Então outros valores
surgem deste homem reativo23. Como Deleuze diz:
o homem reativo toma o lugar de Deus: a adaptação, a evolução, o progresso, a
felicidade para todos, o bem da comunidade; o Homem-Deus, o homem moral,
65.
22 VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Trad. Eduardo Brandão. 2ª Ed.
o homem verídico, o homem social. São esses os valores novos que nos são
propostos em lugar dos valores superiores, são esses os personagens novos que
nos são propostos em lugar de Deus24
Aquele homem (com H maiúsculo), que nega o mundo presente, está destruindo este
mundo e, ao mesmo tempo, destruindo a si mesmo, para alimentar uma ideia de conforto
material, ou um ideal de felicidade para todos, ou uma ideia de mundo melhor no futuro. O tipo
fraco tinha que criar outro mundo onde pudesse se realizar por não ser capaz de se realizar neste
mundo. Segundo Nietzsche o homem faz isto pela incapacidade de lidar com o mundo empírico
que nos cerca e de lidar com os movimentos instintivos da natureza (inclusive de sua própria
natureza). Pois a moral dos fracos tem que encontrar um culpado e puni-lo. Como afirma
Marton:
Com Platão e o cristianismo, ocorreu a duplicação dos mundos – e passou-se a
negar este em que nos achamos aqui e agora em nome de outro, essencial,
imutável e eterno. Com a modernidade, procedeu-se à implosão do ser humano
– e foi ele dividido em razão e paixões, intelecto e sentidos, consciência e
instintos.25
Neste caso a tentativa de mudar a natureza é uma forma de dizer que há um erro no
mundo e que este deve ser consertado, ou seja, esta tentativa deriva da moral dos escravos que
nega este mundo em nome de outro, seja metafísico ou seja no futuro. Isso liga os apontamentos
da genealogia nietzschiana a atual crise ambiental pela postura que temos diante da natureza.
Outro ponto que merece destaque é o entendimento de niilismo que Vattimo defende.
Ele tenta mostrar como os conceitos de niilismo se aproximam em Heidegger e em Nietzsche.
Para Heidegger o niilismo é a consumação do Ser no valor, que Vattimo entende como sendo o
valor de troca. O Ser se perderia e/ou se transformaria neste tipo de valor. Pode ser coincidente
com o conceito de niilismo de Nietzsche, pois este falou da desvalorização dos valores supremos,
mas não dos valores “tout court” (ou seja, os valores pequenos); estes valores continuam e junto
com eles o valor de troca. No que diz respeito às características da sociedade capitalista, Vattimo
entende que a transformação de tudo em “valor de troca” no século XX mostra os últimos
momentos de uma desumanização (consumação do niilismo) e que os esforços contra essa
reificação foram ainda um niilismo reativo, pois buscava se reapropriar do sujeito e parar o
domínio do objeto. Aquela experiência de mercantilização abre espaço para uma possível nova
experiência humana26. Logo, podemos entender que a exploração da natureza que vem sendo
praticada pelo capitalismo moderno se dá pela transformação da natureza em valor de troca, ou
24 Ibidem, p. 70.
25 MARTON, Scarlett. Do dilaceramento do sujeito à plenitude dionisíaca. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 25, maio de
2009, p. 58.
26 VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade. p. 4-16.
Hans Jonas aponta para a necessidade de uma nova ética diante dos avanços da técnica.
Para ele o poder de destruição da tecnologia exige do homem a responsabilidade de preservação
da vida na terra. Assim ele enuncia o princípio da responsabilidade como um imperativo para agir
“de modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida
sobre a Terra”. Ele entende que o homem faz parte de um todo (a natureza). O principio surge
exatamente desta nova visão do homem como um ser inserido em um sistema maior e que
depende deste sistema maior para continuar vivendo. Para Hans Jonas o fim da natureza é a vida,
logo com o principio ficamos condenados a ser responsáveis.
27 NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2009b, p. 26.
28 HÉBER-SUFFRIN, Pierre. O “Zaratustra” de Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
Uma questão levantada sobre sua teoria é que de sentenças descritivas não se pode retirar
sentenças prescritivas, seria uma falácia da natureza. Este problema se apresenta como não
podendo estabelecer um valor moral a partir de um princípio determinado pela natureza. A ação
moral tem que vir de uma norma e não de uma descrição. Como a natureza é apenas descritiva
ela não pode determinar um principio moral. Se isto fosse possível a ação estaria sendo
determinada fora do agente e assim o agente não seria livre. Então, Jonas não quer tirar a ética da
ontologia, mas mostrar que a ética está contida na ontologia. Ele presa pela permanência de uma
vida digna na terra29.
CAMINHO E DESCAMINHOS.
A proposta de Jonas é ampliar o campo de visão da ética, saindo de uma ética apenas
humana e considerando a natureza. Assim o homem não é apenas preocupado com sua conduta,
mas com os impactos da sua conduta na natureza, ou seja, responsável pela natureza em que
habita. Uma solução que Jonas aponta para o problema da falácia da natureza é reafirmar que o
homem pertence a natureza, mas sua moral continua centrada no homem; daí o termo
“biologização do ser moral”30. Neste ponto de considerar o homem como um ser a mais na
natureza tanto Jonas como Nietzsche andam pelo mesmo caminho. A teoria das forças 31
Nietzsche que chega a este entendimento.
Para além disto Jonas coloca dois argumentos contra a falacia naturalista. Primeiro que a
responsabilidade é uma constatação ontológica (o ser é responsável) e segundo que o ser deve ser
responsável por que o ser é (e não por que a natureza é). Para Jonas o ser “contem” a
responsabilidade, então existe, (faz sentido) um “dever ser do ser”32.
Jonas fundamenta (ontologicamente) o Bem recusando os dualismos entre eles espírito e
matéria. Assim como Nietzsche supera o entendimento de que o mundo é duplicado em mundo
sensível e mundo racional, corpo e alma, etc. No entanto, a ideia de Bem na essência do ser não é
compartilhada em Nietzsche. Não existe um bem em si que dê sentido ao mundo.
A responsabilidade vem do próprio ser. Se apresenta como um imperativo ontológico (a
responsabilidade). A “sobrevivência real do ser” depende de observar o princípio da
responsabilidade. A sobrevivência do ser no futuro que gera este imperativo ontológico. Jonas
chega a uma imposição de cuidado (ou responsabilidade) do homem com a natureza que o
29 LIMA, O princípio responsabilidade de Hans Jonas e a crítica de Karl-Otto Apel. Seara Filosófica, 2010.
30 SGANZERLA, A. Biologização do ser moral em Hans Jonas. Revista de Filosofia: Aurora, v. 25, n. 36, p. 155–178,
2013.
31 Teoria de que o mundo é formado por forças plurais em constante conflito mutúo.
32 Ibidem.
homem faz parte, mas partindo de uma visão um tanto metafísica. Nietzsche chegaria a um além-
homem sensível as questões de preservação da natureza, não pela metafísica, mas pelo
conhecimento tanto ele quanto a natureza têm origem na mesma força e ambos tem a mesma
vontade.
Jonas coloca que a liberdade é o resultado “teleológico” da natureza. Assim o homem é o
ser responsável pela sua própria sobrevivência. Logo, para continuar sendo homem deve ser
responsável. O princípio pede que se preserve a condição de existência da humanidade. Neste
caso o homem é livre para escolher ser responsável. Dado que em seu desejo de progresso o
homem coloca a existência futura em perigo. Jonas afirma que a vida é um fim que está na
natureza e ao mesmo tempo um valor fundamental e a autoconservação é um fim em si mesmo
para Jonas33. No entanto, a natureza não tem uma finalidade para Nietzsche, não existe uma
ordenação moral no mundo que possa ser derivado para um sentido da conduta humana. As
forças em conflito buscam apenas afirmar sua força (ou afirmar seu poder).
Para Nietzsche os fins são a indicação que uma vontade de poder (ou vontade de
potência) dominou algo menos poderoso e inseriu uma função. Assim os fins não são dados tão
pouco eternos. Assim o desenvolvimento de uma “coisa” pode ser uma sequência de novas
interpretações e subjugamentos que recebe e não um progresso na direção de um fim 34. No
tocante as teorias evolucionistas que colocam como essência da vida a adaptação Nietzsche
aponta que a essência da vida seria a vontade de potência e a adaptação apareceria apenas como
uma atividade de segunda ordem. A força espontânea dessa vontade precede a “adaptação”.
Assim a ética da preservação – admitir que existe uma natureza e que o homem faz parte dela –
de Jonas se distancia na origem que levaria a uma possível harmonia na relação do homem com a
natureza assim como no conceito de vida dos autores.
É necessário se perguntar se ambos os autores chegaram no mesmo lugar (conceito de
homem ou conduta) por caminho nem sempre iguais? A resposta é negativa, pois o além-homem
percebe que ele é parte da natureza e não tem uma finalidade, nem ele nem a natureza, mas uma
constante promoção de encontros ou choques que ora são harmoniosos ora são conflituosos e
em alguns casos fazem a vontade de potência se expressar (manifestar) positivamente (se
expandindo) e outras vezes se manifesta negativamente (se contraindo). Não necessariamente que
esta força se manifeste positivamente nos encontros harmoniosos e negativamente nos encontros
conflituosos. Inclusive Nietzsche aponta para o aumento de vontade de potência no conflito35.
33 Ibidem.
34 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2009a, p. 62.
35 NIETZSCHE, Friedrich. Para Além do Bem e do Mal. São Paulo: Martin Claret, 2001ª.
O sim à vida jonasiano leva a um bem em si. O bem em si seria um sentido novo na terra
como afirma o Zaratustra? A resposta que pode ser colocada como hipótese é que o Zaratustra
afirma uma atribuição de um novo sentido da terra na imanência e também no aqui/agora.
Enquanto o princípio de preservar a vida que dá ao homem a responsabilidade seria uma troca da
vida hoje, que está acontecendo, por uma no futuro (um futuro que nunca chega) que ameaça.
Ou pelo menos, um pensar atual com a ameaça do futuro terrível como pano de fundo. Este
futuro seria ainda transcendente e não imanente. Além do mais, quando Jonas aponta que
devemos ter a responsabilidade de cuidar da continuidade da vida, ele está desviando do
enfrentamento com a questão da finitude. Uma extrapolação desta fuga individual para a escala
universal levaria a questão da finitude da humanidade. Nietzsche aponta que deveríamos dar boas
vindas a morte (a finitude), mas para isto deveríamos ter consumado nossa vida em sua riqueza,
ou seja, na expansão e expressão cada vez mais exuberante de uma luta e conquista por mais
vontade de poder.
REFERÊNCIAS
GIACOIA JUNIOR, O. Sonhos e pesadelos da razão esclarecida. Revista o que nos faz
pensar, v. 18, 2004.
NIETZSCHE, F. Para Além do Bem e do Mal. São Paulo: Martin Claret, 2001a.
NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2009b.
RESUMO: Nosso propósito aqui é em linhas gerais mostrar que do advento da técnica que se
impõe na era moderna, resulta o niilismo, que por sua vez decreta: o fim da metafísica e o
relativismo de valores como “ecos” de um projeto de razão, cuja promessa era em primeira
instância, elevar o homem à condição de ser autônomo mediante o saber que o torna capaz de
dominar a natureza. Entretanto, se por um lado, a civilização moderna celebra o triunfo da razão
demonstrativa, por outro lado, esta mesma civilização, assiste concomitantemente ao abandono
da metafísica e da ética, fatores estes que corroboram o niilismo e o relativismo de valores que
ora vivemos. Tais fatores levam a uma incerteza em relação à continuidade da vida humana e
extra-humana que agora encontra-se ameaçada pelo poder da técnica por meio da ação humana.
Como alternativa a este cenário, apresentaremos a teoria da responsabilidade inaugurada por
Hans Jonas como a nova ética do futuro, com os seus fundamentos metafísicos e os dois
arquétipos que segundo Jonas, melhor representam sua teoria ética. Isto é, a responsabilidade do
estadista e aquela dos pais em relação aos filhos. Se a técnica e o niilismo dela decorrente nos
apontam para um cenário de incertezas em relação ao futuro, destacaremos essas duas formas de
responsabilidades como via de superação do niilismo. Em Jonas a responsabilidade como tarefa
do homem de Estado, consiste em assegurar no presente a possibilidade de que no futuro haja
homens capazes de assumir responsabilidade. De igual modo, a responsabilidade dos pais em
relação aos filhos trata-se de cuidar da vida. O que abri caminhos para a possibilidade de
continuidade da existência de vidas no mundo de amanhã, pois o nascimento de uma criança
representa o recomeço da humanidade. Sendo assim, a responsabilidade dos pais para com os
filhos definirá no presente, um novo sujeito para um futuro novo.
1Parte do presente texto foi apresentado no colóquio Hans Jonas realizado na UFRJ Rio de Janeiro, entre os dias 7 e
9 de dezembro de 2016.
INTRODUÇÃO
Nosso objetivo neste artigo será mostrar de que modo atécnica moderna e o niilismo
relativista dela decorrente, nos impõe a urgência de uma nova ética a partir do pensamento de
Hans Jonas. Para tanto, para realizarmos a tarefa a qual nos propusemos, será necessário
trilharmos aqui três passos. No primeiro, mostraremos o apogeu da técnica e o niilismo relativista
como “ecos” da era moderna. Sublinharemos o niilismo como a falta de sentido que emerge
quando se dissolve o poder vinculante das respostas tradicionais ao por que da vida e do ser. O
que nos resta então? Nesse caso, mostraremos que nos resta uma realidade sem diretriz. O
mundo já não tem valor em si mesmo. Antes o seu valor tradicional era dado pelo homem.
Contudo, com o advento da tecnologia e da biotecnologia moderna, assistimos em nossos
tempos, uma indiferença em relação ao ser e o não-ser. Se por um lado, a civilização tecnológica
moderna celebra o triunfo da razão demonstrativa e operacional, por outro lado, ela assiste ao
exílio da metafísica o que corrobora o niilismo relativista de nossa era. Dito de outro modo, o
advento da técnica moderna impõe o niilismo metafísico, e igualmente o niilismo ético como
“ecos” do programa da técnica que consistia em primeira instância, na libertação do homem
mediante o saber operacional capitaneado pela técnica que o torna capaz de obter total controle
sobre a natureza. Contudo, explicitaremos que o que resta debaixo de nossos pés, é um solo
instável e um cenário que não nos aponta nenhuma direção segura.
Frente a este cenário de incertezas que a técnica moderna nos lega, Hans Jonas constata a
necessidade de uma nova ética. Jonas entende que só uma ética metafisicamente fundamentada, é
capaz de se colocar como possibilidade de resgate do ser – valor, da finalidade, portanto, da
metafísica. Para tanto, como alternativas ao niilismo, apresentaremos a duas possíveis vias de sua
superação: a responsabilidade dos pais em relação aos filhos - parental e a responsabilidade
política (coletiva). Isso nos leva a uma questão com a qual precisamos nos ocupar no percurso
desta reflexão, qual seja: em que medida essas duas formas de responsabilidades podem se
colocar como vias de superação do niilismo relativista o qual herdamos do apogeu que atingiu a
técnica na era moderna?
Como primeira via de superação do niilismo, analisaremos a responsabilidade parental,
cuja finalidade consiste em educar para tornar o filho adulto e responsável e isto representa um
resgate da teleologia – valor, em tempos em que o afã tecnológico e biotecnológico, impõe o
relativismo dos valores. Por isso, mostremos qual é essencialmente a tarefa da responsabilidade
parental, isto é, a de preservar o bem e o valor - cuidar da vida. Nenhuma criança pede para
nascer em qualquer que seja as situações, seja privilegiadas ou não. Porém, Jonas considera que o
nascimento de uma criança representa concomitantemente o recomeço da humanidade, o que
por sua vez, abri caminhos para a possibilidade de continuidade da existência de vidas no futuro
longínquo. É este o “resultado” que se espera da responsabilidade enquanto dever fazer aplicada
ao âmbito parental - a continuidade da existência humana no mundo. Esta, portanto trata-se da
primeira resposta ética, a qual exige a técnica e o niilismo relativista de nossos tempos.
Finalmente, no ultimo passo de nosso artigo, destacaremos a responsabilidade política
(coletiva) como resposta ética e segunda via de superação do niilismo. Mostraremos que a
preocupação de Jonas com a continuidade da humanidade e da responsabilidade além da esfera
parental se estende também ao âmbito político, por isso mesmo, ele propõe a responsabilidade
política como segundo modelo paradigmático para pensar a ética. Eis a nossa tarefa nesse artigo,
e já que anunciamos o que faremos, agora é ora de realizarmos o que prometemos. Passaremos,
portanto, ao primeiro ponto deste trabalho.
A técnica moderna é dominada por aquilo que Martin Heidegger caracterizou como o
desabrigar que em nossos tempos se mostra como um desafio – o niilismo o qual se hospeda na
casa humana como Nietzsche assim dizia, causando a diluição de nossas diretrizes, nos impondo
uma realidade obscura – a crise. A era moderna não oferece nenhuma direção, sentido ou valor
ao homem. Sendo assim, ela expressa o seu mais intenso niilismo. É isso o que faz com que,
segundo Jonas, o “niilismo moderno seja infinitamente mais radical e desesperado do que o
niilismo gnóstico” (RG, p. 349, apud, OLIVEIRA, J. 2014. p. 125). O niilismo se mostrou como
o resultado de um mundo sem Deus, e isto decretou o fim dos valores tradicionais e
transcendentes. Já que os valores supremos se depreciaram, agora, a era moderna padece pela
falta de finalidade. O niilismo, nas palavras de Franco Volpi é “pois, a “falta de sentido” que
desponta quando desaparece o poder vinculante das respostas tradicionais ao porquê da vida e do
ser” (VOLPI, F.1999, p. 55). Resta-nos então uma realidade sem diretriz. O mundo - natureza
não tem valor em si mesmo, antes sendo o seu valor tradicional, “dado pelo homem – que por
fim se tornará ele próprio um ser do qual não se pode dizer que seja também um fim em si, como
bem o tem atestado a tecnologia e a biotecnologia moderna e isso leva a uma indiferença em
relação ao ser e o não-ser.” (LOPES, W. 2008. p.32).
Ao alcançar seu apogeu, a técnica moderna impõe o niilismo. Com isso, como bem
observa Franco Volpi, a situação do homem contemporâneo é de incerteza e precariedade. Pois,
“lembra a de um andarilho que há muito caminha numa área congelada e, de repente, com o
degelo, se vê surpreendido pelo chão que começa a se partir em mil pedaços. Rompidos a
estabilidade dos valores e os conceitos tradicionais, torna-se difícil prosseguir o caminho”
(VOLPI, F. 1999, p. 7). O niilismo, continua o autor, constitui uma situação de “desnorteamento
provocado pela falta de referências tradicionais, ou seja, dos valores e ideais que representavam
2Como esta trata-se da obra magna de Jonas a qual constitui a chave mestra para a nossa reflexão, na sequência deste
artigo, a citaremos sempre com as iniciais PR. Outras obras de Jonas e demais autores, citaremos de acordo com a
formula autor data.
uma resposta aos porquês e, como tais, iluminavam a caminhada humana” (Ibid.1999, p. 8). Vê-
se, pois, que sem a referência dos valores tradicionais, o niilismo emerge como a face „escura‟ de
uma era cujo arcabouço técnico, nos revela como já vimoso vazio de sentido que se mostra
quando sucumbi o poder e o valor vinculante das respostas tradicionais ao porquê da vida e do
ser. Isto
sua ação, mas também, e antes de tudo, o seu poder é meta-físico porque nega
o próprio âmbito do que é metafísico, o valor do Ser como um todo: a crise
que a tecnologia abre, em última instância, é a da questão do valor de tudo
aquilo que é objeto de sua ação – aí incluído o homem, a natureza, enfim: o
todo do Ser. E é essa crise mais profunda – a crise do valor – que está
relacionada com o niilismo. A tecnologia, portanto, se encontra às voltas com o
niilismo. (LOPES, W. 2008, p. 29).
Vê-se, pois, que a nossa era moderna se depara com a falta de finalidade. É isto que
herdamos após o ruir das grandes narrativas as quais se colocavam como valores vinculantes. Já
que a tecnologia e o niilismo relativista dela decorrente fincam raízes no solo da modernidade,
agora o que assistimos é, portanto, o relativismo dos valores. Eis, portanto, o cenário, ele, porém,
não nos apontam sinais de horizontes claros, ao contrário, todos os sinais que vemos ecoam sons
de incertezas. Nesse caso, qual é a saída? Uma possibilidade seria o resgate da teleologia – o bem
e o valor. Para tanto, Jonas constata a necessidade da formulação de um novo princípio éticoque
seja capaz de afrontar os ecos da era moderna. Com efeito, Jonas entende que uma nova ética
para a civilização tecnológica, deve levar a marca de uma ética da responsabilidade e,
considerando o sentido da responsabilidade como um dever ontológico, Jonas apresenta dois
arquétipos que segundo ele são os que melhor exemplificam sua teoria ética, isto é, a
responsabilidade parental e a responsabilidade política. Se de um lado, o afã científico e
tecnológico leva ao exilio da metafísica e da ética, de outro, os dois arquétipos destacados pelo
filósofo podem ser vias de superação do niilismo relativista de nossos temos, dado que os dois
representam o bem e o valor e nesse caso, assegurar o bem e valor, são formas de refutar o
niilismo e resgatar a metafísica. Isso nos leva ao segundo ponto no qual destacaremos a
responsabilidade parental como uma primeira via possível de superação do niilismo relativista que
resulta do apogeu da técnica na era moderna.
A empresa ética de Jonas toma o futuro como o seu objeto. A preocupação do autor
consiste em assegurar indeterminadamente a continuidade da vida humana e suas condições de
existência no futuro. A responsabilidade dos pais em relação aos filhos trata-se de cuidar o ser-
vida. Embora nenhuma criança peça para nascer em qualquer que seja as situações, sejam
privilegiadas ou não, Jonas considera que o nascimento de uma criança representa o recomeço da
humanidade, o que por sua vez, abri caminhos para a possibilidade de continuidade da existência
de vidas no mundo de amanhã. Sendo assim, a responsabilidade dos pais para com os filhos
definirá no presente, um novo sujeito para um futuro novo. Isso exige, entretanto, que o dever se
manifeste efetivamente, pois sendo a responsabilidade um dever ontológico contido no ser, ele é
reivindicado no dever ser dos pais, cuja responsabilidade reverbera como um dever em relação ao
recém-nascido. Neste caso o ser – vida reivindica existência, mas a resposta que emana dessa
forma de „poder‟, não resulta da mera reciprocidade, mas da responsabilidade assimétrica, cuja
finalidade se realiza numa via de mão única.
A partir da analogia estabelecida com o recém-nascido Jonas mostra a aplicação da teoria
da responsabilidade. Mas o que o filósofo pretende com tal analogia? A pretensão do autor é a de
pensar um modo efetivo de assegurar a continuidade da existência de uma humanidade futura.
Porém, isso implica um dever, cujo modo de expressá-lo se dá em duas formas: em primeiro
plano, para com a existência de uma humanidade futura, independentemente se os nossos
descendentes diretos façam parte, e igualmente um dever em relação ao seu modo de ser, isto é,
preservar a sua condição (Cf.PR. 2006, p. 90). Em Jonas, o cuidado com o recém-nascido figura
como um exemplo que corresponde tanto ao dever objetivo, quanto ao querer subjetivo, em
outros termos, a responsabilidade objetiva e seu sentimento subjetivo (Cf. SGANZERLA, A.
2012, p. 212). Desse modo, estaria superada a suposta distância entre ser e dever, porque na
constituição do próprio ser, está presente um dever elementar que é concedido pela própria
natureza. Com isso, é em relação ao recém-nascido “que o sentimento de responsabilidade
apresenta sua força, e convida a responsabilizar-se, constituindo assim a coincidência entre o
aspecto subjetivo e objetivo da responsabilidade ética” (Ibidem. p. 212). De acordo com Jonas,
responsabilizar-se pelo recém-nascido é também comprometer-se com o todo da humanidade,
pois a “esperançosa ideia” de um constante recomeço da humanidade3, está atrelado à criança
recém-nascida.
A responsabilidade pensada além da ação já realizada, a exemplo do direito civil e penal,
representa em Jonas, a busca por um sentido que possa garantir o direito à existência, de modo
autêntico, daqueles que ainda não existem. O futuro da teoria da responsabilidade proposta por
Jonas é nas palavras de Ricoeur, totalmente antagônico, pois é ainda o futuro dos homens “(...)
que agem e que sofrem, mas sob a condição da sobrevivência da humanidade; o novo princípio,
portanto, visa apenas ao agir da humanidade futura através de seu viver e de sua sobrevivência.”
(RICOEUR, P. p. 229, 1996). Com efeito, a sobrevivência da humanidade futura tal como
3“Ao olhar o exemplo do recém-nascido Sève aponta que este não pode ser usado como arquétipo porque ele
representa o presente, o que faz com que ele se impunha como uma prescrição afirmativa, isto é, como alguém que
precisa ser nutrido, cuidado. (1990, p. 86). A esse respeito a posição de Speamann é ainda mais radical, pois afirma
que a responsabilidade paterna “não se fundamenta nem sobre um princípio, nem sobre uma máxima, mas sim sobre
uma percepção” (1996, p. 283). Ou seja, existe uma exigência à autoconsevação, na medida em que o corpo do ser
humano necessita dos outros para a sua sobrevivência”. Inserimos aqui a análise já antecipada porSGANZERLA,
Anor. Ibidem. 2012, p. 212.
entende Jonas, está condicionada ao novo imperativo ético, cuja orientação consiste em repensar
o poder da ação humana no presente, de modo a assegurar o direito de ser no futuro daqueles
que não existem.
Os argumentos da ética tradicional de que o direito a reivindicação pertence apenas
aquele que existe, tornaram-se insuficientes para a ética do futuro postulada por Jonas. “A tese de
que toda vida por si mesma reivindica continuar a viver não pode ser ignorada pela ética, pois
mesmo que o ainda não vivente não faça reivindicações, nem por isso pode ter seus direitos
negados.” (SGANZERLA, A. 2012, p. 212.) Ao lidar com o não existente, a responsabilidade
“tem de ser independente tanto da ideia de um direito quanto da ideia de uma reciprocidade, de
tal modo que não caiba fazer-se a pergunta brincalhona, inventada em virtude daquela ética: „o
que o futuro já fez por mim? Será que ele respeita os meus direitos?” (PR. p. 89).
O recém-nascido, o qual Jonas usa como arquétipo, coloca em evidência a seguinte
situação: mesmo na ausência de reciprocidade, ou na disparidade entre os envolvidos, a criança se
torna um sujeito de direitos, embora não possa exercê-los sem a assistência de seus progenitores,
e se os seus direitos são exercidos pelos pais, de igual modo são também seus deveres, pois o
recém-nascido com sua fragilidade natural não pode cumpri-los. (Cf. COMÍN, 2005, p. 25.) De
onde se segue que na elaboração filosófica jonasiana, urge desconstruir o dogma da tradição, de
que apenas aquele que existe pode reivindicar direitos. Se o discurso filosófico da tradição
construiu o dogma do “não direito dos não nascidos”. O principio responsabilidade de Jonas
contrapõe àquele da tradição, pois ele visa assegurar o direito à vida daqueles que ainda não
nasceram. A responsabilidade dos pais em relação aos filhos corrobora esse direito no futuro. E a
necessária desconstrução do antigo princípio da tradição se impõe, sobretudo em razão da técnica
moderna, cujo uso excessivo ameaça à continuidade da vida no futuro. Com isso, o direito de
existir deve ser assegurado. Neste caso, a garantia de que no mundo de amanhã existam homens
de direito, capazes de decidir, deve ser assegurada por nós no hoje da história, e a teoria da
responsabilidade postulada por Jonas a isso se propõe.
A responsabilidade aplicada à relação dos pais para com os filhos é usada por Jonas na
elaboração de sua teoria ética como arquétipo da responsabilidade. Desse modo, ela é ao mesmo
tempo condição de possibilidade “da articulação entre ser e dever ser e entre ontologia e ética.”
(JONAS, H. Memorias. 2005. p. 350). O recém-nascido em seu simples ato de respirar dirige aos
seus responsáveis um dever irrefutável, pois “na insuficiência radical do recém-nascido está
previsto ontologicamente que seus pais o protejam contra sua queda no nada e que se
encarreguem de seu devir futuro” (PR. p. 224). Tal exigência implica cuidar da sua existência,
independente da compaixão, da misericórdia ou de qualquer outro sentimento. Para Jonas “a
simples existência de um ser ôntico contém intrinsecamente, e de forma evidente, um dever para
outros.” (PR. p. 220) A relação entre pais e filhos usada por Jonas como arquétipo da teoria da
responsabilidade que ele postula,
implica um “dever” – em primeiro lugar, um “dever ser” de algo [alguém – a
criança], e, em seguida, um “dever fazer” de alguém como resposta àquele
dever ser. Ou seja, em primeiro lugar, encontra-se o direito intrínseco do
objeto. Somente uma reivindicação imanente ao Ser pode fundamentar
objetivamente o dever de uma causalidade do Ser transitivo. A objetividade
precisa realmente vir do objeto. (Ibid. p. 219).
Como se observa essa exigência imanente do ser é o próprio ser, ser-dever, ou em outros
termos, o direito natural de continuar existindo. Quando a vida do ser, isto é, o recém-nascido
exige ser protegida em razão de sua evidente fragilidade, “o imperativo de seguir existindo
converte-se em um apelo à responsabilidade de quem tem o poder. Ou seja, a chamada à
responsabilidade para o dever ser converte-se em dever, o dever de fazer o todo possível para que
se cumpra o imperativo.” (SGANZERLA, A. 2012, p. 215.). Nisto se realiza a teoria ética de
Jonas aplicada ao âmbito parental. Em tal âmbito, a exigência de responsabilidade para com o
recém-nascido urge, e isso sinaliza uma perspectiva de superação do vácuo ético contemporâneo.
Se para Jonas, “com cada criança que nasce recomeça a humanidade” (PR. p. 224) podemos,
portanto, concluir que com o recém-nascido estará também assegurada a sobrevivência da
humanidade no mundo de amanhã. Esta seria uma possibilidade de saída do niilismo metafísico e
ético que herdamos do advento da técnica moderna. Entretanto, além deste arquétipo do recém-
nascido como possibilidade de resgate da finalidade – valor, portanto, da metafísica, a
responsabilidade política emerge também como uma segunda via possível de superação dos „ecos‟
assombrosos da era moderna: a técnica e o niilismo relativista. Eis a tarefa com a qual nos
ocuparemos no terceiro ponto do nosso artigo.
Como vimos na ética do futuro postulada por Jonas, a relação dos pais para com os filhos
emerge como arquétipo primordial da responsabilidade. De onde se segue que tal
responsabilidade abre a possibilidade de continuidade da sobrevivência humana no futuro. Isso
posto, essa forma de responsabilidade se estabelece como orientação e superação da realidade
niilista em que vivemos. O dever dos pais para com o recém-nascido aponta a construção do
futuro, mas em Jonas, a construção do futuro é um desafio que se impõe também ao homem
público, cuja responsabilidade é em primeira instância livremente escolhida, de modo a
ambicionar o poder em larga escala com vistas ao exercício da responsabilidade em um nível mais
amplo. A responsabilidade política consiste na ampliação do raio de atuação do agente – o
homem político. Mas a que se deve a necessidade de tal ampliação? A responsabilidade política é
devedora da ideia de que esta ampliação está intimamente ligada à dimensão histórica, isto é, a
preocupação fundamental neste momento está voltada ao futuro, pois implica a continuidade de
uma identidade a qual também integra a responsabilidade coletiva, sendo esta, resultada daquela
responsabilidade suprema exercida pelo homem político.
Se a sobrevivência da humanidade no futuro está condicionada à responsabilidade
livremente assumida do homem político, como é o caso da responsabilidade parental, precisamos
também destacar que ambas são correlatos do poder. Mas nas palavras de Jonas “é, sobretudo, o
verdadeiro homo politicus quem ambiciona a responsabilidade ligada ao poder e tornada possível
graças a ele, e que por isso ambiciona ambos ao mesmo tempo.” (PR.p.172). Segue-se daí que
para o homem político, ambicionar o poder tem em vista assumir e realizar a responsabilidade em
relação aos outros, sobretudo, para com aqueles que ainda não existem.
Assim sendo, como Jonas nos diz, “O homem público autentico estimará como sua glória
(que pode lhe ser muito cara) precisamente que possa dizer dele que fez o melhor que pôde por
aqueles sobre os quais detinha poder, ou seja, para aqueles em virtude de quem ele tinha poder.”
(Ibidem. p. 172). Portanto, em Jonas o poder emerge como fundamento da responsabilidade, mas
não enquanto sobreposição. Em outros termos, trata-se do poder para e não do poder sobre.
Desse modo, este último assumi o sentido de responsabilidade, cujo objetivo “é a res publica, a
coisa pública, que em uma república é potencialmente a coisa de todos, mas realmente só o é nos
limites do cumprimento dos deveres gerais da cidadania.” (Ibidem. p. 172) Isso aponta para a
necessidade do exercício da cidadania como condição para a efetivação da responsabilidade
coletiva, que como dizíamos, integra também a responsabilidade política, cujo objetivo é
justamente o de assegurar a sobrevivência de todos.
Daí se pode vislumbrar de fato a possibilidade de construção e efetivação do futuro como
garantia de continuidade da espécie humana, tempo para o qual destina-se a elaboração ética de
Jonas. E já que o futuro se estabelece como a ideia mestra que conduz o empreendimento ético
jonasiano, logo, ele precisa ser preservado do perigo que hodiernamente representa o uso
desmedido que se faz da técnica moderna. Por isso mesmo, nas palavras de Jonas, “o perigo que
ameaça a comunidade em paralelo à convicção de que ele sabe o caminho para a salvação (e pode
conduzi-la) torna-se um forte incentivo para que o homem corajoso se candidate e assuma a
responsabilidade.” (Ibidem, p. 172). Vê-se, pois, que paradoxalmente, o perigo que a técnica
representa torna-se a mola propulsora para a responsabilidade, pois, a ameaça de catástrofe que
resulta do afã do progresso utópico da técnica moderna nos conduz àquilo de Jonas chama de
heurística do temor, que por sua vez faz com que seja despertado em nós o dever de prudência. Ou
seja, “a mais sublime liberdade do eu conduz ao mais exigente e inclemente dos deveres.” (Ibid,
p.173). A partir disso emerge a urgência de responsabilidade, que por sua vez apela ao homem
político para que este entre em cena e realize o que dele se espera, isto é, assumir num sentido
amplo a responsabilidade no presente, com vistas à construção do futuro mediante o qual seja
possível a continuidade da existência humana no mundo de amanhã.
A responsabilidade do homem político, consiste em tornar possível a vida coletiva no
estado. Numa referência à posição aristotélica, Jonas afirma que
Nessa passagem, observa-se que a responsabilidade pela totalidade da vida assumida pelo
homem público advém do seu poder como o correlato do seu agir responsável. Em outros
termos, a responsabilidade está condicionada ao poder. Para o homem político diz Jonas, a
conquista do poder deve visar objetivamente a responsabilidade. E “a dimensão dessa
responsabilidade se assemelha à da responsabilidade parental: ela se estende da existência física
aos mais elevados interesses, da segurança à plenitude, da boa condução até a felicidade.” (Ibid.,
p.180). De onde se conclui que nesses dois âmbitos, com acento para o modelo parental, a
responsabilidade neles empregadas constitui os arquétipos primordiais de toda responsabilidade,
justamente porque elas visam o sujeito, num movimento que se inicia desde o Ser ao poder ser4
tanto no presente quanto, na continuidade do poder ser nos tempos vindouros.
Neste caso o ser e o poder ser do objeto, desperta o sentimento de responsabilidade dos
pais em relação aos filhos, como também do homem público. Nas palavras de Jonas, “o homem
público não é genitor da coletividade, cuja responsabilidade ele pretende assumir; ao contrário, é
o fato de que ela já existe que lhe permite assumir tal responsabilidade e buscar o poder
necessário para fazê-lo.” (Ibid., p.182). O poder é a mola propulsora da responsabilidade do
homem público. Em outras palavras, a ação responsável do homem de estado está condicionada
4 Ou seja, tanto a responsabilidade estatal quanto a responsabilidade parental, além de visarem à existência da
humanidade, asseguram as condições mediante as quais a humanidade continuará existindo. E isso não significa
determinismo. Pois em Jonas esses arquétipos emergem como formas de assegurar o Ser, sendo que neste ser está
contida a exigência de continuidade. Em outros termos, não basta somente assegurar o ser e permitir que, em termos
futuros, ele seja apenas um ser em potencial. Como vimos, é necessário que seja garantida a vida do ser e
concomitantemente o seu poder ser no futuro.
ao seu poder, ambicionado numa escala mais ampla, de modo a assumir a responsabilidade
também em escala mais ampla. O poder ambicionado pelo homem político impõe a exigência do
fazer, isto é, a responsabilidade em ato, para que por meio dela, seja potencializada a
responsabilidade de outros.
Assim sendo, a finalidade do poder que resulta na responsabilidade do homem político
trata-se de corroborar o poder ser dos já existentes e também construir o futuro, com vistas à
continuidade do poder ser das futuras gerações. E estando assegurada a continuidade destas,
Jonas entende que a responsabilidade estaria assegurada no futuro, uma vez que o objetivo do
projeto ético jonasiano é justamente garantir a possibilidade de que haja responsabilidade.
Ora, tal empreendimento se impõe como tarefa ao homem público, cuja arte de governar
é, nas palavras de Jonas, “responsável por toda arte de governar no futuro”, (Ibid., p.201), ou dito
de outra forma, uma das responsabilidades assumida pelo homem público – continua o filósofo,
“é garantir que a arte de governar continue possível no futuro. [...] Aqui, o princípio é o de que
toda responsabilidade integral, com seu conjunto de tarefas particulares, é responsável não apenas
por cumprir-se, mas por garantir a possibilidade do agir responsável no futuro” (Ibidem., p.201).
Portanto, como se pode observar, a continuidade da vida humana no futuro torna-se objeto da
elaboração da empresa ética jonasiana. Por isso mesmo, o autor utiliza como arquétipos da
responsabilidade que ele quer inaugurar, as responsabilidades: paterna e política. Elas abrirão o
horizonte do futuro possibilitando então, a continuidade da espécie humana e com ela a
continuidade da própria responsabilidade.
Em suma, ao homem político cabe realizar o que dele se espera, isto é, assumir num
sentido amplo a responsabilidade no presente, com vistas à construção do futuro, de modo a
assegurar a continuidade da espécie humana no mundo. Isso posto, podemos então concluir que
sendo a tarefa do homem político a de cuidar da vida de forma ampla, esta, e igualmente aquela
dos pais em relação aos filhos podem, portanto, se estabelecer tal como entende Jonas como os
novos „ecos‟, em substituição àqueles do niilismo relativista que tantas incertezas nos trazem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegamos ao final de nossa reflexão e nela procuramos mostrar de que modo a técnica
moderna e o niilismo que dela resulta, exige uma ética. Nossa exposição girou em torno de três
pontos. No primeiro, mostramos o apogeu da técnica e o niilismo relativista como “ecos” da era
moderna. Destacamos o niilismo como a falta de sentido que se insurge com o ruir dos valores
transcendentes e convencionais. Neste caso, o que nos resta? Mostramos que, resta-nos uma
realidade sem diretriz. O mundo não tem valor em si mesmo, antes sendo o seu valor tradicional,
dado pelo homem – que por fim se tornará ele próprio um ser do qual não se pode dizer que seja
também um fim em si, como bem o tem atestado a tecnologia e a biotecnologia moderna e isso
leva a uma indiferença em relação ao ser e o não ser.
Destacamos que, se por um lado, a civilização tecnológica moderna celebra o triunfo da
razão demonstrativa e operacional, por outro lado, ela assiste ao exílio da metafísica o que
corrobora o niilismo relativista de nossos tempos. Dito de outro modo, o advento da técnica
moderna impõe o niilismo metafísico e ético, como ecos do programa da técnica. Explicitamos
que o que nos resta agora, é justamente um solo instável e um cenário que não nos aponta
direções claras.
Ora, diante deste cenário de incertezas que a técnica moderna nos lega, sublinhamos que
no pensamento de Hans Jonas, uma nova ética urge. Em Jonas, só uma ética metafisicamente
fundamentada, é capaz de se colocar como possibilidade de resgate do ser – valor, portanto da
metafísica. Entretanto, como alternativas ao niilismo, apresentamos as duas possíveis vias capazes
de superá-lo: a responsabilidade dos pais em relação aos filhos - parental e a responsabilidade
política (coletiva).
Como primeira via de superação do niilismo, analisamos a responsabilidade parental, cuja
finalidade consiste em educar para tornar o filho adulto e responsável e isto representa um
resgate da teleologia – valor, em tempos nos quais o afã tecnológico e biotecnológico, impõe o
relativismo dos valores. Por isso, mostramos que a tarefa da responsabilidade parental é a de
preservar o bem e o valor - cuidar da vida.
Nenhuma criança pede para nascer em qualquer que seja as situações, seja privilegiadas ou
não. Porém, Jonas entende que o nascimento de uma criança representa o recomeço da
humanidade, e isso abri a possibilidade de continuidade da existência de seres responsáveis no
futuro longínquo. Eis o que se espera da responsabilidade enquanto dever fazer aplicada ao
âmbito parental. Esta, portanto trata-se da primeira resposta ética, a qual exige a técnica e o
niilismo relativista dos novos tempos.
Por ultimo, destacamos no último ponto de nossa reflexão, a responsabilidade estatal
como resposta ética e segunda via de superação do niilismo. Mostramos que a preocupação de
Jonas com a continuidade da humanidade e da responsabilidade além da esfera parental, se
estende também ao âmbito político, por isso mesmo, vimos que ele propõe a responsabilidade
política como segundo modelo paradigmático, a partir do qual torna-se possível pensar a ética e
com isso reconduzir ao caminho de busca pela teleologia.
REFERÊNCIAS
ARALDI, Clademir. O niilismo como doença da vontade humana. IHU On-Line. Revista do
Instituto Humanistas Unisinos, São Leopoldo, 20 de dezembro de 2010 Edição 354.
HUXLEY, Alduos. O Admirável mundo novo. Lisboa, Portugal, Ed. Antígona, 2013, p. 307.
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para uma civilização
tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto, PUC Rio, 2006.
––––––. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. Trad. Grupo
de trabalho Hans Jonas da ANPOF. São Paulo, Paulus, 2013.
LIMA VAZ, Claudio Henrique. Escritos de filosofia VII: Raízes da Modernidade. São Paulo,
Loyola, 2002.
NEDEL, José. Ética da Responsabilidade segundo Hans Jonas. In: Ética Aplicada. São
Leopoldo: Unisinos. 2006, p. 146-147.
RICOEUR, Paul. Ética e Filosofia da Biologia em Hans Jonas. In: Leituras 2: A região dos
filósofos. SP: Edições Loyola, 1996, p. 229-244 [p. 229].
VATTIMO, Gianni. Morte de Deus e fim da metafísica: a luta contra os absolutos. IHU
On-Line. Revista do Instituto Humanistas Unisinos São Leopoldo, 20 de dezembro de 2010
Edição 354.
VOLPI, Franco. O Niilismo. São Paulo, Edições Loyola. Trad. Aldo Vannucchi, 1999.
1. Nos dois últimos, Jonas propõe duas questões: a primeira sobre a possibilidade da filosofia especulativa (17) e
sobre a relevância de se saber da existência de outras formas de vida inteligente no universo (18).
INTRODUÇÃO
Para iniciar nossa exposição, é preciso evocar o contexto da obra Matéria, Espírito e Criação,
exposto em seu Prefácio, lembrando que o seu principal mote foi um “rascunho” sobre o tema
cosmos e o segundo axioma principal enviado a Jonas por seu amigo Max Himmelheber, para sua
apreciação.
Partindo dessa motivação inicial, Jonas buscará explicar a tendência da matéria para criar
das formas inferiores às superiores, ou seja, os organismos (desde os mais simples, até os mais
complexos). Ele considera ser esse o primeiro passo para uma concepção cosmológica mais
elaborada.
A hipótese defendida por Himmelheber é a de que no momento original do universo
(identificado à explosão primordial), além da energia total do cosmos, surgiu também a informação,
que Jonas, recorrendo à tradição grega, identifica ao logos cosmogônico, que ele entende como
complementar ao conceito de eros cosmogônico, proposto por Ludwig Klages.
Jonas, inicialmente, apenas pretendia discordar do uso feito dos conceitos de informação
ou logos por meio de uma breve carta e não responder com um ensaio inteiro. Mas, sem perceber,
ao buscar esboçar uma contraposição aceitável, foi conduzido a uma especulação cosmogônica,
no interior da qual se articularam “décadas de reflexões sobre ontologia e filosofia da natureza”
(MEC, p. 10).
A breve carta cedeu lugar, assim, ao ensaio Materie, Geist und Shöpfung [Matéria, Espírito e
Criação (MEC)], cujo motivo inicial explica o fato de ele começar pela contestação de uma
hipótese. A partir daí segue, porém, um caminho próprio, retomando reflexões anteriores que,
após longo período, voltariam a incitar o pensador.
Nesse ínterim, o “rascunho” inicial de Himmelheber ganhou forma no artigo intitulado
“Die Trinität der Natur”, publicado em 1988, no número 18 da revista Scheidewege, onde Jonas
também publicou uma versão abreviada do MEC que, em maio do mesmo ano, ele proferiu
como a terceira palestra do Congresso Internacional “Espírito e Natureza”, realizado em
Hanover.
Acerca do MEC, Jonas faz três considerações prévias relevantes. A primeira refere-se ao
fato de seu tema central ter sido trabalhado mais detalhadamente em outros textos, que ele
indicará ao longo do escrito, sempre que necessário.
A segunda refere-se à sequência das palavras do título: matéria, espírito e criação que
refletem o curso de sua investigação, da qual resultaram os 18 artículos que compõem o volume,
divididos, vale lembrar, da seguinte forma: os dois primeiros discutem o conceito inicial do título
(a questão da matéria), os três seguintes, a noção de espírito; do 6 ao 16 Jonas se dedica à reflexão
sobre Deus e, nos dois últimos, ele aborda duas questões de naturezas distintas, mas igualmente
complexas: a primeira sobre a possibilidade da filosofia especulativa (17) e a segunda sobre a
relevância de se saber se existem outras formas de vida inteligente no universo (18).
A terceira e última consideração prévia feita por Jonas refere-se ao aspecto metodológico, e
ele afirma que
Na exposição dos dados cosmológicos, portanto, avançamos do externo para o
interno, e isto que dizer, desde o ponto de vista da história do ser, do anterior
para o posterior; do ponto de vista quantitativo, do mais frequente para o mais
raro; do ponto de vista estrutural, do mais simples para o mais complexo e, em
termos de apreensão, do ver e sentir para o pensar – e deste pensar, enquanto
mais interno, mais raro, e mais tardio, retornamos àquilo que é primeiríssimo,
precedendo, inclusive, a matéria: dos dados cosmológicos para a conjectura
cosmogônica... (MEC, p. 11)2
1) O SURGIMENTO DA MATÉRIA
Ainda no Prefácio à obra MEC, Jonas antecipa a perspectiva a partir da qual sustentará sua
posição para contestar a tese de Himmelheber, ao dizer: “Na exposição dos dados cosmológicos,
o fator evolutivo é decisivo e, em relação à substância do mundo (Weltmaterie), sempre igual e
subjacente a tudo” (MEC. p.11).
Essa premissa inicial levanta, porém, uma questão primordial, assim por ele formulada: “a
partir de que princípio de progresso pode ser explicada a sua evolução, cósmica em geral e só
depois especificamente terrestre, até as formas mais sutis do mundo orgânico?” (MEC. p.11).
Jonas reforça a dificuldade da questão acima, apontando o fato desconcertante de que, seja
qual for o princípio que tenha iniciado esse longo processo de evolução, ele o fez contrariando a
“lógica” entrópica, que conduz necessariamente da ordem ao caos. Razão pela qual ele declara:
“O enigma aí é a direção fisicamente improvável, e antientrópica, do caos para a ordem (só a
[direção] inversa é provável)”. (MEC. p. 11)
2. Esse percurso metodológico que Jonas adota faz lembrar a „regra de ouro‟, proposta por Descartes em seu célebre
Discurso sobre o método, ou seja, a terceira regra ou síntese, etapa em que se deve conduzir a investigação do mais simples
para o mais complexo, do que é mais concreto ao que é mais abstrato.
Em seguida, para finalizar o prefácio, Jonas explicita a questão que está na raiz dessa
reflexão. Trata-se da utilidade do conceito de “informação”, que ele aqui identifica à ideia de
programação, a qual já estaria, segundo Himmelheber, presente no “substrato material do mundo
(Weltstoff)”, pois, teria surgido na “explosão primordial” e estaria a conduzir “a marcha evolutiva
do vir-a-ser do cosmos” (MEC. p.11), desde as partículas elementares às organizações mais
complexas.
Cabe notar que temos aqui retomada a questão inicial da filosofia concernente à arqué. Não
como a maioria dos pré-socráticos a entendiam, como a busca pelo elemento primordial, mas,
como vista por alguns, entre os quais Heráclito, como a busca pelo princípio elementar que gerou
o movimento originário de tudo.
Por isso, não sem razão, como já mencionado, Jonas identifica essa “informação” original
ao conceito grego de “logos cosmogônico”. O que explica, portanto, o título do primeiro capítulo
- “Logos cosmogônico? Por que não se pode admitir uma „informação‟ na matéria primordial” -
que fornece, simultaneamente, a pergunta e a resposta propostas por ele.
De saída, Jonas aponta a principal característica que identifica na “informação” para
justificar sua recusa, dado que, a seu ver, ela “já requer por si mesma, como seu substrato físico, um
sistema diferenciado e estável, tal como o é o sistema molecular completamente articulado e constante do
genoma dos seres vivos (ou do mesmo modo, em termos magnéticos, a programação – o software – do
computador).” (MEC. p.13. Grifos nossos)
Desse modo, o conceito de informação, como Jonas esclarece, não é causa, mas
consequência, resultado, efeito de um tipo de organização prévia, que “se perpetua, mas não se
sobreleva” (MEC. p.13). Isso equivale a dizer que a informação, gerada no interior de um sistema,
pode se conservar, mas, jamais prescindir ou ser anterior ao próprio sistema que a tornou
possível.
Além disso, Jonas adverte que as duas exigências, grifadas acima, para a produção da
informação: articulação e estabilidade, não podem ser pressupostas no instante de “total
indiferenciação e total dinâmica da (hipotética) „substância‟ da explosão primordial – ou de modo geral, no
„caos‟ – a hipótese de um logos cosmológico ou, de outro modo, toda programação preestabelecida e plano
rigoroso, residindo já desde o início no interior da matéria nascente, é descartável como um modelo
explicativo da evolução”. (MEC. p.13) Sobretudo, porque, como Jonas assinala, toda informação
exige uma acumulação (para sua articulação e estabilidade) que não pode ser pressuposta no
instante da “explosão primordial”.
Assim, ele constata que o conceito de “informação” fracassa tanto do ponto de vista
lógico, quanto do ponto de vista “genético”, ou seja, com relação à gênese do processo evolutivo
que ela deveria elucidar, pois ela não é capaz de explicar “além de si mesma. Para isso, é
necessário um fator transcendente que seja algo adicional e conduza ao novo. [Jonas, então, se
pergunta:] O que pode ser esse fator?” (MEC. p.14).
Ele antecipa sua inclinação a considerar que “por um lado, isso acontece de um modo mais
trivial e anárquico, por outro, de um modo mais misterioso do que é sugerido pelo conceito de
informação ou logos, em si mesmo tão compreensível, postulado retroativamente desde o resultado, mas
em última instância determinístico. O primeiro aspecto se refere ao lado físico, e o outro, ao lado mental”.
(MEC. p.14)
Nesse sentido, Jonas defende que esse princípio ou “fator transcendente” originário não
pode ser a informação ou o logos pelo simples fato de que, se assim fosse, todo o processo
posterior teria sido determinado, conduzido inteiramente por essa „mensagem prévia‟ e ele
entende que todo movimento se deu de forma “trivial, anárquica” (na dimensão física: da matéria) e
“misteriosa” (na dimensão mental: do espírito).
O que nos leva ao capítulo 2, em que Jonas apresenta “A alternativa ao logos – Do caos à
ordem através da seleção natural”. E no qual, mais uma vez, encontramos já no título a posição
que será defendida por ele.
Assim, partindo daquele momento inicial, identificado ao caos, ou como Jonas o apresenta
“do desorganizado e sem propósito no vir-a-ser da organização natural”, ele acrescenta que “o
fundamento de toda organização na natureza, quer dizer, de uma natureza em geral, encontra-se
nas leis de conservação.” (MEC. p.15)
Jonas esclarece que tais leis se impuseram graças ao fato tautológico de que “apenas aquilo-
que-se conserva (Sich-Erhaltende) conserva a si mesmo”. Ademais, a própria “regularidade da natureza” é
um efeito “universal” da seleção que, a partir de então, estipula “as regras para as novas seleções, mais
específicas e locais.” (MEC. p.15)
Portanto, a origem das próprias leis da natureza remonta ao instante em que, no interior do
“não regular”, se precipitaram as primeiras “entidades estáveis, relativamente duradouras, que se
comportam sempre (ou por longo tempo) da mesma forma e, desse modo, „se impõem‟.” (MEC. p.15) O
que representa, para Jonas, o exemplo mais primordial da sobrevivência do mais apto.
Isso significa que “A ordem é mais bem-sucedida que o caos.” (MEC. p.15) Pois, aquilo que
não obedece a qualquer regularidade pode, em algum momento, ganhar existência, mas sucumbe,
mais cedo ou mais tarde, devido à sua própria fugacidade. Enquanto o que é regular se mantém e
vem a predominar. De modo que, de novo tautologicamente, “o transitório dá lugar ao
duradouro exatamente por causa de sua transitoriedade.” (MEC. p.15).
Jonas atribui, assim, à lei da conservação o processo de “formação e proliferação dos prótons
e, com eles, o domínio da gravitação e da mecânica; dos átomos de hidrogênio até o aparecimento dos
elementos da tabela periódica e da química (inclusive a beleza dos cristais), em suma o reino da matéria”.
(MEC. pp.15-16.)
Todavia, Jonas reconhece que, tendo como origem o que é transitório, mesmo essas
partículas elementares, embora extremamente duradouras, são também transitórias. Pois, ainda
que seus “ciclos” se estendam imensamente como aqueles, por exemplo, das galáxias, das estrelas,
dos sois e mesmo os da própria Terra, em algum momento, todos eles terão fim.
Isso levaria à incômoda questão: “para que então a evolução?” (MEC. p.17). Já que é para
acabar, por que o cosmos não se conteve com aqueles elementos duráveis, mas “evoluiu” em
direção às formações mais complexas, mas, também, mais “instáveis”? Jonas recorre a Darwin,
(seu grande inspirador nessa reflexão) para responder que: “sempre permanece „desorganização‟
suficiente para, ao acaso cego e isolado, somarem-se novas características (fatores estruturais) às
formações existentes, ficando os acertos momentâneos sujeitos ao processo de seleção da evolução com
seu critério meramente diferencial-numérico de sobrevivência.” (MEC. p.17).
O mais relevante é, porém, o que vem a seguir, quando Jonas afirma: “Este é o „fator
transcendente‟ requerido que conduz ao novo e então ao superior – sem pré-informação, sem logos, sem
plano, e até mesmo sem impulso, mas apenas através da susceptibilidade de uma organização dada, que já
é codificada de „informação‟, à desorganização circundante que se lhe impõe como informação adicional”.
(MEC. p.17).
Dito de outra maneira, Jonas encontra no mecanismo da seleção natural o fator transcendente
que “age” de modo trivial e aleatório, “organizando” o caos para criar novas formas, deixando
sempre um resto de indeterminação prenhe de novas possibilidades.
Com esse “fator”, Jonas pondera, seria possível, explicar a progressão dos níveis mais elementares
da matéria “até as formas de vida (...) mais complexas e sutis” se, como propôs Descartes, “elas não
fossem mais que autômatos mecânicos”. (MEC. pp. 17-18).
Todavia, como Jonas ressalta, “elas não são isso, mas algo mais” e a própria atividade de reflexão
que está em curso, assinala um aspecto improvável, mas, paradoxalmente, inegável que vem a ser: a
interioridade, ou subjetividade ou, ainda, consciência. E cujo surgimento, embora não possa ser explicado
nem mesmo pela “mais completa e contínua descrição objetiva do cérebro, mesmo em suas estruturas
mais finas e modos de funcionamento”, segundo Jonas, será preciso “incluir ... em nossa imagem do
universo, ... uma vez que ela tem origem no curso dos eventos naturais e aparece em forma natural...”
(MEC. p. 18).
Eis o grande enigma que Jonas espera, então, enfrentar nos três próximos capítulos e sobre o que
nos deteremos na segunda parte de nossa exposição.
2) DA CONSCIÊNCIA AO ESPÍRITO
Sua rejeição ao dualismo não significa, porém, sua adesão a um monismo que tende ao
puro materialismo suprimindo a alma, o espírito e a consciência do fenômeno vida, restringindo-
se a processos “físicos” que ocorrem no cérebro.3
Jonas reconhece que esse monismo tem ainda mais problemas que o dualismo, mas, ainda
assim, pretende buscar uma solução monista para tal “enigma, já que a voz da subjetividade nos
animais e nos seres humanos emergiu dos mudos torvelinhos da matéria e a ela continua a se ligar.”
(MEC. p. 21).
Desse modo, apesar da grande dificuldade da questão e de seu alto teor especulativo, Jonas
não se intimida e prossegue afirmando que
é a própria substância do mundo que, ao tornar-se interior, ganha, com isso
expressão. (...) O que parece necessário, então, para a solução monista, é uma
revisão ontológica, uma renovação do conceito de matéria para além da
mensurabilidade exterior da física e que introduza novamente aqueles
conteúdos que foram extraídos dela – portanto, uma meta-física do substrato
material do mundo. (MEC. pp. 21-22).
Contudo, ele esclarece que oferece apenas uma exposição conjetural com o objetivo de
submeter suas proposições, resultantes de décadas de reflexão, a exame.
Assim, já no início do capítulo 4, intitulado “Em que o dado da subjetividade contribui
para os dados cosmológicos?”, Jonas afirma que “o mínimo que devemos conceder à matéria que se
desenvolveu a partir da explosão primordial, tendo em vista o que, por fim, surgiu depois, é uma
disposição original com a possibilidade eventual de interioridade – não uma disposição com interioridade,
nem mesmo uma disposição para a interioridade no sentido de já estar preparada para ela.” (MEC. p. 23).
Ou seja, ele explicita que a “potencialidade para algo” não pode ser confundida com o “ser-
disposto para algo” que pressupõe uma orientação prévia para uma “certa direção”. Assim, a
explicação de Jonas mantém-se modesta o suficiente para afirmar simplesmente que “a emergência
de uma dimensão interior quando e onde quer que tenha ocorrido, e de sua existência real e presente em
nós, é apenas o resultado quase trivial de que essa dimensão era „possível‟ segundo as características da
matéria como originalmente „criada‟.” (MEC. p. 23).
Aqui, porém, a reflexão se complexifica, pois, conduz a duas questões desconcertantes:
“quem (ou o quê) „dispôs‟ a matéria de tal maneira? E: que porção teve essa „disposição‟ no curso dos
acontecimentos do mundo?” (MEC. p. 24) Estamos, aqui, diante da questão relativa à “vontade
criadora” e de sua ação posterior no mundo.
Jonas pede cautela quanto ao uso do termo „vontade‟ atribuído à causa primeira, mas, ainda
assim, sustenta que é impossível supor que algo não indiferente (como a subjetividade) tenha se
3. Posição que, atualmente, tende a prosperar, pois há toda uma corrente da neurociência que, como se sabe, se
ocupa precisamente de estudos que visam explicar até mesmo o “comportamento ético”, unicamente, através das
operações neuronais, a chamada “neuroética”.
originado de algo completamente “indiferente e neutro”. (MEC. p. 24). É preciso supor, ao menos,
uma espécie de “preferência favorável” já no “cerne da matéria”, mesmo que sem um “plano”
pré-determinado (o que foi de antemão descartado), mas como uma “tendência, um anseio, que se
aproveita da oportunidade de uma causalidade do mundo e logo a leva adiante.” (MEC. p. 24). E aqui
Jonas oferece uma alternativa, quase poética, ao dizer que “um eros cosmogônico se aproxima mais
da verdade do que um logos cosmogônico”. (MEC. p. 24).
Ainda assim, ele afirma que todo o movimento se segue entregue ao acaso e, apesar do
improvável, sempre que as condições favoráveis (como a vida no planeta Terra) se oferecem, a
disposição se manifesta e se faz ato (para usar, aqui, uma terminologia aristotélica!). Desse modo,
não é o puro acaso que está em jogo no improvável fenômeno de surgimento da vida.
Essa explicação jonasiana faz eco com algumas explicações pré-socráticas (como as de
Empédocles, Heráclito e Parmênides) que atribuem às divindades (do Amor e do Ódio) a ação
inicial que reuniu ou separou os elementos para a constituição do cosmos. Mas, também, se
aproxima à noção freudiana de Eros e Tânatos, como pulsão (impulso) de vida e pulsão de morte.
Tais aproximações, talvez, possam tornar mais compreensível a afirmação de Jonas de que
“a vida é um fim para si mesma” [quase que por esse „impulso‟ que a projeta e conduz]. Sendo
“um fim que se quer e se persegue ativamente”. (MEC. p. 25).
Nesse sentido, Jonas pode, então, declarar que “desde a origem, a matéria é subjetividade
em estado latente, ainda que éons¸ somados a uma sorte excepcional, tenham sido necessários para
a atualização desse potencial.” (MEC. p. 24). Ele acrescenta que o testemunho da vida nos abre
um caminho em direção à teleologia.
Ele resume todo o seu argumento, até aqui, dizendo que estando a finalidade presente nos
seres vivos, inicialmente de forma subjetiva, para se efetivar objetivamente e causal, ela não pode
estar ausente na natureza, de onde ela emerge. Daí, Jonas pode extrair não apenas a presença de
fins na natureza, mas a própria dimensão do valor.
Jonas ressalta ainda que toda essa reflexão foi possível sem recorrer a uma transcendência,
apenas à “voz da imanência que fala por si mesma.” (MEC. p. 27).
Todavia, até o momento, o espírito, propriamente dito, ainda não emergiu e é no capítulo 5
que ele vai discutir a interessante questão da “Liberdade transcendente do espírito”.
Jonas começa explicitando que quem está realizando essa reflexão somos nós mesmos ou,
melhor, o nosso pensamento [lembramos aqui o cogito cartesiano]. Assim, “ao testemunho vital é
acrescido o testemunho antrópico e, com isso, certamente se abre um horizonte de transcendência”
(MEC. p. 29), que se manifesta triplamente na “liberdade do pensar”: 1) Liberdade de
autodeterminação do pensamento (ele próprio define sobre o que pensar). 2. Liberdade de transformar o
dado sensível em uma imagem interior (liberdade inventiva da imaginação) e 3) Graças à linguagem:
liberdade de ir além de tudo o que é predeterminado: da existência para a essência, do finito para o
infinito, do temporal para o eterno, etc.” (MEC. p. 29).
Jonas declara, a seguir que “Todas as três liberdades são prerrogativas exclusivas do espírito que
apontam para o „transanimal no homem‟.” (MEC. p. 30).
E, com essa reflexão, Jonas oferece uma interessante concepção acerca da emergência do
espírito, a partir do despertar da consciência que emergiu, por sua vez, da evolução das formas
vivas, tornadas possíveis pela explosão primordial que ofereceu a matéria-prima para formar tudo
o que existe no universo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para fechar essa exposição, é preciso apontar que não serão apresentadas aqui, como seria
de se esperar, uma conclusão nem mesmo considerações finais, no sentido de um arremate
definitivo da discussão proposta. Pois, isso implicaria a abordagem dos demais opúsculos do
MEC, o que não foi possível dada a limitação de tempo para preparar e apresentar toda a
complexa reflexão ali oferecida por Jonas.
Desse modo, como apenas os dois primeiros temas - matéria e espírito - foram então
focalizados, o que se propõe, por ora, são mais exatamente meras „considerações parciais‟ acerca
da cosmologia jonasiana, brilhantemente sintetizada no MEC.
Além de parciais, tais considerações pretendem apenas retomar e sumariar o que Jonas
abordou nos cinco primeiros ensaios, visando a preparação para uma futura exposição dos
demais ensaios que compõem o volume. Sendo assim, vimos que:
No primeiro ensaio, - “Logos cosmogônico? Por que não se pode admitir uma „informação‟
na matéria primordial” -, já no título, Jonas propôs, simultaneamente, uma pergunta e a resposta à
tal questão. A premissa que ele assentou foi a de que o traço principal de toda informação é
requerer um sistema diferenciado e estável, como seu substrato físico. Destarte, ele defendeu que,
para haver uma informação, é necessário um sistema organizado no interior do qual tal
informação possa ser constituída.
Nesse sentido, o conceito de informação, como Jonas esclareceu, não é causa, mas
consequência, resultado, efeito de um tipo de organização prévia. E como as duas exigências para
a produção da informação: articulação e estabilidade, não podem ser pressupostas no instante
totalmente indiferenciado e caótico da explosão primordial, “a hipótese de um logos cosmológico ou,
de outro modo, toda programação preestabelecida e plano rigoroso, residindo já desde o início no interior
da matéria nascente, é descartável como um modelo explicativo da evolução”. (MEC. p.13)
Esse grande enigma foi enfrentado por Jonas nos três capítulos seguintes e a eles foi
dedicada a segunda parte de nossa exposição.
No capítulo 3, intitulado exatamente “O enigma da subjetividade”, Jonas iniciou a reflexão
acerca do surgimento da consciência e da sua relação com o seu substrato material; retomando,
ali, um dos mais intrincados problemas filosóficos, pois, embora a consciência seja um dado
empírico, não há nada de antemão na matéria que permita explicar o seu advento. Ainda assim,
nosso autor assinalou que ela não pode, simplesmente, ser acrescentada post factum. Logo, era
preciso descobrir o que, desde o início, tornou possível a emergência da consciência.
Ademais, nada há em comum entre a “extensão” e a “consciência” (res extensa e res cogitans)
e, apesar disso, “elas existem juntas, não apenas uma ao lado da outra, mas de forma
interdependente, uma interagindo com a outra e, (...) de forma inseparável (pois não temos qualquer
experiência de um espírito sem corpo).” (MEC. p. 20).
Jonas se deparou, então, com o clássico problema cartesiano, reconhecendo que ele já está
presente desde Platão e que, ao longo da tradição, as inúmeras tentativas de solucioná-lo podem
ser divididas em duas tendências básicas: as monistas e as dualistas. Ele fez críticas às duas
posições, mas, assumiu que sua própria concepção tenderia mais ao monismo, ainda que não de
tipo radical, e que para superar a separação, então, intransponível entre res extensa e res cogitans seria
preciso uma revisão ontológica da dimensão material, reduzida por Descartes e pela Física à sua
mensurabilidade.
No capítulo 4, intitulado “Em que o dado da subjetividade contribui para os dados
cosmológicos?”, Jonas sugeriu que para explicar o advento da consciência, devemos, ao menos,
atribuir à matéria resultante da explosão primordial, “uma disposição original com a possibilidade
eventual de interioridade – não uma disposição com interioridade, nem mesmo uma disposição para a
interioridade no sentido de já estar preparada para ela.” (MEC. p. 23).
Ele quis distinguir entre a “potencialidade para algo” e o “ser-disposto para algo” que
pressupõe uma orientação prévia para uma “certa direção”. Assim, sua explicação se manteve
modesta o suficiente para afirmar simplesmente que “a emergência de uma dimensão interior quando
e onde quer que tenha ocorrido, e de sua existência real e presente em nós, é apenas o resultado quase
trivial de que essa dimensão era „possível‟ segundo as características da matéria como originalmente
„criada‟.” (MEC. p. 23).
Porém, tal suposição tornou ainda mais complexa a discussão ao precipitar duas questões
desconcertantes: “quem (ou o quê) „dispôs‟ a matéria de tal maneira? E: que parcela teve essa
„disposição‟ no curso dos acontecimentos do mundo?” Ou seja, emergiu o problema relativo à
“vontade criadora” e de sua ação posterior no mundo.
E, embora pedindo cautela quanto ao uso do termo „vontade‟ atribuído à causa primeira,
Jonas ofereceu uma alternativa, quase poética, ao dizer que “um eros cosmogônico se aproxima mais
da verdade do que um logos cosmogônico”. (MEC. p. 24). Ele ressaltou ainda que realizou toda essa
reflexão sem recorrer a uma transcendência, apenas à “voz da imanência que fala por si mesma.”
(MEC. p. 27).
Contudo, até aqui, não se explicou a emergência do espírito, propriamente dito, e foi no
capítulo 5 que ele discutiu a relevante questão da “Liberdade transcendente do espírito”.
Jonas começou lembrando-nos que quem está realizando essa reflexão somos nós mesmos
ou, mais exatamente, o nosso pensamento [semelhantemente ao argumento do cogito cartesiano].
Desse modo, à dimensão vital foi acrescentada a dimensão antrópica com o que se abriu,
necessariamente, “um horizonte de transcendência” (MEC. p. 29), que se manifesta na tripla
“liberdade do pensar”, assim especificada: “1) Liberdade de autodeterminação do pensamento (ele
próprio define sobre o que pensar). 2. Liberdade de transformar o dado sensível em uma imagem interior
(liberdade inventiva da imaginação) e 3) Graças à linguagem: liberdade de ir além de tudo o que é
predeterminado: da existência para a essência, do finito para o infinito, do temporal para o eterno, etc.”
(MEC. p. 29)
E como Jonas ressaltou, “Todas as três liberdade são prerrogativas exclusivas do espírito que
apontam para o „transanimal no homem‟.” (MEC. p. 30).
Desse modo, por meio dessa brilhante especulação, Jonas demonstrou como se deu o
surgimento da matéria (no plano físico e químico), a emergência da consciência (na esfera
biológica) e o despertar do espírito (na dimensão antrópica), sem recorrer a qualquer
transcendência.
Porém, nos capítulos seguintes (6 a 16), ele dará um passo ainda maior em seu percurso
especulativo e enfrentará a árdua questão teológica, na longa reflexão dedicada ao terceiro termo
do título, isto é, a Criação.
Embora a questão intrigante de saber como ele conciliará a reflexão que evitou todo
recurso à transcendência com a hipótese da criação instigue nossa curiosidade, a resposta ficará
para outra oportunidade e, a quem não puder se conter até lá, fica o convite à leitura dessa
cativante obra jonasiana.
REFERÊNCIA
JONAS, Hans. Matéria, Espírito e Criação. Petrópolis: Vozes, 2010.
The Cross Paths between Ethic and Metaphysics in the Responsibility Concept
ABSTRACT: The present article, in fact a pre-project of PhD, looks to know the status of
Responsibility in the scope metaphysical ethic of the work of Hans Jonas, specifically The Principle
Responsibility. The elementary of that search is the the question of how happens that relation
between that is ethical and that is metaphysical, for to scrutinize the place of the ends in the
Being, establishing Immanent ends, and after that, when making the passage of the ism of ends
to the ism of value, establishing that what has immanent value; when reallocate the Man in the all
of life starting from a new interpretation about the organism, the Responsibility resize the man in
his relation with the world and himself. The pre project ask for what metaphysic is this that
generates an ethics of Responsibility; how it happens that relation between ethic and metaphysic
and how it sustain itself.
KEYWORDS: Deontology; Responsability; Hans Jonas; Technic; Ethic.
1JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução
de Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: ed. PUC-RJ, 2006, p.26
Em sua relação com a natureza (mundo natural), por outro lado, a situação se inverte.
Partindo de um paradigma ético, o “exemplo da antiguidade”, exemplar no famoso canto do coro
trágico de Antígona, peça teatral de Sófocles, Jonas demonstra que nessa antiguidade longínqua o
homem ao mesmo tempo em que se pronunciava de um modo bastante altivo quanto ao poder
de sua ação, permanecia ainda submetido a um poder infinito do próprio mundo natural: “O que
ali não está dito, mas que estava implícito para aquela época, é a consciência de que, a despeito de
toda grandeza ilimitada de sua engenhosidade, o homem, confrontado com os elementos,
continua pequeno”2.
Criatura admirável, mais admirável dentre todas, o homem não dispunha de condições de
se alçar sobre esse dito mundo natural, e isso sequer era colocado sob suspeita. Os recursos não
eram esgotáveis e os ciclos não eram alterados3.
Como dissemos, essa relação se inverte no mundo contemporâneo. Os caminhos que
conduzem a esta alteração não podem ser alienados de um estudo que se pergunta por uma ética
contemporânea. Os questionamentos acerca da técnica envolvem o lugar que o homem coloca a
si próprio no interior do mundo natural; o lugar e o status que o mundo natural ocupa na sua
compreensão acerca do agir, do saber e do poder. Em suma, há toda uma nova dimensão que se
descortina a partir da constatação disso que Jonas chama de “natureza modificada do agir
humano”:
já que a ética tem a ver com o agir, a consequência lógica disso é que a natureza
modificada do agir humano também impõe uma modificação da ética. E isso
não somente no sentido de que os novos objetos do agir ampliaram
materialmente o domínio dos casos aos quais se devem aplicar as regras de
conduta em vigor, mas em um sentido muito mais radical, pois a natureza
qualitativamente nova de muitas das nossas ações descortinou uma dimensão
inteiramente nova do significado ético, não prevista nas perspectivas e nos
cânones da ética tradicional.4
De algum modo a ação humana atingiu um poder e uma capacidade de gerar efeitos que o
mundo natural finalmente se mostrou frágil ante a tal ação. O instrumento para esses efeitos é o
que chamamos tradicionalmente de técnica: o universo tecnológico é o reino da técnica que
submete a natureza e os homens a seu poder. De algum modo a técnica como instrumento dá
lugar a uma tecnologia autômata e é ela quem determina o seu próprio progresso.
O nosso autor nos fala, no segundo capítulo, de uma “dinâmica cumulativa dos
desenvolvimentos éticos5”. Essa constatação se soma a outra, que remete ao perigo exposto da
evolução tecnológica que é inversamente proporcional à evolução natural: a de que a cada passo
2 Id.Ib., p.29
3 Id.Ib.,p.32
4 Id.Ib., p.32
5 Id.Ib., p.78
dado pelo progresso técnico, mais abismal se tornam suas relações. Além de serem irreversíveis
os avanços, eles são cumulativos, isto é, eles cobram mais e mais rigor tecnológico para o passo
seguinte. Talvez seja nessa medida que Jonas constate que o grande perigo do mundo
contemporâneo não esteja do lado do seu fracasso, mas justamente de seu sucesso, e por isso
exige de nós uma certa humildade, uma humildade que reconheça o poder supremo de nossas
ações. É que se na antiguidade o poder de nossas ações cobrava dos pensadores uma ética
imediata, sem refletir sobre um longo alcance da ação – simplesmente porque esses efeitos longos
inexistiam -, o mundo contemporâneo da tecnologia nos exige uma nova ética, e não basta a ela
apenas hiperdimensionar os efeitos ativos da humanidade e de sua tecnologia, mas de se valer de
uma profunda pergunta metafísica e que gere consequentemente um sentimento de
responsabilidade desse homem contemporâneo.
Jonas ao apresentar essa natureza modificada do agir e situar um poder de intervenção
que atue numa esfera global, não está apenas hiperdimensionando o objeto de reflexão ética, mas
atravessando campos de saberes supostamente distintos, ou seja, saindo da ética, que
tradicionalmente coloca a pergunta do agir (o que fazer, como fazer) para o âmbito da metafísica
(qual o fundamento para determinada ação). É isso o que o próprio Jonas diz após apresentar a
natureza modificada do agir humano: “estender a reflexão sobre as alterações mencionadas e
avançar além da doutrina do agir, ou seja, da ética, até a doutrina do existir ou seja, da metafísica,
na qual afinal toda ética deve estar fundada6”.
Portanto, para elucidarmos aquele terceiro ponto, que foi de onde partimos, o autor de
The Phenomenon of Life constata um poder de causar efeitos muito superior a tudo o que já fora
pensado por todas as éticas e conjunto de valores tradicionais. Mas a incrível capacidade
hiperdimensionada gera não somente que se tenha também uma atenção hiperdimensionada de
seus efeitos. É preciso reconhecer que o poder de atuação do mundo tecnológico atual faz cair
sobre os nossos braços a decisão pela consequência, uma decisão que envolve uma amplitude de
decisão não mais ao que as éticas tradicionais elegeram como seus objetos: o próprio homem,
não apenas somente o homem, mas o homem de agora, da relação imediata, ao “círculo imediato
da ação7”. É justamente o Bem que agora assume outra significação e que precisa ser indagado
tendo em vista que o objeto da ação humana não mais se delimita ao imediato do efeito
individual. O filósofo alemão entende que o caminho para se elucidar esse dilema ético é chegar
aos questionamentos da doutrina metafísica, que é o que se pergunta e decide acerca da existência
das coisas em geral. Assim, passamos do terceiro ponto ao segundo. Note-se que ainda não
mencionamos qualquer hipótese ao dever.
6 Id.Ib., p.42
7 Id.Ib., p.36
Mas há algo que precisa ser esclarecido e que de certa forma antepõe o que virá a seguir.
Antes mesmo de fundamentar a ética, Jonas dedica todo um capítulo a “Questões de Princípio e
Método”, e é neste capítulo que se estabelece a “heurística do Temor8”. A reflexão sobre o Bem
elege para si próprio uma delimitação. Cito Jonas: “o reconhecimento do malum é infinitamente
mais fácil do que o do bonum, é mais imediato, mais urgente, bem menos exposto a diferenças de
opinião; acima de tudo, ele não é procurado”9.
O contexto de reflexão da citação acima é o futuro como problema. O núcleo de onde
brota toda a questão da teoria da Responsabilidade é a possibilidade, não mais virtual, de
aniquilamento de espécies inteiras, é o sentimento apocalíptico de aniquilação. A heurística do
temor é:
É uma passagem crucial nessa teoria ética, pois a fundamentação dessa metafísica
estabelecida por Jonas de algum modo elege seus objetos a partir de um elo afetivo, porém não
pelo caminho do desejo, mas do temor, o que para o autor é motivo de um importante
questionamento. É um passo importante na teoria da Responsabilidade, onde Jonas precisa
refutar, sobretudo, Kant. Cabe lembrar ainda que uma heurística do Temor cobra dessa ética um
comprometimento teórico, um conhecimento, que, no entanto, não se limita ao científico. Cito o
autor:
Dissemos que a verdade nele [do dever] buscada seria uma questão de
conhecimento científico: pois, assim como os empreendimentos (cujas
consequências posteriores devemos conhecer pela extrapolação) só se
viabilizam por meio da ciência, da mesma forma essa extrapolação requer, no
mínimo, o mesmo grau de ciência utilizado nos próprios empreendimentos.
Entretanto, ela exige de fato um grau maior. Pois o que basta para um
prognóstico de curto prazo, intrínseco a todas as obras da civilização técnica,
não pode bastar para o prognóstico de longo prazo almejado na extrapolação
requerida pela ética. A certeza de que desfruta a primeira, e sem a qual a
empresa tecnológica inteira não poderia funcionar, encontra-se para sempre
recusada à outra11.
8 Segundo as indicações de Wendel Evangelista, a palavra adequada para se utilizar é “Temor”, e não “Medo”.
9 Op.cit. 2006. P. 71
10 EVANGELISTA, Wendel. A Fundamentação Metafísica do Princípio Responsabilidade em Hans Jonas. 2008. 140 f.
Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Belo Horizonte. <Disponível em
http://www.faculdadejesuita.edu.br/documentos/180915-K9SrJvvkVEd.pdf acessado em 05 julho 2016>. P.103
11 Op.Cit. 2006, p.73
12KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução, introdução e notas de Guido Antônio de
Almeida. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009 (Coleções Philosophia), Prefácio
Manter distante a moral e a vida a não confundi-los permite que estejamos seguros de que
Jonas escapou de algumas falácias, entre elas a falácia naturalista, elucidada por Hume, que
estabelecia uma impossibilidade de se passar da ontologia para a axiologia, devido à natureza
diferentes do objeto ontológico e moral, respectivamente. A falácia naturalista é caso para
discussão, e não podemos nos esquivar dela no itinerário de nossa pesquisa. Prossigamos:
17 Op.Cit.2006, p.136
18 Op.Cit. 2006, p.146
19 É o que eu explico em meu único artigo publicado sobre o autor: “O nome deste ensaio e, portanto, o nome dessa
ética para esta tal civilização tecnológica clama por uma responsabilidade e a clama de uma maneira que precisaremos
refletir. Por que Princípio Responsabilidade e não meramente e usualmente Princípio da Responsabilidade? Entre o
uso e o não uso da preposição é possível notar uma concepção do tema proposto. Vejamos: Se disséssemos da
Responsabilidade a preposição conferiria ao termo antecedente a preponderância que rege a relação e a conexão deste
com o outro termo. De tal modo que se disséssemos que o ensaio propõe um Princípio da Responsabilidade estaríamos
supondo que há aí uma ética que busca refletir sobre a responsabilidade e retirar daí um princípio possível, talvez
aplicável. Aplicável ao que? À Civilização tecnológica? A responsabilidade seria, portanto, uma matéria prima cuja
ética vem a dar validade, ao formata-la na qualidade de um princípio? (...) Isto não se sustentaria: Princípio
Responsabilidade quer dizer, sobretudo, que a Responsabilidade é o Princípio.” (BRAZIL, 2016, p.125-126)
20 Cabe lembrar que a obra traduzida para o português como “Princípio Vida” possui no original em inglês um título
diverso, mais facilmente traduzível não como “Princípio”, mas sim “Fenômeno”: The Phenomenon of Life.
Essas perguntas são, evidentemente, retóricas. É claro que Jonas se protegeu dessa falácia
e também de outras possíveis. É que embora a teoria da responsabilidade seja bastante
consistente, ela não está a salvo de problemas e dúvidas. Que tipo de relação pode haver entre
ética e metafísica? Que tipos de relação existiram tradicionalmente? A proposta metafísica da
ética da responsabilidade é uma resposta não apenas ao apelo do mundo contemporâneo, mas,
também, às éticas contemporâneas? Jonas dialoga com essas éticas? Como é possível falar em
dever depois de Nietzsche ter publicado “A Genealogia da Moral”? Como é possível uma ética
metafisicamente fundada na conjuntura da filosofia contemporânea?
O ponto central da posição filosófica de Jonas é contundente: há um agir na natureza.
Essa tese contraria todo tipo de posicionamento determinista e mecanicista do mundo natural.
Ao se repensar este, é o lugar que o homem ocupa diante dele que também se modifica
incisivamente: “isso implica que a eficiência dos fins não está exclusivamente vinculada à
racionalidade, reflexão, livre escolha – portanto, ao homem”24.
Se verificarmos o ambiente das reflexões éticas do mundo contemporâneo, constataremos
que boa parte das discussões derivam daquele esvaziamento dos sistemas metafísicos presentes
na filosofia desde o século XIX. Não temos condições de fazer nenhum tipo de afirmação
conclusiva, mas seria de se verificar que a emergência de uma pluralidade de discussões no
âmbito da ética, e também da política, no mundo contemporâneo, parece ter uma consequência
deste suposto fim da metafísica. E de fato parece haver uma urgência da ética, e os pensadores
parecem não poder esperar mais por uma metafísica que sirva de fundamento para o mundo
contemporâneo. Essa relação entre ética e metafísica interessa-nos aqui, pois acreditamos que
Jonas encontre uma base de contribuição importante para essa discussão. A pergunta que se
relaciona com esse problema é: há afinal um primado da ética, um primado metafisico ou não se
pode afirmar nem um nem outro?25. O pressuposto jonasiano é de que a metafísica deve
sustentar a ética. Em todo caso, é muito importante nos atentarmos como se dá essa relação, pois
ela não parece acontecer de uma maneira usual, há algo inédito e interessante neste Princípio
Responsabilidade.
O elementar do posicionamento jonasiano está no lugar que a finalidade ocupa no todo
da vida. Mas não apenas se trata de atribuir fins meramente, pois o lugar da causa eficiente
também é interpretado, e é isso o que permite a Jonas dar à liberdade um estatuto natural, pois
ela está ligada ao fenômeno da vida e ao orgânico. De todo modo, ainda que esse seja um
capítulo inteiramente à parte com relação à passagem da metafísica para a ética é preciso deixara
claro o argumento de Jonas que parte da doutrina dos fins em direção à doutrina do valor. A
24 Id.Ib., p.127-128
25 Op.Cit. 2008, p.45-46
26 Id.Ib., p.61
27 Op.Cit.2006, p.175
REFERÊNCIAS
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma Ética para a civilização tecnológica.
Tradução de Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: ed. PUC-RJ,
2006.
GADAMER, Hans-Georg. A Ideia do Bem entre Platão e Aristóteles. Tradução de Tito Lívio Cruz
Romão. São Paulo: editora Martins Fontes, 2009.
SGANZERLA, Anor. Biologização do ser moral em Hans Jonas. Revista de Filosofia Aurora.
Curitiba, V.25, n.36, p.155-178, jan./jun.2013 <Disponível em
file:///C:/Users/181/Downloads/rf-7769.pdf acessado em 06 julho 2016>
RESUMO: Pretendemos aqui enfrentar, na medida do possível, três questões que emergem na
marcha do pensamento ocidental: a concepção da natureza que manifesta em si uma ordem
harmônica e inteligível, diante da qual só é possível a atitude de admiração contemplativa própria
da antiguidade, que se perde na modernidade. A lógica linear cartesiana e sua ambição de
dominar a natureza fazendo do homem um ser doente de sua racionalidade, marca da
modernidade. A busca por uma saída para o beco em que se encontra a humanidade e que exige a
difícil senão impossível harmonização da tecnologia e da economia com a ecologia, recolhida por
uma ética ainda a construir – desafio a que se lançou H Jonas. Aubenque nos oferece uma pista
ao propor o resgate da ética aristotélica. A grande contribuição desta „aretologia‟ residiria no
conceito de „prudência‟ (phronesis), mas queremos ampliar este resgate e propor uma reflexão
sobre o que representa o outro paradigma que Aristóteles desenha ao lidar com a complexidade
da práxis. Se a devastação da terra evidencia o esgotamento do modelo da ciência/tecnologia
herdeiro da Metafísica e de sua lógica imanente, a exploração deste outro paradigma que lida com
a complexidade do contexto abrindo espaço para a emoção e o desejo, e que sabe que só pode,
quando muito tangenciar a verdade, merece, no mínimo, um momento de nossa reflexão.
1Conferência apresentada II Seminário Hans Jonas da UFRJ - 7a 9 de dezembro de 2016 – Rio de Janeiro,
IFCS
“E com o homem, é o mundo inteiro que se arruína e se torna doente, é a vida na sua
totalidade que é depreciada”
( in Deleuze : Nietzsche)
É esta a situação do ser humano. Foi-se o Cosmos com cujo Logos imanente meu
logos podia sentir-se aparentado; foi-se a ordem do todo, onde existe um lugar
para o ser humano. Este lugar aparece agora como puro e incompreensível
acaso2
2 Jonas Hans: O Princípio Vida – Fundamentos para uma biologia filosófica, Petrópolis, Vozes,
2004
3 Arete (gr.) = virtude
4 Aubenque Pierre: Um modèle aristotélicien pour l’eco-éthique in Problèmes Aristotéliciens, Paris,
Vrin,2011. Com seu livro sobre a Prudência em Aristóteles, Aubenque renova a leitura e interpretação
da ética de Aristóteles.
5 Jonas, Hans O Princípio Responsabilidade, Rio, Contraponto-PUCRio, 2006 – Prefácio.
6 Idem ibidem
7 Idem ibidem
8 Idem ibidem
9 Aubenque, op. cit. Cf. igualmente La Prudence chez Kant, Revue deMétaphysique et de Morale.
10 Kirk e Raven Os Filósofos Pré Socráticos, Lisboa, Fundação Colouste Gulbenkian /1979/ frgs 199 e 206
11 Kirk e Raven op.cit. Frg 212
12 Não queremos com isso dizer que Heráclito seja a fonte determinante do pensamento aristotélico.
possível – “Nem de Não Ente permitirei que digas e penses; pois não dizível nem pensável é que
não é”13
Ao invés de pensar o-que-é-com, (Heráclito) é preciso separar a verdade da aparência,
distinguir entre si os dois caminhos, da Verdade e da Opinião: revelação divina, que conduz o
homem e o protege da ilusão e do falso. Neste sentido, Heráclito teria se afastado da trilha da
Verdade, e, como os “mortais de duas cabeças”, trilhado o caminho enganoso da opinião.
A pluralidade, a diferença, o movimento e a mudança não passam de mero jogo de luzes e
sombras. A luz que incide sobre a lua, sempre igual, sempre a mesma, faz parecer que ela nasce e
morre, cresce e decresce – o mesmo efeito se reproduz em toda parte iludindo os “pobres
mortais”14.
Contra a evidência dos sentidos, a frieza do raciocínio lógico – impossível pensar a
mistura de ser e não ser. Nega-se então realidade da pluralidade, da mutabilidade, do fluxo, ao
mesmo tempo em que se afirma o Ser Único em sua perfeita identidade. “O mesmo que
15
permanece o mesmo e em si repousa” Bloqueia-se o acesso da Filosofia, submetida a tais
exigências lógicas, à concretude, à diversidade e à realidade palpável do instável e inseguro mundo
dos homens objeto da mera opinião.
Seja por Heráclito, seja por Parmênides, o paradoxo se instala no âmago do pensamento
nascente. O ceticismo espreita ao final do caminho.
A solução dualista proposta por Platão, na tentativa de superar tal paradoxo é descartada
por Aristóteles. O mundo ideal de arquétipos perfeitos capaz de oferecer um fundamento seguro
à ação dos homens e suas escolhas, é negado. Uma nova Metafísica é requerida que por sua vez,
possibilitará o surgimento da ética como esfera autônoma, que deverá encontrar no próprio
mundo do homem (ta andrópina), os critérios e a medida da ação virtuosa.
Já muito se disse que Aristóteles permanece platônico em sua Metafísica mas se aproxima
dos sofistas no plano da Ética. O próprio Aristóteles assinala a diversidade dos objetos e, como
dissemos, a distância, a autonomia, a diversidade de métodos nos dois campos. Mas entre eles um
laço, uma ponte, um elo se estabelece: a teleologia.
E essa mesma teleologia, detectada também por Hans Jonas no plano da natureza
orgânica e reintroduzida na abordagem científica, permitirá talvez a articulação procurada no
escopo deste trabalho. “A tendência [da natureza] a uma finalidade, manifestada em suas
16
realizações (...) deveria estar incluída no conceito de causalidade física.” “Em suma, uma
doutrina da emergência [do novo] só pode ser sustentada, em termos lógicos, em associação com
uma ontologia grosso modo aristotélica.”17
Em sua minuciosa observação da natureza, Aristóteles repete o bordão: “A natureza nada
faz em vão”18: “No início da investigação temos que postular os princípios que invocamos
constantemente no uso de nossa investigação científica da natureza que devemos tomar como
garantidos em virtude de seu caráter universal que aparece em todos os trabalhos da natureza.
Destes, um é que a natureza não cria nada em vão, mas visa o melhor possível em cada espécie
dos seres vivos com referência à sua constituição essencial. De acordo com isto se um modo é
melhor que outro, esse será o modo da natureza.”19
Este princípio, detectado na observação da própria natureza, se estende aos planos ético e
metafísico. Por ele podem se articular os diferentes campos da Filosofia apesar da diversidade de
seus objetos e dos métodos mais adequados para estudá-los.
Esta tendência de todas as coisas em direção a uma finalidade, aparece no âmbito das
„coisas humanas‟ na forma de desejo: Assim a ética se abre com a proposição: “Toda arte, toda
pesquisa e toda ação tendem para algum bem (...) e por isso se declara com razão que o bem é o
que todas as coisas tem em vista”20 Da mesma forma a Metafísica afirma em seu primeiro Livro:
“Todos os homens desejam por natureza, o saber”21
Na Física e na Metafísica, entre as causas que devem ser levadas em conta para
que se atinja o conhecimento de um ser, figura a causa final, aquilo em vista do que o movimento
se dá; aquilo para o qual tende o ente em sua realização progressiva. Entre as quatro causas
(matéria e forma, motor e fim) é o fim que sobre determina as demais causas: não se faz uma
serra com barro, não se constrói uma escada se não houver um segundo andar. Tanto a matéria
como a forma se determinam em função de uma finalidade que, no plano dos movimentos
naturais (dos entes que tem em si o princípio imanente do movimento) é o próprio motor. É a
grande novidade apresentada por Aristóteles face aos pensadores que o precederam. O que move
em última análise um ser é a finalidade buscada, finalidade que se identificará, com a realização
plena de si mesmo, com a plena atualização de suas potências.
Com o binômio potência/ato, articulado às quatro causas, Aristóteles tem em mãos o
conceitual teórico necessário à superação do paradoxo posto por Heráclito e Parmênides.
uma dirigida pela arte (techne) outra, pelos costumes e tradições, (ethos).25 Seja no campo da arte,
seja no da práxis, as ações decorrerão da atualização de potências inatas, e resultarão em novas
potencialidades adquiridas graças a “esforço e exercício”.
A arte (techne) corresponde a uma etapa intermediária na conquista do conhecimento
científico e se situa entre a experiência (empiria) acumulada pela memória, intransmissível, e que
apenas constata o fato, e a ciência (epistheme) que busca o conhecimento através das causas ou
razões. Transmissível, desinteressada e inútil, a ciência responde à sede de saber natural do
homem.
Como a experiência a arte atua no concreto do fazer, do acontecer, da operacionalidade;
como a ciência, precisa articular efeitos e causas, para, agindo como causa/motor, obter o efeito
esperado, o fim visado.
A produção (poiésis) orienta-se para um objetivo exterior ao agente: para a produção de
uma obra. Segue normas fixas e um encadeamento previsível de causas/efeitos. É um processo
linear indiferente ao tempo, ou às relações culturais de um dado grupo. Implica em clareza e rigor
nos processos, em previsão dos efeitos possíveis, em normas, medidas e regras. “Imita” a
natureza e se deixa transmitir por um adestramento capaz de desenvolver as habilidades do
indivíduo, o que explica que escravos possam aprender e se destacar em sua arte como foi o caso,
por exemplo, de um Phídias. Os efeitos da arte e sua excelência, se manifestam no produto, na
obra realizada. Diz pouco ou nada sobre as qualidades morais do artista. E é na obra realizada
que ela se esgota – “não se constrói a casa construída, nem se fecha a porta fechada”. A ação
recomeça em nova obra, com nova matéria a que se impõe a forma concebida pelo artista.26
No entanto, Aristóteles afirma que o modo de vida dos humanos consiste mais
propriamente na práxis do que na produção. A práxis pertence ao mundo dos homens, aos seus
negócios (ta prágmata) Implica num aprendizado – bem diferente do adestramento da techne, pois
pressupõe a liberdade, a capacidade de reflexão, deliberação e escolha. A práxis desenvolve no
homem (livre) o que ele tem de mais propriamente humano. Seu efeito, ao contrario da techne, se
faz sentir sobre o próprio agente, modifica-o, confere-lhe um caráter, uma “segunda natureza”
que indica “quem” ele é. Desenvolve nele novas disposições, novos modos de agir, novas
potencialidades, as virtudes. O homem é obra de si mesmo.
O exemplo da voz e da linguagem é aqui emblemático: Aristóteles afirma que, por
natureza, nascemos com a voz, mas, ao contrario dos outros animais, devemos aprender a falar
25Sobre os conceitos de práxis e technê Cf. Bettencourt de Faria Direito e Ética – Aristóteles, Hobbes e Kant S.
Paulo, Paulus, 2007
A Idade Moderna é marcadapelo encontro entre a ciência, cultivada nos murso fechados das Universidades e as
26
Oficinas, onde as técnicas eram repassadas de mestre a aprendiz, dando nascimento à tecnologia.
nossa língua: a linguagem é aprendida, e é a posse da linguagem, seu domínio, que faz do homem
um “animal político”.
A práxis é infinitamente mais complexa que a techne. O homem não nasce pronto: deve
fazer-se homem e este aprendizado tem que ser retomado por cada um. Se a práxis implica
necessariamente a presença da razão, não significa que pertença ao mesmo campo da ciência
teórica. Seu campo é o da doxa, da opinião vigente, dos costumes, tradições e hábitos presentes
em dada cultura27 - êthos. Ethos 28também é o caráter que se forma neste embate do indivíduo com
os outros: o homem é um “animal político” que se faz homem em contato com seus
semelhantes. Não é o campo da irracionalidade, mas escapa aos processos demonstrativos, e
dedutivo analíticos.
A natureza do homem não corresponde a nenhuma “ideia” eterna, universal e necessária,
nem se realiza espontaneamente e da mesma forma em todos os homens. Ela se atualiza
progressivamente, se encontrar o ambiente favorável; se for para isto estimulada, se encontrar
referenciais e modelos que possam lhe servir de guia, e testemunhar a medida justa. E, ao
atualizar-se, revela a potência subjacente.
Mas, no mundo do homem são muitos os caminhos para se chegar a uma finalidade
visada e a qualidade do fim não se transmite necessariamente aos meios para atingi-lo. Meios
ilícitos e injustos podem ser eficientes e eficazes. Existe sempre a possibilidade de discrepância no
valor moral dos meios e fins, o que não tem como ocorrer no plano da technê.
Entramos aqui na esfera da ética; saímos do campo da natureza em que os meios estão
predefinidos dispensando a mediação da deliberação e escolha.
O mundo do homem, seu habitat, o êthos, é fruto de uma construção em grande parte
arbitrária, como são arbitrários os nomes escolhidos para designar os entes deste mundo. Nem
todos os homens vivem do mesmo modo, cultivam os mesmos valores, obedecem aos mesmos
rituais, seguem os mesmos códigos. De tal forma que “até se acreditaria que só existem por
convenção”. 29Onde então encontrar critérios valorativos objetivos?
No âmbito da ética, s? para balizar a ação virtuosa, reconhecer o homem valoroso? No
âmbito da política, como encontrar o fundamento que garante a articulação entre o legal e o
justo? Aristóteles reconhece aí uma circularidade incontornável: virtude é a justa medida, aquela
27 Para Platão a ciência não se distingue da opinião verdadeira e a dialética permite a passagem de um plano ao outro,
depurando as opiniões e tornando-as mais claras em seus fundamentos. Aristóteles parece afastar-se dele nitidamente
neste ponto. Se a dialética permite derrubar as opiniões falsas ela não é suficiente para fundamentar a ciência
verdadeira.
28 Aristóteles vale-se da semelhança entre as duas palavras, que se escrevem de forma diferente no grego, para
delimitar o objeto de sua Ética. CF. Lima Vaz, Escritos de Filosofia II, S Paulo, Loyola, 1988.
29 Aristóteles E.N.1094b15
segundo a qual, o homem virtuoso age; justiça é a dimensão social da virtude; a medida da
coragem, meio termo entre a covardia e a temeridade, é dada pelo corajoso.
O homem tem no outro seu espelho. Referências e valores só são encontrados no próprio
mundo dos homens, objeto de opinião e onde não se pode nem se deve esperar o rigor da ciência
teórica cujo objeto é necessário.
A ética move-se no campo do contingente, da incerteza. A ordem eterna, universal e
imutável da natureza oferece, é certo, um balizamento. Quando os limites da forma ou natureza
são transgredidos, caímos no patológico, na „de-formação‟, no monstruoso.
Porém, ao mesmo tempo, este balizamento é bastante flexível. O conceito de natureza se
revela insuficiente para determinar uma ética. Há, no homem, algo que transcende os limites da
natureza; algo que depende de sua decisão e escolha. Como Aristóteles afirma, o homem é o pai
dos seus atos, tal com é o pai de seus filhos. Citando Eveno, refere-se a uma „segunda natureza‟ a
ser conquistada pelo homem, para que ele possa, enfim, tornar-se homem em plenitude. Não
basta ser dotado de voz para saber falar; não basta ser dotado de “capacidade de julgar,
inteligência e razão intuitiva” 30para ser filósofo. As potências naturais devem desenvolver-se em
disposições habituais (hexis) e estas em atos, para que a natureza humana se complete. Bárbaros
são os homens que não desenvolveram em plenitude a natureza humana, tal como o fazem os
gregos.
Pois a natureza é um telos, um ponto de chegada, mais que um ponto de partida 31, é um
horizonte, mais que um dado. “Com efeito, dizemos que a natureza é o que cada coisa é ao
32
completar-se sua gênese, por exemplo, a de um homem, de um cavalo, de uma família.”
Lembrando sempre que é o Ato que revela a Potência.33
Para aproximar-se deste telos, deste fim, o homem deve desenvolver suas diversas
potencialidades naturais: razão e sensibilidade, logos e pathos, harmonizando intelecto e desejo.
Mas seguir a própria natureza seria deixar-se guiar pela atração do prazer e a repulsa da
dor, e neste caso, não conquistamos um ethos que identifique quem nós somos. Ficamos
totalmente vulneráveis aos fatores exteriores e seríamos semelhantes a „camaleões‟ reagindo a
cada momento à situação que se apresenta segundo os parâmetros do prazer e da dor. E não
30 Idem, 1143b 30
31 Cf Aubenque, Pierre, ‘Aristote était-il communautariste?’ in Problèmes Aristotéliciens – Philosophie
Pratique Paris, Vrin, 2011
32 Aristóteles, Política 1252b 30
33 Nos seres compostos do „mundo sub lunar‟ – imperfeitos - o ato não chega nunca a esgotar a potência. Apenas
seríamos em nada diferentes dos animais, pois nos distinguimos dos outros animais justamente
pela consciência do que é justo ou injusto 34
A natureza complexa do homem, tantas vezes assinalada por Aristóteles, impede que ela
seja tomada como critério ético. O ergon próprio do homem é a atividade conforme a razão35, ou
seja, aquela que não se deixa determinar apenas pelo impulso ou pelas tendências naturais, mas
por virtude, pela decisão refletida. Mas, mesmo assim, como por exemplo, no caso do devasso
(akolastós) ou mesmo no caso da habilidade (deinotes) a racionalidade não é o único critério pois
não é necessariamente dirigida intencionalmente ao Bem. Um criminoso pode agir racionalmente
e, em função de deliberação e escolha atingir o fim (mau) a que se propõe. É preciso, portanto,
que o logos seja um orthos logos. Uma qualificação moral da própria racionalidade que articula meios
e fins.
“Assim, portanto, não é por natureza nem contra a natureza que as virtudes
nascem em nós, mas a natureza nos deu a capacidade de recebê-las e esta
capacidade amadurece pelo hábito” 36
Vê-se então o papel fundamental desenvolvido pela prudência (phronesis) que é o elo entre
as virtudes morais, virtudes do caráter, cuja matéria é o pathos, e a razão. A prudência é uma
virtude do intelecto, mas do intelecto prático, aquele que dirige a ação no concreto. É a
capacidade de escolher os melhores meios para chegar aos melhores objetivos. É mais que
habilidade, embora não a dispense, pois não é indiferente ao fim. Como, no âmbito da práxis, a
menor distância entre a intenção e o ato raramente é uma reta, a prudência guia o homem no
labirinto da vida para que ele alcance o bem universalmente visado, a eudaimonia. Neste „tatear‟
encontra apoio nas referências, nos exemplos, nas tradições e valores; na doxa vigente,
devidamente submetida ao processo crítico da dialética.
O homem tem a capacidade de conquistar o que não lhe foi conferido pela própria
natureza. É Prometeu, roubando o fogo sagrado e conquistando um poder inédito. E este poder
hoje, torna-se uma ameaça, como alerta Jonas, pois “tudo isto se transformou de forma decisiva.
A técnica moderna introduziu ações de uma ordem de grandeza tão inédita, com objetos e
consequências tão inéditos que o quadro da ética anterior não pode mais contê-los”37. O agir
coletivo assumiu tal amplitude que impõe à ética uma nova dimensão da responsabilidade, antes
inconcebível. Fica aqui a questão: A atualização deste poder não estaria revelando o potencial
34idem, 1253 a 15
35 Idem. E.N.1099ª 15
36 idem, E.N. 1103 a 25
37 Jonas Hans, O Princípio Responsabilidade, Rio, Contraponto-PUCRio, 2006
humano muito além do jamais previsto? Não teremos aqui que repensar o que é propriamente o
Homem?
Antes mesmo que a questão tivesse assumido a atual dimensão, a ética de Aristóteles já
havia sido literalmente solapada em seus alicerces.
O fim da cristandade com a Reforma, aliada à crise da Escolástica; o advento do novo
método científico com Bacon, Copérnico e Galileu; o advento do Sujeito, com o cogito cartesiano;
a busca de novo método para a Filosofia que alcançasse a certeza e demonstrasse rigor, com
Hobbes e Descartes; a contestação do geocentrismo, e a descoberta do Novo Mundo, enfim,
marcam o fim de uma era em que a autoridade de Aristóteles (“O Filósofo”) se impunha de
forma inconteste (tanto na Física como na Ética).
Hobbes traça um novo retrato do ser humano, não baseado numa Metafísica mas na
experiência concreta, substituindo o “animal político” aristotélico pelo “homem lobo do
homem” cujo fim último é a sobrevivência a qualquer custo; que vê no outro uma ameaça
potencial e tem, nas paixões, a força que o comanda. Inútil buscar controlar as paixões com a
razão: as paixões só cedem a uma paixão maior e o medo toma então o lugar da philia aristotélica
– a solidariedade daqueles que se sabem unidos por um destino comum.
Bacon critica o conhecimento puramente teórico, contemplativo e inútil da antiga
Metafísica e estabelece um novo objetivo para a ciência exclusivamente baseada na experiência e
na observação controlada: dominar a natureza e colocá-la a serviço das intenções humanas. Seu
método visa libertar a humanidade dos “ídolos” da tribo (da raça humana, da superstição), da
caverna (a subjetividade), do foro (a comunicação) e do teatro (os falsos sistemas filosóficos) e
das noções falsas que obscurecem o intelecto humano.
Descartes delineou o novo Método para a Filosofia: desconstruir para reconstruir com
rigor e sobre novo fundamento, o cogito. Passar do complexo ao simples, do obscuro ao claro, do
confuso ao distinto; só obedecendo aos critérios imanentes da evidência e da clareza que
alicerçam as certezas será possível alcançar A Verdade.
Com seu método, propôs-se delinear uma nova moral, mas ficou apenas na promessa.
Kant, enfim, propõe a Moral da idade moderna. A Moral ditada exclusivamente pela
Razão e que não obedece a outra motivação senão o estrito cumprimento do dever.
Descartes reintroduz o dualismo com a rigorosa separação entre a substância pensante e a
substância extensa. Desta última é retirada toda dimensão teleológica – ideia confusa e obscura,
impossível de ser detectada seja pelo rigoroso método matemático seja pela experiência
estritamente controlada e medida. Os novos métodos da ciência nascente e da Filosofia são cegos
para a teleologia. Só as causas mecânicas passíveis de medida, previsão e cálculo, importam.
Essa natureza regida por uma mecânica cega não oferece mais o quadro capaz de oferecer
parâmetros ao comportamento. O abismo entre o mundo da natureza, objeto das ciências
„positivas‟ e o mundo do homem (mundo da cultura, do pensamento, da subjetividade) se
aprofunda de tal forma que desaparece o elo entre fato e valor, entre Ser e dever ser.
A práxis é assimilada à techne; a opinião (doxa) não pode mais ser tomada como fonte do
conhecimento, sabedoria ancestral portadora de uma verdade a ser melhor explicitada. É expulsa
do campo da ciência por falta de rigor, e igualmente do campo da Filosofia: “Aquilo que até hoje
foi escrito pelos filósofos morais em nada avançou no conhecimento da verdade (...) entre os
autores daquela parte da Filosofia nunca houve um que adotasse um princípio adequado para
38
tratá-la” Quando muito pode ser tomada como objeto de estudo de uma antropologia ou de
uma psicologia.
A Ética aristotélica é considerada confusa, pouco rigorosa – “Não existe fim último nem
summum bonum de que se fala nos livros dos antigos filósofos morais”39; Aristóteles é chamado por
Bacon de “pior dos sofistas”; Descartes, como depois dele, Kant, apostam, contra Aristóteles, na
possibilidade de isolar a razão das paixões e de decidir apenas segundo o que a primeira
determina. A moral tradicional para o mesmo Kant, limitou-se a formular “leis indulgentes que
fazem concessões às fraquezas humanas”. A busca da felicidade, objetivo último da ética
aristotélica, não pode fundamentar leis universais por estar marcada pela subjetividade. E “A
natureza e a inclinação não podem dar leis à liberdade”.40
A Retórica, arma capaz de conseguir a adesão por meio da argumentação, concebida
“como lógica dos juízos de valor”41 é desvalorizada como lógica do meramente aparente,
sofística. (E será recuperada de forma bastarda pelo „marketing‟ político ou comercial.) “A partir
do momento em que se acredita que a razão, a experiência ou a revelação podem resolver todos
os problemas (...) a retórica fica reduzida a um conjunto de procedimentos para enganar os
ignorantes”42
O espaço da praxis, é o da complexidade e da incerteza, e demanda a deliberação e a
escolha. Espaço em que se move o homem com todas as suas vulnerabilidades, onde a retórica
desempenha um papel central na conquista de adesões. Encontra referência nas tradições e
costumes, nos exemplos e na cultura, lida com o imponderável, com a complexidade das causas e
motivações de toda ordem, tanto psicológicas e subjetivas quanto políticas, financeiras, culturais,
43 Idem ibidem
44 Aubenque, Pierre La Prudence chez Aristote, Paris, PUF 1997
45 A Prudencia aristotélica não se identifica ao Princípio Precaução: é assertiva, afirmativa; é a busca da melhor
alternativa possível.
46 Encontramos referência à Regra de Ouro tanto em Locke, como em Hobbes e mesmo em Kant, como uma das
si mesmo, nunca um meio ou um objeto. “A razão pura é por si mesma prática, facultando ao
homem uma lei universal que denominamos lei moral.”48 O homem que se deixa mover pelo
desejo é movido por algo que não lhe pertence – o objeto do seu desejo. Fica, portanto numa
situação de heteronomia. O comportamento regido pela prudência também não escapa desta
heteronomia: submete-se à situação, às circunstâncias; obedece ao interesse, subordina-se a fins.
Só o homem movido pela consciência do dever ditado pela própria razão age por si mesmo, de
forma autônoma, isto é, livre. A prudência é excluída do campo da moralidade, reduzida a um
„imperativo hipotético e pragmático‟.
A Moral e o Direito vigoram apenas no mundo do homem, regulam as relações entre eles,
as máximas, normas e leis que se impõem igualmente a todos preservando a autonomia e
liberdade de cada um, compatibilizando entre si as diversas liberdades. A Moral fica restrita ao
que Kant designa como foro interno enquanto o Direito atua no foro externo. Ambos encontram seu
fundamento/justificação na Liberdade e, portanto, na igualdade de todos perante a lei. As
restrições à liberdade só poderiam ser legitimadas pela necessidade de preservar para todos, a
mesma liberdade.
Ora, quando não está em jogo outra liberdade – como, por exemplo, na relação homem/
natureza – este princípio da moral kantiana não vigora.
Da mesma forma, Kant afirma que os direitos são correlativos aos deveres e só são
conhecidos a partir deles. Logo, onde não há deveres, não se pode também falar em direitos.
Essa reciprocidade, característica marcante das éticas modernas, desaparece nas relações entre o
homem e a natureza; entre a geração atual e as gerações futuras; como entre o adulto e a criança
ou, como assinala Jonas, entre os pais e o recém-nascido. E neste vácuo deve introduzir-se o
novo princípio responsabilidade.
A Ética de Aristóteles também supõe o mundo do homem; regula as relações entre eles,
com vistas a uma convivência justa, que abra espaço e ofereça as condições para que o homem
conquiste a felicidade ao seu alcance. As referências, critérios e valores, são também inerentes ao
mundo do homem. As relações homem/natureza não podem sequer aparecer como objeto de
questionamento: o homem nada pode diante da ordem natural, eterna e imutável, capaz de
renovar-se, superando e compensando possíveis falhas e desvios. Diante da natureza, restam ao
homem a contemplação, a curiosidade, e a imitação. A natureza é a grande mestra; o homem,
com suas artes, tenta imitá-la em sua sabedoria imanente mas nunca, por impossível, dominá-la.
Compreende-se assim a dificuldade reconhecida por Jonas, de enfrentar os desafios atuais
valendo-se de filosofias ou éticas elaboradas em outra época, em outro contexto e em vista de
ser fim. Tende a realizar-se; tende a renovar-se para preservar-se. E, como mostra Jonas, tem
direito a ser o que é, a continuar existindo e, portanto, a renovar-se e reproduzir-se.
Ouçamos Jonas: “...uma vez que a matéria manifestou-se desta forma, isto é, que ela
efetivamente organizou-se desta maneira e chegou a estes resultados, o pensamento não pode
deixar de fazer-lhe justiça reconhecendo a possibilidade de que o que ela chegou a realizar está
depositado em sua natureza primitiva”51
A evolução das espécies ignorada por Aristóteles, altera profundamente a visão da Physis
eterna e imutável em seu processo de renovação. O futuro não nos remete mais ao passado. O
tempo linear tomou o lugar do tempo cíclico do eterno retorno. Esta evolução, que culminou no
ser humano aponta para um futuro aberto e os graus progressivos de liberdade de ação e poder
conquistados colocam em risco a própria existência. “Tão constitutiva para a vida é a
possibilidade de não ser que o seu ser é, como tal, essencialmente um estar suspenso sobre o
abismo.”
Se não há uma ruptura radical entre o inorgânico e o orgânico, como entre a matéria e o
„espírito‟, se, no plano do orgânico a teleologia é resgatada e incorporada ao acervo de princípios
científicos por Hans Jonas, podemos esperar uma reabilitação da virtude da phronesis que se
estenderia agora para muito além do mundo do homem (ta andrópina), para o mundo da Physis e
faria o contraponto com a „heurística do medo‟.
A Ética aristotélica colocou o homem como responsável por seus atos, tal como o pai em
relação a seus filhos. Os novos poderes que a tecnologia colocou em suas mãos estenderam
infinitamente suas responsabilidades, não só sobre seus atos como sobre as consequências dos
mesmos. Não só para os parceiros e próximos com quem interage no seio de uma comunidade,
mas para com as gerações futuras; não só para a Polis, seu habitat mais imediato, mas para o
planeta como um todo.
E esta extensão da responsabilidade, para muito além da reciprocidade, amplia o espectro
das questões onde a prudência mais do que nunca se faz necessária. Aceitar lidar com o
imponderável, conformar-se a uma “lógica da incerteza” exige a revisão permanente de nossas
“certezas”. Vivemos num mundo pluralista onde a convergência de tradições e valores se perdeu.
Donde a necessidade de se lançar mão de outros recursos que não provêm da ciência e da
tecnologia, mas da práxis, para tentar fazer com que nos aproximemos não do Summum Bonum,
mas do bem ao alcance de nossos atos, iluminados embasados pelo conhecimento teórico, mas
balizados pela prudência e a responsabilidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
----------------- The Progression of Animals – The Complete Works of Aristotle Ed. Jonathan
Barnes, – EUA Princeton University Press, 1985
JONAS, Hans: O Princípio Vida – Fundamentos para uma biologia filosófica, Petrópolis,
Vozes, 2004
---------------. En torno al tópico: Talvez eso sea correcto en teoria, pero no sirve para la
prática in Ensayos sobre la paz, el progreso y el ideal cosmopolita, Madrid, Cátedra, 2005.
KIRK E RAVEN Os Filósofos Pré Socráticos, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian /1979/
RESUMO: O temor da morte sempre rodeou a humanidade que procura amenizar esse medo
buscando explicações em diferentes correntes culturais, religiosas, sociais. Mas a única certeza da
nossa existência é que vamos morrer e não conseguimos até hoje responder o que é a morte. A
Filosofia também tenta esclarecê-la através de diferentes correntes de pensamento. Dos pré-
socráticos aos contemporâneos a morte sempre foi uma temática filosófica, talvez mesmo o seu
questionamento original. No capítulo 10, “Morte cerebral e banco de órgãos humanos: sobre a
redefinição pragmática da morte” do livro “Técnica, Medicina e Ética” de Hans Jonas, ele analisa
e discute de maneira profundamente impactante os critérios de morte cerebral e sua utilização
para fins de doação de órgãos. A ciência evolui nos critérios da definição fisiológica da morte que
era o cessar da respiração e batimentos cardíacos para ausência total das funções celebrais sempre
ocasionando grande desconforto para os familiares que precisam autorizar a doação. Ao repensar
os critérios de morte cerebral e sua utilização para doação de órgãos, Hans Jonas nos faz rever
esse grande enigma da morte questionando até que ponto as novas tecnologias, aparentemente
em favor da vida, pode nos levar a questionar os critérios éticos sobre vida, morte e nossa própria
existência.
INTRODUÇÃO
O temor da morte sempre rodeou a humanidade que procura amenizar esse medo
buscando explicações em diferentes correntes culturais, religiosas, sociais. Mas a única certeza da
nossa existência é que vamos morrer e não conseguimos até hoje responder o que é a morte. A
Filosofia também tenta esclarecê-la através de diferentes correntes de pensamento. Dos pré-
socráticos aos contemporâneos a morte sempre foi uma temática filosófica, talvez mesmo o seu
questionamento original.
Hans Jonas, no capítulo 10 do livro Técnica, Medicina e Ética, intitulado Morte cerebral e banco
de órgãos humanos: sobre a redefinição pragmática da morte, analisa e discute de maneira profundamente
impactante os critérios de morte cerebral e sua utilização para fins de doação de órgãos. A ciência
evoluiu nos critérios da definição fisiológica da morte – que era o cessar da respiração e
batimentos cardíacos – para a ausência total das funções cerebrais, sempre ocasionando grande
desconforto para os familiares que precisam autorizar a doação. Ao repensar os critérios de morte
cerebral e sua utilização para doação de órgãos, Hans Jonas nos faz rever esse grande enigma da
morte questionando até que ponto as novas tecnologias, aparentemente em favor da vida, pode
nos levar a questionar os critérios éticos sobre a vida, a morte e a nossa própria existência.
Acreditamos que o ato de se dizer doador de órgãos é muito mais emocional que racional.
A ciência determinou a constatação da morte pela análise cerebral e a opção de doação de órgãos
não passa pelo questionamento do que realmente é a morte cerebral. O celebro é o responsável
por todas as nossas funções. Se ele parou é porque não há mais nada que possa ser feito. O
funcionamento por aparelhos é também um avanço científico. Então porque não ser um doador?
Será que a morte é realmente cerebral? Será que enquanto nosso organismo ainda funciona por
aparelhos estaremos vivos? Esses foram os questionamentos que o texto de Jonas nos faz parar
para refletir.
Morte cerebral é o termo comumente usado, mas o correto é dizer morte encefálica. A
Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos define a morte encefálica como a “ausência total
de todas as funções neurológicas em decorrência de severa agressão ou ferimento grave no
cérebro e o sangue que vem do corpo e supre o cérebro é bloqueado e o cérebro morre” 1.
Portanto, morte encefálica é o termo empregado pela abrangência anatômica do sistema nervoso
central envolvido.
O questionamento de Hans Jonas começou quando a comissão da Harvard Medical
School publicou em 5 de agosto de 1968 essa nova definição de morte. Então numa conferência
que fez sobre “Aspectos éticos de experimento com seres humanos” ele criticou duramente
argumentando:
1
www.abto.org.br/abtov03/dafault.aspz?mn=472&c=015&s-0&friedely=entendendo-a-morte-encefálica
Jonas ainda redigiu o texto Contra a Corrente (Against the Stream) sobre o tema e foi muito
contestado pelos médicos, abrindo, assim, a oportunidade de várias discussões sobre esse assunto
tão difícil de ser abordado tanto na visão médica como na do senso comum de todos os pacientes
e parentes envolvidos. Hans Jonas coloca seus argumentos quanto à definição de Harvard nesses
dois principais tópicos:
1) Definia o coma irreversível como “morte cerebral”, quando as seguintes
características constam no diagnóstico: ausência de toda e qualquer atividade
cerebral constatável (eletroencefalograma plano) e de toda atividade física
dependente do cérebro, como respiração espontânea e reflexos;
2) Equipara a morte cerebral assim definida com a morte de todo o corpo,
portanto do paciente, o que permite, para além da declaração oficial do
falecimento, a interrupção de todas as ajudas oficiais de funções por meio do
aparelho de respiração e quaisquer outras formas de manutenção – assim como
independentemente disso (isto é, com ou sem tal interrupção) a extração de
órgãos para finalidades de transplante: a condição de cadáver do corpo que
permite isso começa com a determinação da morte cerebral como tal. (JONAS,
2013, p. 230-231)
Quanto ao primeiro argumento, Jonas reconhece que nem haveria necessidade de mudar
os critérios de morte porque a própria igreja católica já tinha se pronunciado através da
declaração do Papa Pio XII, no ano de 1957: “Quando o estado de inconsciência profunda for
dado como permanente, os meios extraordinários para a manutenção da vida não são
obrigatórios. Pode-se suspender seu uso e permitir ao paciente morrer” (JONAS, 2013, p 231).
Observamos que aí está o ponto principal do questionamento de Jonas: que a morte seja
um processo natural. Que não se utilizem métodos invasivos na prorrogação da vida quando
nada mais há a ser feito, nem antecipar a morte para quaisquer fins, mesmo os considerados
humanitários. Hans alega que: “Ora, isso, seja para fins de pesquisa ou transplante, me parece
ultrapassar o que uma definição (o que é o nosso trabalho) pode justificar” (JONAS, 2013, p
232).
Questionamentos tão abrangentes não podem ficar sob a tutela de uma definição da
ciência. Os envolvimentos éticos, religiosos, culturais, sociais envolvidos nessa questão
demandam sérias reflexões e não observamos no dia-a-dia a necessária reflexão sobre o assunto.
Ninguém tem por hábito falar da própria morte ou pensar como gostaria que ela ocorresse e o
que os parentes devem fazer quando esse momento chegar. Ao tentar levantar o tema as pessoas
são tidas como mórbidas e não se discute quaisquer questões. São muito poucas as pessoas que
tem um plano funeral, por exemplo.
Então temos que reconhecer que os questionamentos filosóficos podem abrir um
caminho para esclarecer tão difícil questão. O que é o morrer? Até quando devemos prorrogar a
vida de um paciente considerado sem condições de sobreviver? Quando devemos manter uma
vida para fins de doação de órgãos? Jonas se posiciona dizendo:
Para o primeiro não necessitamos saber onde está a delimitação exata entre vida
e morte – nós deixamos a natureza ultrapassá-la, onde quer que ela esteja ou
que ela percorra o conjunto de espectro, caso haja mais de uma linha. Nós
precisamos saber apenas como fato que o coma é irreversível, para decidir
eticamente não opor resistência ao morrer. Para o segundo temos que
reconhecer o limite com absoluta certeza e empregar uma definição de morte
menos que máxima para cometer, em um estado possivelmente penúltimo, o
que apenas o último permitiria, significa arrogar-se um conhecimento que
(acredito eu) não podemos ter. Como não conhecemos o limite exato que
separa a vida da morte, não nos resta nada menos que a “definição” máxima
(ou melhor: determinação característica) da morte – morte cerebral, mais morte
cardíaca, mais qualquer outra indicação que possa ser de interesse -;antes de que
possa intervir a violência definitiva. (JONAS, 2013, p 233)
Mas, afinal, o que para nós é a morte? Com certeza se fizermos essa pergunta para uma
plateia de dez, cem ou mais participantes, ouviríamos respostas diferentes de acordo a cultura, a
religião, o modo de ser e pensar. Até mesmo porque essas respostas seriam de leigos e do senso
comum. Será que uma definição científica da morte mudaria a opinião dessas pessoas?
Observamos no texto de Hans Jonas o que nos parece uma conclusão explicativa do seu
questionamento: “é a indeterminação do limite entre vida e morte, não entre sensação e falta de
sensação e significa tendermos, em uma zona de incerteza essencial, mais para uma determinação
máxima do que mínima da morte” (JONAS, 2013, p 233).
Ao tentar buscar para ciência a definição máxima para morte logo em seguida ele nos
apresenta outros argumentos pertinentes ao tema que também deveríamos levar em consideração
ao pensarmos na nossa morte e em sermos possíveis doadores. Hans nos faz pensar em questões
que infelizmente a maioria da população não tem acesso que é termos um médico assistente, que
nos acompanha na saúde e na doença. O direito que temos sobre nossa existência e nosso corpo.
Ele diz:
Além disso, é preciso pensar também sobre o seguinte aspecto: o paciente tem
que estar incondicionalmente seguro que seu médico não se tornará seu algoz e
que nenhuma definição permitirá que ele venha a sê-lo. Seu direito a esta
segurança é incondicional e igualmente incondicional é seu direito a seu próprio
corpo com todos os seus órgãos. O respeito incondicional a este direito não
viola qualquer outro direito. Ninguém tem, pois, um direito sobre o corpo de
outra pessoa. – Para falar ainda em outro espírito, em um espírito religioso: o
falecimento de uma pessoa deveria estar rodeado de piedade e protegido da
exploração. (JONAS, 2013, p 234)
O que observamos na nossa rotina com pessoas conhecidas e mesmos nossos parentes?
Existe tal respeito pelo corpo humano na maioria dos hospitais que conhecemos? Os direitos dos
pacientes são respeitados? Recebemos as reais informações sobre nosso estado de saúde ou de
nossos familiares? Temos orientação psicológica e social nesses momentos difíceis em nossos
hospitais?
No seu texto Conta a Corrente Jonas não contesta e até aceita que a nova definição quando
usada para não prolongar indefinidamente a agonia do paciente e também dos familiares no caso
do coma irreversível. Seu questionamento é sobre a liberdade com que a ciência se utiliza dos
órgãos. Ao levantar essa discussão, ele foi convidado a passar vários dias como hóspede do
Centro Médico da Universidade da Califórnia, assistindo as conferências médicas e até a
frequentar as salas de cirurgias para observar a realidade do transplante de doadores e receptores,
podendo fazer um trabalho mais apurado ainda sobre suas inquisições anteriores. Apesar de
manter sua posição, vários médicos se tornaram seus amigos. Jonas nos diz:
Eu tinha que responder a três objeções com relação à minha primeira polêmica:
que meu argumento relacionado aos “cadáveres doadores” impedia os sérios
esforços médicos para salvar vidas; que eu fazia frente a fatos científicos
precisos com considerações filosóficas vagas; e que desconhecia a diferença
entre morte do “organismo como um todo” e a morte de “todo o organismo”.
(JONAS, 2013, p 237)
Vamos colocar aqui as respostas de Jonas no que se refere a parte filosófica e sintetizar
seus argumentos sobre a morte.
No que se refere à acusação de “vagueza”, poderia ser que ele mesmo reflita a
circunstância de modo vago que meu argumento é – e eu acredito: um
argumento preciso – no qual se trata da vagueza, a saber, especificamente da
vagueza de um estado. Aristóteles observou certa vez que era sinal de um
espírito cultivado não exigir maior exatidão (akribeia) do que o objeto permite,
por exemplo, a mesma da política que na matemática. Certas formas do real –
do qual o espectro vida-morte talvez seja uma – podem ser em si mesmas
“imprecisas” ou o saber passível de aquisição sobre as mesmas o seja. Contudo,
reconhecer tal estado de coisas faz mais jus a elas do que uma definição precisa,
que a elas faz violência. O que eu ataquei foi justamente a exatidão inadequada
de uma definição e sua aplicação prática em um âmbito em si impreciso.
(JONAS, 2013, p 238)
Para Hans Jonas só devemos aceitar a “morte do organismo como um todo” porque enquanto se
mantém o corpo funcionando com ajuda de aparelhos para que permaneça em bom estado para doação,
esse bom estado é estar vivo. Seu questionamento é instigante:
pergunta correta não é: o paciente morreu?, mas: o que deve acontecer com ele
– ainda sempre um paciente? Essa pergunta não pode, com certeza, ser
respondida por meio de uma definição da morte, mas tem que ser respondida
com uma “definição” do ser humano e daquilo que é uma vida humana.
(JONAS, 2013, p 241)
Contestar essa a nova definição de morte foi um lançar dúvida mais uma vez no grande
enigma do que é a morte. Podemos definir cientificamente com base na biologia e fisiologia, mas
o enigma continua. O que é o morrer? Da mesma forma que outras perguntas sempre rodearam
o ser humano como o por que morremos. A nova definição de morte encefálica produz também
estudos atuais bastantes controversos. O jornal Folha de São Paulo publicou na sua edição de
18/7/2016 que no hospital de Anupam, na cidade de Rudrapur, na Índia, o cirurgião ortopédico
Himanshu Bansal está conduzindo uma pesquisa com o objetivo de reverter a morte cerebral
utilizando-se de células tronco e um coquetel de reprogramação celular com apoio da empresa
americana de biotecnologia Bioquark. Num dos argumentos do artigo Contra a Corrente, Hans
Jonas lançou uma provável premonição num dos seus argumentos sobre irreversibilidade.
Para ser mais preciso neste ponto: o “irreversível” do cessar pode ter dupla
relação: com a função mesma ou apenas com a sua espontaneidade. Um cessar
pode ser irreversível na perspectiva da espontaneidade, mas ainda reversível na
perspectiva da atividade mesma – em cujo caso um ativador externo deve entrar
em atividade no lugar do interno, isto é, no lugar da espontaneidade perdida.
Este é o caso nos movimentos respiratórios e contrações cardíacas do paciente
em coma (e também, recentemente, do coração artificial!). A distinção não é
corriqueira. Pois, se pudéssemos fazer para um cérebro que parou de funcionar
– digamos, apenas para o cerebelo – aquilo que agora podemos fazer pelo
coração e pulmão, ou seja, fazê-lo trabalhar por meio da ativação externa
constante (elétrica, química ou qualquer outra), o faríamos sem dúvida e não
discutiríamos que a atividade resultante carece de espontaneidade: o mais
importante seria atividade como tal. Esta é uma especulação puramente
hipotética e, sem dúvida, irreal para sempre; mas eu duvido que um médico se
sentiria legitimado a declarar como morto um paciente por causa da não
espontaneidade de sua fonte cerebral, se esta pudesse ser posta em curso
através de um auxílio artificial. (JONAS, 2013, p 239/240)
Acontece que essa pesquisa indiana não é aceita pelos neurocirurgiões. Se Jonas estivesse
ainda entre nós, com certeza, teríamos textos instigantes sobre essas novas pesquisas. Seu
argumento final é realmente para ser pensado e repensado mesmo nos dias atuais.
A linha limítrofe entre vida e morte não é conhecida com segurança e uma
definição não pode substituir o saber. A suspeita de que o estado do paciente
em coma sustentado artificialmente ainda é um estado residual de vida (como
até há pouco também era visto de modo geral em termos médicos) não é sem
fundamento. Isso significa que existe razão para a dúvida de que mesmo sem
Apresentar uma síntese o pensamento de Jonas a respeito da morte encefálica tem como
objetivo levantar a dúvida e abrir espaço para outros questionamentos mostrando que a morte
continua não só no campo da filosofia, mas no campo das ciências em geral, e até do senso
comum, um grande enigma.
É usual que o senso comum entenda cuidados paliativos com certo preconceito por
desconhecer que apalavra paliativo “deriva do latim pallium que significa manto ou cobertor. Na
época das Cruzadas os cavaleiros recebiam esse manto – pallium – para protegê-los das
intempéries do caminho na longa jornada” 2. Quem está doente e sabedor ou não que sua doença
não tem mais tratamento e/ou possibilidade de cura o que mais precisa é justamente de proteção,
apoio para seguir seu caminho da melhor forma possível, ao lado da família, com o mínimo de
sofrimento e dor.
Modernamente, essa especialidade desenvolveu-se através do incansável trabalho de
Cicely Saunders (1918-2005), enfermeira inglesa que depois se formou em Assistência Social e
Medicina, fundando o St. Christopher’s Hospice, pioneiro no atendimento ao paciente que é
considerado pelo grau de evolução da sua doença sem possibilidade de cura. Sendo comum ouvir
que “não há mais nada a fazer”, Cicely Saunders discordava desse prognóstico e insistia que
“ainda há muito a fazer”.
Esse “muito” é exatamente dar toda dignidade a essa pessoa sofredora, aliviando sua dor
e preparando-a para um final de vida com o mínimo sofrimento, e participando das atividades
2
casadocuidar.blogspot.com.br/p/o-que-e-cuidado-paliativo.html
diárias na medida do possível, acompanhado por uma equipe multidisciplinar que o orienta, bem
como a sua família.
Infelizmente, no Brasil, ainda são poucos os hospitais que têm equipe multidisciplinar
específica para os cuidados paliativos. Porém, em 26 de fevereiro de 2005, foi fundado em São
Paulo a Academia Nacional de Cuidados Paliativos que visa difundir e orientar os profissionais de
saúde promovendo curso, congressos, debates etc... Sobre esse assunto o escritor Rubens Alves
nos fala em seu livro Ostra feliz não faz pérola.
[...] A vida humana só é humana enquanto existe a possibilidade de beleza e
riso. Sem beleza e sem risos a vida humana acabou. O que resta é apenas um
corpo que deseja morrer. Hoje já se está dando atenção ao que se chama
“terapia paliativa”. “Paliativo” vem do termo pallium, capa, cobrir, esconder. A
terapia paliativa entra em cena quando se sabe que a batalha está perdida. Não
há mais sentido para os “recursos heróicos”. Quantas quimioterapias
sabidamente inúteis deixariam de ser feitas! Quanto sofrimento seria poupado!
O objetivo da terapia paliativa é tornar o mais confortável possível a despedida
da pessoa que vai morrer. Há de se viver bem. Há de se morrer bem. A ideia de
que a medicina é uma luta contra a morte está errada. A medicina é uma luta
pela vida boa, da qual a morte faz parte. (ALVES, 2008, p 268)
CONCLUSÃO
Sabemos o quanto é difícil lidar com a questão da morte e do morrer. Não deveria ser
assim. A morte apenas faz parte da existência e o bem viver deve ser o ideal de todo ser para
buscar um morrer bem. A decisão de doar órgãos quando declarada a morte encefálica é sempre
muito difícil porque geralmente ocorre em pessoas jovens que sofrem acidentes graves. Não é
uma morte esperada. Um trauma para qualquer família e como a morte não é assunto a ser
debatido fica ainda mais difícil essa tomada de decisão. Conversar sobre esse assunto ajudaria
muito se por acaso formos pego de surpresa pela imprevisibilidade. Acompanhar o momento da
morte de um ente querido deveria ser rotina familiar, mas geralmente acontece na solidão de um
CTI ou de uma enfermaria hospitalar. Elisabeth Hübler-Ross em seu livro Sobre a morte e o morrer
nos fornece um refletir primoroso sobre esse momento difícil. Esse texto com certeza
complementa o pensamento de Hans Jonas de que o ser humano tem o direito de ter a morte de
todo corpo rodeada de ética e dignidade.
Aqueles que tiverem a força e o amor para ficar ao lado de um paciente
moribundo, como silêncio que vai além de palavras, saberão que tal momento não é
assustador nem doloroso, mas um cessar em paz do funcionamento do corpo.
Observar a morte em paz de um ser humano faz-nos lembrar uma estrela
cadente. É uma entre milhões de luzes do céu imenso, que cintila ainda por um
breve momento para desaparecer para sempre na noite sem fim. Ser terapeuta
de um paciente que agoniza é nos conscientizar da singularidade de cada
indivíduo neste oceano imenso da humanidade. É uma tomada de consciência
de nossa finitude, de nosso limitado período de vida. Poucos dentre nós vivem
além dos setenta anos; ainda sim, neste curto espaço de tempo, muitos dentre
nós criam e vivem uma biografia única, e nós mesmos tecemos a trama da
história humana. (HÜBLER-ROSS, 1998, p 28)
REFERÊNCIAS
ALVES, Rubens. Ostra feliz não faz pérola. São Paulo: Ed. Planeta do Brasil, 2008.
JONAS, Hans. Técnica, Medicina e Ética, Capítulo 10:Morte cerebral e banco de órgãos humanos:
sobre a redefinição pragmática da morte (pp 229-250). São Paulo: Paulus, 2013.
KÜBER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
Tradução de Paulo Menezes, 8ª edição.
www.casadocuidar.blogspot.com.br/p/o-que-e-cuidado-paliativo.html
www.abto.org.br/abtov03/dafault.aspz?mn=472&c=015&s-0&friedely=entendendo-a-morte-
encefálica
www.folha.vol.com.br/ciencia/2016/07/1792720-indianos-tentam-reverter-morte-cerebral.shtml
RESUMO: À época em que Hans Jonas desenvolveu sua reflexão sobre a Ética necessária a uma
era tecnológica, as plantas transgênicas ainda não eram uma realidade. Pouco tempo depois da
sua morte, no entanto, já se plantavam soja, milho, canola e algodão transgênicos em todos os
continentes, alimentos que daí em diante farão parte da dieta global, animal e humana. Embora
promovida e defendida pelas grandes corporações internacionais de biotecnologia e pelos países
líderes no terreno da inovação tecnológica e patenteamento, cientistas, filósofos e segmentos da
sociedade civil em todo o mundo manifestaram fortes restrições à liberação de plantas
transgênicas no meio ambiente e na alimentação humana e animal. Além de desnecessária, a
engenharia genética é uma tecnologia demasiadamente nova cujos efeitos colaterais são
imprevisíveis e caso negativos, irreversíveis, tanto no que se refira à agrobiodiversidade, quanto à
saúde humana e animal. Por isso, ainda que Hans Jonas não tenha tido a oportunidade de refletir
especificamente sobre essa tecnologia, deveríamos recorrer ao seu Princípio Responsabilidade
como fundamento ético do Princípio da Precaução, uma vez que se trata de preservar as
condições necessárias à continuidade da espécie no planeta.
militância ecológica, ou seja, o comércio mundial de resíduos perigosos 1. Em toda esse campo
técnico que lida com substâncias tóxicas, a grande discussão é sempre se há evidências científicas
suficientes de que certas substâncias sejam efetivamente tóxicas ou haveria apenas indícios, que
não poderiam ser cientificamente comprovados, nem tampouco descartados. Algumas destas
substâncias que no passado se acreditava não tóxicas ou moderadamente tóxicas, contudo, como
os inseticidas DDT, se revelaram posteriormente cancerígenas, mutagênicas e perturbadoras do
sistema endócrino entre outros efeitos colaterais, gerando em muitos casos danos irreversíveis à
saúde humana. Por isso, surgiu na legislação ambiental uma abordagem de precaução, ou de
prudência, com se queira chamar. Resumidamente, em dúvida quanto a potenciais danos de certas
tecnologias ou produtos, decida-se por uma atitude de proteção à saúde e ao meio ambiente.
Como averiguei em minha tese, o Princípio da Precaução surgiu mais ou menos na mesma
época, na legislação ambiental da Suécia e da Alemanha. Ele basicamente estabelece que
autoridades não devem alegar ausência de evidências científicas para se furtar a adotar medidas de
precaução quando há indícios de que determinadas atividades possam trazer danos sérios aos
seres humanos e ao meio ambiente. Atividades que poderiam causar grandes danos, ou que estes
eventuais danos pudessem ser irreversíveis ou seus impactos imprevisíveis, deveriam ser evitadas.
Inicialmente tornado leis nesses dois países, mais tarde o Princípio da Precaução será um princípio
fundamental do direito ambiental, do direito à saúde e também da proteção ao patrimônio
histórico entre outros.
Foi assim que cheguei a Jonas. Alguns colegas do Greenpeace da Alemanha, sabendo que
eu lia alemão, me presentearam com um exemplar do Das Prinzip Verantwortung, editado pela
Suhrkamp2. Ao lê-lo, percebi a clara vinculação entre o Princípio Responsabilidade e o Princípio
da Precaução, pois o primeiro parecia fornecer a fundamentação filosófica, moral, para o
segundo.
O Princípio da Precaução, por outro lado, parecia elucidar as condições e circunstâncias
em que o Princípio Responsabilidade de Jonas deveria ser aplicado, condições e circunstâncias
essas que o filósofo apenas delineia ao tratar de algumas daquelas limitações em pesquisa
científica e desenvolvimento científico cujos “objetivos e meios seriam eticamente recusáveis”.
Escrevi então um artigo sobre a relação entre os dois princípios que saiu na revista Margem, da
Faculdade de Ciências Sociais, há algum tempo atrás3.
1 Minha tese será mais tarde publicada pela Civilização Brasileira: Ética e Cidadania Planetárias na Era Tecnológica: o
caso da Proibição da Basileia.Civilização Brasileira, RJ, 2009.
2 Hans Jonas, Das Prinzip Verantwortung: Versuch einer Ethik für die technologische Zivilisation, Suhrkamp taschenbuch,
Frankfurt am Main, 1993.
3 Lisboa, M. O fundamento ético do Princípio da Precaução, Margem, São Paulo, nº21, pags.77a 91, Junho de 2005.
Esse é um dos temas com os quais tenho lidado há mais de 10 anos de modo sistemático,
desde o período em que atuei no Greenpeace até os dias de hoje. Mesmo depois que saí dessa
organização, o tema dos transgênicos não me abandonou e acredito que ao expô-lo também vou
conquistar alguns corações e mentes para ele entre vocês. Passei quatro anos representando os
consumidores em uma comissão, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança - CTNBio, que é
encarregada no Brasil da política referente à engenharia genética. Concluí no começo desse ano o
segundo mandato de dois anos e ainda que tenha sido uma experiência muito frustrante por
razões que exporei mais adiante, foi uma campo fertilíssimo para mostrar como é possível que
cientistas e autoridades públicas ignorem esses dois princípios que estão tão integralmente
relacionados: o Princípio Responsabilidade e o Princípio da Precaução.
Curiosamente, a questão da aplicação de tecnologias modernas às plantas é uma das
questões para as quais Jonas acredita que se possa arcar com riscos do desenvolvimento
tecnológico. Assim, na longa entrevista ou debate transcrita ao fim do livro Técnica, Medicina e
Ética, editada pela Paulus e traduzida pelo Grupo de Trabalho Hans Jonas da ANPOF 4, Jonas, na
página 318, afirma que embora se conheçam os inconvenientes perigosos do emprego de
aditivos químicos para aumentar o rendimento das plantas, estes deveriam ser permitidos até que
4 Hans Jonas, Técnica, Medicina e Ética: sobre a prática do princípio da responsabilidade, Paulus, SP, 2013.
A soja transgênica Roundup Ready5, por exemplo, tem um gene de uma planta que é tolerante
a um determinado agrotóxico. Outros genes também são enxertados em seu DNA para que
aquele gene desejado penetre efetivamente nesse DNA e permaneça ativo nas gerações seguintes.
Também se produziu um milho transgênico no qual se inseriu o gene de uma bactéria muito
comum no solo, que secreta uma toxina que mata certos insetos que atacam o milho6. Em
nenhum desses casos, portanto, como Jonas julgou erroneamente, assistimos a um aumento do
rendimento ou da produtividade agrícola. Temos apenas plantas sobre as quais pode-se jogar
grande quantidade de agrotóxicos sem que morram, ou outras que contêm elas mesmas, em seus
grãos e folhagem, agrotóxicos que matam as pragas que as atacam.
Mas a que se referia Jonas ao falar de tecnologias que aumentam a produtividade apesar
de seus inconvenientes? Certamente não a transgênicos, que àquela época, 1984, ainda não
existiam em escala comercial. Ao se referir a “aditivos químicos”, provavelmente estaria
considerando o emprego intensivo de em fertilizantes e agrotóxicos, além da técnica de irrigação
consumidora de energia, que ele menciona explicitamente nessa passagem.
Ora, esse pacote tecnológico composto de irrigação, uso de fertilizantes e agrotóxicos,
seleção de sementes e mecanização da agricultura acabou por receber o nome bastante impróprio
de Revolução Verde. Aplicado no mundo todo a partir dos anos 40, ele revolucionou a agricultura,
5 A Soja RR foi a primeira planta transgênica introduzida comercialmente no mundo, produzida pela transnacional
estadunidense Monsanto.
6 O Bacilus Turingensis, conhecido dos agricultores orgânicos e utilizado nos casos bastante raros de infestação de
pragas, por meio de uma calda.
7 A respeito da agricultura camponesa: Alier, Joán Martinez, Da Economia Ecológica ao Ecologismo Popular, Editora da
FURB, Blumenau, 1998;Carvalho, Horácio Martins de, O Campesinato no Século XXI, Editora Vozes, Petrópolis,
2005; Petersen, Paulo (org.) A Agricultura Familiar Camponesa na Construção do Futuro, AS-PTA< RJ, 2009; Shiva,
Vandana, Monoculturas da Mente:perspectivas da biodiversidade da biotecnologia, Editora Gaia, SP, 2003.
demasiado cara. Passa-se fome porque roubou-se as terras de boa parte da nossa população
indígena que conseguiu sobreviver ao extermínio dos primeiros tempos; porque libertou-se os
escravos, mas não se lhes deu terras e porque, continuamente, rouba-se as terras dos camponeses
brasileiros, que quando as tem, tem pouca, minifúndios, e frequentemente as mais áridas. O
campesinato familiar tampouco tem crédito rural fácil, isenções de impostos e financiamento de
equipamentos, tudo o que sobra para o agronegócio brasileiro, por exemplo. Mas, mesmo assim,
o campesinato familiar faz milagres, pois é responsável por boa parte dos alimentos que
consumimos.
Fosse a agricultura indígena do Terceiro Mundo pouco produtiva, e os europeus não
teriam encontrado nas Américas uma população superior a 50 milhões de pessoas segundo
estimativas dos especialistas, bem nutridas e com aparência invejável se comparada a eles. Mas,
entre pestes, trabalho escravo nas minas e roubo de suas terras, hoje sobrevive apenas uma parte
mínima desses indígenas8. O mesmo podemos dizer das enormes populações agrárias da Ásia e
África, que desconheceram a fome até a chegada dos europeus. Expulsos de suas terras pelo
imperialismo europeu, uma enorme massa despossuída se concentrou em suas cidades e à essa
massa é que falta trabalho e dinheiro para comprar comida. As estatísticas internacionais
mostram que o planeta hoje produz mais alimentos do que o suficiente para alimentar
decentemente sua população. O problema da fome não é um problema de volume de produção,
mas de distribuição desigual de recursos para ter acesso aos alimentos: terra e renda. Enfim, um
problema social.
Dito isso em discordância com Jonas, ainda tenho bastante a dizer sobre essa neta da
Revolução Verde que é a Engenharia Genética. Como já disse antes, a grande maioria dos
transgênicos até hoje “inventados”, tem como objetivo permitir que o agronegócio use maior
quantidade de agrotóxicos em plantas a eles tolerantes, matando as chamadas ervas invasoras, ou
eliminar a necessidade de aplicação de agrotóxicos, ao transformar as próprias plantas em
agrotóxicos. A economia de recursos na aplicação de agrotóxicos redunda, portanto, em maior
consumo de agrotóxicos de nossa parte. Não foi à toa que depois da adoção da soja e milho
transgênicos no Brasil nos tornamos seus maiores consumidores, ultrapassando os EUA nesse
aspecto. Agricultores interessados em vender seus alimentos independentemente de sua
qualidade, vem nisso um bom negócio, pois com poucas fumigações de um mesmo agrotóxico,
economizam em aplicações sucessivas e mão de obra. Empresas de biotecnologia, a maioria
transnacionais – Monsanto, Singenta, Bayer, Basf e Du Pont entre as maiores – são na verdade as
8 Sobre a catástrofe demográfica que aniquilou grande parte da população pré-colombiana ver: Crosby, A.,
Imperialismo Ecológico, Companhia das Letras, SP, 1993; Diamond, J., Armas, Germes e Aço:os destinos das sociedades
humanas, Record, RJ, 2001; Rouland, N., Direito das minorias e dos povos autóctones, Editora UNB, Brasília, 2004.
que mais ganham com a venda de sementes transgênicas e os agrotóxicos a elas associados.
Patenteando suas plantas transgênicas, fidelizam à força os produtores rurais, que passam a ter que
comprar suas sementes todas as vezes que plantam, pois o retorno à agricultura convencional é
difícil, senão impossível, dada a contaminação das variedades convencionais pelas transgênicas.
As indústrias químicas também ganham, portanto, bem como as indústrias de máquinas. A
Revolução Verde é assim um excelente negócio, menos para a humanidade e para o meio
ambiente.
Uma pequena lista dos danos irreversíveis que a transgenia pode causar9:
As plantas “engenheiradas” podem trocar material genético com suas parentas, chamadas
convencionais e na seleção natural podem se sair melhor e eliminar a existência dessas últimas.
Não é possível saber o que acontecerá em cada caso e em cada ecossistema. O experimento está
sendo feito em tempo real e em escala sem procedentes. Se isso acontecer, perderemos variedades
de plantas que nossos camponeses e populações indígenas levaram milênios para domesticar e
adequar à alimentação humana e animal. E, como sabemos, somos capazes de destruir a
Natureza, mas não de criá-la.
As plantas transgênicas ou os agrotóxicos a elas associados podem matar abelhas,
pássaros, mariposas, borboletas e causar grandes danos aos ecossistemas nos quais esses insetos e
animais cumprem um papel fundamental. Sem tais insetos, é possível que tenhamos quebras de
safra monstruosas e grandes fomes. Boa parte das plantas com as quais nos alimentamos são
fertilizadas por esses insetos e animais.
A inserção genética em organismos estranhos a eles pode produzir proteínas
desconhecidas que podem gerar enfermidades também desconhecidas em nós e nos animais ou
intensificar aquelas enfermidades que já conhecemos como alergias, mutações genéticas, cânceres.
É possível que levemos décadas para descobri-lo e talvez mais ainda outras décadas, para
combatê-las.
Finalmente, plantas são serem vivos, se reproduzem naturalmente. Uma vez liberadas no
meio ambiente, plantas transgênicas não são passíveis de recall. Por isso, dizemos que plantas
transgênicas oferecem riscos imprevisíveis e em grande parte irreversíveis, além de serem
desnecessárias. Os sistemas agroecológicos, que são a combinação dos conhecimentos milenares
de nossos agricultores com a moderna ciência agroecológica, são perfeitamente capazes de
alimentar o mundo, caso recebam os mesmos estímulos e recursos destinados ao agronegócio.
Diz-se comumente que a agricultura orgânica seria incapaz de alimentar o mundo, o que não é
9 Sobre a discussão a respeito de benefícios e riscos de transgênicos: Andrioli, A.I. e Fuchs R., (Orgs.) Transgênicos:
As Sementes do Mal: a silenciosa contaminação de solos e alimentos, Expressão Popular, SP, 2008; Lacey, Hugh, A
Controvérsia sobre os Transgênicos, Ideias e Letras, Aparecida, 2006; Zanoni, M., e Ferment, G.,Transgênicos para quem?
Agricultura Ciência e Sociedade, MDA, Brasília, 2011.
verdade. O agronegócio que recorre a alta tecnologia só produz mais, porque é ajudado a
produzir. Olhemos para nós, no Brasil. Grandes produtores de soja, milho, cana-de-açúcar e de
carne de vaca, aves e porcos, que exportamos – consumimos o arroz, feijão, milho, mandioca,
verduras e frutas – produzidos fundamentalmente pela agricultura familiar, que enfrenta enormes
dificuldades por não encontrar crédito público suficiente e não ter as suas dívidas periodicamente
perdoadas, como acontece com os seus grandes concorrentes.
Bem, retornando a Jonas: se as tecnologias da Revolução Verde não são a solução para a
fome, e se ao contrário, ela e a Engenharia Genética são elas mesmas grandes ameaça à segurança
alimentar da humanidade devido à degradação do solo, contaminação das águas, perda de
biodiversidade agrícola e desperdício de energia fóssil que requerem - e se somamos a isso as
mudanças climáticas que aí estão e que certamente aumentarão as regiões sujeitas a um crescente
estresse hídrico – então, seguindo o raciocínio de Jonas, também a Engenharia Genética e o
pacote tecnológico da Revolução Verde não deveriam ser estimuladas, nem permitidas.
E aqui não se trata apenas de pesquisa e experimento científico que siga caprichos e não
necessidades humanas que podem ser consideradas como éticas, casos em que Jonas considera
que não se deva permitir experimentos com seres vivos. O objetivo da transgenia agrícola é
meramente o lucro, cabendo seus benefícios a apenas um punhado de empresas, grandes
agricultores e beneficiadores de alimentos, enquanto seus danos recaem sobre a humanidade e o
meio ambiente nessa e em futuras gerações.
E aí encontramos Jonas novamente. Que direito temos de ameaçar a saúde diretamente e
indiretamente a sobrevivência da humanidade, comprometendo um patrimônio da biodiversidade
agrícola que todos os povos que vieram antes de nós, desde que se tornaram sociedades agrícolas,
desenvolveram e preservaram para nós? Foram eles os verdadeiros cientistas, os que selecionaram
plantas individuais mais suculentas, mais nutritivas, mais doces e por meio de cruzamentos
durante milênios as legaram a nós. Se a humanidade deverá existir – e creio que esse é um
mandamento que a Ética nos impõe – deverá ela sucumbir lentamente por fome e desnutrição
em meio a guerras civis e guerras entre países pelas poucas terras férteis que restarão? Ou, na
melhor das distopias científicas, sobreviver comendo pílulas de concentrados químicos, distribuídas
por sabemos lá que tecnocracia governante, sem o direito de comer como nós, alimentos
saudáveis, variados, gostosos e nutritivos?
Se respondemos positivamente a essa pergunta, a la Jonas, então não podemos chamar o
que ocorre nos nossos órgãos registradores de transgênicos no Brasil, como a Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança-CTNBio10, mas também em outros de muitos países, como os da
10 Glass, V., A Ciência Segundo a CTNBio, Revista Sem Terra, ed.54, nov/dez. 2009; Marinho, C.L,C e Minayo-
Gomes, C, Decisões Conflitivas na Liberação dos Transgênicos no Brasil, São Paulo Perspectiva, nr.18, SP, 2004;
Santos, L.G.dos, Os Biotecnólogos Brasileiros em Face da Sócio e da Biodiversidade, in Novos Estudos Cebrap,
nr.78, SP, julho 2007.
11 International Agency for Research on Cancer, WHO, IARC Monographs Volume 12: evaluation of five organophosphate
insecticides and herbicides, 20 March, 2015.
12 INCA, Ministério da Saúde: Posicionamento do INCA - José Alencar Gomes da Silva – acerca dos agrotóxicos, nr. 010.
13 Price and Cotter, The GM Contamination Register: a review of record contamination incidents associated with
genetically modified organisms (GMOs) 1997-2013. International Journal of Food Contamination, 2014, 1.5.
também pode ser decorrente de agrotóxicos associados aos transgênicos14 e assim é possível que
estejamos solapando o patrimônio agrobiodiverso que os povos que consideramos “primitivos”
nos deixaram e estejamos semeando um mundo estéril e monótono, onde apenas crescem e
vicejam as ervas invasoras e as pragas que nele conseguirão sobreviver.
Quando, contudo, se exige a aplicação do Princípio da Precaução, empresas, cientistas e
governos argumentam à boca pequena que ele impede o progresso da ciência e que essa, além
disso, é neutra e busca apenas a verdade. Tudo, portanto, que Jonas com tanta propriedade
criticou no discurso científico que crê em uma ciência sem interesses e livre de problemas éticos,
está presente no debate sobre os transgênicos e é preciso dizer, de forma bem mais concreta e
generalizada, do que os seus temores em relação às manipulações com o corpo e a mente da nossa
espécie.
Pois enquanto ainda discutimos e enfrentamos muita resistência das sociedades em
relação a um cartão verde para a clonagem humana ou para a reprodução assistida por meio da
manipulação dos genomas, no caso dos transgênicos eles já estão no nosso prato de comida, nos
nossos campos e florestas, progredindo insidiosamente à sombra de autoridades, cientistas e
empresas em uma associação altamente perversa.
Em suma, é preciso convocar o Princípio Responsabilidade com urgência, nos órgãos
públicos que decidem sobre nossa biossegurança como a CTNBio e nos demais órgãos
semelhantes de outros países, pois eles já estão decidindo o destino da humanidade, sem
consultá-lo. Precisamos de Hans Jonas urgentemente na Biossegurança.
Sarah Moura
Doutoranda em Filosofia - UFRJ
Orientador Ricardo Jardim
Coorientador Olinto Pegoraro (PPGBios/UERJ)
Mestra em Filosofia pela UFRJ
Graduada em Medicina e Filosofia pela UFRJ
RESUMO: Hans Jonas (Alemanha, 1903 – EUA, 1993) considera a compreensão moderna da
Natureza como objeto da ciência um grande equívoco que repercutiu profundamente na
humanidade e na biosfera. A hegemonia tecnocientífica da sociedade de consumo de nosso
tempo pode ser entendida como uma realização do projeto moderno, cujo êxito se mostra, já há
várias décadas, como uma verdadeira ameaça para a vida humana e não-humana de todo o globo
terrestre. No Princípio Vida, Jonas refuta o dualismo cartesiano e sustenta uma visão do homem
integrado à natureza, e que seres humanos e natureza integram um mesmo sistema, no qual a
nossa espécie, como todas as outras, irrompeu da natureza e dela depende para existir. Franck
Tinland, Professor Emérito de Montpelier III, nascido na França em 1932, corrobora e enriquece
as sustentações jonasianas, asseverando a exigência de uma nova Filosofia da Natureza. Esta
comunicação evidencia as convergências entre Jonas e Tinland, que se preocupam em fundar, a
partir de uma Filosofia da Vida ou de uma Filosofia da Natureza, uma nova ética que visa a
preservação da vida futura, que reflita sobre o agir humano dominado pela tecnociência e pelo
consumismo, que analise as ameaças decorrentes desse comportamento predador, ou seja, uma
ética da responsabilidade pela vida.
INTRODUÇÃO
Professor Franck Tinland sustenta a irredutibilidade da vida ao jogo de forças que operam
os sistemas biológicos, que a ciência moderna cada vez desvenda mais. O conhecimento que a
humanidade acumulou sobre a natureza desenvolveu-se extraordinariamente desde o século
XVII, com a edificação da ciência moderna. Entretanto, Professor Tinland afirma ter ocorrido
uma espécie de monopolização das representações do mundo com base na ciência (Cf.
HOTTOIS, 1993, p 54).
Esta concepção mecânica do mundo, consequência da ruptura cartesiana das duas
substâncias, reflete a oposição entre a res cogitans e a res extensa, que concretiza uma diferença
radical entre o pensamento e o mundo, e no próprio homem, a reparação entre o pensamento e o
corpo. Muitos autores já mostraram o equívoco de Descartes, como Hans Jonas e Franck
Tinland, que afirmam que as paixões da alma e os movimentos voluntários desmontam o
esquema cartesiano.
Segundo Tinland, desde Descartes a filosofia se fundo no sujeito e as ciências buscam
conhecer as leis naturais para elaborar um uso calculado da natureza (Cf. HOTTOIS, 1993, p 54).
Tinland exorta a filosofia a mais uma vez observar os limites do conhecimento que se obtém por
meio de procedimentos ativos, controlados, científicos. Ora, a filosofia se interessa pela ciência
pelo viés epistemológico, com aquilo que importa ao interesse humano.
A natureza separada da experiência do sujeito é um mecanismo que não possui finalidade
interna e que a engenharia, por meio de seus cálculos, destina aos agentes que transformam as
matérias primas da natureza em produtos para o mercado. Com isso, multiplicam-se as formas e
os meios de trabalho, os corpos e os desejos dos consumidores são alimentados. Esse processo
se dá por meio da apropriação do mundo graças à mediação de técnicas e a assimilação da
realidade física do mundo pelos homens, e nutre a esperança de um existir melhor. O desejo que
movia Descartes era de que seus descendentes pudessem colher os frutos da “árvore do
conhecimento” da mecânica, da medicina e da moral (Cf. HOTTOIS, 1993, p 54s).
A novidade da ideia de progresso se impôs em menos de um século. Se na Antiguidade o
mundo era considerado perfeito e pleno, na Modernidade surge a ideia de progresso, de que o
mundo poderia ser melhor em relação à vida humana.
As crises nos revelam as contradições do momento em que vivemos, onde há propostas
antagônicas para solucionar os problemas, mas todas concordam sobre o fato de que o amanhã
será melhor do que hoje. Entretanto, a crise se tornou um estado multidimensional que exige
uma reflexão sobre a necessidade do progresso. Tinland ilustra esta situação com uma fala do
presidente norte-americano Jimmy Carter no Discurso sobre o estado da União, em 1979: “Nós
sempre cremos que nossas crianças viveriam melhor do que nós. É chegada a hora de pensarmos
que isso não é mais verdadeiro”.(Cf. HOTTOIS, 1993, p 56, nota 1)
Por certo mudamos o mundo, e, segundo Tinland, agora somos confrontados a uma
reavaliação da mesma grandeza que aquela vivida no início dos tempos modernos por Bacon,
Galileu e Descartes, dentre outros. Esta reflexão crítica sobre nossa crença no progresso torna a
compreensão do sentido de natureza um problema a ser enfrentado.
O poder de nossas ações cresceu demasiadamente e se afirmou como domínio sobre a
natureza. Nossas “conquistas” vieram a condicionar nosso modo de ser e de agir no mundo. A
existência humana, a vida, enfim, tudo que nos é dado pela natureza, se encontra sob a ameaça
vinda do agir humano.
Assim, pode-se dizer com Jonas e Tinland que a natureza assumiu grande risco ao deixar
nascer o homem. A vulnerabilidade crítica da natureza pela ação técnica do homem é algo que só
foi percebido quando os estragos foram detectados.
Nosso poder tecnocientífico se estende a toda a biosfera, e nossa ação técnica desmedida
revela a vulnerabilidade crítica da natureza diante desse modo de ser e de agir que a humanidade
manifestou. Passamos a ser responsáveis pela natureza justamente porque adquirimos imenso
poder sobre ela.
Nós nos sabemos responsáveis por nossas crianças, por nossos concidadãos,
por nossos semelhantes no limite extremo. Mas onde cessaria nosso poder
passaria também o limite entre a preocupação ética e o direito de usar, até
mesmo abusar, dos meios os quais nós tiramos nossa capacidade de agir, nosso
poder. (HOTTOIS, 1993, p57)
Tinland ainda assevera que essa nova responsabilidade do homem não é nada romântica
ou sentimental, mas ela é o que transforma a natureza em objeto da ética. Para Tinland, o
princípio responsabilidade de Jonas não é uma nem uma releitura das Fioretti franciscanas dos
fins da Idade Média, nem do movimento contracultural dos hippies dos anos 60 do século
passado (Cf. HOTTOIS, 1993, p 60).
A Natureza é bem esta na qual nós temos o direito de intervir, e não o jardim
que os homens desde o sexto dia da criação teriam na sua guarda e cuidado. Ela
é o lugar onde jogam forças antagônicas, onde se desenrola o drama da vida
que dá a morte e da morte que abraçam a vida. (HOTTOIS, 1993, p 60)
natureza, é uno e dá testemunho de si mesmo. Vale lembrar que na Antiguidade as ciências não
eram experimentais, mas contemplativas.
Ora, se o desenvolvido mostra o que estava velado, o explícito mostra o implícito e o
acabado revela o que estava contido no gérmen, é preciso reconhecer que a subjetividade do
homem mostra a sua natureza (Cf. HOTTOIS, 1993, p 64).
Tinland assevera que precisamos aprofundar ainda mais a crítica à racionalidade moderna.
A filosofia dos tempos modernos baniu a teleologia a priori, e esse abandono não foi resultado da
conclusão de uma série de experimentos. Ora, o que explicita por meio de um processo que
mostra o que estava em gérmen é a finalidade ela mesma.
O poder dizer “eu” corresponde a uma autoconsciência que torna possível a referência a
si mesmo, a capacidade de dizer eu penso, eu desejo, eu sinto.
A finalidade pela qual todo ente se revela como ente a si mesmo – seu próprio fim – pode
ser comparada ao pensamento de Spinoza, defensor das causas finais e que valoriza o esforço de
todos os entes para inscrever seu próprio ser na duração, na ordem da natureza (Cf. HOTTOIS,
1993, p 65).
Compreende-se melhor, então, a importância do poder tecnológico na sua
capacidade reveladora de estruturas profundas da natureza e do ser no mundo
humano. Esse poder põe em perigo todo o edifício da natureza tal como ele se
constituiu e a aptidão do ser humano de viver humanamente. (HOTTOIS,
1993, p 66)
Com a consciência deste perigo inédito, que marca uma ruptura, devemos observar
solidariamente o que surgiu pelo trabalho lento e misterioso dos processos naturais.
É preciso ter noção adequada da medida das novidades que a hegemonia tecnocientífica
faz surgir na ontologia. Enquanto a evolução natural ocorre lentamente a partir da modificação
de pequenos detalhes, a moderna tecnologia promove mudanças em grande escala numa
velocidade estonteante. O curto prazo do agir técnico dos seres humanos vem substituindo a
ritmo mais lento dos processos da natureza graças ao imenso alcance do poder causal das nossas
máquinas
Segundo Tinland, o enorme descompasso entre esses dois ritmos – o da natureza e o do
agir técnico dos seres humanos – traz à tona duas questões: uma se refere ao estatuto da ação
humana em relação a esta ontologia que, em seu sentido originário da physis, é também uma
fisiologia, e a outra é a articulação do dever-ser no ser.
A afirmação jonasiana de que a natureza não poderia assumir risco maior que deixar
existir o ser humano, se relaciona com este ponto, sustenta Tinland. Se há tecnologia, ela repousa
na tendência da natureza à diferenciação e à manutenção das diferenças entre os seres, é uma
teleologia da individuação, e com essa perspectiva passou a ser possível a existência humana com
teleológico da natureza e que, entretanto, pode tornar-se a causa da destruição graças ao poder
que a civilização tecnológica alcançou (Cf. HOTTOIS, 1993, p 70).
A responsabilidade dos seres humanos sobre a natureza e sobre sua própria existência se
origina desse poder de destruição que a humanidade alcançou com o desenvolvimento
tecnológico e científico.
Professor Tinland questiona se seria suficiente reconhecer a reivindicação de existência
imanente a todo ser que é um fim em si mesmo e retoma a questão se ser é melhor que não-ser.
Jonas afirma a primazia do ser sobre o nada, atribui valor à existência e, desta maneira, o sim ao
ser e o não ao não-ser passam a constituir obrigação ética.
É preciso ainda esclarecer, dar limites e orientações ao desenvolvimento da ciência e da
técnica. A humanidade embriagou-se com o poder, há pouco conquistado, e interferimos sem
medidas nos equilíbrios da vida. É preciso compreender a autenticidade do ser humano e suas
especificidades, e estar consciente de que seu agir escapa às regulações “cegas” da natureza e da
vida.
Questionar o domínio do poder técnico-científico e de sua expansão constitui tarefa da
responsabilidade, a partir da tomada de consciência daquilo pelo que somos responsáveis (Cf.
HOTTOIS, 1993, p 71).
O homem possui extraordinária capacidade de adaptação, e é a “ideia de ser humano”, e
não as determinações circunstanciais, que distingue as condições humanas ou não-humanas da
existência.
A natureza modificada pelo homem – ou “humanizada” é, na realidade, uma natureza
alienada, tornada estranha a ela mesma graças a sua apropriação pelo e para o homem. Uma
filosofia da natureza que não permita ou que ao menos seja capaz de dar limites a essa
humanização será suficiente para evitar que a euforia de alguns séculos industriais custe a
destruição de milênios de evolução do mundo.
Esta festa frívola que consumiu e continua a consumir a natureza avassaladoramente não
foi partilhada equitativamente e excluiu muitos seres humanos. (Cf. HOTTOIS, 1993, p 72). “A
história, felizmente, nunca diz a última palavra” (HOTTOIS, 1993, p 72).
À pouca esperança e a angústia diante da possibilidade real de um mundo transformado à
medida dos seres humanos, e, assim, desnaturada, alienada de si, soma-se a desilusão decorrente
dos perigos da utopia do progresso, tão bem demonstrados pro Jonas. É preciso pensar na
autenticidade do ser humano no horizonte daquilo que o precedeu e que sobreviverá a ele, diz
Tinland, que agradece a Jonas por ter dito isso com tanta força (Cf. HOTTOIS, 1993, p 72s).
BIBLIOGRAFIA
_______. O princípio vida – fundamentos para uma biologia filosófica. Petrópolis: Vozes, 2004.
Tradução de Carlos Almeida Pereira.
_______. Les hommes face au défi de leur humanité. Paris, 2010. Texto inédito, cedido para
esta pesquisa pelo autor.
RESUMO: A liberdade aparece em Hans Jonas (1903-1993) como diretriz para a compreensão
da vida, serve lhe como pilar na formulação de seu Princípio Vida. Ao explorar a relação entre a
necessidade natural e a contingência radical, apontando para a estrita hegemonia da lei da
causalidade da ação. Apesar da pluralidade de possibilidades, uma vez encetado o caminho, as
possibilidades passadas deixam de existir. A Teoria da Evolução de Darwin (1809-1882) revela a
contingente interação entre organismo e meio ambiente. Por parte do organismo ocorrem as
variações aleatórias e o ambiente atua pela seleção natural. Jonas aplica o conceito de liberdade na
tarefa de interpretar a vida e a considera como o seu fio condutor, pois diferentes estágios da
substância Vida podem ser compreendidos se tomado por foco a liberdade a ele disponível. O
Ser tende a graus cada vez mais elevados de interação, que implicam, evidentemente, em mais
possibilidades de liberdade. No entanto esta liberdade está imbricada com a necessidade do Ser
que urge por satisfação. Assim, se conforma um vigoroso movimento dialético: a necessidade
demanda uma satisfação do exercício de uma liberdade. Esse binômio se autossustenta, um não
existe sem o outro, e nesse movimento incessante o Ser existe. Nas palavras de Hans Jonas, “o
poder se transforma em dever quando o que importa é o ser” (JONAS, 2004)
TEORIA DA EVOLUÇÃO
pretéritas daquele ser, se exercidas de outra forma provocariam a ocorrência de outro ser diverso
do atual e, portanto, e implicaria na não existência do ser atual.
A liberdade de escolha do organismo é infinita, mas só algumas delas serão capazes de
mantê-lo na vida, na forma que ele se encontra.
LIBERDADE DIALÉTICA
Desse ponto em diante as liberdades se somam e se tornam cada vez mais amplas,
perfazendo um efeito cumulativo, umas sobre as outras, sempre se ampliando.
Assim, Jonas aplica o conceito de liberdade na tarefa de interpretar a vida, que é o mister
de sua obra.
O Ser tende a graus cada vez mais elevados de interações com o meio, que significa um
número cada vez maior de possibilidades, as quais implicam, evidentemente, em mais
possibilidades de liberdade. No entanto esta liberdade estána necessidade do Ser que urge por
satisfação. Assim, se conforma um vigoroso movimento dialético: a necessidade demanda para
uma satisfação do exercício de uma liberdade. Esse binômio se autossustenta, um não existe sem
o outro, e nesse movimento incessante o Ser existe, ese faz Forma Viva.
Nas palavras de Hans Jonas, “o poder se transforma em dever quando o que importa é o
ser” (JONAS, 2004, p 107)
O SI-MESMO E O MUNDO
AMPLIAÇÃO DA LIBERDADE
Jonas analisa a relação dos sentidos físicos com a liberdade. Quanto mais refinados os
sentidos, maior o ângulo de liberdade do organismo. A visão é o sentido de excelência das
Formas Vivas e no ser humano é a condição de possibilidade de sua evolução espiritual na
medida em que enseja a produção de imagens. Segundo Jonas, a capacidade imagética apresenta
três características: “1) simultaneidade na apresentação de uma variedade, 2) neutralização da cauda
da afecção do sentido, 3) distância no sentido espacial e espiritual” (JONAS, 2004, p 160).
Simultaneidade está na imediata apreensão pelo sentido da visão de tudo que é visto em
um abrir de olhos. A parcela do mundo avistada se presentifica em todas as suas nuances num
átimo, apartado do tempo. Nenhum outro sentido se liberta dos grilhões da dimensão temporal
como a visão, pois os demais sentidos dependem do corpo ser afetado por um período de tempo
para que ocorram.
A sensação tem que se prolongar, para com seu fluir adicionar a sequência
àquilo que foi iniciado no que antecede (...) O som existe como sequência, cada
momento dele desaparece no que já passou enquanto ele continua a doar (...)
Enquanto os vegetais estão adstritos ao que lhes é sensível pelo tato, os animais dispõem
de um aparelho sensorial muito mais amplo. Jonas eleva a mobilidade à condição de máxima
importância dos sentidos:
E o exemplo do sentido que parecer ser o mais livre de tal mistura
mostra que a mobilidade, que é necessária para o próprio exercício da
percepção sensitiva, participa, por sua vez da experiência básica da
sensibilidade, na medida em que está deve ser mais do que um mero
registro de estímulos exteriores (JONAS, 2004, p 180).
LIBERDADE DA IMAGEM
CONCLUSÃO
Por tudo, se pode dizer que a liberdade é um agir para fora de si, seja para se apropriar do
que está fora, seja para alterar o que está fora, o mundo.
A liberdade é facilmente percebida como uma contraparte da necessidade desde o mais
simples dos organismos. O metabolismo é o mais simples exercício dessa liberdade. O comer e o
excretar são exercício da liberdade absolutamente contingente.
A filosofia de Jonas parece afirmar que a Vida está em constante busca por liberdade,
ideia que ele corrobora com a Teria Evolucionista de Darwin.
No entanto, a cada ampliação do diâmetro do arco da liberdade, surge o incremento
proporcional da necessidade. E um organismo necessitado é um organismo frágil.
Assim, o homem aparece como o mais livre e o mais frágil de todas as espécies.
Essa flagrante fragilidade do homem, talvez seja o que acarreta a enorme produção
cultural e tecnológica e as tensões pessoais entre si e as demais espécies.
A força motriz do agir do homem está assentada nessa busca incessante de suprir a
necessidade pelo exercício da liberdade. Nas palavras pulsantes de Nietzsche:
Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-
dominar, um querer-vencer, um querer-subjulgar, uma sede de inimigos,
resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se
expresse como força (NIETZSCHE, 2009, pp 32-33).
BIBLIOGRAFIA:
MOURA, Sarah. Sobre a Filosofia da Vida, de Hans Jonas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2012.
(Monografia de Graduação).
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Thiago Vasconcelos
Doutorando em Filosofia pela PUCPR
RESUMO: Este trabalho pretende apresentar algumas das ideias de Hans Jonas presentes em
sua análise sobre a relação entre os movimentos gnósticos da Antiguidade Tardia e do
existencialismo heideggeriano a partir da tese de que ambos compartilham um caráter niilista. O
niilismo que atravessa e constitui o niilismo gnóstico e o niilismo existencialista é caracterizado,
para Jonas, pela ruptura do humano em relação à natureza e a consequente desvalorização dessa
última. Enfrentar o niilismo consiste, então, na filosofia de Hans Jonas, pensar um novo modo de
compreensão dessa relação. Se as duas versões do niilismo estudadas por Jonas, a saber, o
gnosticismo e o existencialismo heideggeriano, são marcadas por posicionar o humano à parte do
mundo, Jonas, ao contrário, o entende como parte do mundo. Pode-se afirmar, nesse sentido,
que o enfrentamento do niilismo constitui a tarefa basilar da filosofia jonasiana.
INTRODUÇÃO
Jonas, já no início de Gnose, existencialismo e niilismo afirma que seu escopo consiste em
experimentar uma comparação entre dois movimentos distantes no espaço e no tempo, “e que à
primeira vista parecem incomensuráveis” (PV1, 233). O filósofo postula que existe alguma coisa
em comum entre os movimentos gnósticos da Antiguidade Tardia e o existencialismo
contemporâneo.
A tomada de posição em relação ao existencialismo, e aqui, sobretudo, aquele de vertente
heideggeriana liga-se à tomada de distância do pensamento do filósofo de Ser e Tempo por parte de
Jonas. Como o próprio Jonas afirma: “Depois da guerra minha reflexão se desenvolveu
principalmente sob o signo do distanciamento do existencialismo heideggeriano” (M, 323). É a
aproximação de Heidegger ao nazismo que exerce em Jonas o sentimento de “falência do pensar
filosófico” (M, 324). A crítica de Jonas a Heidegger aparece, no entanto, não apenas no artigo já
citado, mas podemos indicar ainda a conferência intitulada Heidegger e a teologia em um congresso
na Drew University de New Jersey sobre os problemas da hermenêutica e o papel do pensamento
tardio de Heidegger na linguagem da teologia evangélica2. Sobre a filosofia tardia de Heidegger,
Jonas afirmou em uma postura fortemente crítica:
1 No presente artigo usaremos as seguintes siglas para a citação das obras de Hans Jonas: M (Memórias); RG (A
Religião Gnóstica: A mensagem do Deus estranho e os começos do cristianismo); PV (O Princípio Vida), PL (O Fenômeno da Vida).
As abreviaturas são seguidas do número da página conforme a obra que se encontra nas referências.
2 Sobre esse congresso Jonas relata que Heidegger confirmou sua participação, porém no último instante recusou a
participar. Por conseguinte, convidaram a Jonas para proferir a conferência inicial, visto que foi um antigo aluno de
Heidegger e Bultmann. Jonas considera esse momento como uma possibilidade de acerto de contas com Heidegger
(cf. M, 328-329).
Não podemos, todavia, ignorar a importância da influência exercida por Heidegger sob
Jonas, principalmente no tocante à sua análise dos movimentos gnósticos. A analítica existencial
do Dasein heideggeriana, bem como a análise epocal do professor de Freiburg3, apresenta-se
como pano de fundo em que Jonas acredita ser possível analisar diferentes períodos históricos.
Segundo Jonas, as estruturas originárias do Dasein em sua relação concreta com ele mesmo e com
o mundo identificadas por Heidegger são estruturas a-históricas comuns a todas as épocas.
Portanto, são essas estruturas que guiam as relações do Dasein que Jonas toma em suas pesquisas
sobre o gnosticismo, a fim de, por meio dessas ferramentas hermenêuticas, lançar luz sobre as
objetificações que aparecem dentro de um horizonte histórico-concreto e, então, compreender as
razões e interesses implicados na dinâmica da vida em sua relação com tais fenômenos e não
outros (cf. BONALDI, 2006, p. 16). Jonas com o passar dos anos se afasta dessa perspectiva que
toma a analítica existencial do Dasein como aplicável a todas as épocas históricas, ou seja, como
chave que pode abrir todas as portas. Jonas passa a suspeitar “que a analítica existencial, ao
contrário de ter revelado estruturas ontológicas universais, foi bem-sucedida para penetrar tão
profundamente no universo gnóstico pelo simples fato de ser, de algum modo, já relacionada
com a específica disposição (Stimmung) dualista e niilista deste último” (cf. TIBALDEO, 2009, p.
38).
A formulação de um princípio gnóstico marcado por um dualismo niilista colabora na
compreensão de Jonas do sentido do niilismo moderno. E assim, se anteriormente o
existencialismo heideggeriano serviu a Jonas para interpretar o gnosticismo, por último é a
utilização do que chamamos de princípio gnóstico que o fornece uma leitura gnóstica do
existencialismo. O primeiro passo, portanto, consiste em compreendermos de que trata o
princípio gnóstico niilista e os traços constitutivos do movimento gnóstico que dá unidade à
multiplicidade de vozes gnósticas.
O NIILISMO GNÓSTICO
3 Na medida em que podemos afirmar que a análise epocal encontra-se prefigurada em Ser e Tempo.
desse período é uma religião de salvação; c) todos carregam uma concepção totalmente
transcendente, ou melhor, transmundana de Deus e d) todos tem uma noção transcendente e
ultramundana do objetivo da salvação. Todos esses traços são ligados e engendrados por um
dualismo radical dos âmbitos do ser – Deus e mundo, espírito e matéria, corpo e alma, luz e
escuridão, bem e mal, vida e morte. O gnosticismo evidencia uma polarização radical da
existência que não afeta somente o ser humano, mas a totalidade da realidade. Em suma, o
princípio ou paradigma gnóstico pode ser dito nos seguintes termos: “a religião geral do período
é uma religião salvífica, dualista e transcendente” (grifo do autor) (RG, 66).
O traço comum da atitude gnóstica que confere unidade às suas diferentes manifestações
é o dualismo radical que o atravessa. Há um dualismo entre o ser humano e mundo, mas,
paralelamente a esse, também o dualismo entre mundo e Deus. Segundo Jonas, trata-se de “um
dualismo não de grandezas complementares, mas sim de grandezas contrárias” (PV, 239). O
mundo é o elemento que separa o ser humano de Deus, pois o “divino é estranho ao mundo e
não tem nenhuma parte no universo físico” (PV, 239). O verdadeiro Deus é o absolutamente
transmundano, o desconhecido. Desse modo, o mundo não o revela nem o aponta, é totalmente
alheio a Deus. O aspecto antropológico toma o ser humano como tripartido, composto de corpo,
alma e espírito. Enquanto o corpo e a alma são produtos dos poderes cósmicos e, portanto, estão
submetidos às leis deste mundo o espírito ou pneuma “não é parte do mundo, não pertence à
criação e ao domínio da natureza” (PV, 239), ele, do mesmo modo que o Deus desconhecido,
não pode ser conhecido a partir de categorias mundanas.
A análise das fontes gnósticas, realizada por Jonas, denota a gnóstica negação de que o
mundo seja ordenado para o bem, ao ser entendido como a prisão tirânica dos arcontes e sua lei
(heirmaméne) constitui-se o inimigo a ser vencido. De acordo com Jonas para os gnósticos “a
alienação entre o ser humano e o cosmos devia ser levada ao extremo [...] O mundo tem que ser
vencido, e o mundo que se degradou em um sistema de poder só pode ser vencido pelo poder”
(PV, 241-242). O gnosticismo é, por conseguinte, um movimento que vê o mundo mais do que
como cárcere que devemos nos libertar4, mas um inimigo que devemos vencer.
5 “Para onde foi Deus? gritou ele [o homem louco], já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus
assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem
nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela
agora? Para onde nos movemos nós? [...] Não sentimos na pelo o sopro do vácuo? [...] Não sentimos o cheiro da
putrefação divina? Também os deuses apodrecem! Deus está morto!” (grifo do autor) (NIETZSCHE, 2012, p. 137-
138).
6 De acordo com Jonas, seguindo Karl Löwith, Pascal poderia ser assinalado como o primeiro existencialista, mas
também como o último gnóstico. Segundo Jonas, a afirmação pascaliana da solidão humana em um universo
estranho sintetiza a solidão do ser humano frente ao mundo que caracteriza o gnosticismo a partir da noção de Vida
estrangeira, assim como a noção de estrangeiro presente no existencialismo contemporâneo.
o niilismo moderno muito mais radical e desesperado do que jamais poderia ter
sido o niilismo gnóstico, com todo o seu horror ao mundo e sua revolta contra
as leis do mundo. Que a natureza não se preocupe, é este o verdadeiro abismo.
Que só o ser humano se preocupe, não tendo diante de si, em sua finitude,
outra coisa a não ser a morte, que ele esteja só com sua contingência e com a
ausência objetiva de sentido de seus projetos de sentido, é na verdade uma
situação sem precedentes (PV, 252).
A partir da crítica que Jonas direciona ao niilismo gnóstico e sua ligação com o niilismo
do pensamento de Heidegger, e por expansão à modernidade, identificamos que é na relação
entre o ser humano e a natureza que o niilismo constitui um perigo a partir de duas perspectivas:
a primeira toma a natureza como antípoda (posição anticósmica, isto é, gnóstica), já a segunda
entende a natureza como neutra e indiferente (posição acósmica, isto é, existencialista). A tarefa
jonasiana de oposição ao niilismo dualista significa a tentativa de enfrentamento das duas
posições descritas acima que, em última análise, ocultam a afinidade entre o ser humano e a
natureza, o problema central do dualismo. Para Hans Jonas, a separação entre ser humano e
natureza é a marca central do niilismo que compreende “a natureza viva como alguma coisa
estrangeira ao homem” (MONTEBELLO, 2007, p. 10).
Nessa medida, o fracasso da ontologia de matriz heideggeriana fará com que Jonas se
empenhe em uma revisão ontológica que busca interpretar a relação entre o ser humano e a
natureza. Sua fenomenologia da vida é, então, uma tentativa de “destruir a hipótese niilista de um
isolamento do homem em relação à natureza” (MONTEBELLO, 2007, p. 12).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, resta claro que é por meio do conceito de natureza – ao qual anteriormente eram
negados dignidade e valor intrínseco – que o filósofo visa restituir o sentido do vivente perdido
com o niilismo que atravessa a compreensão moderna de natureza e ramifica-se no
existencialismo contemporâneo que acaba por não se destacar do dualismo metafísico cartesiano.
Jonas vê no niilismo dualista um problema filosófico que se dimensiona como problema da vida
e empenha-se, decorrente disso, na reinterpretação da natureza da vida, buscando compreendê-la
como uma totalidade orgânica, psíquica e espiritual. Jonas não deixa de reconhecer, contudo, o
caráter dual e dinâmico da vida, ou seja, ele não abole a noção de dualidade, mas não recai por
isso em um dualismo.
Nessa reformulação do problema do Ser entendido como Ser vivente, Jonas pretende
alcançar a superação da visão dualista e, por conseguinte, enfrentar o niilismo, que está na gênese
da perda do sentido da vida como uma unidade psicofísica. Revisão ontológica que tem como
consequência última a possibilidade de ver o ser humano não como estrangeiro no mundo, mas
como parte integrante da totalidade do sentido da natureza, do fenômeno da vida. Eis como
Jonas articula a sua tentativa de enfrentamento do niilismo, primeiramente no campo da biologia
filosófica e, consequentemente, no da ética dela derivada.
REFERÊNCIAS
La religión gnóstica: El mensage del Dios Extraño y los comienzos del cristianismo.
Traducción de Menchu Gutiérrez. Madrid: Ediciones Siruela, 2000.
O princípio vida: fundamentos para uma biologia filosófica. Tradução de Carlos Almeida
Pereira. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2004.
Outras obras
______, C. Introduzione. L‟esistenza svelata: Heidegger, Jonas e S. Paolo. In: JONAS, Hans.
Conoscere Dio Una sfida al pensiero. Traduzione di Claudio Bonaldi. Milano: Edizioni Albo
Versorio, 2006. p. 11-21.
FOSSA, F. Il concetto di Dio dopo Auschwitz. Hans Jonas e la gnose. Pisa: ETS, 2014.
MONTEBELLO, P. Vie et phénomène de vie chez Hans Jonas. In: Revue Kairos, Toulouse, n.
23, p. 1-26, 2004.
NIETZSCHE, F. Obras incompletas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo:
Nova Cultural, 1999.
______, F. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras,
2012.
REALE, Giovanni. Platão. Tradução de Henrique Cláudio de Lima Vaz; Marcelo Perine. São
Paulo: Edições Loyola, 2007.
ZAFRANI, A. Ernst Bloch et Hans Jonas: Refondation de l‟éthique à partir d‟une critique du
nihilisme. Alter Revue de Phénoménologie, n. 22, p. 123-144, 2014.
Wendell E. S. Lopes
RESUMO: O presente trabalho visa apresentar uma reflexão ética sobre uma das mais
intrigantes biotecnologias da atualidade: a clonagem reprodutiva humana. Mais especificamente, o
objetivo é explorar o sentido da crítica do filósofo Hans Jonas à referida modalidade
biotecnológica, derivando dessa crítica um princípio que chamaremos de “Cuidado Criativo” –
princípio que se pretende uma interdição moral à clonagem reprodutiva humana.
ABSTRACT: The present paper aims to presents an ethical reflection on one of the most
intriguing biotechnologies nowadays: cloning. More specifically, the goal is to explore the
meaning of Hans Jonas criticism on cloning, deriving from his criticism a principle which we will
call “Creative Care” – a principle that intends to be a moral one prohibiting human reproductive
cloning.
Para iniciar este ensaio, permitam-me citar de saída o sempre eloquente Peter Sloterdijk:
“imaginariamente, já vivemos hoje em um calendário post Dolly creatam” (2000, p. 107-08) – isto é,
em um mundo que tem bem definido para si um antes e um depois de Dolly. O nascimento do
mamífero (não humano) mais famoso da história tem sido fonte de forte controvérsia e agitação,
haja vista a possibilidade real de aplicação da clonagem para a reprodução humana. Os enredos
de tal possibilidade ainda estão por aí a nos espreitar. Naturalmente, sabe-se que a clonagem
reprodutiva ainda goza hoje de muitos problemas relacionados à sua eficiência e segurança. Por
um lado, o índice de sucessos é baixíssimo – o nascimento de Dolly exigiu nada menos que a
cultura de 430 ovócitos de mais de 40 ovelhas, com o resultado de 277 “embriões reconstruídos”,
dos quais apenas 29 embriões se desenvolveram normalmente até o estágio de blastocisto, sendo
1 O seguinte ensaio é a versão revista e ampliada de uma versão preliminar apresentada no “II Colóquio
Internacional NEPC: biotecnologias e regulações”, realizado na Universidade Federal de Minas Gerais/MG, no dia
29 de abril de 2011.
implantados em 13 ovelhas com um sucesso único: Dolly (cf. GRIFFIN, 2002, p. 284); e mais: os
baixos resultados (entre 1 a 4%) permanecem para todas as espécies (cf. PENNISI & VOGEL,
2000). Por outro lado, o número de problemas que a técnica apresenta é notável: em todas as
espécies (ainda que não em todos os indivíduos) há registros de incidência de anormalidades de
extrema severidade. A lista engloba (a) morte prematura (cf. RENARD et al., 1999; KAHN,
2000, p. 225; GRIFFIN, 2002, p. 285), (b) anomalias em longo prazo como problemas
respiratórios, hepáticos, renais, imunológicos – existindo relatos, inclusive, de ovelhas com vasos
sanguíneos vinte vezes mais largos que o normal (cf. KLOTZKO, 2004, p. 118) e também com o
próprio tamanho muito maior que o normal (cf. GRIFFIN, 2002, p. 285), e (c) envelhecimento
precoce (cf. KAHN, 2000, p. 226; SHIELS et al., 1999; ALLHOFF, 2004, p. 29). Alguns
cientistas – embora não todos – pensam até mesmo que todo clone é defeituoso. Não sem
motivos, o consenso atual (na maioria dos países ocidentais) quanto à clonagem reprodutiva
humana é a legislação contrária à sua aplicação.
Apesar disso, é certo também que a prospectiva é de aperfeiçoamento da técnica e de
seus problemas, ao que já se pode ouvir alguns defenderem que “deveríamos não insistir em um
critério que exija riscos que sejam menores do que aqueles que aceitamos para a reprodução
sexual, ou em outras formas de reprodução assistida...” (BUCHANAN et al, 2000, p. 199). Tendo
em vista principalmente essa última insistência que certamente não é um caso isolado, e partindo
de uma situação hipotética, mas bastante plausível, em que a clonagem reprodutiva humana seria
segura ou pelo menos aceitável do ponto de vista técnico – ao custo, claro, da experimentação
com animais, e, nesse sentido, para desagrado de seus defensores –, buscaremos demonstrar em
que sentido a clonagem mesmo em uma situação ideal de temperatura e pressão seria moralmente
reprovável. Mais especificamente nosso escopo é explorar o sentido da crítica de Hans Jonas à
clonagem, derivando daí um princípio que chamaremos de “cuidado criativo” – princípio este
que como uma das facetas da responsabilidade se pretende uma restrição moral à clonagem
reprodutiva humana.
Inicialmente, então, devemos começar com Jonas. Do tecido de suas considerações à
clonagem duas críticas principais se destacam. A primeira, ele próprio a designa por “crítica
existencial”. É a ela que irei ater-me primeiro. Para Jonas, a questão ética levantada pela clonagem
se refere ao esclarecimento do “que para o próprio clone significa ser um clone” (JONAS,
1974/1980, p. 158; 1985/1987, p. 187). E nessa direção, o que ele busca é uma “certeza
transempírica do critério que às vezes concede a contemplação da essência” (JONAS, 1974/1980,
p. 158; 1985/1987, p. 187). Devemos então perguntar: qual é a “essência” que, ao ser
contemplada, fornece tal certeza? A resposta, podemos ouvir do próprio Jonas: “a questão central
Esse primeiro esclarecimento nos leva a outro, e que no fundo é uma resposta à crítica de
Valk. O que se deve entender é que “futuro aberto” não é um direito, mas um fato biológico, que
tanto mais se acentua quanto mais ipseidade possui um organismo (cf. JONAS, 1966/2001, p.
83-86). A filosofia da biologia elaborada por Jonas defende explicitamente a idéia de que “um
organismo também tem uma existência subjetiva [subjektives Dasein]” (JONAS, 1991, p. 106), e
nesse sentido um horizonte de transcendência e abertura já se encontra em toda experiência
propriamente orgânica. Assim, seu argumento não gravita fundamentalmente em torno do
problema da qualidade de vida do clone – o problema não é psicológico, mas ontológico, o que
quer dizer que o que conta é a condição existencial como tal, que no caso do clone se encontra
prejudicada – e é desigual – já de saída. A questão é o prejuízo no horizonte de abertura, que
embora seja, de fato, aberto, não é radicalmente aberto – é isto o que se quer dizer com a
afirmação de que a clonagem infringe o “direito à ignorância”, “indispensável para a liberdade
existencial” (JONAS, 1985/2004, p. 578; 1985/1987, p. 214) – onde “liberdade existencial”,
claro, não se confunde com livre-arbítrio (cf. PRUSAK, 2008, p. 321-323).
Esses são, a meu ver, alguns dos elementos mais importantes da crítica existencial. Ao se
passar para a outra ponta do argumento de Jonas, encontramos agora a crítica de que a clonagem
é “por seu método, a forma de manipulação genética mais arbitrária e ao mesmo tempo, por seu
objetivo, a mais escrava” (JONAS, 1974/1980, p. 154; 1985/1987, p. 179), pois ao contrário da
“modificação arbitrária da substância hereditária” ela busca um controle fixador em detrimento
do acaso da variabilidade. Portanto, ela “não pretende representar uma viagem ao desconhecido,
mas justamente em direção ao mais conhecido” (JONAS, 1985/1987, p. 179).
2 Algo bem próximo do que salienta Jonas, aqui, parece se encontrar mais recentemente, com um novo tom, no que
Holm defende com seu “life in the shadow argument”: “o argumento da vida-na-sombra não se baseia na falsa
premissa de que podemos fazer uma inferência do genótipo para o fenótipo (psicológico ou relativo à
personalidade), mas apenas na premissa verdadeira de que há uma forte tendência pública em fazer tal inferência.
Isto significa que as conclusões do argumento se seguem enquanto esta premissa empírica permanecer verdadeira”; e
o autor ainda ressalta: “é provavelmente fantasioso esperar uma mudança muito grande nas percepções do público
sobre a genética, mesmo que façamos uma campanha extremamente forte de informação pública” (HOLM, 2001, p.
206).
3 O mais incrível na defesa desse argumento, por parte de Harris especificamente, se deve ao fato de que no mesmo
livro, intitulado On Cloning, apenas algumas páginas adiante do primeiro argumento referido acima, ele defende
exatamente o contrário do que parecia defender: uma vez que a vida da criança – diz ele – sempre “será uma vida
totalmente digna, então não podem ser os interesses dessa criança as razões que justificam quaisquer decisões e
regulações que a neguem as oportunidades de existência” (HARRIS, 2004, p. 76- 77), isto é, não faz sentido apelar
para os interesses futuros da criança para negar existência a ela. Ficamos como alguém diante de um ladrão, sem
saber se levanta ou não as mãos.
Pois bem: além desse primeiro aspecto do cuidado criativo é preciso explicitar ainda o
que o mesmo possui em estreita relação com a defesa do “argumento da variabilidade”: a saber, o
cuidado não busca apenas se resguardar do dano, ele também atende a uma lógica da alteridade
ou ao que chamaremos de paradigma da adoção. Aqui, nosso princípio visa responder à questão
das intenções em jogo na opção pela clonagem. Dentre os muitos motivos de recurso à
clonagem, a defesa quanto à aplicação da técnica se concentra hoje em torno da solução de
problemas relacionados a progenitores inférteis ou que por algum motivo não podem ter filhos.
Não irei ater-me até onde se pode realmente defender uma defesa tão restrita da técnica – algo
que me parece já um tanto problemático, pois fica a questão de como se pode separar com tanta
segurança tais diferenças. Minha questão é outra. Pergunto: onde se encontra a razão de
progenitores inférteis ou homossexuais, por exemplo, quanto à utilização da clonagem? A
resposta dos defensores da clonagem é a de que os pais têm o direito a filhos que lhes sejam
relacionados geneticamente.
Ora, é em resposta a esse segundo ponto que o princípio ético do cuidado criativo se
mostra como possuindo um elemento mais positivo, isto é, como oferecendo um critério positivo
do que deve ser feito pelos pais especialmente quanto à utilização de biotecnologias – em
particular, a clonagem. Ora, tudo o que se afirma possui uma contrapartida, e a partir da
contrapartida pode-se entender também o elemento positivo. É o que farei: partirei daquilo a que
se opõe ao princípio do cuidado para entender o que ele ordena positivamente. Aqui, o que ele
nos convida a pensar se desentende com um paradoxo flagrante da resposta dos defensores da
clonagem, a saber: ao passo que se sugere ser “ingênuo pensar que o clone será como seu
doador”, defende-se, por outro lado, que não é ingênuo achar que a paternidade está relacionada
ao sangue ou a uma herança genética unilateral (como é o caso do DNA mitocondrial, cuja única
função, inclusive, é produzir energia). Mas está bem claro que na vontade de ter “filhos
relacionados geneticamente” não se encontra implícito nada mais senão a verdadeira “falácia do
determinismo genético”, ou para expor de outra forma, a clonagem se quer contraditoriamente
uma “solução à esterilidade severa [que] se inscreve assim na perspectiva de uma filiação sob
condição genética, quer dizer, extremamente redutora sobre o plano simbólico” (FROGNEUX,
2001, p. 108). O paradoxo se torna ainda mais flagrante quando se percebe que dentre as
possibilidades de solução para o problema da infertilidade, apenas duas parecem ter um resultado
mais satisfatório do ponto de vista dos progenitores: o caso de progenitores homossexuais do
sexo feminino e de progenitores heterossexuais em que a mulher é fértil e o homem é infértil.
Nesses casos, em que o recurso a um doador de esperma foi recusado, o resultado é
simplesmente idêntico: um dos progenitores não é, em termos de herança genética, propriamente
pai biológico, mas apenas irmão de seu clone. Mesmo em relação à progenitora do óvulo é difícil
saber até que ponto se pode chamá-la de mãe biológica. Para que fique claro: em ambos os casos
– e note-se que estamos falando das duas melhores possibilidades – a clonagem implica
necessariamente aquilo que chamarei, aqui, de o paradigma da adoção, isto é, a inserção da
paternidade numa perspectiva não “redutora sobre o plano simbólico”, ou se se preferir ainda,
numa perspectiva onde ela não se aplica ao caso de reproduções “simbolicamente deficitárias”
(cf. AUGÉ, 1999, p. 152).
É no sentido de superar tal déficit simbólico que o cuidado criativo tem antes como
paradigma a adoção, e o que se afirma aí é o simples fato de que todo filho é adotado. Ao recusar
toda orientação que se baseia numa lógica do mesmo, numa lógica refratária à alteridade, ou se se
quiser ainda, numa crença pangenética ou mesmo na contemplação do umbigo genético, o
cuidado criativo, ao privilegiar a adoção como paradigma, ensina que não é o sangue que conta,
nem muito menos – descendo-se o labirinto biológico em escalas sempre menores – os genes,
mas a philia. É ela que resguarda toda afiliação e paternidade. Há “filhos” que não são filhos, e
aos quais os “pais (biológicos)” simplesmente deixam para traz: “filhos” não assumidos,
deserdados.
Em especial, para se entender tudo o que está em jogo aqui, é preciso indicar o que o
termo “criativo” significa em “cuidado criativo”. Ele se opõe inicialmente a “procriativo” (por
isso era necessário afastar qualquer tipo de parentesco com princípios como o de “autonomia
procriativa” e “beneficência procriativa”) – simplesmente não se trata de um princípio
concernente à procriação, um fato puramente biológico. Nesse sentido, o termo “criativo” indica
antes de tudo que, não o ato procriativo como tal em seus resultados, mas o paradigma da adoção
é a essência da paternidade – termo que adotamos em sua acepção ampla (no sentido do inglês
“parenting” antes que “fatherhood”) –, pois a paternidade, bem salienta Marcel (1944, p. 136),
“não é um puro dado de fato, ou... uma relação objetivamente determinável... seria
completamente absurdo conceber a paternidade como um modo de causalidade, ou mesmo
como uma finalidade”. Do mesmo modo que não é um evento biológico objetivo, a paternidade
também não é um fato sociológico ou jurídico: não basta dar o nome a um filho e registrá-lo.
Criativo também não se refere a um simples criar. Pai não é o que simplesmente cria. Uma das
maiores características da sociedade contemporânea é a falência da paternidade, ou melhor: sua
alienação, e isto justamente pela degeneração da paternidade ao mero criar. Aí o dispêndio de
energia, próprio do que é criativo no cuidado, é simplesmente transferido para a escola, para a
televisão, para a internet – e comprado pelo dinheiro, esta outra razão contemporânea para o
não-ser-pai-e-mãe. Degenerada enquanto alienação, a paternidade não vai além de uma
subpaternidade – para utilizar um termo mais correto e menos ambíguo do que o termo “hiper-
paternidade [hyperparenting]” de Sandel (2007, p. 52).
Dessas últimas observações, gostaria de destacar, por fim, os dois elementos que
caracterizam o que há de propriamente criativo no cuidar. Ele envolve, portanto, dispêndio de
energia, engajamento e participação ativa – uma responsabilidade assumida e mantida. Mas só
pode ser isto exatamente na medida em que abre espaço para a emergência de algo único e
original – o filho que se realiza diante de nós, à medida que se cuida dele deixando-o ser o que ele
autenticamente pode ser. Só aí, vemos por fim o que o cuidado criativo tem a ver com o
princípio responsabilidade: a responsabilidade que exige a paternidade é uma responsabilidade
não meramente biológica ou jurídica, mas é sobretudo a resposta a um apelo – na verdade, a um
grito – de alteridade que não se realiza senão tendo a adoção como paradigma.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALLHOFF, F. 2004. Telomeres and the Ethics of Human Cloning. The American Journal of
Bioethics 4(2): p. 29-31.
AUGÉ, Marc. 1999. Des individus sans filiation. In: ATLAN, Henry; AUGÉ, Marc; DELMAS-
MARTY, M.; DROIT, R.-P.; FRESCO, N. (Eds.). Le Clonage Humain. Paris: Seuil.
BROCK, Dan W. 1998. Cloning Human Beings: An Assessment of the Ethical Issues Pro and
Con. In: NUSSBAUM, Martha C. and SUNSTEIN, Cass R. (eds.). Clones and Clones: Facts
and Fantasies about Human Cloning. New York: W. W. Norton, p. 141–67.
BUCHANAN, Allen et al. 2000. From Chance to Choice: genetics & justice. New York:
Cambridge University Press.
GOFFI, Jean-Yves. 2007. The Harm of Being a Clone. In: FAGOT-LARGEAULT, Anne,
RAHMAN, Shahid and TORRES, Juan Manuel (Eds.). The Influence of Genetics on
Contemporary Thinking. Dordrecht, Springer, p. 151-163.
GRIFFIN, Harry. 2002. Cloning of Animals and Humans. In: BRYANT, John, LA VELLE,
Linda Bargot and SEARLE, John (Eds.). Bioethics for Scientists. Chichester, UK: John Wiley
& Sons Ltd., p. 279-296.
HARRIS, John. 1997. “Goodbye Dolly?” The ethics of human cloning. Journal of Medical
Ethics, 23, p. 353-360.
_______. 2004. On Cloning. London: Routledge.
_______. 2007. Enhancing Evolution: the ethical case for making
better people. Princeton, New Jersey: Princeton University Press.
HOLM, Søren. 2001. A Life in the Shadow: One Reason Why We Should Not Clone Humans.
In: KLOTZKO, Alerne Judith (Ed.). The Cloning Sourcebook. New York: Oxford New York,
p. 203-207.
KAHN, Axel; PAPILLON, F. 1998. Copies conformes: le clonage en question. Paris: Nil
Éditions.
KAHN, Axel. 2000. Clonage, filiation et alterité. In: Et l’Homme dans tout ça? Plaidoyer pour
un humanisme moderne. Paris: Nil Éditions, p. 224-243.
KASS, Leon R. and WILSON, James Q. 1998. The Ethics of Human Cloning. Washington,
DC: AEI Press.
PENNISI, L. & VOGEL, G. 2000. Clones: a hard act to follow. Science, 288, p. 1722-1727.
PRUSAK, Bernard G. 2008. Cloning and Corporeality. In: TIROSH-SAMUELSON, Hava &
WIESE, Christian (Ed.). The Legacy of Hans Jonas: Judaism and the Phenomenon of Life.
Leiden – Boston: Brill, p. 315-344.
RENARD, J.-P. et al. 1999. Lymphoid Hypoplasia and Somatic Cloning. Lancet, 353, p. 1489-
1491.
SANDEL, Michael. 2007. The Case against Perfection: Ethics in the Age of Genetic
Engineering. Cambridge, MA: The Belknap Press of Harvard University Press.
SAVULESCU, Julian. 2001. Procreative Beneficence: Why We Should Select the Best Children.
Bioethics, v. 15, issue 5-6, 2001, p. 413-426.
SINGER Peter. 2001. Cloning Humans and Cloning Animals. In: KLOTZKO, Alerne Judith
(Ed.). The Cloning Sourcebook. New York: Oxford New York, p. 160-168.
STEINBERG, Jesse R. 2005. Response to Fritz Allhoff, “Telomeres and the Ethics of Human
Cloning” (AJOB 4:2). The American Journal of Bioethics 5(1): p. 27–28.
STEINBOCK, Bonnie. 2000. Cloning Human Beings: Sorting through the Ethical Issues. In:
MACKINNON, Barbara (ed.) Human Cloning: Science, Ethics, and Public Policy. Urbana:
University of Illinois Press, p. 68–84.
VALK, A. van der. 1997. Cloning as a Test Case of Autonomous Technology. Philosophy &
Technology 3: 1, p. 83-92.