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Visões Noturnas
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E-book374 páginas5 horas

Visões Noturnas

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Sobre este e-book

Uma aposta para saber se um dos integrantes de um grupo de amigos tem coragem suficiente para entrar em um cemitério à meia-noite. Um suicida que descobre, no último instante, que sua vida não é tão ruim assim. Bichos de pelúcia que ganham vida e passam a ameaçar seu dono. Uma dívida não paga e um agiota dando uma última chance ao devedor, que terá que passar por uma prova sombria. Uma antiga casa onde um bem-sucedido – porém infeliz – homem de negócios viveu sua infância, e que pode resolver todos os seus problemas.Visões Noturnas é uma coletânea de contos, na qual os personagens estão sempre prestes a descobrir que cada novo acontecimento possui sempre um outro lado, sombrio e assus-tador. Enfrente seus medos, dê as mãos ao autor e deixe-o guiá-lo por Monserrat, uma cidade onde tudo pode acontecer.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de mar. de 2013
ISBN9788576799351
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    Visões Noturnas - Maurício Caldeira

    Royal Street Flash

    Esta é a história de quatro amigos. Quatro amigos, uma mesa de pôquer e uma aposta. Sim, uma singela e inocente aposta, daquelas bem simples e banais, que sempre começam com a frase Ei, aposto que você não... Uma simples e terrível aposta, que modificaria por completo o rumo de nossas vidas...

    Éramos um grupo de quatro amigos, igual a tantos grupos de amigos que se vê por aí. Sempre nos consideramos caras de muita sorte, já que continuávamos amigos, mesmo depois de virarmos adultos.

    Sabíamos, víamos vários casos assim, de amigos que terminam a escola, começam a trabalhar, se casam, e nunca mais conseguem tempo para se encontrar ou para conversar um pouco, como nos velhos tempos.

    Mas não nós. Éramos amigos desde a época do colégio, quando ainda estávamos na sexta série. Íamos sempre um à casa do outro. Jogávamos bola e videogame juntos.

    O tempo foi passando e os nossos interesses foram mudando. De bola e videogame para música, carros e mulheres. Mas nossa amizade nunca mudou. Continuávamos como eternos adolescentes, com formas de tratamento muito, digamos, peculiares entre nós, como Ei, seu viado, venha ver só isso ou Já vou, seu corno. Qualquer um que tenha tido um grupo de amigos de infância pode entender do que eu estou falando.

    Nós quatro éramos solteiros. Eu era o mais novo, com vinte e sete anos. William e Rubens tinham vinte e oito, e Rafael, trinta anos.

    Aprenderamos a jogar pôquer uns dois anos antes. Desde então, todas as sextas-feiras nos reuníamos para jogar. Cada semana as partidas aconteciam na casa de um de nós, e assim fora durante os últimos dois anos até então. Até aquela noite. Naquele final de semana. Até aquela aposta.

    Bom, vou começar a lhe contar a história que aconteceu há três anos e que mudou a minha vida. Principalmente, a minha forma de pensar, de controlar minha mente.

    Há quem diga que a mente é uma máquina impressionante. Concordo plenamente com isso. Só acrescentaria que a mente é perfeitamente capaz de fazer seus medos se materializarem na sua frente. A mente humana tem vida própria, uma vida paralela à nossa.

    Ela é capaz de vasculhar o mais profundo calabouço dos seus pensamentos, encontrar os medos que você havia trancado lá, para isolá-los até de você mesmo, e fazer com que se materializem, com que voltem à tona.

    A sexta-feira estava chuvosa, como os demais dias daquela semana. Olhei para o relógio, eram dez e meia da noite. Fiquei ligeiramente inquieto. Estava novamente atrasado para o nosso compromisso de todas as sextas-feiras e o motorista do ônibus em que eu estava parecia não querer colaborar, andando cada vez mais devagar a cada quarteirão que passava.

    O relógio sempre foi meu inimigo imaginário; nunca consegui me dar muito bem com ele. Por mais que me esforçasse, estava sempre atrasado. Podia fazer as coisas o mais rápido possível; em um minuto estava adiantado, no minuto seguinte já estava atrasado novamente.

    Mas aquele dia a culpa não era inteiramente minha. O motorista provavelmente estava adiantado e começou a rodar lentamente pela cidade.

    Olhei rapidamente à minha volta. Havia somente alguns passageiros, a maioria dormindo. Eles conseguiam dormir, mesmo com a barulheira que o ônibus fazia.

    Era um ônibus já antigo, desses que andam tropegamente, como um bêbado que perdeu de vez o equilíbrio. O motor rosnava, engasgava e voltava a rosnar. Aquele velho dragão enfurecido, mortalmente ferido na luta contra o tempo, cuspia quilos e quilos de fuligem no ar. Algumas janelas estavam com os vidros pichados; outros tinham sido riscados a chave. Havia todo tipo de recados nos encostos dos velhos e malcheirosos bancos: desde declarações de amor até suásticas, frases pornográficas e todo tipo de recado sujo e asqueroso. O estofado saltava para fora, como se os bancos tivessem sido esfaqueados.

    Algumas luzes piscavam freneticamente, como se fossem luzes estroboscópicas. A cada buraco pelo qual o ônibus passava – e não eram poucos –, o barulho era infernal. Parecia que a qualquer momento a carcaça inteira do ônibus desmontaria e logo estaríamos andando somente sobre as rodas.

    O assoalho não era nenhum modelo de limpeza mas, por incrível que pareça, era o item em melhor estado de conservação naquele ônibus.

    Conformado com a demora, fixei o olhar na janela. Fui, então, olhando a melancólica paisagem urbana e noturna de Monserrat.

    A chuva fina fazia com que pequenas poças se acumulassem nas calçadas. Os pequenos pingos reluziam à luz amarelada das lâmpadas que iluminavam as ruas, já desertas, devido à chuva e à queda da temperatura que ocorrera naquela semana.

    O percurso do ônibus era, de certa forma, longo. Em alguns horários do dia, quando o trânsito estava mais pesado, o trajeto podia demorar quase uma hora. Naquele horário, no entanto, à noite, com as ruas desertas, não demoraria mais do que vinte ou vinte e cinco minutos, caso o motorista estivesse disposto a pisar no acelerador e fazer aquela grande banheira velha andar para valer.

    No entanto, a cada buraco pelo qual o ônibus passava, eu imaginava que talvez ele não estivesse andando mais rápido por receio de que realmente o ônibus desmontasse na sua mão.

    Continuei olhando pela janela, até que adormeci. Meus ouvidos já haviam se acostumado ao barulho, e o horário, aliado ao meu cansaço e ao leve sacudir do ônibus, fez com que eu dormisse por alguns instantes.

    Os breves minutos em que dormi foram suficientes para que eu tivesse um sonho. Um sonho que, depois eu veria, fora um aviso – mas que, naquele momento, não havia como perceber ainda.

    No sonho, eu estava correndo. Estava em pânico, mas não conseguia entender o motivo. Corria por meio de um corredor escuro. O ar úmido tinha um cheiro podre, de algo em decomposição, que adentrava meu nariz, grudava na minha garganta e enjoava meu estômago. No entanto, eu precisava continuar correndo. E o fiz, até chegar ao final daquele corredor.

    Ao final deste, havia uma espécie de floresta. Altas árvores encobriam a pouca luz do luar, tornando o ambiente extremamente escuro. Parei por um momento e um pânico ainda maior tomou conta de mim. Vi-me obrigado, novamente, a correr como um louco, sem direção. Ia sempre em frente, mas sem saber para onde ir.

    Olhei para trás e não conseguia entender do que eu estava correndo, e principalmente não sabia o porquê.

    Foi quando pude perceber que havia mais alguém entre as árvores. Tentei gritar, mas a voz não saiu. Continuei correndo, arfando, já quase sem fôlego, quando tentei gritar novamente; porém, só obtive um leve grunhido emanando da minha seca garganta.

    Desviei o olhar do caminho – que mal conseguia enxergar, devido à escuridão – por alguns instantes, e tentei correr em direção à pessoa que vira entre as árvores.

    Foi quando pisei em uma poça de lama, escorreguei e rolei. O som do meu corpo batendo no chão foi como o de um saco de batatas caindo da caçamba de um caminhão. Escorreguei alguns metros e me vi despencando de um penhasco, em direção ao vazio.

    Acordei, então, sobressaltado. Olhei pela janela e demorei alguns instantes até localizar em que ponto da cidade eu estava. Faltavam poucos pontos para eu descer do ônibus. Mantive-me acordado pelo restante do caminho, ainda sobressaltado pelo sonho que havia tido.

    Já perto de descer, levantei-me e caminhei lentamente para o fundo do ônibus. Apertei a campainha de aviso ao motorista e aguardei o ônibus parar. Desci, tirei o guarda-chuva da mochila e o abri. O vento soprava um pouco mais frio, anunciando o inverno que estava se aproximando. Olhei para o relógio: onze e dez da noite. O motorista tinha conseguido a façanha de demorar quarenta minutos para fazer um percurso de, no máximo, vinte...

    ****

    Nós quatro morávamos perto uns dos outros. No entanto, naquela sexta-feira, pela primeira vez, havíamos decidido realizar a nossa partida de pôquer em um barzinho um pouco mais afastado das nossas casas. Na verdade, podíamos chamá-lo de boteco mesmo. Não daqueles que se enchem de criaturas embriagadas pelo álcool, muito menos daqueles onde, à noite, principalmente em uma sexta-feira, as praticantes da profissão mais antiga do mundo marcam ponto.

    Era simplesmente um boteco. Nada de alta classe, mas também nada de baixo nível. Era o boteco do Beto, que rimava de uma forma extremamente brega. Já tínhamos avisado o Roberto (daí o apelido Beto) que o nome que ele daria ao seu estabelecimento seria um pouco duvidoso. Mas de nada adiantou, ele quis dar o nome assim mesmo. E quis fazê-lo com toda a breguice a que se tem direito, com luzes de néon na fachada e um adesivo boteco do Beto prefere VISA colado na parede da frente, como se isso fosse dar um ar mais sofisticado ao estabelecimento.

    Beto era um conhecido nosso da época do colégio. Era o nerd, o CDF da classe. E, como todo nerd que se preze, na época do colégio usava óculos no melhor estilo fundo de garrafa que já vi, pulôveres fechados até o alto do pescoço, e tinha milhões de pequenos vulcões no rosto. Sim, vulcões, porque chamá-los de espinhas era pouco diante do tamanho imenso da sua acne.

    Beto era tímido, fechado, mas tinha um humor ácido. Estava sempre processando as informações que vagavam ao seu redor. Sempre tinha respostas, bastava que alguém o questionasse.

    Era natural que Beto se tornasse um grande físico, matemático ou profissional de informática – e, provavelmente, rico. Você já deve ter percebido que os grandes nerds da sua turma da escola viraram pessoas ricas ou, pelo menos, bem de vida.

    Mas Beto, um dia, resolveu abrir um restaurante. Tentou colocar em prática toda aquela teoria de administração de negócios. Fez de tudo para que o restaurante progredisse e se tornasse um lugar de alto nível, mas não conseguiu. Acabou falido. Desgostoso, abandonou o personagem nerd e abriu um bar. Curiosamente, o bar caminhou melhor do que o restaurante e progrediu. Como eu disse, não o suficiente para se transformar em algo de alto nível, mas também não virou um antro de vagabundos. Era um boteco, um simples e agradável boteco, daqueles para se reunir depois do horário de trabalho para comer um pastel, beber alguma coisa e jogar um pouco de conversa fora.

    Era o que deveríamos ter feito naquela noite. Mas não, tínhamos de inventar aquela aposta...

    ****

    Chegando ao boteco do Beto, fechei o guarda-chuva, sacudindo-o rapidamente para retirar o excesso de água. Bati os pés, já encharcados, em um pano que Beto havia deixado na porta para que ninguém enchesse seu boteco de lama. Algo um tanto sofisticado, pensei.

    Olhei rapidamente em volta e logo vi William, Rubens e Rafael sentados em volta de uma mesa, com algumas garrafas de cerveja, algumas porções de calabresa e batatas fritas e, claro, com as cartas espalhadas sobre a mesa.

    Assim que me viram, Rafael logo exclamou:

    – Olha quem chegou... Está adiantado para a próxima sexta-feira, Luiz.

    – Não me encham a paciência, já não chega ter ficado um tempão dentro de um ônibus que mais parecia uma bateria de escola de samba – falei, esboçando um sorriso amarelado.

    Sentei-me à mesa. Em questão de instantes, Beto me trouxe o cardápio. Folheei rapidamente e pedi somente um refrigerante.

    Eu era o único da turma que não bebia nada. Nunca gostei de cerveja, e as demais bebidas alcoólicas me davam dor de estômago.

    Olhei as cartas espalhadas na mesa e logo percebi que o jogo naquela noite não estava muito bom. Provavelmente os três haviam passado o tempo todo conversando, rindo e falando dos meus constantes atrasos.

    – Não jogaram hoje? – perguntei.

    – Preferimos ficar tirando sarro de você – respondeu Rafael, sorrindo amistosamente e confirmando minha suspeita.

    – Mas não se preocupe, hoje a noite não estava muito boa para pôquer – disse William, enquanto tomava um grande gole de cerveja. – Um tempo chuvoso, um friozinho desses, e eu aqui com três caras em vez de estar com a minha namorada, dá pra acreditar numa coisa dessas?

    Explodimos em gargalhadas.

    – Sexta-feira é o dia sagrado da cervejada. E o boteco do Beto será o nosso templo a partir de hoje – concluiu Rubens, enquanto fazia um gesto para um brinde. – Às sextas-feiras.

    Todos brindamos e tomamos um grande gole de nossas bebidas. Foi quando olhei para o relógio. Eram quase quinze para meia-noite. Nesse momento, eu falei aquilo que seria o causador, em primeira instância, de toda a tragédia que aconteceria depois:

    – Hoje vou perder o meu programa favorito.

    – Qual programa? – perguntou Rubens, enquanto fazia sinal para que Beto lhe trouxesse mais uma cerveja.

    A Hora da Meia-Noite – respondi.

    Todos rimos novamente. A Hora da Meia-Noite era um programa no melhor estilo trash, que mostrava curtas histórias de terror, normalmente com pouca verba para efeitos especiais. O resultado, muitas vezes, era cômico.

    Mesmo assim, eu gostava de assistir ao programa. Algumas histórias, mesmo com os efeitos especiais precários, eram muito boas e prendiam bastante a atenção. E eu sempre gostei de filmes de terror.

    – Filmes de terror são besteira – comentou Rafael. – Eu consigo, no máximo, dar risadas. Não têm a menor graça e não assustam nem um pouco...

    – Já vi alguns muito bons – respondeu William. – Se for um filme bem feito, dá pra assustar sim.

    – Dá nada, filme de terror, pra mim, é igual a filme de comédia. Só dou risadas, nada mais. Aliás, dou mais risadas vendo filmes de terror do que vendo filmes de comédia – disse Rafael, claramente zombando da opinião de William.

    – Existem filmes que assustam e filmes que só servem pra dar risada – completei, tentando agir diplomaticamente. – Existem filmes que não assustam pelas cenas ou pelos efeitos, mas sim pela história e pelo enredo.

    Rafael riu novamente.

    – Não sei como vocês podem se assustar com enredos de filmes de terror. É sempre a mesma história. Fantasmas, monstros, medo de morrer, assassinatos. Nunca muda.

    Eu insisti.

    – Nem sempre. O enredo, se for bem feito, serve para impressionar as pessoas, deixá-las com um certo receio. Mesmo sabendo que é mentira, as pessoas podem levar aquilo para a vida real e, dessa forma, se assustar.

    – Eu insisto e repito – persistiu Rafael. – Não existe nenhum tipo de filme de terror que me cause medo.

    Rubens estava só assistindo a pré-discussão, quando resolveu proferir a frase que seria outra grande causadora da tragédia, dessa vez em segunda instância.

    – Duvido que você não tenha medo de nada, Rafael.

    – Ah, é? Pois então diga alguma coisa e eu te direi se tenho medo ou não.

    – Alguém chegar aqui, agora, com um revólver, engatilhá-lo e apontá-lo para sua cabeça – disse William.

    – Isso não é terror, é policial; é, no máximo, um suspense e olhe lá – respondeu Rafael.

    – Ok, então um fantasma chegar aqui com um revólver e apontá-lo para sua cabeça – respondi.

    Explodimos novamente em gargalhadas. Dessa vez até o Beto, que estava passando com uma bandeja com algumas garrafas de cerveja, ouviu e sorriu, abanando a cabeça, como quem não acreditava no que estava ouvindo.

    – Vocês não conseguem nem mesmo inventar uma situação para ver se eu tenho medo ou não, como podem querer me assustar com alguma coisa? – questionou Rafael.

    Logo, saiu a frase causadora de tudo. Em última instância, foi o que causou tudo. Rubens disse aquela frase, que até hoje não me sai da cabeça.

    – E se apostássemos alguma coisa para provar que você realmente não tem medo, como diz?

    – Combinado, pode falar. Aposto o que você quiser, absolutamente qualquer coisa – concordou Rafael.

    Eu sorri. Ainda não sabia o rumo que as coisas tomariam com aquela conversa.

    – Eu tive uma ideia – empolgou-se Rubens. – Que tal você ir buscar algo no cemitério, no fundo do cemitério, à meia-noite? Algo que a gente deixe lá durante o dia para que você busque à noite?

    Olhei para Rafael. Achei, por um instante, que ele fosse hesitar. No entanto, ele respondeu:

    – O que vocês quiserem, onde vocês quiserem e na hora que vocês quiserem. Só quero saber o que eu ganho com isso?!

    – Cem reais de cada um – falou William. – Trezentos reais no total.

    Rapidamente, Rubens e eu olhamos para William, espantados. Ele simplesmente fez sinal com a mão para que não falássemos nada e ficou encarando Rafael.

    – Combinado, está fechado – respondeu.

    – Mas, se você não completar a missão – falou William, sorrindo, fazendo um gesto com as mãos como no filme Missão Impossível –, terá que pagar cem reais para cada um de nós, trezentos reais no total. Nada mais justo, certo?

    – Combinado, temos um acordo! – concluiu Rafael, enquanto tomava o último gole de cerveja do copo.

    Novamente Rubens e eu olhamos estupefatos para William. Ele simplesmente assentiu com a cabeça, como se soubesse o que estava fazendo. Até então não sabíamos que ele tinha uma espécie de plano, uma ideia para trapacear na aposta.

    – Amanhã, por volta das quatro horas da tarde, nos encontraremos em frente ao cemitério. Entraremos juntos e deixaremos alguma coisa lá no fundo – disse William. – Melhor ainda. Deixaremos os trezentos reais lá, dentro de alguma coisa disfarçada, para que ninguém pegue. Voltaremos à meia-noite na porta do cemitério e você entra. Nós três, então, ficaremos do lado de fora esperando você voltar.

    – Está ótimo assim. Os trezentos reais mais fáceis que já ganhei – sorriu Rafael.

    Rafael fez, então, um sinal para Beto, que lhe trouxe mais uma cerveja. Ao colocar a cerveja sobre a mesa, virou-se para nós e disse:

    – Eu ouvi tudo. Vai dar merda.

    Ele estava certo. Ia dar merda.

    Não consegui dormir direito naquela noite. Não pela aposta em si, mas pelo dinheiro. Cem reais? Até hoje não sei como deixei William flertar com o meu dinheiro. Bastava eu ter dito não ou reduzido o valor para que Rafael não aceitasse a aposta e tudo terminasse bem. Daríamos risadas, um chamaria ao outro de viado ou qualquer coisa do tipo e pronto. Discussão encerrada.

    No entanto, as coisas tomaram um rumo totalmente diferente. A aposta estava feita. E agora não tinha como voltar atrás, sob pena de perder cem reais. Se eu soubesse o que viria a acontecer, pagaria muito mais do que isso para que aquela ideia não fosse adiante.

    Foi uma noite chuvosa, como as demais daquela semana. Consegui adormecer por volta das seis horas da manhã.

    No entanto, tive novamente um pesadelo. Dessa vez, eu estava em uma espécie de buraco, um buraco profundo. As paredes pareciam ser de terra e o fundo do buraco estava totalmente preenchido por água. Eu não conseguia mover minhas pernas e estava afundando. Por mais que eu tentasse me mover, o máximo que eu conseguia era afundar um pouco mais. Olhando para o alto, via somente algumas árvores na encosta do buraco. Podia ver a lua, parcialmente encoberta pelas nuvens, em um céu extremamente carregado.

    Segurei-me à parede do buraco, tentando agarrar um pedaço de galho. Consegui manter-me à tona por mais alguns momentos. Olhei com um pouco mais de atenção para cima e consegui ver, entre a fraca luz do luar, a silhueta de um mausoléu. Levei um grande susto, soltei o galho e afundei, me debatendo desesperadamente.

    Acordei, novamente sobressaltado. Demorei alguns instantes para perceber que havia sido somente um sonho. Olhei para o rádio relógio, eram sete horas. Estava totalmente suado, ainda que não tivesse feito calor aquela noite. Tentei voltar a dormir, mas não consegui. Virei de um lado para o outro na cama, até que decidi desistir de tentar dormir novamente. Naquele momento, percebi que os cem reais já não eram mais minha única preocupação.

    ****

    O sábado amanheceu chuvoso. Os jornais já haviam alertado que seria mais um final de semana com chuvas em Monserrat.

    Por volta das dez horas da manhã, William me telefonou.

    – E aí, pronto para ganhar cem reais? – perguntou, sorrindo.

    – Até agora não sei como deixei você me colocar nessa – respondi. – É claro que o Rafael vai conseguir. Ele já demonstrou não ter medo; além disso, nós o conhecemos, sabemos que ele não tem medo mesmo.

    – Eu duvido. Ainda mais com o que eu quero fazer – afirmou William.

    – O que você quer fazer? – questionei.

    – Quero ganhar cem reais e dar um susto no Rafael. Meio-dia, no boteco do Beto. Vamos almoçar lá, que tal? Daí eu explico tudo direitinho. Já falei com o Rubens, está tudo combinado.

    – Almoço fora... Cem reais... Lá vai meu dinheiro – disse. – Não, obrigado, fale pelo telefone mesmo.

    – Deixe de frescuras. Com o dinheiro da aposta dá muito bem pra pagar um PF no boteco do Beto e ainda sobra o bastante para o resto do final de semana – sorriu William.

    Parei e ponderei por alguns instantes.

    – Luiz? – chamou William.

    – Estou aqui – respondi. – Ok, está combinado então. Meio-dia, no boteco. Quero só ver qual é a ideia de rato agora.

    – Você vai gostar. Vamos ganhar uma grana. Será um sábado diferente.

    Com certeza seria...

    ****

    Ao meio-dia em ponto cheguei ao boteco do Beto. Foi a primeira vez em muito tempo, que cheguei a algum compromisso no horário. Ao entrar no boteco, vi William e Rubens em uma mesa mais ao fundo. Os dois estavam conversando e rindo bastante. Na mesa, porções de batatas fritas e algumas cervejas.

    Assim que me viu, Rubens falou:

    – Não acredito, perdi! Cara, logo hoje você resolveu chegar no horário? Toma, William, pega os teus dez reais! – esbravejou, jogando o dinheiro sobre a mesa.

    – Perdi alguma coisa? – perguntei.

    – Sim. Apostamos dez reais se você chegaria atrasado ou não. Alguma coisa me disse que você chegaria no horário. O Rubens perdeu! – respondeu William, sorrindo e fazendo um gesto com uma mão fechada e a outra espalmada batendo sobre ela, para Rubens.

    – Gostaram dessa história de aposta, hein? – comentei ironicamente.

    – Estou gostando de ganhá-las. Hoje quero ganhar mais uma – disse William.

    – Ok, vamos lá. Quero saber qual é a ideia. Não quero saber de confusão nem de encrenca – falei sorrindo, sentando-me à mesa.

    – Não tem encrenca nenhuma, é coisa muito fácil – assegurou Rubens, ainda levemente chateado por ter perdido os dez reais.

    William fez um gesto para Beto, pedindo o cardápio.

    – Garçom, o menu, por favor.

    Explodimos novamente em gargalhadas. Dessa vez, até mesmo o Beto sorriu, dizendo:

    – Menu? Hoje é dia de feijuca, camarada. Deixe de frescura e diga logo quantas vão querer.

    – Mande logo três, uma pra cada um – respondeu William. – E mande mais uma cerveja.

    Beto sorriu e assentiu com a cabeça.

    – É pra já.

    Virei para William e disse:

    – Vamos lá, desembuche. Qual é sua ideia?

    – É o seguinte. A gente ganha cem reais cada um e ainda tira uma da cara do Rafael. Simples assim – afirmou William.

    – Sim, isso eu entendi. Mas qual é o, digamos, plano para conseguir fazer isso? – perguntei.

    – Essa é a melhor parte. Veja bem. Hoje vamos, junto com o Rafael, ao cemitério deixar os trezentos reais escondidos em alguma parte bem lá no fundo, para que ninguém encontre o dinheiro, certo? – começou William.

    – Certo – assenti.

    – Pois bem. À noite, quando o Rafael entrar para buscar o dinheiro, nós entramos também. Entramos pela entrada lateral, fazemos alguns barulhos para assustá-lo e ele desiste da aposta. Pronto.

    – Você bebeu demais – falei, já levantando. – Estou caindo fora antes que eu perca cem reais.

    – Não gostou da ideia? – perguntou William, fazendo um gesto pedindo que eu continuasse sentado.

    – Claro que não! Você aposta meu dinheiro, diz que tem uma ideia para não perder a aposta e me vem com uma proposta de quinta categoria dessas? Você está louco – respondi, claramente indignado.

    – Seu dinheiro não, apostei nosso dinheiro, tem cem reais meus nessa história também – lembrou William.

    – Sim, mas além do seu dinheiro, tem o meu e o do Rubens também – falei.

    – Calma, pessoal, calma. Vamos nos acalmar. É só uma aposta, pra que tanta discussão? – interveio Rubens. – Não precisamos ficar nervosos. Uma aposta é uma brincadeira, serve pra distrair, nada mais que isso. Se a ideia não é legal, vamos pensar em algo melhor, ora bolas.

    Parei e pensei por uma fração de segundo. Naquele exato momento, tomei a decisão errada. Em vez de levantar-me e ir embora, desistindo de vez daquela ideia insana, voltei a sentar-me. E, para piorar as coisas, comecei a compactuar com aquilo. Começamos a ter ideias atrás de ideias para conseguir pregar uma peça em Rafael e, claro, ganhar algum dinheiro.

    A ideia vencedora foi a seguinte: logo após Rafael entrar, entraríamos pela lateral do cemitério. Dessa forma, ficaríamos mais próximos de chegar ao dinheiro escondido. Andaríamos em um corredor paralelo ao que Rafael estivesse; derrubaríamos alguns vidros e alguns vasos de flores, mas sempre sem que ele nos visse, obviamente. Compraríamos também uma espécie de fósforos de cor, vendidos em lojas de fogos de artifício e os acenderíamos em algum ponto estratégico. Esses fósforos soltariam uma fumaça esverdeada, o que ajudaria a assustar Rafael.

    A ideia não era tão menos ridícula do que a ideia original de William. Mas depois de uma bela feijoada regada a alguns copos – ou garrafas – de cerveja, passamos a não ter mais noção do ridículo. Embora eu não bebesse, passei a acreditar, mesmo que por alguns instantes, que aquilo tudo podia mesmo dar certo.

    E o pior de tudo é que parte dessa ideia havia sido minha. Se existem momentos na vida onde devemos ficar calados, aquele tinha sido um ótimo exemplo.

    O cenário estava montado. Dinheiro escondido no fundo de um cemitério. Uma pessoa entrando à meia-noite no cemitério para buscar esse dinheiro. Outros três indo logo atrás para assustá-lo, para ganhar cem reais cada um.

    Era uma ideia de malucos. E, claro, não podia dar certo...

    ****

    Às quatro horas da tarde, estávamos na porta do cemitério de Monserrat. A chuva havia dado uma trégua, apesar do céu lotado de nuvens cinzas carregadas. O cemitério, o único da cidade, ocupava uma grande área na zona norte; tinha o tamanho aproximado de quatro ou cinco campos de futebol.

    Ele era cercado por um muro branco, não muito alto, com faixas azuis. Era alto o suficiente para que ninguém conseguisse pulá-lo tão facilmente, porém baixo o suficiente a ponto de ser possível visualizar as torres de alguns mausoléus.

    O cemitério possuía também um grande estacionamento, localizado antes da entrada principal.

    O portão principal era de ferro, já um pouco enferrujado pela ação do tempo, com grades em formato de curva, dando um estilo clássico à entrada principal. O portão era mais alto do que os muros e a parte superior terminava em pequenas lanças.

    Era, portanto, um cemitério clássico. Definitivamente era isso. Não tinha nada que o qualificasse de forma diferente dos demais cemitérios clássicos que já vi. E, como todos os outros, não devia ser um lugar muito confortável para passar a noite.

    Essa foi a impressão que tive naquele momento, quando parei por alguns instantes para observá-lo.

    – Luiz. Luiz, Luiz! – gritou William.

    Eu, então, retomei minha atenção.

    – Pois não, estou aqui.

    – Pois não

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