Analise Do Conto Desenredo
Analise Do Conto Desenredo
Analise Do Conto Desenredo
TURMA: 3 IM
Disciplina:
Lngua Portuguesa
Professor: Rafael Rubens
A narrativa prossegue, e vemos J Joaquim afastado da amante, refazendo-se da decepo. Entretanto, como
de desenredo que se trata, o marido morre, permitindo o reencontro dos amantes:
Enquanto ora, as coisas amaduravam. Todo fim impossvel? Azarado fugitivo, e como Providncia praz, o
marido faleceu (...).O tempo engenhoso.
A mxima do narrador, claramente irnica, sugere os desdobramentos que a morte do marido trar histria. Em
termos narrativos, trata-se de uma funo, na medida em que temos um acontecimento crucial para o desenrolar
da trama.
Alm dos provrbios citados de forma literal pelo narrador, h outros a nosso ver ainda mais significativos, que
aparecem modificados, alegorizando a modificao da situao apresentada. Assim, mais do que simplesmente
reproduzir expresses da fala popular, o narrador modifica tais expresses, imprimindo-lhes sua marca pessoal e
adaptando-as ao contexto da narrativa. A mxima depois da tempestade vem sempre a bonana aqui
transformada em a bonana nada tem a ver com a tempestade, numa sugesto de que, aps tantas
desventuras, J Joaquim ainda no encontrar a paz:
No decorrer e comenos, J Joaquim entrou sensvel a aplicar-se, progressivo, jeitoso af. A bonana nada
tem a ver com a tempestade. (...) Entregou-se a remir, redimir a mulher, conta inteira.
Outra expresso adaptada pelo narrador est presente na passagem abaixo, momento em que J Joaquim
informado da viuvez da amada:
Soube-o logo J Joaquim, em seu franciscanato, dolorido, mas j medicado. Vai, pois, com a amada se
encontrou (...). Nela acreditou, num abrir e no fechar de ouvidos. Da, de repente, casaram-se.
Ao subverter o conhecido num abrir e fechar de olhos, o narrador simultaneamente demonstra a eternidade do
amor do protagonista, que jamais se fecharia s palavras da amada, e sugere a credulidade de J Joaquim, que
confiava nas doces palavras da mulher.
Os jarges e termos tcnicos tambm perpassam a narrativa, relacionando palavras de um mesmo campo
semntico ao enredo do conto. H, por exemplo, diversas referncias a embarcaes quando o narrador fala da
paixo de J Joaquim. Tais referncias atuam como metforas da trama retratada. Ao comentar a atrao
recproca entre J Joaquim e a amada, diz o narrador:
Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e po. Alis, casada. Sorriram-se, viram-se. Era
infinitamente maio e J Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em mpeto de nau tangida
a vela e vento.
A comparao do amor com a nau tangida a vela e vento sugere, simultaneamente, uma relao movida a paixo
(a vela) e que vagueia deriva (ao vento), oscilando de acordo com os acontecimentos.
Outra imagem ligada navegao a dos barquinhos de papel. A fragilidade e a inocncia dos sonhos do
protagonista so habilmente metaforizadas nos singelos barquinhos, acentuando a pequenez humana diante dos
indecifrveis desgnios da vida:
(...) O marido se fazia notrio, na valentia com cime; e as aldeias so a alheia vigilncia. Ento ao rigor
geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo mundo. Todo
abismo navegvel a barquinhos de papel.
O campo semntico das embarcaes / navegaes ainda vislumbrado na referncia a Ulysses, clebre heri da
Odissia que, entre tantas outras peripcias, amarrou-se proa do navio para no sucumbir ao melodioso e
traioeiro canto das sereias. O Ulysses mitolgico encontrou, portanto, uma sada contra a tentao feminina
simbolizada pelas sereias, o que no parece ocorrer com J Joaquim, levando o narrador a citar a sabedoria do
navegante ancestral:
(...) J Joaquim entrou sensvel a aplicar-se, a progressivo, jeitoso af. A bonana nada tem a ver com a
tempestade. Crvel? Sbio sempre foi Ulysses, que comeou por se fazer de louco.
Entretanto, se por um lado pode-se ver nas palavras do narrador uma crtica ao comportamento crdulo e
apaixonado do protagonista, por outro pode haver uma defesa de J Joaquim por parte da instncia narrante.
Afinal, se a sabedoria de Ulysses foi a de se fingir de louco para no ter de ir guerra, a tentativa de redimir a
imagem da esposa efetuada por J Joaquim, apesar de parecer uma total insanidade, no final revela-se sbia e
bem-sucedida. O protagonista embarca em seu sonho, e com ele chega ao local desejado.
Ainda com relao aos termos tcnicos, vrias so as palavras ou expresses ligadas lei e ao Direito, como se
pode perceber nas passagens abaixo:
J Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decbito dorsal, por dores,
frios, calores, qui lgrimas, devolvido ao barro, entre o inefvel e o infando. Imaginara-a jamais a ter o p em
trs estribos; Chegou a maldizer de seus prprios e gratos abusufrutos.
De amor no a matou, que no era para truz de tigre ou leo. Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como
indito poeta e homem. (...) Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, J Joaquim sentiu-se histrico,
quase criminoso, reincidente.
Repare-se que, apesar de a maioria dos termos grifados possuir uma relao semntica com crime, no
adltera que eles se referem. O abuso no ato de usufruir, ou abusufruto, neologismo rosiano que sugere o prazer
desfrutado pelos amantes, aparece como um delito do protagonista, instaurando uma espcie de contradio: o
usufruto caracteriza o direito de se aproveitar alguma coisa, enquanto o termo abuso marca o excesso dessa
prerrogativa. As delcias experimentadas nos encontros superavam, portanto, os limites estabelecidos, numa
transgresso j expressa pelo carter adulterino da relao. J os termos criminoso e reincidente se referem
explicitamente a J, traduzindo a imagem de que o grande erro fora dele, ao confiar novamente na mulher. O
termo decbito dorsal, normalmente utilizado para indicar a posio em que um corpo fora encontrado, coloca o
protagonista na condio de vtima, ao mesmo tempo em que denuncia a sua prostrao aps a constatao da
infidelidade da amada.
A partir do momento em que comea a sua cruzada visando a redimir a mulher, os termos vo se aproximando
mais do aspecto criminal. Para livr-la da calnia, ele no hesita em modificar testemunhos e evidncias,
alterando completamente a cena do crime.
A relao do enredo com as estruturas morfolgico-sintticas presentes no conto ainda vislumbrada a partir de
um jogo com os parnimos mas e mais, cada um deles constituindo um pargrafo.
O primeiro pargrafo formado apenas pela conjuno adversativa surge logo aps a notcia do casamento do
protagonista, num prenncio das adversidades trazidas pela unio:
(...) Da, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escndalo popular, por que forma fosse. Mas.
Em outro pargrafo, desta vez sintetizado no advrbio de intensidade, uma sugesto de que h muitas coisas
ainda por contar nessa histria:
(...) Suas lgrimas corriam atrs dela, como formiguinhas brancas. (...) V-se a camisa, que no o dela
dentro. Era o seu um amor meditado, a prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se. Mais.
O prprio jogo fnico-semntico entre mas e mais ilustra o desenvolvimento da trama: primeiro, h a reviravolta;
depois, surge algo a mais, que permitir a transformao, volvendo o mero enredo em desenredo.
Os neologismos detectados na obra tambm dialogam com ela, possuindo uma funo na narrativa. Um deles
indica a situao de J Joaquim durante o afastamento da amada:
(...) J Joaquim, em seu franciscanato, dolorido, mas j medicado.
O termo franciscanato utilizado na referncia vida do protagonista enfatiza o seu celibato, seu estoicismo. A
renncia aos prazeres, exigida de qualquer monge, aliada ao voto de pobreza tpico dos franciscanos, acentua a
abstinncia de J Joaquim, penitente do amor. A existncia monstica que o personagem levava at ento
contrasta com a devassido da amada, e significativamente a referncia ao franciscanato de J Joaquim
imediatamente anterior ao mas, indicando a mudana por vir.
Outro neologismo percebido em Desenredo o termo "ufantico", usado para caracterizar o protagonista em sua
empresa:
Celebrava-a, ufantico, tendo-a por justa e averiguada, com convico manifesta. Haja o absoluto amar e
qualquer causa se refuta.
A palavra em questo, cruzamento de ufanista com fantico, sintetiza de forma primorosa a paixo de J pela
amada. Dotado do tom exagerado que marca os ufanistas e da admirao exaltada do apaixonado que comete
excessos, J Joaquim revela-se um verdadeiro ufantico, numa sugesto do amor quase obsessivo que manifesta.
movido por essa paixo desmedida que ele decide transformar sua histria de amor.
Um aspecto que merece ser destacado refere-se onomstica, uma vez que o nome dos personagens completa a
sua caracterizao. O protagonista, que tem como primeiro nome J, remete ao homnimo bblico conhecido por
sua pacincia e resignao. Submetido s piores provaes, manteve-se fiel a Deus. O fato de o personagem
possuir o mesmo nome do mrtir bblico funciona como indcio de todo o sofrimento que experimentar ao longo
da histria, bem como a sua incontestvel fidelidade.
O nome da amada de J Joaquim, intencionalmente omitido at aqui, tambm extremamente sugestivo. No
incio do conto, o narrador refere-se a ela, sem deixar claro qual , de fato, o seu nome:
J Joaquim (...) era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. (...) Com elas quem pode, porm?
Foi Ado dormir, e Eva nascer. Chamando-se Livria, Rivlia ou Irlvia, a que, nesta observao, a J Joaquim
apareceu.
A indefinio do narrador traduz a incerteza quanto identidade da personagem e, por extenso, quanto ao seu
carter. A inconstncia da amada de J Joaquim metonimizada na inconstncia de seu nome, que parece se
modificar com a mesma rapidez com que ela troca de parceiro.
O fato de Vilria surgir com um nome outro, distinto dos referidos pelo narrador, sugere a transformao nela
operada pelos esforos de J Joaquim. essa quarta mulher, diferente de todas as anteriores, que trar a
felicidade ao protagonista. Seu ltimo nome carrega ainda uma polissemia condizente com sua histria: apesar
da aparente oposio entre o vil e o lrio, maldade e pureza aliam-se nessa mulher multifacetada. A prpria
imagem do lrio repleta de ambivalncias, sendo ao mesmo tempo cone de pureza e de pecado, sendo
inclusive uma das marcas das prostitutas medievais.
Esse potencial para a mudana entrevisto no simbolismo do lrio reflete o poder de cada ser humano de
transformar o seu destino, atitude tomada por J Joaquim. Este, ao reescrever a histria da mulher, modifica-a,
tornando-se narrador em vez de mero personagem. Ao imprimir seu desejo narrativa, torna-se partcipe desse
processo, mudando-lhe o final e gerando o desenredo aludido pelo ttulo. O enredo corriqueiro e estereotipado da
mulher de mil amantes, de fim trgico e previsvel, ento reformulado, transformando-se em feliz desenredo.
Com a boa-f dos otimistas, de tanto acreditar tornou em verdade a mudana de sua histria:
(...) Desejava ele, J Joaquim, a felicidade idia inata. Entregou-se a remir, a redimir a mulher, conta
inteira. (...) Nunca tivera ela amantes! No um. No dois. Disse-se e dizia isso J Joaquim. Reportava a lenda a
embustes, falsas lrias escabrosas. Cumpria-lhe descaluni-la, obrigava-se por tudo.
De tanto criar uma fantasia em que pudesse se refugiar e convencer os outros, J Joaquim acaba por criar uma
nova realidade. A vida imita a arte, e a um espetculo teatral que o narrador compara a atitude do
protagonista:
(...) Trouxe boca-de-cena do mundo, de caso raso, o que fora to claro como gua suja.
O processo de converso da mentira em verdade ocorre por meio de uma lgica invertida, por uma investigao
s avessas, em que o passado modifica o presente, na arte e na obstinao de J Joaquim:
O ponto est em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia mida, conversinhas escudadas,
remendados testemunhos. J Joaquim, genial, operava o passado plstico e contraditrio rascunho. Criava nova,
transformada realidade, mais alta.
medida que embarca quixotescamente em seu propsito, os vestgios do passado maculado vo sendo
apagados, dando lugar verdade transformada:
Pois, produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticncias, o tempo secou o assunto. Total o
transato desmanchava-se, a anterior evidncia e seu nevoeiro. (...) Todos j acreditavam. J Joaquim primeiro que
todos.
E, mgica-paradoxalmente, o sujeito das infmias converte-se em objeto, claro e lmpido, da criao de J
Joaquim:
Mesmo a mulher, at, por fim. Chegou-lhe l a notcia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita
distncia. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa.
Numa espcie de exorcismo narrativo, J retira de Vilria as mculas do passado para que ela retorne, purificada.
At mesmo o clssico viveram felizes para sempre aqui resgatado, na promessa de felicidade eterna.
Transformados pelo ritual da palavra, tornam-se livres e podem ser felizes:
Trs vezes passa perto da gente a felicidade. J Joaquim e Vilria retomaram-se, e conviveram, convolados, o
verdadeiro e melhor de sua til vida.
E, o que era apenas fico do protagonista, sugerido inclusive pelo termo fbula, passa ao estatuto de verdade,
sendo perpetuado com todas as formalidades, lavrado como documento de f pblica: E ps-se a fbula em
ata.
J Joaquim ousou desprezar a verdade linear, redesenhando a sua histria. Personagem rosiana, ele seguiu os
passos de seu criador, inovando, recriando.
Parte dos crditos: Tatiana Alves Soares, UFRJ