Resenha Nos Limites Da Dupla Existência

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Introdução à Literatura Russa

Tabitha D. V. Cabral – no. USP 7665001

Resenha do texto Nos limites da dupla existência

Este texto aborda a estrutura de enredo do conto “O Nariz”. No rascunho inicial do conto,
Gógol revela que os acontecimentos narrados são vindos de um sonho, que é um meio de
desdobramento do enredo muito usado pelo autor no início de sua produção literária.

A utilização do sonho era feita de forma a levar o leitor a aceitá-lo quase até o final do
conto como fato real, sem saber que se tratava de um sonho. Então, de repente, o autor
fazia o herói voltar do sonho para a vigília que se contrapunha com contraste ao material
onírico.

No entanto, essa intenção não se manteve na versão final do conto, em que Gógol faz
questão de indicar subliminarmente o caráter “desperto” das personagens principais.
Além disso, todas as personagens envolvidas discutem e percebem cada situação como
um fato real, embora surpresos por sua estranheza. Assim, tudo é simultaneamente
fantástico e rigorosamente verdadeiro.

Porém, manteve-se na versão final do conto a estruturação do enredo fragmentária e


incoerente e a aglutinação absurda dos elementos reais, como se passa em um sonho.
Surge, assim, um mundo de um absurdo fantástico. A lógica cotidiana dos acontecimentos
se congela e aparece uma nova lógica das coisas, fundada sobre a incoerência dos pedaços
fragmentários. O nariz, portanto, vive nos limites da dupla existência: ora fazendo parte
do mundo das pessoas, ora de novo assumindo a categoria das coisas.

A narrativa move-se como que aos tropeços: a linha narrativa é frequentemente


interrompida por comentários ou desvios explicativos do autor que, além de retardar a
ação, exercem a função de ganchos sintáticos que desviam o relato de seu curso normal,
instituindo rupturas no plano da lógica verbal. Os comentários do autor também tomam a
forma de uma explicação contrastiva das peculiaridades nos discursos das personagens.
Depois de muitos vaivéns narrativos é que se retoma o “fato extraordinariamente
estranho”.

No primeiro fragmento, o nariz não sai da categoria das coisas, mas já se encontram
elementos de sua futura metamorfose, e é no segundo fragmento que o nariz passa para a
categoria das pessoas. As palavras começam a se combinar de modo que o nariz ora se
eleva à categoria de pessoa, ora passa desta categoria para o impessoal.

Outra característica muito presente no conto é o trocadilho: a palavra “nariz” se instala


naquelas ligações do jogo verbal. Esse jogo de trocadilhos com a palavra nariz instaura
uma confusão verbal e um movimento de ambiguidade simbólica que perpassa o conto
até o final. Os efeitos cômicos também são construídos a partir dessa dupla movimentação
(“[...] o mais estranho de tudo é que eu mesmo, a princípio, o tomei por um senhor.”).

A partir do momento em que o nariz é devolvido ao major, a tendência básica do enredo


retoma o curso da significação direta (real) do lexema nariz. Quando tudo parece voltar
ao lugar, o choque dos trocadilhos e das metamorfoses verbais ainda ecoa na última parte,
e os seus efeitos contaminam toda a rede verbal.

Já não é o sonho que se opõe à realidade, mas a própria realidade torna-se enigmática.
Com a eliminação dos limites entre o sonho fantástico e absurdo e a realidade, Gógol
ironicamente justifica a inverossimilhança: “Digam o que disserem, mas tais fatos
ocorrem no mundo; é raro, mas ocorrem.”

O estilo das linhas finais do conto é visto por Vinográdov como uma paródia da crítica
literária da época. A temática do “nariz” está ligada a uma realidade da vida cotidiana que
se discutia: a questão da plástica, técnicas cirúrgicas e a medicina de modo geral. Na
seguinte passagem, observa-se como esse material jornalístico é transformado
artisticamente através do tratamento irônico e se adequa perfeitamente ao mundo do
absurdo fantástico: “Bem, se sumiu [o nariz] então o caso é com o médico. Dizem que há
gente por aí que pode reimplantar qualquer tipo de nariz.”

É importante compreender a obra de Gógol no fluxo da cultura popular de base cômica.


Toda sua visão de mundo está atrelada a um riso que se eleva no solo da cultura cômica
popular. Na sua época, porém, a crítica literária procurava colocar toda a literatura nos
moldes de uma cultura oficial, aponta Bakhtin. Há, no entanto, a existência de uma cultura
popular que corre em paralelo e que resiste muitas vezes à cultura oficial, produzindo o
seu ponto de vista particular sobre o mundo e suas próprias formas de refleti-lo.

O riso gogoliano está ligado ao riso festivo popular que acentua a visão carnavalesca e
cômica do mundo. Em “O Nariz”, a realidade retira-se da trilha habitual, tornando
possível o impossível. Acrescenta-se também os traços do realismo grotesco. Segundo
Bakhtin, as tradições desse realismo grotesco na Ucrânia eram muito fortes e resistentes.
E Gógol conhecia perfeitamente tais elementos do realismo grotesco por suas leituras:
elementos das festas populares do folclore ucraniano, caráter épico e jocoso, entre outros.
Está evidente no conto a influência direta das formas do cômico popular da praça pública
e dos teatros de feira.

O grotesco em Gógol não é uma simples ruptura da norma, mas a negação de todas as
normas abstratas, fixas, com pretensões ao absoluto, ao eterno. É como se ele dissesse
que não é preciso esperar boas coisas do que é estável e habitual, mas apenas do
“milagre”.

É nesta perspectiva que Gógol sentia profundamente o caráter universal da sua visão de
mundo cômica e não podia encontrar um lugar adequado, nem um fundamento teórico e
nem uma interpretação para este cômico nas condições da cultura “séria” do século XIX.
Em “O Nariz”, a zona do riso torna-se uma zona de contato. O contraditório e o
incompatível se congregam para renascerem como ligação. Produz-se no conto uma
dissociação, um salto inesperado do pensamento de um extremo a outro, aquela tendência
gogoliana em manter o equilíbrio e as desproporções ao mesmo tempo.

A partir daí, surge em “O Nariz” aquela colisão e mútua interação de dois mundos: o
mundo inteiramente legalizado, oficial, decorado com graus e uniformes e o mundo onde
tudo é cômico e leviano, onde só o riso é sério – isso expresso na própria figura do nariz
que aparece travestido de conselheiro do Estado, com um “uniforme bordado em ouro,
com uma gola alta, calça de camurça e uma espada do lado”. Através do riso gogoliano,
instaura-se uma zona de contato onde todas as coisas tornam-se tangíveis, verdadeiras.

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