Doiufrgs, PHILIA VOL3N1 2021 Artigos 4 Teoria Mimética

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> Teoria Mimética e vulnerabilidade do

sujeito Ou: René Girard, Sigmund


Freud e Oswald de Andrade
> Mimetic Theory and the vulnerability of the subject Or: René Girard, Sigmund
Freud and Oswald de Andrade

por João Cezar de Castro Rocha


Doutor em Literatura Comparada pela Stanford University e Professor Titular de
Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail:
[email protected]. ORCID: 0000-0001-5053-6768.

Resumo
Esse artigo propõe um contraponto entre a teoria mimética de René Girard, as
considerações freudianas sobre sujeito e a obra de Oswald de Andrade. O sujeito
mimético coincide com o sujeito antropofágico oswaldiano, pois idêntica divisa poderia
defini-los, transformando o alheio em próprio, e transformá-lo a tal ponto que as
fronteiras entre o eu e o outro se confundem. Cada um a seu modo, Oswald de Andrade
e René Girard assimilaram criativamente a lição freudiana, especialmente a leitura de
(1913). O pensador e poeta brasileiro inverteu os termos da equação,
descobr
Palavras-chave: Teoria Mimética Girardiana. Sujeito Mimético. Antropofagia em
Oswald de Andrade. Totem e Tabu.

Abstract
This a
ass
the Oswaldian anthropophagic subject, since the identical division could define them,
transforming the other in the self, and transform it in such a way that the limits between
the self and the other can be confused. Each one in his own way, Oswald de Andrade and

(1913). The thinker and Brazilian poet inverted the terms in the formula,

Keywords: Girardian Mimetic Theory. Mimetic Self. Anthropophagy in Oswald de


Andrade. Totem and Taboo.

> Artigo recebido em 17.04.2021 e aceito em 20.05.2021.


Originalmente publicado em .
João Cezar de Castro Rocha |

1. Primeiros passos

René Girard nasceu em 1923, em Avignon. Em 1947 mudou-se para os


Estados Unidos, onde fez toda a sua carreira docente. Em 1961, com a publicação
de seu primeiro livro, , principiou a
formulação da , cuja relevância apenas aumenta nas
circunstâncias do mundo contemporâneo.

A intuição inicial da teoria mimética diz respeito à natureza triangular do


desejo humano. Isto é, não desejamos a partir de nós mesmos. Pelo contrário,
aprendemos a desejar através dos olhos de modelos que consciente ou
inconscientemente adotamos. Somos todos autênticos personagens
shakespearianos que sempre se apaixonam a partir da sugestão de outros. Como
no refrão da música popular, a teoria girardiana também afirma que não há dois
sem três.

Aliás, a centralidade do na determinação da própria éa


consequência mais radical da concepção da subjetividade na teoria mimética.
ssa o que não é
co, portanto, é um perfeito ponto que
explorarei na próxima seção.

Num segundo momento, com a publicação de


(1972), o pensador francês propôs uma hipótese ousada acerca da origem da
cultura humana. Dada a natureza mimética do desejo, os homens tendem a
desejar os mesmos objetos. O conflito então se torna inevitável, pois
disputaremos a posse daqueles objetos. Sua generalização recorde-se que a
hipótese busca entender o momento imediatamente anterior à emergência da
cultura levaria o grupo à desagregação, se uma forma de controle da violência
não fosse desenvolvida.

Através da leitura comparativa de mitos e textos literários, René Girard


propôs que a violência de todos contra todos somente é apaziguada quando se
metamorfoseia em violência de todos contra um único membro do grupo. Trata-
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se do mecanismo do que permitiu disciplinar a

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. Os ritos e mitos originários seriam assim formas culturais de


elaboração do mecanismo da cultura humana. Por isso, a violência e o
sagrado são inseparáveis.

A hipótese gerou muitas controvérsias. E quando René Girard precisou


defender a , ou seja, a origem comum dos ritos no
mecanismo do bode expiatório, ele recorreu ao como
evidência de sua teoria. Mais uma vez, Oswald e Girard encontram-se
inesperadamente. E como veremos na próxima seção, encontraremos um
com a inserção de Sigmund Freud.

Em 1978, com a publicação de ,


Girard rematou a arquitetura de seu pensamento através de uma dupla
articulação. De um lado, a combinação da etnologia com a etologia: sem
reducionismos, tampouco exclusivismos, a emergência da cultura humana é vista
no contexto das sociedades animais, mas sempre ressalvada a força do simbólico
em nossa constituição. De outro, a leitura antropológica das Escrituras judaico-
cristãs: Girard defende que os episódios bíblicos devem ser lidos como uma
reflexão autenticamente antropológica acerca do elo indissolúvel entre o sagrado
e a violência. O pensador francês sustenta que nas Escrituras há uma denúncia
da violência do mecanismo do bode expiatório, o que implica adotar uma atitude
ética de defesa da vítima.

2. O outro freudiano e antropófago

Um texto curto de Heinrich von Kleist pode ajudar a esclarecer tanto a


centralidade do diálogo na obra de René Girard, quanto uma das consequências
mais perturbadoras da teoria mimética: a precariedade radical do sujeito na
determinação do próprio desejo. Como reunir reflexivamente os dois aspectos?
Ou, para dizê-lo sem meias palavras, o caráter mimético do desejo não possui
limites? Ao fim e ao cabo, somos todos, ao mesmo tempo, e sem necessariamente
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sabê- 1 no
qual representamos papéis predeterminados, cujos finais são mimeticamente
previsíveis?

Viveríamos, assim, no universo imaginado pelo tenor italiano de Machado


de Assis, o aposentado Marcolino, para quem a vida é uma ópera:

A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo
soprano, em presença do baixo e dos comprimários, quando não são o
soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo
e dos mesmos comprimários. Há coros e numerosos, muitos bailados, e a
orquestração é excelente [...]. 2

Contudo, não se trataria de espetáculo qualquer, mas de função inspirada


numa autêntica análise combinatória movida pela triangularidade do desejo,
noção chave do pensamento de René Girard. O narrador de
parece tê-la intuído perfeitamente:

Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela
verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida
se casa bem à definição. Cantei um terníssimo, depois um , depois
um [...].3

A questão, portanto, é espinhosa. Adiante, discutirei posição do pensador


francês, que certamente contém uma promessa, ainda a ser plenamente
explorada, sobre a autonomia relativa do sujeito mimético.

Avanço, porém, passo a passo. E, antes de retornar à solução proposta pelo


autor de , recordo o conselho oferecido pelo narrador do
texto de Kleist, :

Quando quiseres saber algo e não o consegues através de meditação,


aconselho-te, meu caro, sagaz amigo, a falar a respeito com o primeiro
conhecido que esbarrar em teu caminho. [...] O francês diz
, e este provérbio continua verdadeiro se o parodiarmos e
dissermos .4

1 Refiro-me, claro, ao ensaio de Heinrich von Kleist, [


], 1810.
2 Joaquim Maria Machado de Assis, , 1986, p. 817.
3 , p. 819.
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4 Heinrich von Kleist, [


], 1805/1806.

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Portanto, segundo o atormentado leitor de Kant que foi Kleist5, tudo se


passa como se o melhor orador fosse aquele que, ao começar a falar, não soubesse
exatamente como o discurso será concluído. 6 Na verdade, não soubesse sequer
como principiar a próxima frase, pois, como na obra do poeta, palavra-puxa-
palavra.7 Pelo contrário, o orador medíocre, não apenas teria o discurso na ponta
da língua, como também teria cuidadosamente memorizado o previsível
repertório de gestos e entonações, na teatralidade típica de políticos da província
ou de intelectuais cosmopolitas.

A fórmula aguda de Kleist recorda o paradoxo proposto por Diderot no


século anterior. De fato, o século XVIII foi o palco de uma polêmica importante
acerca da arte da atuação. Divididos em e ,
homens de teatro imaginaram formas opostas de encenação. Para os primeiros,
o êxito do ator
transformá-lo no personagem 8. Múltiplo, macunaímico
, o ator talentoso possuiria uma disponibilidade existencial infinita. Assim,
poderia incorporar qualquer tipo, emprestando ao personagem não uma
personalidade definida, mas, pelo contrário, sua ausência de caráter, num
verdadeiro caleidoscópio emocional. A teoria da imaginação simpatética permitiu
conciliar polos opostos: o ator nem tanto se revela uma pessoa quanto :
seu rosto, uma máscara permanente: detrás da superfície, a celebração do nada.

5 É conhecido o episódio: após ler com cuidado a , Kleist escreveu uma


célebre carta (desesperada) à irmã, Ulrike. Ora, a obra do filósofo de Königsberg, ao negar a
possibilidade de conh ), condenando a razão teórica ao
mundo dos fenômenos, desconcertou profundamente o jovem escritor. Como aceitar tal
precariedade? Como discutirei adiante, aprender a lidar com a própria precariedade é central na
teoria mimética.
6 nde orador, quando abria a boca, ainda não sabia o que diria. Mas a
certeza de que criará o fluxo de ideias necessário às próprias condições e à resultante excitação de
seu ânimo, fez com que ele fosse audaz o bastante para começar contando com a boa sorte
Heinrich von Kleist. , p. 76.
7

poéticos de que mais frequentemente se serve Carlos Drummond de Andrade em sua obra é o que
podemos chamar de associação semântica e paronomástica ou jogo de palavra-puxa-
Othon Moacir Garcia, ,
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1955, p. 9.
8 Steven H. Jobe, , 1990, p. 32.

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9. Desse modo, o trabalho do ator deveria manter visível seu


rosto para além da máscara. Em outras palavras, para criar conscientemente
várias, é preciso ser uma pessoa determinada.

Firmemente centrado, e somente assim, o ator faria girar a roda das


vivências, tornando-as reconhecíveis aos demais. O ato de criar experiências
comuns, mais do que simplesmente compartilhá-las, demandaria o controle
rigoroso das emoções. Disciplinado, brechtiano , o ator abre mão
da sensibilidade à flor da pele precisamente para comover o espectador, tornando
seu distanciamento emocional uma forma de aproximação com as emoções da
extrema sensibilidade cria atores medíocres;
a sensibilidade medíocre, produz a multidão de maus atores; e é a falta absoluta
10. O orador cujo discurso
depende da participação dos ouvintes e o ator cuja atuação supõe o
esvaziamento de sua personalidade bem poderiam ser vistos como metonímias
do sujeito mimético e dos limites de sua autonomia. Miméticos, portanto, o
orador de Kleist e o ator de Diderot; afinal, apenas a partir do outro eles realizam
suas vocações.

Daí a natureza estrutural do diálogo na obra girardiana: a interlocução


assegura a centralidade do outro na formulação do próprio pensamento. E não
me refiro exclusivamente ao ato mesmo de conceder inúmeras entrevistas, ou de
participar de longos diálogos, transformados em livros ambos os gestos são
frequentes na produção do pensador francês. Penso no hábito polêmico,
definidor do estilo intelectual girardiano, como uma forma propriamente
dialógica, essencial ao conteúdo de sua teoria. Ou seja:

Se com isso quer dizer que eu possuo toda a combatividade típica dos
intelectuais de minha geração, vou concordar sem problema. E os meus
defeitos pessoais, como já sugeri, dão a algumas de minhas colocações um
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9 .
10 Denis Diderot, , 1967 [1733], p. 133.

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tom mais duro que seria conveniente e, de um modo geral, prejudicam a


minha eficiência.11

Nesse sentido, o que Girard diz acerca do criador da psicanálise reveste-se

que me incomodou bastante no ponto de partida do meu trabalho, fez-me perder


bastante tempo, uma vez que eu via a ambiguidade da minha relação com
12. É como se, através das inúmeras polêmicas em que se engajou, Girard
estivesse colocando em prática o
. Afinal, não é verdade que o debate de ideias é um modo
oblíquo de admiração?

O sujeito mimético girardiano, portanto, coincide com o sujeito


antropofágico oswaldiano, pois uma idêntica divisa poderia defini-
interessa o que não é 13. Isto é, até transformar o alheio em próprio, e
transformá-lo a tal ponto que as fronteiras entre o eo se confundam. No
fundo, e cada um a seu modo, Oswald de Andrade e René Girard assimilaram
criativamente a lição freudiana. A partir da leitura especialmente de
(1913), o pensador e poeta brasileiro inverteu os termos da equação,
14. O crítico
a
explicação do desejo mimético mesmo em campos especificamente freudianos,
com 15. Ou seja, em alguma medida, metamorfoseando o
alemão no francês.

Oswald e Girard, então, são parentes próximos do ator sonhado por


Diderot ou do orador imaginado por Kleist: todos dependeram de outro(s) na
descoberta de sua voz. Afinal, é sempre a partir do outro que se define uma

11 René Girard, 2011,


p. 207.
12 , p. 188.
13 Oswald de Andrade, , 1990, p. 47. A afirmação

sentido, vale a pena recordar a importância do canibalismo na reflexão girardiana em


e em (2008).
14 , p. 48.
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15 René Girard, 2011,


p. 188.

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identidade, cuja precariedade pode ser vivida como abertura precisa à


contribuição milionária da alteridade. No centro do sujeito mimético, portanto,
encontra-se a multiplicação de outros, ou seja, de inúmeros modelos adotados na
definição do desejo. Em outras palavras, há um novo caminho de pesquisa a ser
trilhado no cruzamento inesperado entre René Girard, Sigmund Freud e Oswald
de Andrade.

Referências

DE ANDRADE, Oswald. . . São


Paulo: Editora Globo, 1990.

DE ASSIS, Joaquim Maria Machado. . In DE ASSIS, Joaquim


Maria Machado. Obra completa. Volume I. Afrânio Coutinho (org.). Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

DIDEROT, Denis. .
Raymond Laubrea (org.). Paris: Flammarion, 1967. Texto originalmente
publicado em 1733.

GARCIA, Othon Moacir.


. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1955.

GIRARD, René.
. São Paulo: Editora É, 2011.

JOBE, Steven. . In ,
vol. 62, n° 1, 1990, p. 32.

KLEIST, Heinrich von. . Texto publicado em 1810.

KLEIST, Heinrich von. .


Tradução de Carlos Alberto Gomes dos Santos. Revista , Ano IV, n. 4 A,
p. 75-80, out. 2008.
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FREUD, S. (1913). In FREUD, S.


(1912-1914) São Paulo:
Companhia das Letras , 2012. (Obras completas, 11).

ASSOUN, P.L. . Paris: Ellipses, 1996.

FREUD, S. (1928). In: FREUD, S.


Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2015.

Referência para citação deste artigo


ROCHA, João Cezar de Castro. Teoria Mimética e vulnerabilidade do sujeito
Ou: René Girard, Sigmund Freud e Oswald de Andrade. Revista PHILIA |
Filosofia, Literatura & Arte, Porto Alegre, volume 3, número 1, p. 69 77,
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maio de 2021.

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