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ISSN Impresso 1809-3280 | ISSN Eletrônico 2177-1758

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A DIMENSÃO INTERPRETATIVA DO DIREITO COMO


INTEGRIDADE A PARTIR DE RONALD DWORKIN

THE INTERPRETATIVE DIMENSION OF LAW AS


INTEGRITY FROM RONALD DWORKIN

Vladimir Passos de Freitas*


Silvana Raquel Brendler Colombo**

RESUMO: O presente artigo pretende analisar a teoria de interpretação proposta por Ronald
Dworkin, em especial, o dever que os juízes têm de observar a coerência e integridade ao inter-
pretar as disposições abstratas do texto constitucional, com a finalidade de verificar o papel
que o Poder Judiciário poderia de forma legítima exercer em um regime democrático. Para
tanto, inicialmente será abordado o direito como integridade e a metáfora do romance em
cadeia. Posteriormente, o artigo enfatiza como os juízes interpretam as disposições abstratas
da Constituição, a denominada leitura moral da Constituição. Por fim, inserido no âmbito
da democracia constitucional proposta pelo autor, será analisada a atuação do Poder Judiciário
tendo como parâmetro o direito como integridade. O método utilizado para a realização da
pesquisa foi o dedutivo, por meio de revisão bibliográfica das obras do referido autor, bem
como a leitura de trabalhos elaborados por críticos da teoria de Dworkin.
Palavras-chave: Integridade. Coerência. Democracia constitucional. Poder Judiciário.

ABSTRACT: The present essay intends to analyze the theory of interpretation proposed by
Ronald Dworkin. In particular, the duty judges have to observe the coherence and integrity
in interpreting the abstract provisions of the constitutional text, in order to verify the role
that the Judiciary could legitimately exercise in a democratic regime. To do so, we will initial-
ly address the law as integrity and the metaphor of the novel chain. Subsequently, the paper
emphasizes how judges interpret the abstract provisions of the Constitution, the so-called

* Pós-doutor em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor e Mestre em Direito
pela Universidade Federal do Paraná. Professor de Direito Ambiental da Graduação e da Pós-
graduação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR). Presidente da International
Association for Courts Administration (IACA). Doutor Honoris Causa em Humanidades,
outorgado pela Universidad Paulo Freire, Manágua, Nicarágua. Desembargador Federal apo-
sentado. Londrina – Paraná – Brasil.
** Doutoranda em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR). Mestre
em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Especialista em Direito Ambiental
pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Professora de Graduação e Pós-graduação
da Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC). Londrina – Paraná – Brasil.

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moral reading of the Constitution. Finally, inserted within the scope of the constitutional
democracy proposed by the author, it will be analyzed the performance of the Judiciary hav-
ing as a parameter the right as integrity. The method used to carry out the research was the
deductive one, through a bibliographical revision of the works of the aforementioned author,
as well as the reading of works elaborated by critics of the theory of Dworkin.
Keywords: Integrity. Coherence. Constitutional democracy. Judiciary.

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 A INTEGRIDADE NO DIREITO COMO BASE


DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL EM DWORKIN; 2.1 O DIREITO
COMO INTEGRIDADE; 2.2 O DIREITO COMO LITERATURA: o romance
em cadeia; 3 A LEITURA MORAL DA CONSTITUIÇÃO; 3.1 A CONCEPÇÃO
CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA; 4 O DIREITO COMO INTEGRIDADE
PARA UMA MELHOR JUSTIFICATIVA E LEGITIMAÇÃO DA ATIVIDADE
JUDICIÁRIA; 5 CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo aborda o papel que o Poder Judiciário poderia de forma


legítima exercer em um regime democrático, a partir de Ronald Dworkin, tema
este inserido no contexto da concepção de democracia constitucional.
A finalidade é verificar se o papel do Judiciário está restrito à garantia dos
procedimentos democráticos ou se a ele deve ser atribuída a função de guardião
dos valores morais inseridos no texto constitucional. Para tanto, o artigo está
organizado em três partes.
A primeira destina-se ao enquadramento do trabalho de Dworkin no
pensamento filosófico, assim como a exposição das principais características da
teoria jurídica de Dworkin.
No campo da filosofia do direito, o autor enfatiza o caráter aberto da
interpretação jurídica assim como do sistema jurídico, razão pela qual sua teoria
acerca da interpretação do direito é baseada nas decisões judiciais provenientes
dos tribunais anglo-saxônicos. Prioriza-se a análise dos casos difíceis (hard cases),
que ocorrem quando o sentido da norma não é claro ou há conflitos entre dis-
positivos legais ou não há direito para ser aplicado.
Nestas situações, segundo Dworkin, o juiz não deve ter uma perspec-
tiva criadora do direito, mas sim descobri-lo por meio de uma interpretação

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construtiva da prática institucional. Quando uma decisão judicial é produzida,


esta decisão afirma o direito de uma das partes, direito este que já estava pre-
sente no ordenamento jurídico, e que se materializa sob a forma de princípio.
Em razão disso, as decisões passadas dos tribunais contêm uma teoria
moral importante para a comunidade e que deve se perpetuar, adaptando-se aos
novos tempos. A integridade exige que a interpretação produzida seja adequa-
da à história institucional da prática jurídica, assim como o juiz deve escolher a
interpretação que melhor possa fazer desta prática a melhor possível.
Outro ponto que merece destaque na teoria de Dworkin é a compara-
ção entre o direito e a literatura. A análise de um caso difícil se assemelha a um
romance em cadeia, escrito por vários autores em série, de maneira que cada
um interpreta os capítulos anteriores para elaborar um novo capítulo e assim
sucessivamente.
Na segunda parte, o artigo volta-se para a análise da interpretação das
normas da Constituição, que na visão de Dworkin, deve ser submetida a uma
leitura moral, em razão do conteúdo axiológico dos direitos fundamentais e das
disposições abstratas contidas em seu texto. Essa interpretação deve ser realizada
pelos juízes, especialmente pelo fato destes decidirem com base em argumentos
de princípios.
A partir deste entendimento, o questionamento que surge é se os juízes
não eleitos podem derrubar uma decisão política tomada pela maioria de seus
representantes. Para Dworkin, a resposta é afirmativa, uma vez que o Poder
Judiciário está legitimado para dar a última resposta em relação à interpretação
das disposições abstratas contidas na Constituição.
Para o autor, a invalidação de uma lei pelo Poder Judiciário não viola a
democracia, mas a protege, desde que satisfeita às condições democráticas. Assim,
a concepção constitucional de democracia, entendida como aquela que busca
garantir a igualdade política, também é objeto de análise.
O questionamento que surge é se os juízes não eleitos podem derrubar
uma decisão política tomada pela maioria de seus representantes. Assim, na
terceira parte, serão apresentados os argumentos desenvolvidos por Dworkin
para defender que o Poder Judiciário está legitimado para dar a última resposta
em relação à interpretação das disposições abstratas contidas na Constituição.

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Por fim, o objetivo é analisar as contribuições oferecidas pela teoria de


democracia constitucional e sustentadas por Dworkin no que se refere à entrega
da última palavra ao Poder Judiciário, tendo como parâmetro o direito como
integridade.

2 A INTEGRIDADE NO DIREITO COMO BASE DA


INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL EM DWORKIN

Antes de abordar de forma específica o conceito de integridade, é neces-


sário tecer breves considerações acerca da filosofia jurídica de Ronald Dworkin.
Este enfatiza o caráter hermenêutico da ciência jurídica e seu caráter crítico, ou
seja, o direito como argumentação crítico-construtivo resultante da atividade
de interpretação.
A postura epistemológica do autor redefine a relação do direito com
outras disciplinas, tais como a política e a moral. Ele se opõe à ideia de que o
direito e as decisões jurídicas devem ser separados das decisões morais e políti-
cas. Se os sistemas jurídicos são compostos de regras e princípios, estes possuem
valor moral, desta forma, o direito não pode ser separado da política e da moral
(DWORKIN, 2005a).
Dessa forma, o conceito de direito abrange, além das regras explícitas de
uma comunidade, um sistema de obrigações e direitos que estabelecem limi-
tes para o uso da força por parte do Estado; como uma das tarefas do direito é
autorizar o uso da força, esta precisa ser motivada e justificada pelos princípios
morais e políticos existentes na sociedade (DWORKIN, 2005a).
O direito não é apenas descritivo, mas um exercício interpretativo que
não se restringe a descrever o que é, mas justificá-lo, ou seja, “mostrar que ele
tem valor e como ele deve ser conduzido para proteger este valor” (DWORKIN,
2005a, p. 75). Isto significa dizer que a teoria do direito está fundamentada em
julgamentos morais e éticos.
A interpretação construtiva, base de sua teoria, foi desenvolvida no seu
texto Hard Cases, e posteriormente no livro o Império do Direito, na qual apre-
senta o direito como integridade, uma alternativa ao positivismo. Segundo o
autor, o método interpretativo é mais adequado para a compreensão dos conceitos

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normativos e práticas sociais, uma vez que a descrição não seria suficiente para
tal finalidade (DWORKIN, 2008).
O direito como uma prática argumentativa pode ser analisado sob o pon-
to de vista externo, ou seja, do sociólogo, ou do ponto de vista interno daqueles
que fazem as reivindicações. Dworkin opta pela análise do direito do ponto de
vista do juiz (interno) por dois motivos: (i) o argumento jurídico dos processos
judiciais é o ponto de partida para analisar a prática jurídica. (ii) os argumen-
tos jurídicos dos juízes influenciam “outras formas de discurso legal que não é
totalmente recíproca” (MACEDO JÚNIOR, 2013).
Segundo Dworkin (2005a), “uma teoria da intepretação é uma interpre-
tação da prática dominante de usar conceitos interpretativos”, do que se infere
que o conceito de interpretação também é interpretativo.
A interpretação no direito se assemelha à interpretação artística que é uma
interpretação criativa pelo fato de partirem de algo criada pelas pessoas como
uma entidade distinta. Para o autor, “a interpretação construtiva é uma ques-
tão de impor um propósito a um objeto ou prática, a fim de torná-lo o melhor
exemplo possível da forma ou do gênero aos quais se imagina que pertençam”
(DWORKIN, 2005a).
Dito de outra forma, a interpretação criativa é construtiva porque se
preocupa com o propósito do intérprete, ou seja, exige uma interação entre o
propósito e o objeto. Em linhas gerais, esta interpretação é constituída de três
etapas: a pré-interpretativa, a interpretativa e a pós-interpretativa.
Na primeira etapa da interpretação identificam-se as regras e padrões que
podem revelar o conteúdo da prática, o que requer um grau de consenso para
que haja algum grau de interpretação. Já na segunda etapa, o intérprete deve
apresentar a justificativa de valores e objetivos para os elementos da prática que
foram identificados na etapa anterior.
Para Dworkin (2005, p. 81) “a justificativa não precisa ajustar-se a todos
os aspectos ou características da prática estabelecida, mas deve ajustar-se o sufi-
ciente para que o intérprete possa ver-se como alguém que interpreta essa prá-
tica, não como alguém que inventa uma nova prática”.
A última etapa, denominada de pós-interpretativa, consiste no ajuste entre
a ideia do intérprete àquilo que a prática requer para melhor servir à justificativa

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da etapa interpretativa, ou seja, procura-se identificar o que a prática precisa para


conseguir uma máxima realização dos princípios que a justificam (MACEDO
JÚNIOR, 2013).
Como mencionado anteriormente, o autor enfatiza o caráter da interpre-
tação jurídica assim como do sistema jurídico, razão pela qual sua teoria acerca
da interpretação do direito é baseada nas decisões judiciais provenientes dos tri-
bunais anglo-saxônicos (KOZICKI, 2000, p.180). Prioriza-se a análise dos casos
difíceis (hard cases), que ocorrem quando o sentido da norma não é claro ou há
conflitos entre dispositivos legais ou não há direito para ser aplicado.
Nesse sentido, as decisões judiciais precisam ser justificadas pelos argu-
mentos de princípios, e não argumentos de política. Enquanto aqueles justificam
uma decisão política ao mostrar que a decisão respeita ou garante o direito dos
indivíduos ou coletividade, estes justificam uma decisão política ao proteger um
objetivo coletivo da comunidade.
Em relação aos argumentos de princípios e de política, Dworkin (1977,
p. 82) assim se manifesta:

Argumentos de política justificam uma decisão política de-


monstrando que esta decisão promove ou protege algum
objetivo da comunidade como um todo. O argumento em
favor do subsídio para produtores de aviões, com o argumento
de que o subsídio servirá para a segurança nacional, é um
argumento de política. Argumentos de princípios justificam
uma decisão política demonstrando que esta decisão respeita
ou assegura algum direito individual ou de grupo. O argu-
mento em favor de estatutos antidiscriminatórios, de que
uma minoria tem o direito a igual respeito e tratamento, é
um argumento de princípio.

Os argumentos utilizados pelo juiz para decidir podem repousar em dife-


rentes princípios, mas este deve escolher o princípio que fará da prática a melhor
possível. Esta decisão sobre o qual é o melhor princípio tem uma dimensão
política e moral, o que significa dizer que o juiz está fazendo uma interpretação
criativa, não porque cria o direito, mas sim porque apresenta uma justificativa

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para o texto legal ou, um propósito. O juiz não está livre para criar o direito
porque ele se utiliza dos princípios políticos constitutivos daquela comunidade
(KOZICKI, 2000, p.188-190).
Segundo Gunther (2004, p. 410), a busca pelas normas implícitas não
ocorre de forma arbitrária. Dworkin reafirma que os juízes não criem direitos
novos, mas descubram os direitos que sempre existiram. Esta argumentação traz
a ideia de que os direitos são de natureza moral, portanto, não são derivados de
uma atividade legiferante, mas sim do igual tratamento dos cidadãos, funda-
mento da comunidade.
É neste contexto que o conceito de integridade se apresenta como uma
alternativa para a construção da melhor interpretação da estrutura política e
jurídica da comunidade. Dito de outra forma, o direito como integridade é
uma concepção interpretativa do direito que se diferencia das concepções do
convencionalismo e do pragmatismo por basear-se no princípio da integridade,
ao lado da equidade, justiça e devido processo legal adjetivo.

2.1 O DIREITO COMO INTEGRIDADE

Para Dworkin (2000, p. 191), o processo de tomada de decisão no direito


deve ser inserida dentro de uma perspectiva liberal, ou seja, de valorização dos
direitos individuais e democrática, porque todos os integrantes da comunidade
devem ser tratados com igual consideração e respeito.
Ao mesmo tempo em que o autor defende os direitos individuais de for-
ma a conciliar o liberalismo com a comunidade, enfatiza o papel desta na sua
discussão sobre direito.
Dessa forma, assume relevância na sua concepção de liberalismo abrangen-
te, o princípio abstrato fundamental de que todos devem ser tratados com igual
consideração e respeito. Por sua vez, esta exige dos membros da comunidade um
forte consenso acerca de valores, bens e princípios que consideram importantes.
Nas palavras de Dworkin (2005, p. 253), a ideia de comunidade de princí-
pio se faz presente a partir do momento em que as pessoas “aceitam que seus des-
tinos estão fortemente ligados da seguinte maneira: aceitam que são governados
por princípios comuns, e não apenas por regras criadas por um acordo político”.

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É uma comunidade democrática-liberal, uma vez que respeita a liberdade


individual e a diversidade, assim como o consenso na comunidade deve ser
forte o suficiente para permitir que os seus membros tenham o sentimento de
pertencimento a este grupo.
Segundo Dworkin, a integridade é aceita como um ideal político e sobe-
rano sobre a lei “porque nós queremos tratar a nós mesmos como uma comu-
nidade de princípios, como uma comunidade governada por uma única e coe-
rente visão de justiça, equidade e devido processo legal em uma correta relação”
(DWORKIN, 2005a apud MACEDO JÚNIOR, 2013).
O direito como integridade apresenta um pressuposto formal, a ideia de
adequação, e um pressuposto substancial, a ideia de justificação. A primeira refe-
re-se como a interpretação produzida pelo juiz se adequa à história institucional
da prática jurídica, enquanto a segunda requer que o juiz escolha a interpreta-
ção que melhor reflita a intenção do texto ou aquela que pode fazer da prática
a melhor possível (DWORKIN, 2005a).
Como Dworkin considera o direito como integridade um pressuposto da
democracia, a partir desta perspectiva, a integridade pode ser estudada sob duas
óticas: a integridade como limite e como princípio. Enquanto princípio, a inte-
gridade exige coerência com a história da prática institucional, já a integridade
como limite impõe às novas decisões o dever de consistência com os direitos, as
leis e os precedentes judiciais já existentes.
Além disso, o direito como integridade traz a marca da moral e da his-
tória institucional da comunidade, uma vez que na interpretação estão presen-
tes as convicções morais e políticas dos juízes que servem de parâmetro para se
alcançar a coerência que deve existir entre as decisões presentes e futuras com as
decisões passadas (os precedentes).
Dito de outra forma, os direitos e deveres que decorrem das decisões
tomadas no passado contêm o conteúdo explícito nestas decisões e o sistema de
princípios que são necessários para sua justificativa.
Diferentemente da coerência, a integridade é composta por um princípio
legislativo, que pede aos legisladores que as normas criadas estejam direcionadas
para a realização de princípios morais e políticos da comunidade, e um princípio

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jurisdicional, que demanda que os aplicadores do direito respeitem o ordena-


mento jurídico como um conjunto coerente de princípios.
Para que a integridade como princípio jurisdicional ou a integridade na
interpretação seja realizada, é imprescindível que a integridade como princípio
legislativo também se realize, o que requer que as normas criadas pelo Poder
Legislativo estejam voltadas para a realização dos princípios morais e políticos
da comunidade (KOZICKI, 2000, p. 184).
Kozicki (2000, p. 193.) menciona também a inexistência de mecanismos
dentro do sistema jurídico que garantam o direito como integridade. Entretanto,
este pode ser garantido pelas respostas externas ao ordenamento jurídico, tais
como as pressões políticas e o forte consenso na comunidade acerca dos prin-
cípios morais e políticos.
Do exposto até o momento, a integridade no direito poder ser assim
conceituada:

A integridade seria o princípio político aglutinador de outros


princípios que fundam a sociedade e forneceria, ao mesmo
tempo, os sinais indicadores do caminho a ser seguido no
futuro – rumo à sua comunidade de princípios, fraternal,
apoiada nos princípios da equidade, justiça e devido processo
legal – a partir de uma correta apreciação e fé nos valores do
passado (KOZICKI, 2000).

A integridade no direito se apresenta como um contraposto ao voluntaris-


mo e discricionariedade, porque exige que os juízes elaborem seus argumentos
de forma conectada ao conjunto do direito e à comunidade de princípios. Essa
pressupõe o respeito às leis e também aos princípios de igualdade, entendido
como justa distribuição de recursos e oportunidade, da justiça traduzida na ideia
da existência de uma estrutura política imparcial, e devido processo legal adjeti-
vo, ou seja, “processo equitativo de fazer vigorar as regras e os regulamentos que
os estabelecem” (DWORKIN, 2005a, p.312).
O conceito de comunidade personificada está no centro da concepção do
direito como integridade. Para Dworkin (2005a, p. 212), a comunidade não é
uma somatória de agentes que visam atingir seus interesses, mas está relacionada

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à “ideia de que a comunidade como um todo tem obrigações de imparcialidade


para com seus membros, e que as autoridades se comportem como agentes da
comunidade ao exercerem essa responsabilidade”.
Numa comunidade de princípios, as pessoas aceitam que são governadas
por princípios comuns, ou seja, “é uma arena de debates sobre quais princípios
a comunidade deve adotar como sistema, que concepção deve ter de justiça,
equidade e justo processo legal” (DWORKIN, 2005a, p. 254).
Para Dworkin (2005a, p. 314), a integridade é um ideal distinto e inde-
pende da justiça e da equidade, “mas está ligada a elas da seguinte maneira: a
integridade só faz sentido entre as pessoas que querem também justiça e equi-
dade”. Dito de outra forma, a integridade aparece como um ideal político com-
plementar à justiça e à equidade e também à concepção de igualdade e liberdade
de uma determinada comunidade.
A integridade é um ideal político, porque a comunidade política é vista
como uma comunidade de princípios, além disso, os cidadãos desta comunidade
têm por objetivo não apenas princípios comuns, mas sim os melhores princípios
comuns que possam ser extraídos da política.
O Estado que aceita a integridade deve ter uma única voz ao se manifes-
tar acerca da natureza dos direitos fundamentais. Nesse sentido, os juízes devem
aceitar que o direito é estrutura por um “conjunto coerente de princípios acerca
da justiça, equidade e devido processo legal, e pede-lhes que os apliquem nos
novos casos que se lhes apresentem, de tal modo que a situação de cada pessoa
seja justa e equitativa segundo as mesmas normas” (KOZICKI, 2000, p. 291).
Por fim, para que a coerência exigida pelo direito como integridade seja
alcançada, o juiz deve interpretar o direito como um romance em cadeia, em
que cada autor interpretará os capítulos anteriores e dará sequência da melhor
maneira possível aos próximos capítulos. Assim, no próximo item será analisada
a metáfora “romance em cadeia” criado por Ronald Dworkin.

2.2 O DIREITO COMO LITERATURA: o romance em cadeia

No direito como integridade, as decisões jurídicas não exigem apenas


coerência, ou seja, que os casos semelhantes sejam decididos da mesma forma.

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Partindo da ideia de que o direito como integridade é a melhor interpretação


da prática jurídica, os juízes continuam o seu processo de interpretação mesmo
depois de proferida a decisão.
Como já mencionado anteriormente, a interpretação no direito se asseme-
lha à interpretação artística. Nesse sentido, a metáfora do “romance em cadeia”,
criada por Dworkin na obra Império do Direito, analisa a maneira como o
Direito se assemelha à literatura.
Para o autor, o processo de interpretação seria como um romance, escrito
por vários autores, onde cada um é responsável pela redação do capítulo separa-
do, devendo continuar a elaboração do romance a partir de onde seu antecessor
parou, com a finalidade de criar da melhor forma possível o romance em elabo-
ração, como se fosse a obra de um único autor (DWORKIN, 2005a).
A complexa tarefa a que cada escritor estaria submetido ao ter que escre-
ver seu capítulo, de modo a criar da melhor forma possível o romance que está
sendo escrito, é comparada com a complexidade que os juízes enfrentam ao
decidir um caso difícil, e dar continuidade a esta história.
Assim como cada escritor da cadeia precisa analisar o que já foi escrito
para dar continuidade à história, o juiz também deve fazer uma avaliação do que
já foi escrito pelos juízes anteriores, com a finalidade de manter a consistência do
sistema, ou seja, deve ser assegurada a continuidade entre o que foi escrito ante-
riormente e aquilo que lhe é acrescentado (CABALLERO; CADEMARTORI;
ALMEIDA, 2014).
Dessa forma, a interpretação jurídica se apresenta como a extensão da
história institucional do direito. Ao decidir um novo caso, cada juiz deve consi-
derar-se como “parceiro de um complexo empreendimento em cadeia do qual
as decisões, estruturas, convenções e práticas do passado são a história da comu-
nidade” (DWORKIN, 2005a). Ou seja, o juiz deve interpretar o que aconteceu
antes porque tem a responsabilidade de continuar esta história com coerência,
e não simplesmente partir em alguma nova direção.
Este processo de interpretação é realizado pelo julgador a partir da figura
do juiz Hércules. Este é um juiz imaginário que conhece a letra da lei, que acei-
ta o direito como integridade, tem conhecimento de que os legisladores devem
decidir sobre questões de ordem política, e tem ciência que as decisões passadas

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são parte da história da comunidade que ele precisa interpretar e continuar,


com a finalidade de dar o melhor andamento possível (DWORKIN, 2005a).
Hércules é um juiz mítico que seria capaz de desenvolver a resposta que
produza consonância entre a intenção legislativa e os princípios jurídicos. Para
tanto, os juízes devem tomar suas decisões com base em princípios, não em polí-
tica, devem apresentar argumentos que digam por que as partes realmente teriam
direitos e deveres legais “novos”. Ele deverá argumentar principiologicamente
na escolha da melhor decisão para o caso concreto, de forma que a sua escolha
seja coerente com a rede de estruturas e decisões políticas de sua comunidade.
Este juiz mítico considera relevante a história institucional da comu-
nidade, uma vez que entende que a força do precedente influenciará na deci-
são quando estiver embasada em argumentos de princípios que lhes ofereçam
sustentação. É preciso levar em consideração não só as decisões tomadas ante-
riormente, mas a forma com que elas foram tomadas, por quais autoridades e
em quais circunstâncias (TRINTADE, 2014).É também um juiz que aceita o
direito como integridade. Quando isto ocorre, o juiz ao decidir um caso difícil,
busca encontrar no conjunto coerente de princípios sobre o direito e deveres
das pessoas, a interpretação que melhor que coaduna com a estrutura política e
com a doutrina jurídica de sua comunidade.
Dito de outra forma, o juiz Hércules procura encontrar princípios aplicá-
veis que façam parte do direito vigente e também da história jurídica da comu-
nidade, para fins de evitar a criação do direito. Estes princípios que justificam
uma decisão em um determinado caso devem ser consistentes com a justifica-
ção utilização nas decisões de casos semelhantes. (DWORKIN, 2005a). Estes
princípios que justificam uma decisão devem ser consistentes com a justificação
utilizada nas decisões de casos semelhantes.
Da comparação entre o direito e a literatura, fica a ideia de que os juízes
têm a responsabilidade de dizer o direito a partir dos princípios da integridade
e da moral, com a finalidade de chegar a decisões justas coletivos da sociedade.
Dessa forma, o direito como integridade não tem sua visão voltada para o pas-
sado (convencionalismo) nem para o futuro (pragmatismo), trata-se de cons-
truir uma decisão correta com base na integridade do sistema jurídico, extrain-
do deste os princípios e os valores que a comunidade personificada faz vigorar

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no presente, com base nos princípios de justiça, equidade e do devido processo


legal (DWORKIN, 2005a).
No próximo item será abordada a leitura moral da Constituição a partir
das ideias desenvolvidas pelo autor americano Ronald Dworkin.

3 A LEITURA MORAL DA CONSTITUIÇÃO

Na obra intitulada, O direito da liberdade – a leitura moral da Constituição


norte-americana, Dworkin defende a concepção constitucional de democracia e
discorre sobre um método próprio para interpretar uma Constituição, a leitura
moral da Constituição (DWORKIN, 2005b).
Antes de discorrer sobre a leitura moral da Constituição é necessário pon-
tuar que esta não é “propriamente um método. Com ela, Dworkin tenta demons-
trar que não há um procedimento técnico de interpretação da Constituição.
Muitas vezes, a decisão corresponderá a um juízo moral puro, que não deve ser
disfarçado” (MENDES, 2008, p. 58).
Dworkin parte da ideia de que a maioria das Constituições expõe direitos
a partir de uma linguagem moral aberta e abstrata que para serem interpretadas
de forma correta devem ser submetidas a uma leitura moral.
Os direitos fundamentais nela estabelecidos devem ser interpretados como
princípios morais que decorrem da justiça e da equidade e que levam à fixação
de limites ao poder governante. Nesse sentido, a leitura moral da Constituição
é um instrumento que permite a aproximação entre o direito constitucional e
a teoria moral.
Quando o governo incorpora este conteúdo moral ao texto da Constituição,
este deverá decidir “quem terá autoridade suprema para compreendê-los e inter-
pretá-los” (DWORKIN, 2005b, p. 85). A indicação do Poder Judiciário como
autoridade suprema, o que permitiria que os juízes declarassem inconstitucio-
nais leis aprovadas por representantes eleitos pelo povo, não parece uma escolha
natural.
A interpretação moral do texto constitucional deve ser realizada pelos juí-
zes, porque estes decidem com base em argumentos de princípios, aqui entendi-
dos, como um padrão a ser observado em face da exigência de justiça, equidade

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e devido processo legal. Esta decisão baseada em princípios se legitima em razão


do seu conteúdo (motivação), diferentemente do que ocorre quando as deci-
sões são pautadas pelos argumentos de política1 que se legitimam pelo critério
“de quem e como decide” (DWORKIN, 2010). O risco de escolher o Poder
Judiciário como autoridade suprema para fazer a leitura moral da Constituição
está na possibilidade do direito ficar na dependência dos princípios morais que
são adotados pelos juízes, além de retirar das mãos do povo questões de morali-
dade política que o povo teria o direito e o dever de decidir por si mesmo.
Os juristas procuram encontrar uma alternativa de interpretação constitu-
cional que estabeleça limites à possibilidade do Judiciário ler moralmente o texto
constitucional. Defendem que não é adequado conceder um poder demasiado
aos juízes, próprio da leitura moral, nem fazer da Constituição uma extensão
morta do passado. O ideal seria um equilíbrio entre a proteção dos direitos indi-
viduais e a obediência à vontade popular.
Para Dworkin, negar que a Constituição expressa direitos morais ou que
as opiniões constitucionais são suscetíveis às convicções políticas “resultaria na
conclusão de que ela não significa nada ou, então, que significa tudo aquilo que
os juízes queiram que ela signifique” (DWORKIN, 2005b, p. 95).
Nas palavras do autor, a afirmação de que a leitura moral da Constituição
concede poder demasiado ao Poder Judiciário seria um exagero porque há duas
restrições importantes que limitariam a liberdade de agir conferida aos juízes.
A primeira delas é a restrição da história traduzida na ideia de que a lei-
tura moral Constituição deve “tomar como ponto de partida os conceitos que
seus autores expressaram” (DWORKIN, 2005b, p. 15). A história deve ser con-
sultada para saber o que os legisladores disseram por meio dos princípios que
declararam e não quais as intenções que os constituintes tinham.
A declaração de direitos por meio de conceito vagos foi uma opção delibe-
rada dos constituintes, que obrigaria cada geração, a partir dos mesmos conceitos,
atualizar suas próprias convicções. Isto pode ser demonstrado pelo fato de que os
autores optaram por usar uma linguagem abstrata, além disso, “aqueles que viessem

1 Os argumentos de política são aqueles que traçam um programa, um objetivo voltado para
a coletividade.

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interpretar o texto constitucional deveriam desconsiderar suas próprias opiniões


sobre os efeitos que ela teria em casos específicos” (DWORKIN, 2005b, p. 15).
Como os juízes não adquirem legitimidade a partir das eleições ou da von-
tade da maioria, o fundamento de sua legitimidade está na disciplina da argumen-
tação, ou seja, está identificada no compromisso de decidir com base em argu-
mentos que satisfaçam duas condições essenciais, a sinceridade e a transparência
(MENDES, 2008).
Neste contexto, aparece a segunda restrição ao Poder Judiciário indicada por
Dworkin, o direito como integridade. A possibilidade de o juiz julgar de acordo
com suas convicções pessoais, moral subjetiva, é afastada pelo respeito “ao dese-
nho estrutural da Constituição como um todo e também com a linha de inter-
pretação constitucional predominantemente seguida por outros juízes no passado”
(MENDES, 2008, p. 85).
Dito de outra forma, a decisão judicial passaria no teste de adequação se
estivesse compatibilizada com a história, com a Constituição e a prática constitu-
cional de uma determinada comunidade. Neste ponto, o autor faz uma ressalva de
que nem mesmo a atenção cuidadosa à integridade, por parte de todos os juízes,
irá produzir sentenças judicias uniformes (DWORKIN, 1997).
A leitura moral do texto constitucional induz ao reconhecimento da exis-
tência de mais uma resposta para decidir um determinado caso, momento em
que os juízes sensatos deverão decidir por si mesmos qual delas mais honra o seu
país, segundo Dworkin. Diante da possibilidade de divergências sobre a respos-
ta correta, os juízes poderiam desconsiderar uma decisão política legislativa por
inconstitucionalidade.
Para Dworkin, o problema central não é saber em que grau a democracia
deveria curvar-se perante a proteção de outros valores que são importantes para a
sociedade, como os direitos individuais, e sim de saber o que a democracia real-
mente é.

3.1 A CONCEPÇÃO CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA

A primeira ideia que vem à tona quando se fala em democracia é a de


governo da maioria, mas subjacente às formulações e controvérsias acerca da

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A DIMENSÃO INTERPRETATIVA DO DIREITO COMO VLADIMIR PASSOS DE FREITAS
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melhor versão deste regime político, a questão que emerge é o objetivo fun-
damental de uma democracia, em cujo cerne está a pergunta formulada por
Dworkin, qual seja, a premissa majoritária deve ser aceita ou rejeitada?
A premissa majoritária, base da democracia representativa, é traduzida
na ideia de que as decisões importantes seja aquela tomada pela maioria dos
cidadãos, após terem tido tempo e informação para refleti-las. Esta se insere na
denominada democracia procedimental caracterizada pela ênfase aos procedi-
mentos democráticos, ou seja, privilegiam os direitos que garantem a partici-
pação política e o processo deliberativo, independentemente do resultado a ser
alcançado (DWORKIN, 1997).
Embora a premissa majoritária não exclua a necessidade de instrumen-
tos contra majoritários em um regime democrático, assim como não negue a
necessidade de que os direitos individuais sejam respeitados, entende que quan-
do a maioria não puder fazer o que quiser isso será sempre injusto, de tal modo
que a injustiça permanece mesmo quando existem razões que a justifiquem
(DWORKIN, 2006, p. 25).
A ideia de que as decisões coletivas são tomadas de forma racional e
informada pela maioria dos cidadãos não pode ser vista como uma definição de
democracia, uma vez que o objetivo que a definiria está na expectativa de que as
“decisões coletivas sejam tomadas por instituições políticas cuja estrutura, com-
posição e modo de operação dediquem a todos os membros da comunidade a
mesma consideração e o mesmo respeito” (DWORKIN, 2006, p. 26).
Dessa forma, Dworkin apresenta sua concepção constitucional de demo-
cracia, inserida no âmbito da democracia substancial, entendida como aquela
que enfatiza o resultado, ou seja, busca garantir a igualdade política e jurídica.
Para tanto, as decisões democráticas tomadas pelas instituições devem garan-
tir aos membros da comunidade igual respeito e consideração (DWORKIN,
2006, p. 26).
Sustenta o autor que a democracia é um governo que está sujeito às con-
dições democráticas de igualdade de status para todos os cidadãos, assim, quando
as instituições majoritárias respeitam essas condições, a decisão tomada por elas
devem ser aceitas por todos (DAHAL, 2001).

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É necessário ressaltar que tanto a concepção constitucional de democracia


quanto a concepção da premissa majoritária entendem que as decisões políticas
devem ser tomadas de forma majoritária pelos agentes políticos. De forma
diversa, a concepção constitucional de democracia requer que a preocupação
destes procedimentos majoritários seja com a igualdade entre os cidadãos, e não
com a soberania da maioria (DAHAL, 2001).
Nesse sentido, não rejeita totalmente a premissa majoritária no que se
refere à tomada de decisão pelos representantes eleitos pelo povo, porque nem
sempre a premissa majoritária está ajustada a princípios ou valores justos. Mas
requer que as instituições majoritárias garantam as condições democráticas de
igualdade de status para todos os cidadãos.
A democracia pressupõe ação coletiva, isto é, pressupõe o reconhecimen-
to de unidades de ação em que os diversos atores constituem um grupo capaz
de agir como tal” (DWORKIN, 2005b). Dessa forma, enquanto na premissa
majoritária a ação coletiva é do tipo estatístico, na concepção constitucional de
democracia a ação coletiva é do tipo comunitária.
É uma ação coletiva do tipo estatístico quando a ideia de grupo aparece
como mera figura de linguagem, não tem o sentido de fazer alguma coi-
sa como grupo. Esta se resume às regras que assegurem a vontade da maioria,
isto é, quem deve votar e ser votado.
Nas palavras de Dworkin (2005b, p. 30), a ação coletiva é estatística
“quando aquilo que o grupo faz é uma função, geral ou específica, de algo eu os
membros individuais do grupo fazem sozinho, ou seja, daquilo que fazem sem
pensar que estão agindo enquanto grupo”.
A ação coletiva do tipo comunitário acontece quando “os indivíduos
agem de forma que fundam suas ações separadas num ato ulterior unificado
que, encarado em seu conjunto, é um ato deles” (DWORKIN, 2005b, p. 89).
Esta requer que os indivíduos assumam a existência do grupo como entidade
ou fenômeno individual.
Na ação coletiva estatística, governo do povo significa que as decisões
políticas sejam tomadas de acordo com os votos da maioria, já na ação coletiva
comunitária, o governo do povo implica que as decisões são tomadas pelo povo
enquanto entidade coletiva distinta (DWORKIN, 2006).

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Para Dworkin (2005b), a ação coletiva do tipo comunal seria o verda-


deiro pressuposto da democracia, ou seja, a democracia induz a necessidade de
ser identificado um vínculo de pertencimento entre indivíduos e grupo. Este
vínculo é a filiação moral de cada indivíduo para com a comunidade, a partir da
condição democrática de igualdade de status para todos (DWORKIN, 2005b).
Prossegue afirmando que a premissa majoritária, traduzida na ideia que
a democracia é vontade da maioria, não induz necessariamente à justiça nas
decisões políticas, porque em algumas situações contrariam os interesses das
minorias. O governo da maioria, que impõe sua vontade a um número menor
de pessoas não é justo tampouco valioso, a não ser que atenda a determinadas
condições democráticas (DWORKIN, 2005b).
Essas condições democráticas estão expressas em três princípios, o princí-
pio da participação, o da reciprocidade e o princípio da independência. O prin-
cípio da participação exige que cada pessoa tenha capacidade de influenciar as
decisões políticas coletivas, mas sem que este papel seja limitado por “suposições
sobre seu talento ou habilidade” (DWORKIN, 2006).
O princípio da reciprocidade estabelece que a decisão política coletiva
precise refletir o mesmo grau de consideração aos interesses de todos os mem-
bros da comunidade. Uma pessoa somente é membro de uma unidade coletiva
se for tratada como membro pelos outros, e “tratá-la como membro significa
aceitar que o impacto de uma ação coletiva em sua vida é tão importante para
o sucesso geral da ação quanto o impacto na vida e interesses de qualquer outro
membro” (DWORKIN, 2006, p. 339).
Já o princípio da independência assegura que todo membro moral de uma
determinada comunidade política “deve ser encorajado a ver como sua respon-
sabilidade pelo julgamento das ações do grupo” (DWORKIN, 2006, p. 121).
Esses três princípios representam a ideia que impulsiona a filiação moral
entre indivíduo e governo. Para Dworkin, um regime verdadeiramente demo-
crático requer uma comunidade política que atenda às condições democráticas,
portanto, que trate seus membros com a mesma consideração e respeito.
Por fim, a liberdade e a igualdade são os valores que dão o contorno de uma
releitura do conceito de democracia. Quando estas condições são observadas,
atribui-se valor também aos interesses minoritários, ainda que seus representantes

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tenham sido eleitos de forma majoritária, então, a decisão tomada deve ser aceita
por todos os membros da comunidade.
Esta ideia de argumentação jurídica alia-se a uma teoria da justiça segun-
do a qual os juízes, aqueles que conduzem o processo democrático e a socieda-
de têm o dever de tratar todos os membros da comunidade com igual respeito
e consideração.
A democracia não se limita às decisões tomadas nas instâncias de deli-
beração majoritária. Isto significa dizer que a concepção de democracia defen-
dida por Dworkin não exclui a possibilidade de utilização de procedimentos
não majoritários naquelas situações em que a igualdade possa ser promovida
(DWORKIN, 2005b). Dessa forma, no próximo item será estudado o papel
que o poder judiciário desempenha como guardião dos direitos morais, a partir
da ideia de integridade e coerência proposta por Dworkin.

4 O DIREITO COMO INTEGRIDADE PARA UMA MELHOR


JUSTIFICATIVA E LEGITIMAÇÃO DA ATIVIDADE JUDICIÁRIA

Dworkin desenvolveu uma concepção de Estado de Direito baseada em


direitos, modelo este que pressupõe a existência de direitos e deveres morais
não declarados pelo direito positivo e que devem ser revelados e impostos pelos
tribunais. Esses direitos são expressos por meio de princípios e teriam a duas
funções: (a) substrato para encontrar a resposta correta; (b) ferramenta que serve
de barreira contra a discricionariedade (DWORKIN, 2010).
Diferentemente do posicionamento de Dworkin, a tese positiva-hartiana
da discricionariedade apresenta um modelo de Estado de Direito baseada no
texto da lei. Nesta perspectiva, o juiz ao decidir determinado caso deve descobrir
o que está realmente no texto jurídico. A decisão discricionária se efetiva quando
não for possível fazer valer uma decisão política previamente estabelecida em
uma regra jurídica (DWORKIN, 2010, p. 128).
Para o autor, o direito não é apenas um conjunto de regras, mas também
princípios. O pressuposto de que o indivíduo tem outros direitos além daqueles
que são determinados de forma expressa nas regras explícitas, impõe ao juízo

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A DIMENSÃO INTERPRETATIVA DO DIREITO COMO VLADIMIR PASSOS DE FREITAS
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o dever de descobrir “quais são os direitos das partes, e não de inventar novos
direitos” (POLI, 2012).
O fato de Dworkin buscar a reaproximação entre o direito e moral a
partir da valorização dos princípios não o caracteriza como jusnaturalista, uma
vez que “os princípios jurídicos apoiam-se na moralidade de uma determinada
comunidade política e surgem e transformam-se no processo histórico” (NEVES,
2008, p. 96).
Como dito anteriormente, a concepção centrada no texto da lei admi-
te em algumas situações a criação judicial de novos direitos. O modelo que é
desenvolvido por Dworkin não aconselha uma divisão estanque de tarefas entre
órgãos políticos e jurídicos. Além disso, afirma que os juízes precisam enfrentar
ao menos um tipo de questão política.
A possibilidade das decisões políticas serem construídas a partir de argu-
mentos morais (princípios) encontra contraponto no critério da legitimidade,
expressa na ideia de que “as decisões políticas devem ser tomadas por funcioná-
rios eleitos pela comunidade como um todo, que possam ser substituídos perio-
dicamente da mesma maneira” (DWORKIN, 2010, p. 122).
Este argumento democrático é rejeitado por Dworkin porque o debate
sobre as decisões políticas no âmbito do Poder Judiciário deixa de considerar a
distinção entre princípio e política2, da qual derivam dois tipos de argumentos
que podem embasar as decisões políticas.Sustenta, ainda, que a democracia do
ponto de vista procedimental é incompleta porque ela não poderia “prescrever
os processos pelos quais se poderia saber se as condições que ela exige para os
processos que de fato prescrever estão sendo atendidas” (DWORKIN, 2005b,
p. 52). Então, um regime verdadeiramente democrático é aquele que combina
dois elementos, forma e conteúdo, ou seja, exige o atendimento das condições
democráticas pela comunidade política.
Dessa forma, os argumentos de política justificariam uma decisão política
pelo fato de estabelecerem um objetivo coletivo de uma determina comunidade.

2 Dworkin chama de princípio aquele standard que deve ser observado em função de uma exi-
gência de justiça, ou equidade, ou alguma outra dimensão de moralidade. Por diretriz polí-
tica, o autor se refere àquele tipo de standard que consiste no estabelecimento de um obje-
tivo a ser alcançado. (DWORKIN, 2002).

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Os argumentos de princípios, por sua vez, justificam uma decisão política quan-
do demonstram que respeitam direito individual ou coletivo da comunidade.
Neste contexto, as decisões políticas legislativas, diz Dworkin, “devem ser
operadas através de algum processo político criado para oferecer uma expres-
são exata dos diferentes interesses que devem ser levados em consideração”
(DWORKIN, 2005b, p. 47).
O autor defende que as questões sensíveis à escolha, definida como aquela
cuja solução depende da distribuição de preferências dentro de uma determinada
comunidade, como por exemplo, a definição de um investimento na construção
de um hospital não pode sofrer interferência do Poder Judiciário.
Dito de outra forma, este não pode derrubar a decisão política porque
ela é fruto da distribuição de preferências de uma determinada comunidade.
A resposta correta para as questões de escolha sensíveis é aquela que a maioria
considerar (MACEDO JÚNIOR, 2013).
As questões que são insensíveis à escolha, como por exemplo, a descrimina-
lização do aborto, a resposta correta não depende da distribuição de preferências
dentro da comunidade. Nesta situação, diz Dworkin, o aspecto quantitativo do
processo cede espaço à qualidade das decisões políticas.
Dworkin utiliza esta distinção para afastar parcialmente uma conhecida
questão de epistemologia: que a maioria tem maior probabilidade de estar certa.
No que toca a decisões políticas fundadas em preferências sensíveis, o argumento
é correto. “Quando se trata de preferências insensíveis, não há razões suficientes
para defender que maioria necessariamente decide” (MENDES, 2008, p. 65).
Para entender o papel do Poder Judiciário numa democracia constitucio-
nal, o autor pede que imaginemos a seguinte situação: (i) o legislativo aprova
uma lei que considera crime a queima da bandeira em sinal de protesto; (ii) é
arguida a inconstitucionalidade da lei na suprema Corte sob o argumento de
que o direito à manifestação foi restringido; (iii) o tribunal aceita a acusação e
diz que a lei é inconstitucional (DWORKIN, 2010).
A pergunta que decorre deste exemplo é: esta decisão da Corte seria legí-
tima? Para os defensores da premissa majoritária não, porque a lei foi criada por
um órgão coletivo democraticamente eleito. Diversamente, se a lei contrariar as
condições democráticas previstas na Constituição, o fato dela ter sido declarada

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inconstitucional, asseguraria a democracia, portanto, não poderia ser conside-


rada antidemocrática.
Quando o Poder Judiciário cumprir com a sua função de guardião dos
direitos morais, estará assegurando as condições democráticas, conteúdo míni-
mo de justiça. O argumento da ausência de representatividade, neste caso, não
mais se sustenta, diz Dworkin, pelo fato da comunidade de princípios serem “a
instância máxima da democracia comunitária” (MENDES, 2008, p. 52). Os
juízes são representantes do povo, entendido como aquele ente coletivo distinto,
ou seja, ação coletiva do tipo comunitário.
Tanto a votação majoritária quanto a revisão judicial (FREIRE, 2003)
podem ser consideradas justas ou injustas de acordo com o resultado originado
destes procedimentos. Não interessa quem decide, mas como se decide. Se as
condições democráticas foram satisfeitas, a decisão tomada pelo poder judiciário
acerca das questões insensíveis à escolha, a decisão será legítima.
A possibilidade de erro é simétrica. Quando um tribunal toma uma deci-
são errada acerca das exigências das condições democráticas, a democracia fica
prejudicada, mas não tão quanto uma decisão uma legislação majoritária toma
uma decisão constitucional errada e que permanece em vigor.
Assim, o autor propõe uma releitura da separação dos poderes, a partir
dessa distinção, ao dizer que a atuação do Judiciário seria legítima se a solução dos
casos difíceis fosse com base em argumentos de princípios. O Poder Judiciário
estaria legitimado a preencher “hiatos regulatórios nos casos difíceis”, porém
sem recorrer à tese da discricionariedade.
As decisões políticas judiciais são fundamentadas em argumentos de prin-
cípios cuja finalidade primária é fazer respeitar direitos. Neste caso, é o conteúdo
da decisão que é valorizado.
Ao determinar que as decisões judiciais devam ser políticas, o autor pre-
tende sustentar que os juízes precisam resolver seus casos “valendo-se de funda-
mentos políticos, de modo que a decisão seja não apenas a decisão que certos
grupos políticos desejariam, mas também que seja tomada sobre o fundamento de
que certos princípios de moralidade política são corretos” (DWORKIN, 2002).
Diversamente do juiz aplicador de regras, que, no caos difíceis, bus-
ca a neutralidade no ato de interpretação do texto, o juiz que se abre para a

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VLADIMIR PASSOS DE FREITAS A DIMENSÃO INTERPRETATIVA DO DIREITO COMO
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argumentação política, ou seja, que decide com base em fundamento de mora-


lidade política, exerce a função de guardião dos princípios. A este tipo de juiz
que não se subordina exclusivamente às normas postas pelo legislador costu-
ma-se sua legitimidade porque ele mesmo estaria a legislar (MENDES, 2008).
E síntese, a proteção dos direitos por via jurisdicional fortaleceria o pró-
prio processo democrático. Primeiro porque o princípio da igual consideração
e respeito, fundamento básico de uma democracia constitucional, é mais bem
respeitado pelos tribunais, que podem controlar os atos dos outros poderes,
diferentemente dos Poderes Executivo e Legislativo que têm soberania total,
sem nenhum tipo de limitação.
O segundo motivo é que a Constituição deve proteger os direitos indi-
viduais e também os direitos dos grupos minoritários contra as decisões da
maioria, mesmo que esta maioria esteja convencida de que sua decisão estará
promovendo o bem-estar geral.
A legitimidade do controle judicial de constitucionalidade está condi-
cionada à apresentação da resposta correta. Para tanto, o juiz busca dar coerên-
cia ao conjunto do ordenamento jurídico, integrando o texto constitucional, a
legislação infraconstitucional, e as decisões judiciais anteriores para chegar a esta
resposta, ou seja, decide com integridade.
As convicções morais e políticas dos juízes estão presentes no ato de inter-
pretação e servem de parâmetro para que a coerência entre as decisões presentes
e futuras com as decisões passadas sejam mantidas.
Além de acreditar que é sempre possível uma resposta certa para os confli-
tos que são resolvidos pelos tribunais, Dworkin acredita que a democracia “possa
ter uma melhor resposta, ou uma resposta capaz de fazer frente aos dilemas que
as modernas democracias apresentam e esta resposta seria a política enquanto
integridade” (KOZICKI, 2000).
O controle judicial sobre os atos do poder legislativo não é um modelo
perfeito, mas um instrumento viável, uma vez que visa estabelecer um contro-
le judicial acerca daquilo que o poder legislativo decide de forma majoritária,
assegurando que os direitos individuais sejam respeitados.
A combinação de legisladores majoritários, revisão judicial e nomeação
de juízes constitucionais pelo Executivo, mostra-se um arranjo institucional

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valioso para redizer a injustiça e a desigualdade. Assim, para Dworkin, o modelo


de controle judicial explanado é pressuposto para a democracia (DWORKIN,
2005a, p. 4).
A proteção dos direitos das minorias frente à ditadura da maioria tam-
bém é objeto de proteção por parte do poder judiciário em Dworkin, só que a
partir do viés da democracia substancial. O autor reconhece a superioridade dos
direitos fundamentais na Constituição e também a legitimação da atuação do
Poder Judiciário na defesa destes direitos. Tal fato revela um viés substancialista
adotado pelo autor, uma vez que os direitos fundamentais podem prevalecer
em relação às leis e a vontade majoritária que tenha intenção de restringi-los.
Por fim, um juiz que aceita o direito como integridade sabe que o litigante
“tem o direito de ter seus assuntos julgados de acordo com a melhor concepção
daquilo que as normas jurídicas da comunidade exigiam ou permitiam na época
em que se deram os fatos” (DWORKIN, 2005a). Dessa forma, a integridade
pressupõe que estas normas sejam tomadas como coerentes, como se o Estado
tivesse uma única voz.

5 CONCLUSÃO

A construção da teoria de direito de Dworkin assume importante signifi-


cado para a constitucionalidade contemporânea, pois traz à tona uma concepção
própria de direito e enfrenta a aproximação entre o direito e a moral, até então
desprezada pelos positivistas. Neste sentido, sua teoria moral e teoria jurídica
indicam a necessidade de uma teoria de princípios como pressuposto para a
busca de uma decisão coerente.
O sistema de direitos é construído a partir da existência de padrões (stan-
dards) que funcionam como princípios e políticas, diversamente do entendimen-
to dos positivistas, que entendem que estes funcionam como regras jurídicas.
Assim, uma das contribuições mais importantes de Dworkin para a com-
preensão do fundamento do direito é o direito como integridade, que visa conce-
ber soluções jurídicas que possam ser justificadas a partir de um modelo político
fundado na igualdade.

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Verifica-se, então, que a integridade traduz uma construção una e coeren-


te do direito, pautada pelo respeito ao direito dos cidadãos serem tratados com
igual consideração e respeito. Dessa forma, tanto o legislador quanto o julgador
devem zelar pela coerência moral do Direito, uma vez que as proposições jurí-
dicas têm natureza interpretativa.
O autor sustenta, a partir dos casos difíceis (hard cases), que os direitos
dos indivíduos podem emergir não somente da legislação, da prática social e
da decisão judicial, mas também das decisões específicas que são proferidas em
função dos casos difíceis.
Diante dos casos difíceis, o juiz não está autorizado a usar da discriciona-
riedade, ou seja, criar direito novo, uma vez que sempre haveria regras morais e
princípios que poderiam servir de parâmetro para a resolução do conflito. Para
tanto, Dworkin utiliza-se da metáfora do juiz Hércules, um juiz que aceita o
direito como integridade.
Assim, o fundamento de legitimidade da atuação dos juízes está na
capacidade de dedução dos princípios morais do sistema jurídico a partir da
Constituição. Sustenta que a atividade judicial deve ser pautada num argumen-
to de princípio, o qual deve prevalecer em reação aos argumentos de natureza
política, fundamento dos argumentos utilizados pelo poder legislativo.
Dworkin também analisa a forma como os juízes decidem os casos que
lhe são submetidos e a influência desta decisão para determinada comunidade.
Nesse sentido, procura demonstrar de que forma o controle judicial nos Estados
Unidos pode se harmonizar com um sistema de representação popular, tendo
como parâmetro uma concepção constitucional de democracia.
Esta concepção de democracia permite que os juízes limitem a vontade
das maiorias parlamentares por meio do controle de constitucionalidade, quando
as condições democráticas não forem observadas, ou seja, quando não são confe-
ridos aos cidadãos tratamento isonômico pelo Poder Legislativo. Diversamente,
uma concepção procedimental de democracia não aceita que uma posição con-
tramajoritária dos juízes possa prevalecer, a partir de uma leitura moral do texto
constitucional.
As decisões judiciais devem ser tomadas de acordo com os princípios cons-
titucionais que conferem integridade ao ordenamento jurídico, do contrário,

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INTEGRIDADE A PARTIR DE RONALD DWORKIN SILVANA RAQUEL BRENDLER COLOMBO

será considerada ilegítima pelo fato de afrontarem o sistema democrático da


comunidade. Existe uma resposta correta que é obtida a partir da prática jurídica.
Os juízes exercem papel importante na democracia constitucional, uma
vez que irão limitar a vontade das maiorias parlamentares por meio do controle
de constitucionalidade das leis. Isto significa dizer que os resultados obtidos pelo
sistema de distribuição do poder político serão analisados pelos juízes a partir
do direito de igual respeito e consideração.
Por tudo isso, a teoria jurídica de Dworkin aponta para a necessidade de
que a integridade do direito deve ser observada tanto pelos juízes quanto pelos
legisladores. O primado da integridade na prestação jurisdicional significa não
apenas coerência, ou seja, que os casos semelhantes recebam a mesma decisão,
mas também que as normas públicas da comunidade sejam criadas e interpre-
tadas de modo a expressar a um sistema único e coerente de justiça, equidade
e devido processo legal.

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Correspondência | Correspondence:

Silvana Raquel Brendler Colombo


Avenida Fernando Machado, 720, Apt. 203, Edifício Fernando Pessoa, CEP
89.802-111. Chapecó, SC, Brasil.
Fone: (49) 98834-8732.
Email: [email protected]

Recebido: 31/08/2016.
Aprovado: 07/03/2017.

Nota referencial:

FREITAS, Vladimir Passo de; COLOMBO, Silvana Raquel Brendler. A


dimensão interpretativa do direito como integridade a partir de Ronald
Dworkin. Revista Direito e Liberdade, Natal, v. 19, n. 1, p. 321-349,
jan./abr. 2017. Quadrimestral.

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