TCC - Completo (05.09)
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TCC - Completo (05.09)
O ser humano desde muito tempo tem o hábito de contar histórias. Numa roda de
pessoas, de mais velhos para mais novos. O termo conto, surgiu na Idade Média (século
XII), veio do latim computare que significava enumerar, contar. Este termo remetia a
relatos, histórias, que seriam contadas igualmente ao fato verdadeiro, o ocorrido; porém,
conto é literatura, e, mesmo com proximidade do real, sempre será uma ficção, invenção
inspirada na realidade e não pode ser considerado mero relato.
Esta tradição oral, no século X, deu seus primeiros passos para literatura no
Oriente, com a coletânea de As Mil e Uma Noites: contos folclóricos que apresentavam
ao mundo o sultão Schahriah e Sheherazade. A história começava com o sultão Schahriah
descobrindo a traição de sua esposa; ele a mata, e como penalidade para que nenhuma
mulher jamais repita o mesmo para seus maridos, ele decidiu desposar uma virgem por
noite e matá-la logo em seguida. Sabendo de seu destino depois de ser escolhida,
Sheherazade teve uma ideia: iria contar uma história todas as noites até às manhãs, para
que o sultão se entretesse. E assim, noite após noite, ela continuava a contar a história que
poderia nunca ter fim. Até que o sultão se percebeu amando a jovem virgem e a perdoou
do castigo.
Já no Ocidente, o conto teve origem religiosa, no qual os mais velhos contavam
suas histórias ao mais novos “para informá-los dos sentidos dos atos a que estavam
submetidos: para justificar as proibições que lhes eram feitas, por exemplo” (GOTLIB,
2011, p. 24). Mas nem todos podiam contá-las, nem podiam narrar tudo, apenas aqueles
que sabiam da proximidade da morte; para eles, contar sua vida era sinônimo de ir
morrendo e não tinham mais necessidade de guardar a sabedoria. Nessa época, “o conto
e o relato sagrado - conto/mito/rito – se confundiam” (GOTLIB, 2011, p. 23).
Não se sabe quando, mas em dado momento, o conto deixou de ter características
religiosas e passou a ser profano. Antes narrado apenas por pessoas mais velhas e
sacerdotes, agora havia se tornado comum a qualquer indivíduo o ato de narrar: o conto,
portanto, deixava de ter essa ligação com o divino, a Igreja, e ganhava vida própria nos
mais diversos meios sociais.
Na Idade média, entre os séculos XII e XIV, o conto apareceu como histórias de
cavaleiros, no qual se destacavam as Novelle, de Boccaccio e Canterbury Tales, de
Chaucer. A Renascença veio como uma época de ouro na Itália, na Espanha e na França.
Principalmente influenciados por Boccaccio, autores como Matteo Bandello (Le
Novelle), Miguel de Cervantes (Novelas Ejemplares), Perrault (Contes) e La Fontaine
(Contes) tiveram destaque.
Em suma, a importância e prestígio literário do conto foram decaindo; contudo, o
século XVIII abrigou um de seus maiores mestres: Voltaire. Contos de conteúdo
filosófico, Zadig, Cândido, Micrômegas e outros fizeram ressurgir das cinzas esse
gênero que sempre encontrou seus altos e baixos.
Em A Criação Literária, Massaud Moisés nos mostra que no século XIX
“instala-se em definitivo o reinado do conto”. Nunca na história se produzira tantos
contistas, tanto na Europa quanto no Novo Mundo, a América. Só para citar alguns
poucos, temos Balzac, Flaubert e Maupassant na França; Edgar Allan Poe, considerado o
primeiro teórico do gênero, nos Estados Unidos; Nikolai Gogol e Anton Tchekov na
Rússia. A Língua Portuguesa ganha destaque sendo representada pelo brasileiro Machado
de Assis, autor de mais de 300 contos; seguido pelos portugueses Fialho de Almeida, Eça
de Queirós, Alexandre Herculano, Aluísio Azevedo e muitos outros.
Por último, o século XX dá proporções sem precedentes ao conto, elevando-o
como forma literária. O apogeu desse gênero encontra na modernidade sua salvação.
Pode-se destacar alguns contistas, que muito impactaram a literatura: Virgínia Woolf,
Kafka, James Joyce, Hermingway, Monteiro Lobato, Mário de Andrade, Guimarães
Rosa, Miguel Torga, José Régio e tantos outros.
Apesar disso, o conto não deixa de ter suas características, conforme diz Nádia
Gotlib, em Teoria do Conto:
“O que caracteriza o conto é o seu movimento enquanto uma narrativa através
dos tempos. O que houve na sua ‘história’ foi uma mudança de técnica, não
uma mudança de estrutura: o conto permanece, pois, com a mesma estrutura
do conto antigo; o que muda é a sua técnica”. (2011, p. 29)
Quais características um texto deve conter para ser considerado conto? O que o
difere da novela e do romance, por exemplo? Essas questões por muito tempo permearam
a cabeça de teóricos literários e escritores, porém chegar a uma resposta definitiva é quase
um erro. Todas as tentativas de definir o conceito de conto esbarraram em mais uma
questão: como encontrar o limite do conto? Antes do século XIX, por exemplo, não se
tinha a preocupação de descrever o que é conto, novela e romance, por isso quem escrevia
não se inquietava com a denominação correta. Dessa maneira, era muito confuso saber os
tipos de gêneros difundidos na época.
Há uma linha tênue que separa a noção de conto e novela, e ela vai além da simples
diferença de tamanho. Segundo Edgar Allan Poe, em Review of Twice-told Tales, no
conto “é preciso ter uma unidade de efeito. Isso só é possível se a leitura for feita em uma
assentada” (1842 apud GOTLIB, 2011 p. 32). E sobre unidade de efeito, Norman
Friedman, em What makes short a short story? (1976), diz que é “uma ação completa
e total nela mesma” (2004, p. 222).
Podemos concluir, então, que conto é uma história breve, com apenas um conflito
e que o mesmo deve guiar o leitor ao final da narrativa? Sim, a princípio. Entretanto, é
muito subjetiva a noção de brevidade. Por exemplo, quanto tempo um adulto consegue se
concentrar em um texto?
Apesar da brevidade do conto, o que o caracteriza como tal é o que ele causa ou
não no leitor. Além da leitura de uma só assentada, Poe também explicava em seu artigo
a questão do efeito que essa narrativa pode oferecer. Como sendo a unidade a composição
primordial do conto, o efeito, a “excitação” ou “exaltação da alma”, também devem ser
únicos, já que não há interrupção da leitura. Nesse momento, todo o ser leitor está sob
controle do escritor e essa unidade de efeito do conto é alcançada com êxito.
De acordo com Brander Matthews (apud GOTLIB, 2011, p. 59), o conto apresenta
uma unidade de impressão, que é assinalada pela situação de efeito do conto. Sobre isso,
Nádia Gotlib explicita que “[...] o conto depende de um efeito único ou impressão total
que causa no leitor; para outros, é o próprio conto que representa um momento especial
em que algo acontece.” (2011, p. 49). No momento especial pode ser essencial que
alguma coisa – ou trágica, ou engraçada – aconteça; porém, para Poe, o mero ato de se
ler o conto com a alma, seria este momento.
Pelo caráter de concisão de sua construção, ao evitar-se excessos e superfluidades,
o momento especial se torna “o acontecimento”, a epifania, que, segundo James Joyce, é
uma das belezas da narrativa. A intensidade da expectativa lançada sobre o leitor é que
vai decidir este momento e se o autor conseguiu ou não causar o efeito pretendido.
Na elaboração do conto, dizer de menos sempre é muito melhor que dizer demais.
A parcimônia dos meios narrativos é o que, primariamente, diferencia o conto da novela
e do romance, por exemplo. Na novela, a quantidade de personagens, de lugares e de
conflitos são maiores que do conto. Nelas, a unidade de efeito, primordialmente presente
no conto, é perdida e a leitura rápida não existe. O romance é ainda mais extenso que a
novela. Geralmente dividido em capítulos e contendo várias partes que o dividem em
grandes blocos, a narração é muito mais detalhista e a suspensão pode ocorrer inúmeras
vezes durante a leitura.
Outra distinção que podemos encontrar entre conto, novela e romance está no
clímax, ou melhor, em que parte da narrativa ele se encontra. Enquanto na novela e,
principalmente, no romance, o clímax surge do meio para o final da história; no conto,
pela rapidez que ele exige, o ponto mais importante da narração costuma estar no final.
Este aspecto pode ter surgido como uma estratégia do escritor para prender o leitor até o
final da aventura, mas que acabou se tornando uma regra do gênero.
Outros detalhes também podem nos ajudar a reconhecer um conto. Como narrativa
curta, poucas personagens, em pouco espaço, no decorrer de pouco tempo. Mas não se
tem, igualmente, um número certo para eles: “é necessário conseguir, com o mínimo de
meios, o máximo de efeitos” (GOTLIB, 2011, p. 35).
Continuando o raciocínio de Norman Friedman, uma história só é considerada
curta quando contém apenas um núcleo de ação estática em detrimento de núcleo com
ação dinâmica, o que pode acarretar um maior número de conflitos e, assim, alongar a
história. Apesar de ter que se julgar o tamanho de uma narrativa pela maneira como a
ação ou as ações são manipuladas, essa diferença não tem limites bem definidos. Desta
maneira, “uma ação de qualquer tamanho pode constituir um todo completo nela mesma,
e quanto menor for a ação, mais curta pode ser sua apresentação” (2004, p. 222).
Friedman ainda vai mais fundo para tentar explicar o porquê de uma narrativa ser
considerada curta. Ele difere o tamanho da história por suas articulações em três tipos:
cena, episódio e trama. Cena como uma ação fechada contínua e “engendrada entre dois
ou mais falantes”, enquanto episódio seria o conjunto de duas ou mais cenas; já a trama,
pela lógica, dois ou mais episódios.
“O episódio é um tamanho mais comumente encontrado nos contos – de fato, sua
frequência pode nos permitir afirmar que esse é um tipo de ação bem típica com que essa
arte lida” (FRIEDMAN, 2004, p. 223), porém o conto pode surgir de qualquer uma das
três maneiras.
A omissão proposital de partes inerentes à história também faz parte da
característica do conto. E isso é o que, muitas vezes, faz com que esse seja tratado como
texto curto. O que importa não é o tamanho real do texto, mas sim se ele diz tudo aquilo
o que quer dizer, deixando lacunas que serão reveladas somente no final.
Os contos machadianos são ótimos exemplos deste estilo de contar, pois trazem
“a sutileza em relação ao não dito”. Machado de Assis, com sua “ironia fina e implacável”
(GOTLIB, 2011, p. 78), escrevia contos em que tudo se sugeria e pouca coisa era
realmente reiterada.
Ainda sobre o estudo do conto como gênero, o formalista russo Vladimir Propp,
apresentou em 1928 um estudo sistêmico das estruturas do conto maravilhoso, em um
trabalho intitulado Morfologia do Conto Maravilhoso. Neste trabalho, Propp propôs a
análise dos contos a partir das funções que cada personagem exercia dentro da história e
as relações que as partes componentes mantém entre si e num todo.
O conto maravilhoso, talvez a forma mais antiga do conto, começou a ser
difundido como conhecemos principalmente em forma de literatura infantil, com Os
Contos da mãe Gansa, de Charles Perrault, em 1697; mas ganha maior destaque em
1812 quando os irmãos Grimm lançam a coletânea Kinder-und Hausmärchen (Contos
para crianças e família).
O aspecto maravilhoso é o que marca este estilo. A falta de rigor histórico, no qual
as personagens não vivem em um tempo definido (“Era uma vez...”), o caráter de se poder
imaginar o mundo como quisesse ou como devesse ser, fez com que se espalhasse
rapidamente essa maneira infantil de contar. Podia ser facilmente contado por todos - em
detrimento das raízes religiosas do conto – mantendo sua forma literária de fundo, mas
que abria espaço para ser modificada na sua “forma simples”.
Enquanto o conto maravilhoso é descompromissado com a realidade, e situa-se
em um mundo no qual o lúdico e a fantasia são livres, o conto policial, enfoque deste
trabalho, tem a realidade como base e a verossimilhança como norteadora. No universo
policial não cabe nada que possa fugir da realidade, por mais surreal que seja, como a
conhecemos. É até muito comum em narrativas policiais que o mistério a ser desvendado
tenha um toque de maravilhoso e fantástico. Como em O cão dos Baskervilles (1902),
no qual, antes de Sherlock Holmes descobrir que, na verdade, o que perturbava os
Baskervilles era um cão de verdade fantasiado por um dos herdeiros da rica família dos
Baskervilles, todos acreditavam que se tratava de um cão assombrado.
Em suma, o conto maravilhoso ganhou aqui o seu devido destaque por sua
importância histórica; pois, em comparação com a narrativa policial, são gêneros opostos
que se mantem nos extremos de suas principais qualidades: a fantasia, no maravilhoso; e
a verossimilhança, no policial.
2 LITERATURA POLICIAL
Já se sabe que o gênero policial surgiu com um conto de Allan Poe, intitulado Os
assassinatos da rua Morgue. Depois deste, o escritor publicou mais dois, O mistério de
Marie Rouget e A carta roubada, ambos com a mesma temática policial e mesmo
protagonista: Sir C. Auguste Dupin. E assim surgiu o Enigma: a narrativa policial
clássica, que tem o mistério como norteador dos fatos.
O gênero policial de Enigma é representado principalmente pela presença de um
detetive extremamente racional, perspicaz e frio. Dupin não era detetive profissional.
Seus trabalhos de análise investigativa eram pretextos para passar o tempo e o tédio.
Apesar de sua característica amadora, seus métodos mantinham a razão apoiada pelo
Positivismo, renegando a influência do emocional e do psicológico, para desvendar
crimes que apareciam nos jornais de sua época. Ao criar essa personagem-modelo, Poe
revoluciona a literatura com “a substituição da intuição e do acaso pela presença da
precisão e do rigor lógico na criação literária” (REIMÃO, 1983, p. 18).
Uma das principais particularidades da narrativa de Enigma é seu desenrolar que
descontrói as evidências e pistas do crime na investigação, para que haja um encaixe
perfeito no fim da narrativa. Para melhor explicar essa construção, Tzevtan Todorov em
As estruturas narrativas (1979, p. 93 – 104), esclarece-nos que há duas histórias
paralelas em um mesmo romance policial de Enigma, a do crime e a do inquérito.
A história do crime não está diretamente presente na narração. Como o livro é,
quase sempre, narrado pelo ponto de vista de um amigo do detetive, em primeira pessoa,
a menos que este seja o criminoso, é improvável que ele narre a ação criminosa antes
mesmo do detetive ter conhecimento desta. O romance de Enigma é, de forma sucinta,
um livro de memórias, escrito por um admirador do herói, e que conta toda a sua saga
investigativa para elucidar um mistério sem solução para a polícia. A história do crime,
portanto, é uma parte ausente no texto; porém, é por causa desta que há uma história a ser
narrada.
Já a história propriamente dita aparece no momento do inquérito. O seu início, o
prólogo, dá-se com o conhecimento do crime pelo detetive. A partir daí, inicia-se uma
longa investigação por parte do protagonista, o detetive, e de seu amigo-narrador, do qual
falaremos mais adiante. Essa parte, geralmente, termina em um epílogo no qual se faz a
revelação do culpado. Entre o prólogo e o epílogo do livro, dá-se o momento do inquérito.
De acordo com Todorov, o inquérito “serve de mediador entre o crime e o leitor” (1979,
p. 97).
O mais famoso investigador de toda a literatura foi idealizado por Sir Arthur
Conan Doyle (1859 – 1930), denominado Sherlock Holmes. O seu nome acabou se
tornando sinônimo de detetive, apesar de Holmes, como Dupin, também não ser um
profissional da área. John Watson, amigo e narrador da personagem doyleana, rotulou-o
como um “detetive de consultas”. Holmes teve sua estreia em 1887, no livro Um Estudo
em Vermelho, no qual conheceu Watson, que estava à procura de um lugar para morar,
por intermédio de um amigo em comum dos dois. Holmes, ao perceber-se da importância
de se ter um colega em sua solitária vida, logo aceita levar Watson ao seu convívio, no
famoso endereço londrino: 221b, na Baker Street.
Dr. John Watson, médico ex-soldado de guerra, é um dos destaques das histórias
de Holmes, pois é ele quem narra as aventuras do amigo. Assim se consagra uma das
principais características do gênero policial: o detetive não pode ser o narrador. Como
vimos, o detetive é uma máquina de pensar, e com Sherlock não é diferente. Dono de uma
mente brilhante e capaz de fazer incríveis deduções – conhece o perfil e a vida de uma
pessoa só com um olhar – se as suas narrativas fossem contadas sob seu ponto de vista, o
leitor estaria com ele sempre no mesmo patamar da história, o que iria prejudicar, e até
mesmo perder, a intenção da narrativa: se apoderar da curiosidade do leitor até o seu final:
a elucidação do crime.
Um ponto que merece destaque sobre como se compõe uma narrativa policial é
que o narrador sempre tem que deixar claro que está escrevendo um livro. É importante
saber que John Watson escolhia o que iria escrever sobre as aventuras de Holmes, e que
ele buscava melhor salientar a capacidade e inteligência do investigador. Curioso é que
Holmes tinha conhecimento sobre essas narrativas, porém não gostava muito da forma
“romanceada” de Watson escrever (O signo dos quatro).
É apropriado aqui frisar que o narrador, tanto no caso de Watson quanto no do
anônimo amigo de Dupin, sabem tanto do crime e do processo de inquérito como qualquer
outra personagem, e o leitor - excetuando o detetive. A personagem central da
investigação sempre está passos a frente do restante. Conforme diz Sandra Reimão: “Se
Holmes visa elucidar um crime, Watson, por seu turno, visa esclarecer e transmitir o
processo de investigação deste crime” (1983, p. 35).
Pensar no detetive como sendo o herói da história não é tarefa árdua, afinal é ele
quem consegue colocar o criminoso nas mãos da polícia. Mas você consegue vê-lo como
um ser imortal? Uma vez que ele não participa da ação do crime, e é apenas uma “máquina
de pensar”, é muito comum que se estabeleça como regra do gênero policial a imunidade
e até a imortalidade do detetive. Curioso é que, certa vez, Conan Doyle escreveu a morte
de Sherlock Holmes; porém, o sucesso da personagem era tamanho, que ele teve de
“ressuscitá-lo” e escrever mais histórias com Holmes.
O sucesso dessa personagem pode estar muito mais ligado a sua personalidade do
que, propriamente, a sua inteligência. Diferentemente de Poe que não dá nenhuma
descrição mais humanizada a Dupin, Conan Doyle mostra um Sherlock Holmes
egocêntrico, cocainômano e que fazia uso de morfina para aliviar a tensão das
investigações. Características essas que o fizeram aproximar-se mais do leitor, incluindo
seu grande talento musical ao tocar violino e, também, sua capacidade de se entediar. A
fama do detetive londrino, muito magro e incorrigível apreciador de chás, é tanta que,
ainda hoje, existe quem acredita que ele realmente tenha existido.
Uma outra personagem do mundo do Enigma que merece destaque aqui é Hercule
Poirot, o herói de quase todas as narrativas policiais de Agatha Christie (1890 – 1976).
Nos contos e romances com essa personagem – Agatha não teve apenas um detetive em
seus romances e contos, mas Poirot é o principal entre eles –, a narração costuma ser feita
em terceira-pessoa não-onisciente. Há, também, a presença de um fiel amigo do detetive
e, apesar de não aparecer em todas as aventuras de Poirot, o Capitão Hastings era sua
ligação com a polícia, quem ia atrás de testemunhas, evidências, enquanto Poirot apenas
trabalhava com sua massa cinzenta. Hastings, todavia, sempre almejou ser detetive; nele
há um misto de admiração e inveja por Hercule. O romance de estreia foi O misterioso
caso de Styles, em 1920.
Tanto Hercule Poirot, que era detetive profissional, quanto Sherlock Holmes,
diferentemente de Auguste Dupin, que preferia o trabalho mental e resolvia os casos sem
coleta física de provas e apenas com leitura de jornais e noticiários, valorizavam o
trabalho empírico, as pistas e as reconstruções do crime. A busca da verossimilhança no
conto policial sempre foi um objetivo, porém, aos poucos, o Enigma foi se desgrudando
do real e se aproximando da ficção literária.
O romance Noir, também conhecido como romance policial americano, teve como
precursor e expoente Dashiell Hammett (1894 – 1961), que em 1925 iniciou a saga de
seu mais famoso detetive, Sam Spade, na Black Mask: revista do gênero pulp, de baixo
orçamento e vendagem popular, fundada em 1920 e que parou de publicar novos
exemplares em 1951. Sam Spade não está presente em todos os romances policiais de
Hammett, mas é seu principal detetive.
O romance Noir surgiu em um período instável para o mundo: entre as duas
Guerras Mundiais e na tensão que antecedeu a quebra da Bolsa de Valores de Nova York
(1929). O clima de crise econômica favoreceu a ascensão dessa literatura barata e popular
e teve bastante aceitação pela população afetada pelo crack da Bolsa. Já no mundo das
ideias, a filosofia de Nietzsche, a psicanálise e o Existencialismo, “que se opõe ao
otimismo racionalista oriundo do Positivismo” (REIMÃO, 1983, p. 53), dominavam as
mentes de escritores e acadêmicos.
Em um mundo transtornado, a literatura policial renasceu com um novo rosto,
uma nova composição. As relações capitalistas enfraquecidas se tornaram alvo de crítica
dos escritores Noir: “utilizando o mundo do crime como metáfora da sociedade em geral,
Hammett vai denunciando a falência das instituições burguesas, a corrupção, o egoísmo,
a falsa moralidade etc” (REIMÃO, 1983, p. 61). Desta maneira, no romance americano
as relações humanas, quando existentes, são banalizadas, o ético vai à míngua, e a única
lei é a do dinheiro. O termo Noir apareceu com a crítica francesa em 1945, quando Marcel
Duhamel traduziu e publicou romances policiais norte-americanos sob o título de Série
Noire.
Sarcástico, ganancioso e violento, Sam Spade estreia em O Falcão Maltês (1925),
um romance descritivo, com narrador não-onisciente, no qual toda a intriga é construída
em torno da procura por um pássaro de ouro de centenas de anos. Spade não é do tipo
“máquina de pensar”, como Sherlock Holmes, e nem tem a moralidade transcendental
dos detetives do Enigma. Apesar disso, Sam Spade era “um idealista disfarçado sob uma
máscara de cinismo, que lutava contra a corrupção da sociedade e buscava a verdade
acima de tudo” (PORTILHO, 2009, p. 72). É detetive profissional, empregado da Agência
Continental, trabalha junto da polícia e de outros detetives.
Essa é uma das principais diferenças entre os detetives do Noir e do Enigma:
enquanto Dupin e companhia investigavam apenas com o auxílio de um amigo, quando
estavam entediados por suas vidas solitárias, detetives como Spade eram profissionais
que agiam contra o crime 24 horas por dia, além de deterem o aparato e apoio policial.
Segundo Fernanda Massi, Sam Spade promoveu o aparecimento de dois elementos nas
narrativas policiais: o sexo e a violência. Entretanto, não obtiveram muito sucesso entre
outros autores da época, “mesmo porque, na década de 1930, não se tinha a mesma
liberdade sexual que se tem hoje” (2011, p. 69).
Se nos romances policiais tradicionais o detetive, com sua enorme perspicácia, era
a figura mais marcante, nos romances contemporâneos o detetive perde bastante de seu
holofote, e, muitas vezes, para o criminoso. A disputa entre criminoso e detetive passa a
ser mais direta, já que não há mais a dupla história: crime e investigação acontecem ao
mesmo tempo, paralelamente. Em seu livro, O romance policial do século XXI:
manutenção, transgressão e inovação do gênero, Fernanda Massi nos explica que
“enquanto o criminoso luta para manter sua identidade em segredo, o detetive luta para
encontrá-lo e essa disputa se mantém durante todo o enredo, ocorrendo de forma paralela
e simultânea” (2011, p. 76).
Já o reservado e, por vezes, sentimental detetive do escritor Raymond Chandler
(1888 – 1959), Philip Marlowe, é um profissional da área investigativa, mas não trabalha
em agências e nem para a polícia; tem seu próprio e modesto escritório na Hollywood
Boulevard, no sexto andar do edifício Cahuenga Building. A construção de sua narrativa
é feita em primeira pessoa, por ele mesmo. Aliás, é bem comum na literatura policial Noir
o detetive fazer papel de narrador em primeira pessoa.
Ao contrário de Sam Spade, que é bêbedo e mulherengo, Marlowe quase nunca se
envolve sexualmente; porém, ao longo de suas narrativas, passaram algumas femmes
fatales pela companhia do detetive. É frequente a presença de mulheres fatais nas
narrativas policiais. A mais representativa delas é Irene Adler, chamada por Sherlock
Holmes de A Mulher. Ela apareceu pela primeira vez no conto Um escândalo na Boemia,
e foi a única a conseguir balançar o caráter frio de Holmes.
A femme fatale, ou mulher fatal em português, despontou na literatura policial e
no cinema Noir, principalmente, no período pós-guerra. Ela representava o medo do
homem branco e de classe média da ascensão do poder feminino, tanto econômico quanto
social. Desta maneira, essas apareciam de forma erotizada, mostrando um caráter
inescrupuloso, capazes de tudo para alcançar o êxito naquilo que pretendessem.
Na literatura policial Noir, a mulher fatal também surgiu com temperamento forte
e fronte altiva, em contraponto à mulher do romance de Enigma que, quando mostrava-
se, era na condição de vítima.
“Os traços que marcam a presença dessa mulher são a sua insaciável
busca pela liberdade, pelo dinheiro e prazer. Essa mulher mostra passar a frente
de seu tempo, fato esse inadmissível, pois a sociedade em que ela está inserida
exigia valores regidos a partir de leis patriarcais, logo uma conduta ameaçadora
deve ser punida” (OLIVEIRA; CAPISTRANO, 2009, p. 64).
A história da literatura policial no Brasil tem seu início em março de 1920, quando
quatro escritores – Coelho Neto, Afrânio Peixoto, Medeiros e Albuquerque e Viriato
Corrêa – decidiram publicar O mistério, que saía em capítulos no jornal A Folha. Cada
autor escrevia o seu capítulo e assinava, sem nenhum acordo ou rascunho prévio com os
outros autores, o que conferiu um toque de descompromisso com a narrativa.
O mistério trata, com aspectos que se relacionavam ao romance policial de
Enigma, das tentativas do detetive Major Mello Bandeira de solucionar um crime de
homicídio. O detetive sempre tentou utilizar das habilidades dedutivas e científicas de
Holmes – ele se dizia o “Sherlock da cidade” –, porém ele sempre acabou “por se dar mal
e por ser alvo da ironia dos companheiros” (REIMÃO, 2005, p. 8).
Em O mistério, a ironia está bastante presente, mas não como no roman Noir, em
que a ironia aparece dura e sarcástica na voz das personagens. A ironia nesta narrativa
precursora no país é contra o gênero policial em si, uma “auto-ironia”, como classifica
Sandra Reimão. Esta ironia está também ligada ao espaço em que a literatura policial tem
perante as outras narrativas, já que sempre foi subjugada por ser considerada de massa.
Ao final da trama, o criminoso Pedro Albergaria, apesar de ter confessado o crime,
é absolvido. Essa impunidade, um pouco comum no Noir, deve ser interpretada como
mais uma ironia neste romance: uma crítica ao sistema judiciário nacional.
No Brasil, tem sido mais frequente o detetive do tipo clássico, de Enigma, sem
traços emocionais e/ou pessoais, como “máquina de pensar”, lógico e racional. Na
verdade, a maioria apenas tenta se aproximar desses atributos. Como o delegado
Espinoza, que apareceu em cinco romances de Luiz Alfredo García-Roza (1936). Carioca
e alcoólatra, Espinoza tinha mais dois vícios: andar pelas ruas do Rio de Janeiro e
colecionar livros. Era muito adepto da leitura, porém eruditos e intelectuais não eram
muito de seu afeto. Sua biblioteca particular era uma engenhosidade a parte, sem
prateleiras, os livros eram empilhados metodicamente uns sobre os outros. Esse
excêntrico detetive de García-Roza – um dos maiores nomes da literatura policial atual,
com grande número de vendas – não era um gênio ou infalível. “Trata-se apenas de um
sujeito de habilidades medianas esforçando-se para acertar no seu trabalho” (REIMÃO,
2005, p. 13).
Na narrativa policial brasileira é comum encontrar-se paródias que ironizam tanto
os costumes do Noir, quanto os imortais do Enigma, como fez Maria Alice Barroso (1926
– 2012). Em seu romance Quem matou Pacífico?, o detetive Tonico Arzão, limitado
pela pouca vivência cultural e científica, nem se aproximava de ser uma máquina
pensante; ao contrário disso, é protestante e, apesar de tentar sempre usar a razão, sua
religiosidade o induz ao misticismo, que acaba, contraditoriamente, ajudando-o no caso.
A aparência de Tonico Arzão é outro deboche com os detetives estrangeiros. Desdentado
e caipira, Tonico não lembra em nada a esbelteza dos ingleses.
A primeira narrativa Noir brasileira não foi diferente das demais norte-
americanas. Parada proibida, de Carlos de Souza, foi publicada em 1972 e apresentou
o investigador Falcão, o narrador-protagonista. Bastante violento e pouco introspectivo,
este Noir, moldado sob os romances de Dashiell Hammett, foi sucedido pelo de Marcos
Rey (1925 – 1999): Malditos paulistas. Este romance foi protagonizado por Raul:
pequeno malandro que sonha em ser funcionário público, com a intenção de trabalhar
pouco, mas ganhar bem. O aspecto sensualizado da narrativa Noir também aparece na
figura de Raul.
O alcance do público brasileiro ao conteúdo de literatura policial produzido por
brasileiros não foi grande. “Um exemplo ilustre foi a Coleção Amarela, da Livraria Globo
Editora de Porto Alegre, que ‘de 1931 a 1934 publicou 158 volumes, nenhum deles de
autor brasileiro’ (PELLEGRINI, 2008, p. 147)” (COMELLAS, 2014, p. 52). Atualmente,
vem se acentuando a produção dessa literatura no Brasil; a causa do alto valor do gênero
perante grandes editoras, como Cia das Letras, Record e Nova Fronteira, pode ser o
aumento do consumo desse tipo de leitura no país.
Este panorama, porém, mudou a partir da década de 1970 quando a produção do
Noir ganhou espaço no mercado do Brasil. Um dos responsáveis por esse avanço nas
edições policiais foi o mineiro Rubem Fonseca (1925). Segundo Pellegrini, esse destaque
deve-se ao fato de o autor ter ‘abrasileirado’ a forma do gênero. Mesmo com característica
popular e ordinária, a literatura de Rubem Fonseca foi um divisor de águas na nossa
história. Nem popular, nem erudito: ele era ambos; uma espécie de Robin Hood às
avessas. A literatura, considerada de massa, de Rubem, não chegava realmente às massas,
mas sim a uma elite que estava deixando a tradição de lado para abarcar no estilo vulgar
e rude do policial Noir.
A figura do detetive na nossa literatura, mesmo não se igualando a detetives como
Dupin e Spade, é de um “raro exemplo de integridade e incorruptibilidade” (REIMÃO,
2005, p. 19), no meio de uma corporação policial extremamente corrompida. “Apesar de
boa parte dos protagonistas da literatura policial brasileira ser, de alguma maneira,
policial, a crítica à polícia é uma constante nessa literatura” (REIMÃO, 2005, p. 20).
Em O mistério, por exemplo, há a crítica ao sistema judiciário, principalmente,
mostrando um crime impune. Em verdade, esta é uma amostra do que se chama de crime
moralmente justificável. Segundo Sandra Reimão, a impunidade dos crimes pode ser
entendida como uma “descrença de todos nós, brasileiros, na eficácia de nosso sistema
judiciário-penitenciário” (2005, p. 21) e, por isso, é comum desfechos com o que se
denomina de “justiça feita com as próprias mãos”.
3 BIOGRAFIA
“Quem dentre vós nunca sonhou em criar o seu próprio agente secreto inglês que
atire o primeiro James Bond” (VERISSIMO, 1979, p. 13). Paródia das narrativas policiais
norte-americanas do estilo Noir, principalmente dos autores Dashiell Hammett e
Raymond Chandler, as histórias com a personagem Ed Mort surgiram em 1979 com o
lançamento do livro Ed Mort e outras histórias. Neste livro há seis contos de Ed,
inclusive “A armadilha”, no qual deu-se o aparecimento da personagem. Porém, neste
trabalho, utilizaremos o livro Ed Mort: todas as histórias, reeditado em 2011, como
referencial para a pesquisa. Esse último foi lançado em 1997, pela editora Objetiva, e
contém 15 contos – incluindo os seis do primeiro livro – desse detetive.
1
Grifo do escritor.
contos. Em resumo: enquanto Ed, tranquilamente, lia seu jornal de anos anteriores,
entrava em seu escritório uma mulher de nome Linda, a procura do marido desaparecido
– pois ela não queria avisar a polícia com medo de um escândalo. Ela cede ao investigador
todos os dados do marido desaparecido: contatos, amigos, trabalho etc. Logo, Ed Mort
iniciou sua busca. Os amigos do marido segredaram a Ed que ele a enganava há muito
tempo e, ultimamente, começara a frequentar “massagistas”. Depois de duas semanas de
árdua perseguição diária – e de ter vendido todos os seus pertences para custear a
investigação – Ed conseguira encontrar o local onde estava o marido de Linda; mas não
de maneira convencional: caíra na mesma armadilha: um alçapão que levava a um porão.
Havia, nesse porão, muitos outros homens, também aprisionados pela mesma massagista
que fora Ed e o marido desaparecido: Sandrinha Dengue-Dengue. Os homens não
souberam dizer ao detetive o porquê de estarem ali, mas disseram que eram
“doutrinados”, de hora em hora, por gritos feministas: “machistas, porcos chauvinistas,
exploradores de mulheres, sexistas” (VERISSIMO, 2011, p. 12). Findada uma semana,
eles foram soltos, com a condição de não contarem a ninguém sobre o ocorrido. Ao
devolver o marido para sua cliente, Ed Mort não foi pago. As baratas riram dele. A
plaqueta foi roubada.
Analisaremos, agora, as particularidades desse conto e, mais adiante, as
propriedades que se repetirão ao longo de todas as narrativas de Ed Mort: todas as
histórias.
O primeiro parágrafo de “A armadilha” introduz o leitor dentro do espaço o qual
Ed Mort ocupa: um cubículo “entre uma escola de cabeleireiros e uma pastelaria em
alguma galeria de Copacabana” (VERISSIMO, 2011, p. 09). A galeria era bastante
violenta e assaltos e assassinatos eram constantes e corriqueiros.
O estado miserável de Ed Mort ficava bastante evidenciado em variados trechos
do conto. Como quando é remetido o empenho de seu revólver 38, o atraso do aluguel e
a infestação de baratas na sua sala. Também, é possível perceber a circunstância em que
se encontrava o detetive Ed Mort nas frases: “Havia uma chance remota de o telefone
tocar. Muito remota, porque ele estava desligado há dois meses. Falta de pagamento”
(VERISSIMO, 2011, p. 10); “Como Linda [...] não me deu nenhum adiantamento, tive
que vender tudo. A mesa. A cadeira. Tudo. Finalmente assaltei a pastelaria”
(VERISSIMO, 2011, p. 11).
Linda era como se denominava sua cliente. Porém, para Ed Mort, o nome não
passava de uma mera constatação do óbvio: “Foi quando ela entrou na sala. Entrou em
etapas. Primeiro a frente. Cinco minutos depois chegou o resto. Ela já tinha começado a
falar há meia hora, quando consegui levantar os olhos para o rosto. Linda” (VERISSIMO,
2011, p. 10). Ficará perceptível mais adiante que as clientes de Ed Mort têm perfis muito
parecidos e a reação do investigador ao vê-las segue o padrão galanteador e malicioso.
A sagacidade de Ed Mort ao cumprir a sua principal função é de se admirar.
Incentivado pela fome e necessidade de dinheiro, Ed não mede esforços para averiguar o
que ocorrera ao marido de Linda. Mesmo limitado, tanto monetariamente quanto
intelectualmente, Ed passou por duas semanas de investigação diária; “Eu sou assim.
Quando pego um caso vou até o fim” (VERISSIMO, 2011, p. 11).
A determinação – e o empenho de sua coleção de canetas Bic – fê-lo chegar à casa
de Sandrinha Dengue-Dengue: “Na frente, um vestíbulo e uma recepcionista. Entrei
arrastando os pés. As duas semanas de investigação tinham exigido muito de mim”
(VERISSIMO, 2011, p. 11). Dessa maneira, o investigador, caindo na armadilha
feminista da mesma maneira que o marido desaparecido - o que mostra um caráter
atrapalhado e pouco dedutivo de Mort -, contando com a benevolência das sequestradoras,
entrega o marido à sua cliente.
“Devolvi o marido para Linda. Na despedida ainda lhe dei um tapa na orelha.
Linda me olhou feio. [...] Linda não me pagou” (VERISSIMO, 2011, p. 12). Assim, o
detetive voltou para uma situação semelhante ao começo do conto: sem dinheiro; e, agora,
sem os seus únicos móveis. “Na minha sala agora só tem o telefone e o jornal de 73, no
chão. [...] E roubaram a plaqueta” (VERISSIMO, 2011, p. 12). E sem a plaqueta.
As particularidades de Ed Mort não vão muito além dos tipos que encontram-se
no conto “A armadilha”. Nesta parte do trabalho, ratificar-se-ão essas características,
utilizando-se dos outros contos a fim de fundamentá-las. São estes, os contos: “Ed Mort
e os nobres selvagens”, “Ed Mort e o anjo barroco”, “A volta de Ed Mort”, “Ed Mort vai
fundo”, “Ed Mort vai longe”, “Ed Mort vai atrás”, “Ed Mort vai a zero”, “Ed Mort vai
bem”, “Ed Mort vai firme”, “Ed Mort volta atrás”, “Ed Mort só vai”, “Ed Mort vai à
forra”, “Ed Mort vai fundo” e “A volta de Ed Mort”.
Para melhor dinamizar o texto, as citações feitas a partir do livro Ed Mort: todas
as histórias, com as especificações apresentadas no início deste capítulo, virão apenas
acompanhadas do número da página.
4.3.1 A GALERIA DE COPACABANA E OUTROS ESPAÇOS
Copacabana. Anos 70. Um lugar tranquilo, com praia, sol, mulheres bonitas e
muita paz e amor, em pleno auge do movimento Hippie. Certo? Talvez; entretanto, não
era o que, provavelmente, presenciava-se na galeria onde o detetive Ed Mort alugava um
“escri” pequeno demais para caber o “tório”.
Fora neste cubículo, “entre uma escola de cabeleireiros e uma loja de carimbos”
(p. 13), que no conto “Ed Mort e os nobres selvagens”, o detetive iniciara sua busca ao
francês desaparecido, marido de sua cliente, também francesa. Ela era antropóloga; ele,
sociólogo, e estavam estudando no Brasil sobre a felicidade das civilizações tropicais.
Neste mesmo conto, também se encontra o bar “O Condicional” – nomeado em
homenagem aos frequentadores: fugitivos da cadeia ou presos em situação de prisão
semiaberta ou em liberdade condicional.
A violência carioca aparecia de maneira sarcástica como quando o autor contava
sobre as experiências de Ed Mort com sua vizinhança, na galeria. No conto “A volta de
Ed Mort”: “A galeria é assim. A polícia só entra aqui com proteção policial. Barra.” (p.
21). Neste mesmo conto, o poder policial voltou a ser satirizado: “Chamaram um guarda.
O guarda veio empurrado, e entrou na sala com as mãos para o alto. Quando viu que não
era assalto, se animou.” (p. 24).
Conforme o capítulo “Literatura policial no Brasil” [COLOCAR NÚMERO DO
CAPÍTULO], é comum a crítica à corporação policial, principalmente quanto à corrupção
que envolve este setor. Porém, em Ed Mort, a sátira se torna mais ácida, indo além da
índole, chegando ao cunho da covardia e do medo de criminosos por parte da polícia.
“PM só entrava lá [na galeria] em dúzia. Se chegassem em par, dançavam” (p. 63).
As cenas de violência na galeria de Copacabana continuam a se repetir. Como
quando no primeiro parágrafo do capítulo “Ed Mort vai longe”, no qual o detetive fora
vítima de um mesmo assaltante, consecutivamente:
“Aqui ninguém diz mais ‘Isto é um assalto’. Diz ‘É outro’. [...] Fui assaltado
cinco vezes em vinte minutos. Sempre pela mesma pessoa. Toninho ‘Mau
Fisionomista’ Aguiar. No fim ele me marcou com um ‘x’ na testa para não se
enganar mais. Com canivete” (p.31).
Não foi coincidência a citação acima ter sido destacada do primeiro parágrafo. Os
primeiros parágrafos de todos os contos inserem o leitor no ambiente inicial de Ed Mort.
Anunciam, por exemplo, quais são os vizinhos do escritório de Mort, como está o detetive
e, também, fala sobre as baratas e sobre o rato albino.
“Divido este escritório numa galeria de Copacabana com 17 baratas e um ratão
albino, só que eles não pagam aluguel. Pensando bem, eu também não. Mas eu
tenho uma razão honesta. Sou um caloteiro. Mort. Ed Mort. Meu escritório fica
entre ‘Cópias heliográficas, chaves na hora, carimbos e água de coco’ e ‘Dona
Doca, doces caseiros’. Dona Doca já foi assaltada cinco vezes. E isso porque
abriu ontem” (p. 59).
Em outro conto, percebe-se que os vizinhos não são mais os mesmos: “Eu tinha
um cubi (meio cubículo) numa galeria em algum lugar de Copacabana. Entre um caldo
de cana e o banco de sangue Agulhão. Era condomínio. Eu, 17 baratas e um ratão albino”
(p. 63). Aliás, Ed Mort foi o único que permaneceu na galeria durante todas as narrativas.
A violência espantava a todos: “Na galeria estavam assaltando até assaltante. Era de quem
sacasse primeiro” (p. 63).
O escritório de Ed Mort era ínfimo – “escritório é uma palavra grande demais para
descrevê-lo” (p. 17). Dentro dele havia uma mesa, uma cadeira giratória que gira só para
a direita, um rádio de pilha sem pilha, um telefone que não fazia ligações, um jornal velho,
uma caneta Bic e a coleção de discos do Agnaldo Timóteo. Não cabia mais nada. As
clientes costumavam sentar-se na cadeira de Ed, enquanto esse se sentava na mesa.
Os locais dos crimes - que eram, na verdade, onde Ed Mort, geralmente,
encontrava a pessoa desaparecida – não apareciam em todos os contos. Em muitos deles,
as personagens nem saíam da sala do investigador; como no conto “Ed Mort vai bem”.
Nesta história, uma mulher, Lisolete, pede ajuda para fugir de seu carrasco patrão, o
barão, que raptava moças jovens, loiras e altas para engordá-las, a fim de vendê-las para
a Europa. Porém, o barão já fora cliente de Ed Mort, e o único que o pagara. Sabendo da
intenção de Lisolete, o barão chega à Ed Mort oferecendo-lhe quanto dinheiro ele julgasse
necessário para não ajudar a moça. Ed recusa-se a aceitar a oferta e fica do lado de
Lisolete, que, muito agradecida, teve um pequeno affaire com Ed.
Toda essa cena se passou dentro do escritório de Ed em uma galeria de
Copacabana. Já no conto “Ed Mort vai firme”, quase toda narração é desenvolvida dentro
do escritório. Neste conto, uma moça muito jovem vai à procura dos serviços de Ed Mort,
desesperada. Ela procurava a si mesma, queria saber quem era, conhecer o seu interior.
Juntamente com seu namorado e mais um grupo de jovens, abdicaram à toda regalia e
riqueza em busca de autoconhecimento. Um dos rituais deste grupo consistia em ir a um
restaurante caro e pedir muita comida, meditar diante dela, não comê-la e sair. Para
melhor ajudar sua cliente na busca de si mesma, Ed Mort foi a uma sessão desse ritual e
levou toda a comida que eles ignoraram: “É para o meu cachorro recusar. Ele também faz
meditação” (p. 50).
Não importa onde esteja Ed Mort, seu empenho, árduo trabalho e falta de sorte,
sempre o levará ao perigo. O conto que saíra completamente da órbita carioca fora o
último do livro “A volta de Ed Mort”, no qual o investigador é chamado para um caso
governamental e vai para Brasília. Porém, este conto será examinado separadamente mais
adiante.
Apesar do susto inicial – de chegar no seu local de trabalho e encontrar com seu
outro “eu” -, Ed começou a analisá-lo e encontrou-se no outro que estava em sua sala:
“Fiz um inventário. Um certo charme rude. [...] Não havia dúvida. Mort era eu” (p. 52).
O diálogo entre os dois é recheado de acusações. Ed se transtornara com o luxo e
perfídia que via em seu escritório. De quem seria a família da foto sobre a mesa de Ed
Mais? Não era da família dele.
“- Ridículo.
- Ridículo é você. Eu vou indo muito bem. Acabou a onda de
fracassado simpático. De terminar com um sorriso amargo e sem a mocinha.
Sou um sucesso. Estou ganhando dinheiro. Faturando as clientes. Desapareça”
(p. 52).
No penúltimo conto do livro, o “Ed Mort vai fundo 2”, ocorre o mesmo
dos outros demais contos: Ed está tranquilo e esfomeado na sua saleta, quando entra uma
mulher a procura da verdade sobre seu marido, se ele tem ou não tem uma amante. Depois
de alguns delírios e uma cena de amor imaginária, Ed aceita o caso. Vai ao escritório do
marido, vasculha tudo e descobre o endereço da amante através da secretária. Ao chegar
nesse endereço, liga para sua cliente que, enfurecida, atira com um revólver. Na confusão,
quem acaba levando o tiro é Ed Mort; bem na têmpora. No último parágrafo, tudo indica
a morte apesar de não ser dita plenamente. “Eu não sabia no que estava entrando quando
fiz aquele curso por correspondência. Não verdade, não mudou muita coisa. Continuo
duro” (p. 66).
Porém, há um último conto, “A volta de Ed Mort”.