4547-Texto Do Artigo-7899-5-10-20190322
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Resumo: O objetivo desse artigo é discutir a importância da construção do conceito de gênero em diversos
campos de estudos, seguindo um percurso que pretende argumentar em favor do conceito de gênero como
importante operador para a crítica de situações sociais específicas nas quais as mulheres ainda são subjugadas,
tomando como exemplos o mercado de trabalho e o ambiente da família e sustentando sua importância no âmbito
da educação.
Abstract: The aim of this article is to discuss the importance of the concept of gender in several fields of study,
following a path that seeks to argue in favor of the concept of gender as an important operator for the critique of
specific social situations in which women are still subjugated, taking as examples the labor market and the family
environment and sustaining its importance in the scope of education.
1 Historiadora, doutora em Antropologia pelo Museu Nacional (UFRJ), professora e pesquisadora no Instituto de Medicina
Social da Uerj.
2 Doutora em Filosofia pela PUC-Rio, professora do Programa de Pós-Graduação de Filosofia (PPGF/IFCS) e bolsista de
produtividade da Faperj. E-mail [email protected]
APRENDER – Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano XII n. 20 p. 9-21 jul./dez.2018
ISSN online: 2359-246X
10 Maria Luiza Heilborn; Carla Rodrigues
Conceitos têm história, são formados e configurados a partir de ideologias, exigências políticas,
debates e reflexões que circulam entre pensadores; são também objeto de disputas e discussões que não
podem pretender esgotá-los, encerrá-los ou estabilizá-los em uma definição única, supostamente neutra
e definitiva. A história do conceito de gênero, da qual nos ocuparemos neste artigo, exemplifica, desde a
segunda metade do século XX, essas idas e vindas, em campos como a Antropologia, as Ciências Sociais
e a Filosofia. Esta história ganha, no início do século XXI, questionamentos aos quais nos interessa
chegar a fim de fazer pensar até que ponto o conceito de gênero – a partir do qual se tem discutido a
assimetria de gênero na sociedade –, pode ser repensado em nome do debate sobre a
heteronormatividade. Numa certa perspectiva, o conceito de gênero seria insuficiente para pensar e, mais
ainda, politizar a heteronormatividade. Neste artigo, vamos seguir um percurso que pretende argumentar
em favor do conceito de gênero como importante operador para a crítica de situações sociais específicas
nas quais as mulheres ainda são subjugadas, tomando como exemplos o mercado de trabalho, o ambiente
da família e a sua necessária discussão no ambiente escolar.
Na história das teorias sociais sobre diferenças sexuais, a distinção sexo/gênero abriu a
possibilidade de interrogar a ideia de diferença sexual como princípio universal de diferença e de
classificação (DURKHEIM e MAUSS, 1971 [1903]). A antropóloga Françoise Héritier será uma das
exceções na escola sociológica francesa, ao defender um prisma materialista (BONTE, 2009: 97) sobre a
diferença sexual no que concerne à especialização dos corpos humanos referente à reprodução sexuada
e seus diversos desdobramentos, ressalvando-se que o termo gênero não é incorporado em sua obra
(HÉRITIER, 1996). A partir da dessemelhança sexo/gênero, delineiam-se os argumentos para pensar a
diferença3 sexual como produto da cultura e não como substrato natural ou essência que informaria a
modelação dos chamados papéis sexuais. Nesta abordagem, indivíduos nascidos e classificados como
homens e mulheres seriam socializados para agir, pensar e sentir segundo roteiros culturalmente
construídos em posições vinculadas ao sexo anátomo-biológico. São perspectivas que trabalham a partir
da construção cultural dos papéis de gênero e tendem a conceber as relações entre os sexos a partir de
pressupostos de costume e estabilidade social. Em geral, tendem também a descartar a possibilidade de
mudança nesse arranjo social.
Aqui, argumenta-se que a noção de sexo, ou da natureza biológica de homens e mulheres, é uma
construção social (LAQUEUR, 2001, MOORE, 1991; OUDSHOORN, 1994), e o corpo sexuado como
entidade não pode ser considerado um dado universal. A década de 1970 foi marcada pela progressiva
3 A antropóloga Henrietta Moore (1991) designa que o que aproxima o feminismo da Antropologia é o pensamento da
diferença, apesar de em alguns momentos o feminismo haver pleiteado a semelhança entre todas as mulheres.
Gênero: breve história de um conceito 11
incorporação do conceito de gênero (HEILBORN e SORJ, 1999) nas Ciências Sociais e na História. A
distinção sexo/gênero foi se constituindo como ferramenta conceitual e política e representou um
argumento decisivo nas lutas em torno dos direitos das mulheres. Nesse processo de diferenciação, o
primeiro termo – sexo – remete à natureza e, de maneira mais específica, à biologia, e o segundo termo
– gênero – se refere às construções culturais das características consideradas femininas e masculinas. Tais
construções são percebidas como aspectos que mantêm relação com a biologia, mas dela não derivam e
variam em diferentes contextos. Ao iluminar o caráter arbitrário das noções de masculinidade e
feminilidade, a distinção entre sexo e gênero permitiu que pesquisadoras e militantes feministas
salientassem a natureza eminentemente social da subordinação das mulheres, e apontassem, portanto,
para sua possível alteração (FRANCHETTO, CAVALCANTI e HEILBORN, 1981; MATHIEU, 1991).
O “sistema de sexo e gênero”, inaugurado por Gayle Rubin (1975), propõe que a assimetria entre
homens e mulheres, presente em múltiplas sociedades, deveria ser debitada às formas de organização
social do sexo e da reprodução. Interpelando Lévi-Strauss (1976) na teoria sobre a circulação de mulheres,
Rubin indica que a desigualdade de distribuição de poder está na raiz da apropriação pelos homens da
capacidade reprodutiva do sexo feminino. Essas ideias são centrais no desenvolvimento da Antropologia
dedicada ao gênero nas décadas de 1970 e 1980 (HARRIS e YOUNG, 1979; RITER, 1975). No marco
de abordagens que consideram a subordinação feminina um aspecto universal da organização social, o
conceito de gênero foi amplamente utilizado como instrumento de crítica à construção social das
diferenças entre homens e mulheres, de forma a compreender as maneiras como essas convenções se
relacionavam com as práticas sociais, situando as mulheres em posições de desigualdade. Algumas
antropólogas definiram gênero como uma forma de desigualdade social (ORTNER e WHITEHEAD,
1981; COLLIER e YANAGISAKO, 1987) e consideraram o estudo do gênero como o estudo de relações
assimétricas de poder e oportunidades.
Na trajetória do conceito de gênero como ferramenta de interpelação da naturalização das
relações sociais e da diferença sexual, desde que foi publicado, em 1986, no volume 5 da edição 91 da
American Historical Review , “Gênero – uma categoria útil de análise histórica”, da historiadora e teórica
feminista Joan Scott, se tornou a grande referência no Brasil para o uso do termo no debate sobre
hierarquia ou assimetria de gênero. Sabemos que o texto de Scott muito contribuiu para que
pesquisadores da área de ciências humanas reconhecessem o valor das pesquisas sobre as relações sociais
estabelecidas com base nas diferenças percebidas entre homens e mulheres. O conceito de gênero passou
a ser usado para evidenciar que o sexo anatômico não é o único elemento definidor das condutas da
espécie humana. As culturas criam padrões associados aos corpos que se distinguem por seu aparato
genital e pela capacidade de gerar outros seres (isto é, pela reprodução humana). Diferença sexual,
12 Maria Luiza Heilborn; Carla Rodrigues
sexualidade (heterossexual) e gênero passam a ser dimensões que se cruzam, mas uma não decorre da
outra.
“O gênero é uma estratégia pela qual as feministas começaram a encontrar uma voz teórica
própria, além de aliados científicos e políticos. É nesse espaço que gênero é uma categoria útil de análise”
(SCOTT, 1990, p. 14). A autora argumenta a favor do uso do gênero como categoria de análise ao
defender o conceito como forma de compreender os diversos modos de interação social e humana. Scott
sustenta o gênero como aquilo que nos permite interrogar como a diferença sexual funciona nas relações
sociais. Na medida em que gênero se integra na metodologia das Ciências Sociais, conforme tal categoria
se torna aquela a que se recorre para rejeitar explicações biológicas para as relações sociais, e, sobretudo,
quando gênero aparece como uma classificação social que se impõe sobre um corpo sexuado, a categoria
nos oferece novas perspectivas sobre as relações de poder e nos permite pensar igualdade política e social
com o objetivo de incluir, além da dimensão de gênero, as questões de classe e raça que até ali subjaziam
em análises cujo ponto de partida era a neutralidade do humano. Poderíamos acrescentar que outras
dimensões, como a homossexualidade, também aparecem como problema teórico no âmbito de um novo
registro epistemológico que incorpora o gênero como categoria estratégica de análise.
Escrito em 1949, O segundo sexo (1949 [2009]) marcaria o início da reflexão sobre a subalternidade
feminina, que anos depois foi encampado pelos que se passou a chamar de “estudos de gênero”,
caracterizado pela defesa da ideia de que a biologia não pode ser o fator determinante na diferenciação
entre homens e mulheres. “Na humanidade, as ‘possibilidades’ individuais dependem da situação
econômica e social”, escreve Beauvoir, que apresenta, a partir do que entende que seja uma construção
social, uma visão de que a hierarquia entre masculino e feminino está fundamentada na cultura,
começando na experiência familiar, passando pela educação nas escolas, pela tradição e pela religião.
Beauvoir parte da premissa de que a hierarquia entre masculino/feminino está dada pela mesma
oposição cultura/natureza, estando o masculino e a cultura na parte privilegiada dessa hierarquia, e o
feminino e a natureza na parte inferior. A pensadora francesa se opõe diretamente ao pensamento de
Rousseau, cujo projeto era educar as mulheres em direção a uma passividade tida como “natural” ou
biológica. Beauvoir questiona essa natureza quando diz que esse destino lhe é imposto por seus
educadores e pela sociedade (BEAUVOIR, 2009).
A partir da publicação de O segundo sexo, esse destino biológico das mulheres passa a ser
questionado e forma-se a ideia de que o “sexo” é biológico e o gênero é socialmente construído. Embora
não seja a iniciadora do movimento feminista – em vários momentos históricos anteriores, ocorreram
iniciativas políticas de mulheres que buscavam alterar sua posição subalterna na sociedade, como a luta
das sufragistas –, o fato é que a obra de Beauvoir é um marco na produção teórica feminista do século
Gênero: breve história de um conceito 13
XX, que influenciou as Ciências Sociais – o já mencionado trabalho de Rubin é tributário das reflexões
de Beauvoir – e abriu pelo menos dois debates importantes. O primeiro, sobre o lugar da mulher como
o outro do homem, questão que se desdobrará, por exemplo, a partir da filosofia de Emanuel Lévinas.
O segundo, com suas proposições sobre a mulher como categoria universal, que vieram a ser
interrogadas pela teoria feminista e pelo pensamento da filósofa norte-americana Judith Butler. Percebida
como uma importante continuadora da obra de Foucault4, Butler segue a trilha do pensador francês para
desconstruir o corpo “natural” e afirmá-lo tão cultural quanto o gênero (BUTLER, 1987). Se em Scott a
pergunta era “como o gênero funciona nas relações sociais”, em Butler a pergunta se desloca para “como
o gênero funciona na definição ontológica de sujeito”. Mais do que um problema epistemológico, uma
das questões que esse deslocamento põe em xeque é o desafio de pensar as relações sociais de gênero
não mais a partir da distinção sexo/gênero, mas a partir de um trinômio sexo/gênero/desejo (BUTLER,
2003), no qual a heterossexualidade compulsória possa ser interrogada como heteronormatividade.
Rubin (1984), cuja influência sobre o trabalho de Butler é notória, percebe que a elaboração acerca
da sexualidade frente ao gênero provida pelo sistema sexo/gênero, por ela proposto em 1975, não dá
conta da especificidade da sexualidade. Segundo a autora, há uma hierarquia de valores sexuais, na qual a
sexualidade considerada “boa”, “normal” e “natural” seria idealmente heterossexual, marital,
monogâmica, reprodutiva e não comercial. Deve ser concebida por um casal, relacional, ocorrer com
pessoas da mesma geração e dentro de casa. Não deve envolver pornografia, objetos de fetiche,
brinquedos sexuais ou papéis que não o masculino e o feminino. Qualquer sexo que viole este modelo é
considerado “mau”, “não natural” e “anormal”.
Partindo das contribuições de Rubin e de uma crítica à influência do existencialismo em Beauvoir,
Butler estabelece um debate sobre a distinção sexo/gênero, para ela ainda inscrita na tradição cartesiana
que orientou o pensamento ocidental sobre o sujeito. Butler vê na divisão sexo/gênero a ideia de que
pensar o sexo como natural e o gênero como socialmente construído mantém um modelo binário. Trata-
se, então, de discutir como e se a noção de gênero decorre do sexo, decorrência na qual ela aponta uma
forma de afirmação de uma “unidade metafísica”. Para Butler, aceitar o sexo como um dado natural e o
gênero como um dado construído, determinado culturalmente, seria aceitar também que o gênero
expressaria uma essência do sujeito. Podemos pensar que seu gesto político histórico – a partir do qual
também se impõe a necessidade de pensar sobre a utilidade do uso da categoria de gênero como análise
4 Quando Foucault publica História da sexualidade – a vontade de saber (1973), seu projeto é demonstrar como a emergência de
uma nova episteme gerada no século XVIII dá existência a uma intricada teia de relações em que se entrelaçam saber-poder.
Opondo-se à hipótese de que todo o poder emana do Estado, o pensador francês focaliza os micropoderes que constituem a
nova ordem, a do poder disciplinar. Foucault escreve na contracorrente do pensamento da época, opondo-se de maneira
entricheirada aos arautos de uma nova era de liberdade sexual após séculos de repressão. O conjunto de análises sobre a
produção de conhecimento sobre o louco, o criminoso, a sexualidade, o corpo doente coroa na enunciação da disciplina como
o mecanismo central de teias de controle social. Foucault enfoca o contraste entre o poder soberano – que coíbe, coage e
reprime – ao do novo poder, dotado de eficácia produtiva – que resulta em individualização por meio de dispositivos diversos,
como o isolamento em celas asilares ou prisionais, técnicas de exames, registros, vigilância panóptica e classificação minuciosa
dos ‘desvios’. O caráter positivo dessa modalidade de poder é a produção de realidade e sentimentos até então inexistentes,
como o próprio sentimento de si.
14 Maria Luiza Heilborn; Carla Rodrigues
– é afirmar que não há a verdade do gênero (BUTLER, 2003, p.195). Ao indicar que não há essência ou
identidade nas características corporais, a autora propõe três dimensões contingentes da corporeidade,
escapando, assim, do binarismo de gênero: sexo anatômico, aquele dado pela biologia; identidade de
gênero, entendida como uma construção social; e performance de gênero, sendo o elemento do
performativo aquilo que perturba a associação sexo/gênero e explicita sua arbitrariedade.
A partir do questionamento da verdade do gênero, Butler sugere que os debates teóricos que
dizem respeito a estabelecer uma prioridade entre os termos gênero, diferença sexual e sexualidade estão
atravessados por um outro problema: a permanente dificuldade de determinar onde começa e termina o
biológico, o psíquico, o discursivo e o social. Butler entende que a diferença sexual é o lugar no qual se
coloca a questão da relação entre o biológico e o cultural, quando afirma que “gênero é a parte da
diferença sexual que aparece como social” (BUTLER, 2004, p. 185).
A hierarquia social baseada na materialidade dos corpos se expressa, por exemplo, na divisão de
gênero no trabalho, na qual mulheres ganham menos do que homens, são naturalmente direcionadas a
atividades tidas como essencialmente femininas – organização, arrumação, cuidado – mesmo entre dois
profissionais em cargos equivalentes. Em outras palavras, entre um homem e uma mulher, ambos
gerentes, além da desigualdade salarial, haverá também uma hierarquia simbólica organizada a partir de
uma diferença sexual. Em todos os países capitalistas desenvolvidos, a maioria dos empregos de tempo
parcial é de mulheres. Nos países em desenvolvimento, elas também são maioria nas atividades informais
e, em todos os países do mundo, as mulheres ocupam postos de trabalho mais precários ou de vínculo
mais frágil do que os homens (HIRATA, 2006).
Ainda que as mulheres estejam amplamente representadas – elas correspondem a cerca de 45%
da população economicamente ativa –, a desigualdade de renda e de acesso aos postos mais altos na
hierarquia, seja na administração pública, seja na iniciativa privada, são questões a ser enfrentadas5 para o
benefício de todas as mulheres que, atuando no mercado de trabalho, buscam oportunidades de ascensão
social e superação das desigualdades de renda.
Conhecemos bem as consequências da discriminação contra as mulheres nesse campo: menor
reconhecimento profissional, menos acesso aos postos de poder, menos oportunidades de carreira,
5 No Brasil, diferentes pesquisas apontam para o mesmo cenário: embora elas tenham maior escolaridade, os rendimentos
das mulheres são menores do que os dos homens, mesmo quando elas ocupam cargos de maior prestígio. Apesar de a
participação relativa das mulheres no contingente de formados ter aumentado em praticamente todos os cursos universitários,
a diferença salarial em relação aos homens caiu pouco. Indicadores do IBGE (PNAD, 2007) mostram que as mulheres são
maioria nas faixas salariais mais baixas e minoria nas mais altas, e essa tendência se mantém inalterada há pelo menos duas
décadas. Na administração federal, pesquisa mostra que, embora ocupem 43% dos cargos federais, as mulheres são minoria
nas vagas superiores da hierarquia, em que 80% dos postos são ocupados por homens. As mulheres no topo da carreira pública
são minoria nas três faixas salariais mais altas: 36% ganham DAS-4, 21% recebem DAS-5 e somente 19% têm a remuneração
máxima, DAS-6 (FONTELE-MOURÃO, Tânia. Mulheres no topo de carreira: flexibilidade e persistência. Brasília: SPM, 2006).
Gênero: breve história de um conceito 15
salários mais baixos, mais mulheres subempregadas ou em trabalhos precários. Um dos argumentos desta
assimetria ainda é a natureza dos corpos, exemplificado no debate do famoso caso Sears, empresa que,
no final da década de 1970, foi acusada de discriminação sexual contra mulheres na contratação de mão
de obra para postos competitivos e de salários mais altos. Nos EUA, como aponta Vicki Schultz (1992),
os tribunais têm sido importante fórum de debate sobre a questão, e empregadores recorrem
sistematicamente ao argumento de que as mulheres não estão interessadas em ocupar cargos de chefia
ou mais bem remunerados, o que seria característica comum da identidade feminina.
Em 1979, a Comissão de Oportunidades Iguais de Emprego (EEOC, sigla em inglês) moveu um
processo contra a Sears, maior empresa de varejo dos EUA e maior empregadora de mulheres no âmbito
privado, por discriminação sexual na contratação de mão de obra para áreas mais bem remuneradas,
como a de vendas por comissão, em que a maioria dos funcionários eram homens. Dois lados se
enfrentaram: a defesa da Sears procurou demonstrar que não havia interesses iguais entre homens e
mulheres em relação aos postos de trabalho, por isso, havia maior presença dos homens nos postos mais
altos; a acusação quis mostrar que os empregadores não ofereceriam oportunidades, o que configuraria
discriminação. Se houvesse oportunidade, as mulheres assumiriam funções que tradicionalmente são
tidos como masculinas.
Duas historiadoras feministas foram peças-chave no tribunal: Alice Kessler-Harris, pela acusação,
e Rosalind Rosenberg, pela defesa. Primeiramente, a defesa quis demonstrar que não havia interesses
iguais entre homens e mulheres em relação aos postos de trabalho. A acusação replicou o argumento,
levando ao tribunal exemplos de que, quando as oportunidades são oferecidas, as mulheres assumem,
sim, ocupações que não são tomadas como “femininas”. O que, no entanto, fez do caso Sears um
episódio singular na discussão sobre a presença da mulher no mercado de trabalho foi o fato de que, na
tréplica contra a acusação, a defesa da empresa se valeu de argumentos da testemunha de acusação, a
historiadora Alice Kessler-Harris.
Anos antes do julgamento, ela havia publicado um artigo sobre as diferenças na maneira como
homens e mulheres encaram o mercado de trabalho, mostrando que mulheres são mais domesticamente
orientadas e menos individualistas do que os homens, o que terminava por concordar com a
argumentação da defesa da Sears, feita por Rosenberg. A autora tratara como “natural” a diferença de
aspirações masculinas e femininas nos postos de trabalho da empresa, recuperando o argumento do
determinismo biológico que justificaria as distinções nos interesses de homens e mulheres. Para
Rosenberg, mesmo diante de oportunidades iguais, as mulheres fariam escolhas baseadas em valores
femininos, diferentes do modelo tradicional masculino. Segundo ela, essas escolhas mantêm as mulheres
em postos menos competitivos ou menos orientados a ganhos econômicos. A estratégia da defesa venceu
o debate e convenceu o juiz de que a distribuição dos postos de trabalho na Sears poderia ser explicada
pelas diferenças existentes entre homens e mulheres, e não como resultado de qualquer política
discriminatória. “A pressuposição de interesses iguais [entre homens e mulheres] é infundada e solapa
16 Maria Luiza Heilborn; Carla Rodrigues
fatalmente toda a sua análise estatística” (Norderberg, apud PIERUCCI, 1999, p. 42).
O caso Sears foi emblemático porque, pela primeira vez, a discriminação sexual no trabalho foi
tratada como uma escolha das mulheres, argumento usado posteriormente pelas empresas em 54 outros
processos. Em 46% deles o Judiciário aceitou a defesa das empresas, baseada na ideia de que a diferença
da posição feminina nos postos de trabalho era resultado da falta de interesse das mulheres em cargos
mais altos da hierarquia, justificativa dos empregadores para a discriminação (SCHULTZ, 1992).
Schultz indica que se abriu um campo de discussão sobre a articulação entre lei e identidade, a
partir do momento em que a justiça aceitou os argumentos dos empregadores e passou a interpretar a
segregação sexual no mercado de trabalho como expressão da falta de interesse das mulheres em postos
mais bem remunerados. A autora aponta para o problema de a justiça ser chamada a caracterizar as
aspirações e a identidade das mulheres como um grupo (SCHULTZ, 1992), estabelecendo a premissa de
que as mulheres, como categoria identitária, não aspiram a empregos melhores, o que permitiu aos
empregadores determinar preferências de gênero que justificam a segregação sexual no mundo do
trabalho. Ela se apoia em inúmeros estudos que mostram como os empregadores construíram a ideia de
que há empregos tradicionais femininos para exigir das mulheres comportamentos que são considerados
preexistentes como atributos da feminilidade6.
A autora questiona a afirmação de que as mulheres querem postos inferiores “por sua própria
escolha”, e não como parte de um processo cultural de predeterminação do que são os atributos das
mulheres. Schultz critica ainda o fato de os tribunais terem assumido como premissa que o interesse das
mulheres no trabalho é configurado exclusivamente por sua vida privada, independentemente das
exigências do mundo do trabalho. O problema, ainda seguindo Schultz, é que, a partir do episódio Sears,
o Judiciário estabeleceu um determinado viés para deliberar sobre casos de segregação sexual nas
empresas e os juízes adotaram a tese de que as diferenças de oportunidade estavam ligadas à falta de
interesse das mulheres nos postos mais altos da carreira, reforçando os argumentos essencialistas sob os
quais se fundamenta a hierarquia de gênero no mercado de trabalho.
O impacto dos estudos sobre gênero em algumas áreas tradicionais, como a sociologia do
trabalho, propiciou o interesse em relacionar a experiência desse âmbito com outras esferas, que uma
definição ortodoxa do trabalho não permitia enxergar como produtora de valor. Assim, se advogava a
ideia de que as regras do mercado se aplicariam à produção, ao passo que o trabalho doméstico seria, por
assim dizer, “um dote natural que as mulheres aportariam ao casamento em troca do provimento
realizado pelos maridos” (SORJ, 2000, p. 165).
6 COHN, S. The process of occupational sex-typing: the feminilization of clerical labor in Great Britain. 1985; KANTER, Rosabeth Moss.
Men and Women of the corporation. 1977; e WILLIANS, C. Gender differences at work: women and men in nontraditional occupations. 1989.
Gênero: breve história de um conceito 17
Outra dimensão do trabalho doméstico encapsulada nos afazeres diários é o que hoje se denomina
como care, que designa toda a sorte de cuidados para com a prole ainda não adulta, o parceiro e pessoas
que, por envelhecimento, perderam a capacidade de autonomia e demandam de figuras, na sua grande
maioria, femininas, quando o Estado é incapaz de fornecer serviços para atendimento às necessidades de
seres dependentes.
Desse modo, a discussão sobre gênero adentrou a redoma sacralizada da família, na qual a troca
de bens e prestação de serviços é naturalizada como logicamente decorrente da “natureza feminina”, na
qualidade de dádiva na acepção antropológica do termo. Sorj e muitas outras sociólogas (cf. HIRATA e
GUIMARÃES, 2012) demonstraram como a esfera familiar não pode mais ser vista como um sistema
de posições fixas, livre dos constrangimentos externos gerados pelo mercado de trabalho. A filósofa e
cientista política Joan Tronto (1996) afirma que o cuidado é o fundamento da vida social. Podemos dizer
que sua perspectiva se aproxima daquela usual na Antropologia que define a reciprocidade (MAUSS,
2003; CAILLÉ, 1998) como cimento social não redutível à mercantilização.
Uma personagem importante deste debate é a psicóloga Carol Gilligan, pioneira na reflexão sobre
a relação entre cuidado e gênero. Ela identificou que nos estudos sobre teoria da moral prevalecia um
viés masculino (GILLIGAN, 1979), e propõe a ética do cuidado – feminina – como uma alternativa
legítima àquilo que era definido como o padrão do julgamento moral na perspectiva de justiça compatível
com a teoria liberal, na qual os valores individuais prevalecem sobre os da comunidade. Vários autores,
então, argumentavam que as mulheres apresentariam um desenvolvimento moral menos universalista,
aquém, comparativamente, aos homens na compreensão de justiça e equidade. Mais adiante, Gilligan
(1982) recusou de maneira vigorosa a interpretação de leituras sobre seu trabalho que vinculavam
estreitamente a ética do cuidado ao gênero, apesar de haver sempre sustentado que mulheres tenderiam
a revelar uma ética relacional.
A relacionalidade atribuída ao feminino tem sido objeto de longa discussão nos estudos sobre
família no âmbito da antropologia brasileira (ARAGÃO, 1983, DUARTE, 1986, FONSECA, 1991,
SARTI, 1989, CABRAL e HEILBORN, 2014). Não se trata de postular uma natureza feminina, mas,
antes, de salientar que por força de intensa socialização e formas de estruturação da família e da
conjugalidade, às mulheres coloca-se o núcleo estruturador de vínculos familiares e do cuidado para com
os membros do grupo familiar, tendo importante impacto, por exemplo, na prestação dos cuidados de
saúde, que confirma a hierarquia de gênero na medida em que o cuidado não tem estatuto de trabalho no
mercado de trocas e valores.
18 Maria Luiza Heilborn; Carla Rodrigues
subalternidade não seja destino necessário. Se tudo isso já era importante quando o Plano Nacional de
Políticas Públicas para as Mulheres foi votado, tornou-se tarefa ainda mais urgente em um contexto em
que as poucas conquistas alcançadas estão sob forte ameaça de retrocesso onde houve ainda tão pouco
avanço.
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