O Sentido Geral Do Direito 01.12

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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

Introdução ao Direito

O SENTIDO GERAL DO
DIREITO
O DIREITO E O JURISTA
Desde logo, deparamo-nos com várias perspetivas, sendo elas:
- Perspetiva sociológica, uma vez que o direito é, inquestionavelmente, um
fenómeno social;
- Perspetiva filosófica, já que, se o direito nos dirige deveres e atribui
responsabilidades, podemos sempre perguntar-nos com que fundamento é que o faz;
- Perspetivas epistemológica pois o direito é um objeto que está aberto ao nosso
conhecimento;
Há ainda uma outra perspetiva que se cruza com todas estas perspetivas, contudo,
não se reduzindo a nenhuma delas, que é a perspetiva normativa, que é a que
adotaremos.

Assim sendo, vamos, então, tentar compreender o direito como uma dimensão
normativa da nossa prática já que o direito é o fundamento/critério de muitos dos
nossos comportamentos interferentes dado que é ele que diz a validade, ou
invalidade, da licitude, ou ilicitude, de muitas das ações por mediação das quais
interagimos comunitariamente.
Desta forma, o Direito é a norma do dever ser e, por isso, regula as relações que
estabelecemos uns com os outros.

Neste sentido, é o Direito que determina a validade dos nossos comportamentos


societariamente relevantes, sendo, então, considerado o “principio (ou fundamento)
normativo”.
Através desta perspetiva percebemos que o Direito não é exclusivamente
considerado como um fenómeno social, ou um objeto de especulação ou até mesmo
um dado cognoscível;
Esta perspetiva (a perspetiva normativa) é a única que se adequa à tarefa do jurista,
uma vez que é ele que assume a intenção nuclear do direito para a projetar
regulativamente na realidade social.

Ao contrário do jurista, temos o sociólogo que não está comprometido com o


objeto que estuda, chegando até a distanciar-se do mesmo. Há também o filosofo
que reflete o eventual sentido da normatividade jurídica, mas não se envolve na sua
realização histórico-concreta. Por sua vez, o epistemólogo, que apenas se preocupa
em descrever o direito nos seus quadros e conceitos ou em reduzir critico-
explicativamente o direito em certos referentes, pode até chegar a elaborar uma
ciência do direito, mas é uma “ciência do direito… sem direito”.
Em suma, todas estas perspetivas mostram facetas essenciais do direito, mas têm
uma falha grave que impede que o direito seja compreendido segundo apenas uma
delas: encaram o direito como algo externo. O sociólogo, apesar de entender o
caráter social do direito, tenta sempre encará-lo do lado de fora da sociedade para o
descrever com objetividade. O filósofo limita-se a refletir sobre o direito, sem
chegar a aplicá-lo. E o epistemólogo tenta reduzir o direito a normas e critérios,
nunca entendendo realmente o seu conteúdo material.
Assim sendo, a principal perspetiva é, basicamente, a normativa, embora as outras
não deixem de aparecer de vez em quando.
Assumindo esta perspetiva, o jurista em como tarefa problematizar racionalmente
as questões que surgem do direito, mobilizando as perspetivas sociológica, filosófica
e epistemológica a seu favor.
O sentido do direito sempre acompanhou a variação das compreensões que o
homem foi tendo de si mesmo ao longo dos tempos.

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Introdução ao Direito

- No direito romano, o homem compreendia-se por referência às concretas


manifestações da sua
autonomia;
- Durante o período medieval, o direito era uma ordem heterónoma de
fundamentação religiosa
que se impunha ao homem;
- Na época moderna, surgiu a lei como universalização racional das liberdades e era
o homem que revolucionariamente instituía o direito;
- Hoje, o direito não passa de um projeto de organização eficiente da sociedade.

DIREITO ENQUANTO QUID IUS E NÃO


ENQUANTO QUID IURIS
O direito, normativamente, pode ser considerado de duas maneiras diferentes:
1. O Direito aparece como critério de solução em questões de Direito ou de Quid
Iuris (em que se pergunta: o que de direito se pode dizer sobre o caso?). Nestes
casos, o Direito é pressuposto, mas não é ele próprio interrogado,
problematizado.
2. Todavia, podemos interrogar e questionar o próprio Direito, como um autêntico
(meta)problema do Quid Ius (em que se pergunta: o que é isso a que chamamos
Direito?); consequentemente, o Direito passa a ser aplicado e vai-se
constituindo à medida que se realiza.
A cadeira de Introdução de Direito foca-se principalmente nas questões Quid Ius.
Lado a lado com estas questões, temos as atitudes que o jurista pode assumir
perante elas, que são também as atitudes que se podem assumir no ensino do direito.
O jurista, na perspetiva normativa, é aquele a quem comunitariamente se atribui
legitimidade para ajuizar de alguns dos
nossos direitos e deveres recíprocos, por isso, temos, então, as seguintes atitudes:
 Atitude técnico-profissional: o jurista pretenderia apenas conhecer as leis para
as aplicar às controvérsias que surgissem no grande mercado de interesses em
que se transformaria o mundo, sem qualquer compromisso cultural com o
Direito e exercendo um ofício puramente técnico, pelo que só deveria atender
aos meios sem ter que problematizar os fins, que lhe seriam pré-impostos por
uma outra instância; nesta primeira hipótese o Direito seria dado ao jurista, que
o mobilizaria como objeto.
 Atitude criticamente comprometido com os objetivos práticos do Direito: o
Direito é uma tarefa que o toca e, por isso, o leva a encontrar a sua
intencionalidade prático-normativa (questionar o Direito).

Em suma:
Numa atitude técnico-profissional, o jurista estuda os critérios positivados e as
normas legais e a sua aplicação a casos concretos. Esta atitude é essencial para
garantir que o direito é realmente efetivado, visto que a maior parte das leis e
normas não consegue valer por si só. É o jurista que tem de trazer as normas do
abstrato para o concreto, algo que a atitude técnico-profissional permite. Outra
atitude, igualmente importante, é a atitude prático-normativa. Ao assumir esta
atitude, o jurista compromete-se a pensar de modo crítico e procura
principalmente encontrar a essência, o fundamento do direito. Esta atitude faz o
jurista aproximar-se muito mais das questões quid ius, permitindo desvendar o
verdadeiro conteúdo material do direito.

Por qual destas posições optar?

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Percebemos que o jurista deve compreender a especificidade da tarefa e o sentido


dos problemas culturais que o Direito lhe coloca, envolvendo-se neles. Deve ainda
preocupar-se com as questões éticas, não deixando de atender à concreta
determinação das ações axiologicamente louváveis, como das pressuponentes e
constituendas questões de saber o que é o “bem” e o “dever ser”. Por outro lado, o
jurista só poderá ajuizar do método jurídico dos problemas concretos, com que
institucionalmente se veja confrontado, se tiver pré-compreendido o particular
sentido das diferentes exigências que perpassam o Direito.
Portanto, ao ficarmos por apenas uma destas atitudes estamos a cometer um erro.
Uma atitude
puramente técnico-profissional reduz o direito a um objeto, mas uma atitude
puramente prático-normativa leva a um afastamento do mundo concreto,
aproximando o jurista mais de uma perspetiva filosófica do que uma perspetiva
normativa. A prática em si é uma das dimensões essenciais do direito.
A tarefa do jurista exige então não só que se assumam estas duas atitudes como
também uma racionalidade própria: o pensamento jurídico, um raciocínio dialético-
argumentativo fundado acima de tudo na prática, com um núcleo axiológico pessoal.
Não faz deduções a partir de premissas, mas sim analogias a partir de argumentos,
cuja validade é definida tendo em conta o contexto específico.
A partir daqui o professor Bronze apresenta dois pressupostos para nos guiarmos
ao longo do nosso estudo: o direito é um integrante da prática e reconstitui-se
através de analogias, sendo uma analogia uma relação de semelhança estabelecida
entre duas situações distintas. No direito fazem-se frequentemente analogias entre
casos distintos onde se enfrenta o mesmo problema. É assim que se cria
jurisprudência. Vale notar que, apesar de certos países utilizarem sistemas de
precedente em que todos os casos concretos são resolvidos por analogia, Portugal
adota critérios pré-definidos
para as decisões jurídicas. Isto não impede a aplicação de um princípio da inércia,
que existe principalmente para garantir segurança jurídica e impedir o arbítrio:
sempre que se quer fazer uma diferenciação quanto a dois casos é preciso provar que
são, de facto, diferentes.
O professor Bronze presenta depois os três núcleos do nosso estudo: a compreensão
do
direito no seu sentido geral e específico, o direito como fenómeno e a problemática
da realização da normatividade jurídica nos juízos decisórios.

O PROBLEMA DA PARTILHA DO MUNDO


Um dos grandes problemas do direito é a repartição do mundo. Mais
especificamente, a repartição justa, devendo ser atribuído a cada um o que é seu
(ideia já presente no direito romano sob o princípio suique cuum tribuere).
A população humana está em crescimento, mas o mundo continua a ter recursos
limitados. Todos nós tentamos ao máximo fruir do mundo, mas o facto de não
estarmos sozinhos, de nos cruzarmos frequentemente com outras pessoas, faz com
que estes sejam mediadoras da nossa fruição, tanto num sentido positivo,
facilitando-a, como num sentido negativo, impedindo-a. Este é um grande problema
para o direito.
Muitos dos atos que realizamos (e muitas das relações que estabelecemos a partir
deles) estão fora do âmbito do direito, não são considerados juridicamente
relevantes. Isto, pois, dizem respeito a quem somos enquanto sujeitos absolutos.
Estas são as relações que se estabelecem no mundo, mas sem a mediação direta
deste, como a amizade, o ódio, o amor, etc... Não há nenhum estatuto jurídico
inerente a estas condições.
O direito não nos concede direitos nem nos impõe deveres enquanto seres
absolutos porque não se preocupa com a forma como partilhamos o mundo uns com
os outros, mas sim com as relações intersubjetivas que nascem desta partilha.

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Nestas relações intersubjetivas não aparecemos como sujeitos absolutos, mas sim
como sujeitos relativos. E esta relativização é feita tendo em conta o nosso estatuto
de direito, que define as faculdades, as responsabilidades, os deveres e os ónus de
cada um dos intervenientes. Por isso é que o direito nos toca extensa profundamente.
À ordem de juridicidade corresponde uma estrutura formal à qual outras estruturas
da nossa sociedade remetem. Esta estrutura só por si não demonstra nenhum valor
axiológico independente, mas demonstra uma estrutura tectónica própria, funções,
notas caracterizadoras e efeitos imediatos.
O domínio do Direito é o do problema da delimitação e compossibilidade das
nossas relações no horizonte do mundo que pretendemos compartilhar. Diremos ter
o Direito a ver com as relações intersubjetivas suscitadas pela complexa
problemática da partilha do mundo.
O Direito regula, portanto, o estatuto das nossas relações sociais, uma vez que
estamos no Direito com a nossa face societária, com o nosso “eu social” (e não com
o “eu pessoal”).
Antes de analisarmos a Ordem Jurídica, importa precisar: porque precisa o Homem
de uma Ordem Jurídica? Esta pergunta remete necessariamente para a instituição de
uma regra suscetível de ordenar a relação de cada um com os outros, isto é, a
necessidade de criação de uma Ordem. E falamos em Ordem Jurídica porque o
Direito apresenta-se-nos como um cosmos e não como um caos. A Ordem Jurídica é
uma criação cultural com uma certa racionalidade. E a Ordem que o Direito constitui
é a ordem da juridicidade: esta é a síntese de uma estrutura formal e de um sistema
com um determinado conteúdo material.

ANÁLISE DA ORDEM JURÍDICA


(A ESTRUTURA)
A ordem jurídica apresenta três linhas estruturais que desenham como que um
triangulo:

PRIMEIRA LINHA: a linha das relações entre sujeitos particulares (ordo partium
ad partes)

Na 1º linha, a da base, estão as relações juridicamente relevantes que


estabelecemos uns com os outros na veste de sujeitos de direito privado, em que
todos pretendemos atuar a nossa autonomia para realizar interesses; somos
particulares perante particulares e relacionamo-nos em termos de paridade.

Nesta linha, a Ordem Jurídica define as nossas autonomias, delimitando-as, e


permite a realização dos nossos interesses, tutelando-os (é que há interesses
conflituantes nestas relações);

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Funções do direito na 1º linha: garantir a atuação das nossas autonomias, delimitá-


las e fornecer um critério de resolução de conflitos que possam surgir.

Nesta linha encontramos as relações das partes para com as partes (ordo partium ad
partes); lá no fundo está decerto a sociedade, mas, aqui, não é sujeito na relação – é
apenas sua condição, sendo os sujeitos das relações os próprios particulares.

Nesta linha avultam essencialmente dois valores: a liberdade individual e relativa


(liberdade centrada em cada um, atendendo que as autonomias, que se relacionam,
relativizam-se mutuamente); e a igualdade (pois, desde que se verifiquem todos os
respetivos pressupostos, todos podem realizar os seus interesses).

Por seu turno, esta primeira linha tem a ver com um certo tipo de justiça – a justiça
comutativa ou da troca – que, no fundo, significa “a medida do homem para o
homem”, a composição válida das nossas relações, ou o modo como vemos a nossa
situação relativa por mediação de certos valores ou exigências em referência aos
quais nos autocompreendemos e que, por isso, procuramos regulativamente projetar
na ordem comunitária entretecida (invadida) pelas relações sociais.

A justiça traduz “o que devemos aos outros e os outros nos devem a nós para
podermos ser, cada um de nós e todos, verdadeiramente pessoas”, pelo que “não é
mais do que a chamada de todos” à expressão normativa do “axiológico-intencional
comum comunitário”: precisamente com a justiça da troca ou comutativa”.

Nesta linha estamos perante o domínio do direito privado: o direito privado comum
(Direito Civil) e o direito privado especial (Direito Comercial); é a esfera do Direito
civil que tem a ver com as mais das situações em que envolvem os “homens comuns
em comum”.

Concluindo, o Direito Privado é o domínio da liberdade (autonomia) e a da


igualdade (paridade) numa intenção à horizontal justiça comutativa.

SEGUNDA LINHA: a linha das relações entre cidadãos e a sociedade (ordo


partium ad totum)

Nós não somos apenas indivíduos, também somos socii; e as relações que se
estabelecem entre cada um e a sociedade tomado no seu todo é o objeto da segunda
linha estruturante da ordem jurídica.

Aqui, a Sociedade já não está· apenas em fundo, ela emerge como sujeito das
relações que estabelecemos com ela. Com efeito, a Sociedade tem, ela própria,
valores e interesses a garantir, que nos dirige e cujo cumprimento nos impõe. Se
violarmos tais interesses e bens jurídicos fundamentais que a Sociedade pretende
conservar, a Sociedade pede-nos responsabilidades. Nesta segunda linha, a
sociedade surge nas relações que connosco estabelece em primeiro plano.

No âmbito desta segunda linha, os indivíduos também dirigem à sociedade


exigências que derivam da afirmação da sua autonomia (direitos fundamentais).

Os Ramos do Direito (Público) que se localizam nesta segunda linha (entre os


quais, o Direito Constitucional, o Direito Penal, o Direito Fiscal, o Direito Militar)
visam regulamentar as exigências que a Sociedade nos dirige, mas também
institucionalizar, legitimar e limitar o poder (funções do direito), pois também nós
temos interesses em reivindicar, perante o poder, certas defesas, como é o caso dos

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Direitos Fundamentais. Ou seja: a Sociedade pode exigir-nos prestações, mas não


arbitrariamente.

Nas relações que estabelecemos com a sociedade estamos todos diante dela e não
uns perante os outros e, por isso, esta segunda linha regulamenta as relações das
partes com o todo.

Valores: o valor da salvaguarda da nossa autonomia em momentos fundamentais


como o são todos aqueles em que estejam em causa a liberdade pessoal
singularmente enucleada e a responsabilidade social (ou comunitária) de cada um.

Quanto ao direito, podemos afirmar que ele cumpre aqui as importantes funções de
tutela e de garantia.

Quanto ao particular tipo de justiça, estamos perante a justiça geral, que se


caracteriza como aquilo que em nome de todos se pode exigir a cada um, ou como
aquilo que cada um pode exigir ao todo.

Estamos também e ainda perante a justiça protetiva, pois o Direito é aqui chamado a
institucionalizar formalmente, a limitar e a controlar o poder e, consequentemente, a
garantir a situação dos particulares que com ele se confrontam.

TERCEIRA LINHA: a linha das relações entre a sociedade e os cidadãos-


destinatários (ordo totius ad partes)

Esta terceira linha vem fechar o triângulo a que aludimos. Nesta, a sociedade é
considerada como uma entidade atuante, dinâmica, que tem um programa
estratégico que quer atuar para atingir os objetivos que se propõe.

Estes objetivos podem ser-nos favoráveis, mas podem também visar o benefício da
própria sociedade (como é o caso do direito da previdência e da assistência social,
em que aparecemos como beneficiários, mas também temos de contribuir para
determinados fundos sociais).

Por isso, é que se afirma que o direito aparece aqui como um estatuto de atuação,
mas também

de limitação. Por exemplo, quando se elabora um regulamento, prosseguem-sempre


duas finalidades: racionalizar a ação e limitar a própria ação. A sociedade vai,
portanto, atuar o seu programa, mas nos termos em que o direito o permita.

Função do Direito:

 Estatuto de atuação (regula as nossas ações)


 Estatuto de limitação (limita os nossos comportamentos)

Quanto aos ramos do direito que se localizam nesta linha, referiremos o direito
público geral, nomeadamente, o Direito Constitucional, o Direito Administrativo, o
Direito da Previdência Social, o Direito Público da Economia, o Direito do
Ambiente…

No que diz respeito aos valores que aqui se relevam, serão o da liberdade pessoal
comunitariamente radicada e o da solidariedade.

Note-se que este valor da solidariedade impõe frequentemente uma atuação em


termos de desigualdade para se atingir, no fim, a igualdade (ou melhor, a diminuição

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das desigualdades); digamos que, nesta sede, a igualdade não aparece como critério,
mas como objetivo, como que seja o “ponto de chegada” e não o “ponto de partida”,
isto é, pretende-se alcançar uma aproximação à igualdade pelo caminho da
desigualdade.

Igualdade vertical: tratar diferentemente situações desiguais; Igualdade horizontal:


tratar

igualmente situações iguais.

Quanto à modalidade de justiça que se afirma nesta linha é a justiça distributiva,


que impõe uma atuação de recolha e redistribuição de meios, como também uma
justiça corretiva.

Ao analisarmos todas estas vertentes da estrutura formal da ordem jurídica


percebemos que a justiça é uma categoria dividida em várias subcategorias,
refletindo-se em diferentes princípios e diferentes obrigações.

Podemos também perceber que nem todas as ordens jurídicas dão o mesmo
destaque a todas as linhas da ordem jurídica, sendo esta influenciada em grande
parte pelo contexto histórico. Na verdade, as linhas ascendente e descendente são
típicas da Idade Moderna, sendo que antes dela não existia um conceito de Estado
como o que temos atualmente. Existiam, de facto, leis e governos, mas o Estado
identificava-se com o soberano, cuja autoridade tinha uma fonte divina. Aliás, o
Estado moderno-iluminista (o Estado demoliberal), profundamente influenciado pela
Revolução Francesa, reconhecia apenas a linha de base e a linha ascendente, com
mais destaque para as exigências que os particulares podiam fazer ao Estado do que
as exigências que este podia fazer aos indivíduos, procurando-se acima de tudo
limitar o poder político (o que perde a relevância quando temos em conta que o
Estado moderno-iluminista rapidamente se transformou num Estado-de-direito
meramente formal, onde o direito, que deveria limitar o poder político, era
equivalente à lei, que derivava do poder político). A linha de base ainda não se tinha
desenvolvido porque ainda não havia a mesma ideia de o Estado ser responsável
pelo bem-estar dos cidadãos ou por garantir igualdade de oportunidades.

Este modelo de Estado surge em contraposição ao Welfare State, onde a linha


descendente é a vertente mais importante da ordem jurídica. É com o aparecimento
deste Estado-Providência que se considerou pela primeira vez que o Estado deveria
interferir nas relações que estabelecemos uns com os outros, negando a ideia
popularizada pelo liberalismo de que havia uma desigualdade inerente à sociedade
que não podia nem devia ser corrigida pois provinha de leis naturais fora do controlo
humano.

Os Estados totalitários caracterizam-se pela quase inexistência da linha de base e


pela acentuação das exigências e estratégia do Estado, deixando pouco espaço para a
autonomia e liberdade pessoal em qualquer uma das suas dimensões. Nota-se um
apagamento do indivíduo.

Atualmente, com o problema da globalização, vemos o aparecimento de Estados


liberais onde, apesar de existirem linhas ascendentes e descendentes, estas se
esbatem quando comparadas à linha de base. Aqui dá-se mais importância ao
indivíduo isolado, ficando a comunidade em segundo plano.

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Num Estado-de-direito material, reconhece-se a importância e interdependência de


todas estas linhas, mesmo quando nos focamos apenas numa.

ANÁLISE DA ORDEM JURÍDICA


(AS FUNÇÕES)
A ordem jurídica, enquanto estrutura formal, deve desempenhar essencialmente duas
funções para ser considerada uma verdadeira ordem jurídica (em oposição a, por
exemplo, uma ordem moral ou religiosa).

FUNÇÃO PRIMÁRIA

É aquela em que a Ordem jurídica prescreve critérios à ação, dirigindo-nos esses


modelos de comportamento; toma os sujeitos jurídicos como destinatários, definindo
prescritivamente direitos e deveres, faculdades e responsabilidades e valorando
judicativamente condutas;

Aqui, o direito surge como princípio de ação e critério de sanção, que nos permite
distinguir o direito das outras ordens normativos (como a moral)

Como principio de ação, a ordem jurídica define prescritivamente os nossos


direitos subjetivos e as nossas responsabilidades e valora os nossos comportamentos
como lícitos ou ilícitos.

Este conjunto de prescrições identifica um principio de ação, pois o nosso


comportamento é condicionado por este critério, que nos fixa direitos,
responsabilidades, prerrogativas, etc. Significa isto que a ordem jurídica visa
influenciar, através de critérios, a nossa ação, levando-nos a proceder licitamente,
validamente.

Deste modo, podemos afirmar que, como principio de ação, a ordem jurídica
estabelece o nosso estatuto social.

Mas a ordem jurídica não se fica por aqui, não se limita a comunicar que os nossos
direitos são estes e que as nossas responsabilidades são aquelas… seria insuficiente.
Se assim fosse, estaríamos perante uma pura ordem moral.

A relevância da normatividade não se pode limitar a este plano de consciência (pois


o que pode ser muito importante para certos homens, dificilmente o será para todos),
dever· atender às relações sociais.

No campo das relações sociais, se alguém interferir no modo como o outro pode
fruir o mundo comum, cometendo violações à pré-instituída ordem de repartição do
mundo, será por esse facto responsabilizados.

A Ordem Jurídica se, por um lado, prescreve critérios de fruição do mundo (sendo,
portanto, principio de ação), por outro lado, concorre também para que esses
critérios se realizem praticamente, apresentando-se igualmente como critério de
sanção.

A sanção é todo o meio que a Ordem jurídica mobiliza para tornar eficazes as suas
prescrições.

Sancionar significa efetivar, consagrar, tornar sérios, dignos de respeito os diversos


imperativos jurídicos.

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A IDEIA DE COERCIBILIDADE

Questão: porque necessita o Direito desta parte sancionatória?

Como compartilhamos o mesmo mundo, podemos ser tentados a abusar dele,


impedindo injustificadamente os outros de fruírem, ou dificultando-lhes sem
fundamento essa fruição. Neste horizonte de intersubjetividade, é razoável que se
instituam meios destinados a evitar ou a punir tais abusos.

Deste modo, não podemos limitar-nos a dirigir, neste âmbito, meros apelos uns aos
outros. Na esfera do Direito, cada um pode exigir ao outro o cumprimento das suas
obrigações.

É o carater social das relações sociais que implica a exigibilidade e a executabilidade


– e a sanção abrange tudo isto.

É, portanto, a natureza do direito ser sancionatório (ou quando apresenta a nota da


sancionabilidade) ele tem a ver com o domínio das nossas relações sociais.

O direito tem carater sancionatório e é esta a sua característica que implica a


sanção. Sem o recurso às sanções a efetividade na prática das exigências da
juridicidade resultaria de todo precludida ou significativamente diminuído.

Numa síntese intercalar, podemos afirmar que a específica vigência histórico-social


do Direito, o modo como ele se revela e a característica sanção que o predica,
distingue-se da Moral.

DIREITO VS MORAL
Para distinguir o Direito da Moral, é necessária a utilização de vários critérios.
Esses critérios são:
1. âmbito ou extensão: também conhecido por critério do mínimo ético
(protegido pela moral e pelo direito). De acordo com este critério, o direito
abrange apenas as regras morais básicas, cuja observância se revela
indispensável para garantir a paz, a justiça e a liberdade no plano das relações
sociais que estabelecemos com os outros. Contudo, se assim fosse, o direito e a
moral seriam materialmente idênticos, distinguindo-se somente quanto à sua
extensão, na medida em que o direito apenas iria cobrir e sancionar o núcleo
essencial dos valores éticos; o direito corresponderia à zona de interseção entre
as várias conceções éticas socialmente vigentes. Desse modo, corresponderia à
zona que exibe maior densidade ética; os bens mais importantes seriam os mais
consensuais em termos éticos. Podemos assim concluir, que o direito tem o
âmbito ou extensão menor que a moral.
2. Fonte ou fundamento de motivação/determinação: também conhecido pelo
critério da autonomia. De acordo com este critério, a moral é autónoma, porque
as suas regras têm por fonte e respetivo juiz de cumprimento a própria
consciência individual, ao passo que o direito traduz sempre uma fonte de
heteronomia, uma vez que implica uma vinculação e sujeição a determinadas
regras alheias. Contudo, a redução do direito uma pura heteronomia (imposto
exteriormente) parece esquecer que a própria normatividade (o direito)
pressupõe sempre a autonomia cultural dos sujeitos humanos, ou seja, o homem

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é sujeito de direito, o que significa que não se possa afirmar que não haja direito
sem uma aceitação e adesão das pessoas à ordem jurídica. A importância do
principio democrático pressupõe a ideia de que o direito assenta na vontade dos
seus destinatários, que assim são seus sujeitos e ainda estão sujeitos a ele. Por
ultimo, convém não esquecer que também as regras morais adquirem uma certa
heteronomia relativamente aos indivíduos.
3. Perspetiva que assumem: também conhecido pelo critério da exterioridade. De
acordo com este critério, a moral incide sobre o lado interno dos atos dos
homens (interioridade), exigindo uma adesão interior aos imperativos da
consciência ética, enquanto que o direito se limita a atender aos aspetos
exteriores da conduta, contentando-se com a mera observância externa das suas
regras. Nesta perspetiva interessa à moral, sobretudo, a convicção com que se
atua, mais do que a própria prática do ato e os seus resultados; em contrapartida,
para o direito é essencial garantir que as pessoas respeitam as suas normas,
adotando condutas que sejam conformes com elas, independentemente da razão
pela qual o fizeram. Crítica: contudo, contra esta perspetiva, podemos afirmar
que o direito não desconsidera a intenção com que o homem atua e, por outro
lado, a moral também se preocupa com os aspetos exteriores da nossa conduta.
4. Fim que visam alcançar: critério de teleologia (quer dizer fim ou finalidade).
Tendo em conta o fim visado pelo direito e pela moral, seria possível distingui-
las na medida em que o direito tem por objetivo a realização da justiça e da paz
social (fim social); enquanto que a moral visa orientar as pessoas para o fim
supremo da sua plena realização, procurando assim um modelo individual de
perfeição (fim pessoal). Contudo ambos visam fins pessoais e sociais, embora
com pesos distintos.
5. Estrutura que assumem: também conhecido como o critério da bilateralidade.
Afirma-se que o direito e a moral apresentam estruturas diferentes: bilateral no
caso do direito e unilateral no caso da moral. A moral teria um carater unilateral
e imperativo, visto que constitui um conjunto de deveres ditados pela
consciência ao individuo e o desrespeito por tais imperativos tem como
consequência interna e pessoal o sentimento de remorso. Já no caso do direito,
este propõe-se a regular as relações socias dos homens e possui uma estrutura
bilateral, porque para além de reconhecer direitos também impõe deveres. Ou
seja, afirmamos que o direito é bilateral, enquanto que a moral é unilateral,
porque apenas impõe deveres. Contudo, importa referir que existem obrigações
no direito que não são judicialmente exigíveis, como é o caso das chamadas
obrigações laterais previstas no artigo 402º do Código Civil, ou seja, o sujeito
só cumpre deveres se assim o quiser.
6. Relação que mantém com a força ou coação: na verdade o direito pode
recorrer à força (que não é o mesmo que violência) para garantir a observância
das suas normas. O mesmo não acontece com a moral, cujas normas devem ser
compridas espontaneamente, ou seja, sem a possibilidade de recorrer a meios
coercivos. Contudo, este critério não nos convence, visto que sancionabilidade
jurídica não se confunde com coatividade, coercividade ou coercibilidade. A
sancionabilidade do direito traduz-se na suscetibilidade de o mesmo (o direito)
ser feito valer, ou seja, de ser efetivado ou de produzir efeito. No entanto, estes
meios nem sempre se verificam e não implicam necessariamente o recurso à
força, ou seja, existem normas sem sanções e ainda existem sanções positivas e
sanções não coativas ou coercivas. Por tudo isto, o que nos leva à conclusão de
que o verdadeiro sinal ou critério distintivo do direito face à moral reside na
sancionabilidade e não na coercibilidade (possibilidade de recorrer à coação). A
sancionabilidade não constitui senão uma consequência da verdadeira diferença

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que se estabelece entre o direito e a moral, isto porque o direito ocupa-se de


problemas diferentes dos dilemas morais e éticos. Assim sendo, a
sancionabilidade indica-nos o modo da distinção, porque o direito não é
diferente da moral por ser sancionável, mas sim porque, ao contrário desta, em
razão da sua diferença.

TIPOS/MODALIDADES DE TUTELA
Autotutela: por regra, os meios de autotutela não são admitidos no ordenamento
jurídico português; contudo, admite-se excecionalmente casos de tutela privada,
como é o caso de ação direta (Art. 336º CC), da legítima defesa (Art. 337º CC) e do
estado de necessidade legítima (Art. 339º CC).

SANÇÕES RECONSTITUTIVAS E SANÇÕES COMPENSATÓRIAS


Encontram-se, predominantemente, na linha de base da OJ;
Sanções reconstitutivas: estas medidas são medidas de garantia ao restabelecimento
da situação que existiria caso a norma jurídica não tivesse sido violada. Este tipo de
sanção é as que o direito prefere e está espelhado no Art.562º do CC.
A reconstituição em causa pode assumir 3 tipos:
1. Reconstituição sob/em espécie: esta visa a reposição da situação anterior sem o
recurso a qualquer bem inexistente à época. Por exemplo: se alguém de má-fé
constrói uma obra em terreno
2. alheio, o dono deste terreno tem o direito de exigir que a mesma seja desfeita e
o terreno restituído ao estado primitivo (como era inicialmente). (Art. 1341º
CC)
3. Execução especifica: trata-se de impor a realização da prestação imposta pela
norma ofendida, se o devedor não cumprir a obrigação de entregar ao credor
este pode exigir o cumprimento da prestação em falta mediante a entrega dessa
coisa. (Art. 827º e 828º do CC)
- A contrata B para pintar uma parede. B não aparece. A pode obrigar B a pagar
o serviço de C ter pintado a parede, uma vez que esse era o trabalho de B.
4. Indeminizações especificas: a reposição da situação alcança-se através de um
bem que, não sendo aquele que foi efetivamente danificado, está em condições
de o substituir, ou seja, desempenha a mesma função.
Sanções compensatórias: estão pensadas para o caso em que não é possível
restabelecer a situação anterior e em que se tenta por isso reproduzir uma situação de
valor equivalente. Para tal, obrigam o transgressor a ressarcir o lesado pelos danos
causados, tanto os danos diretamente emergentes da lesão (danos emergentes) como
ainda os que resultam da cessão de lucros (lucros cessantes). Quando os danos não
sejam passíveis de indemnização por terem uma índole pessoal ou não patrimonial
falamos de compensação ou reparação da dor ou do sofrimento estamos perante uma
compensação.

Não é sempre claro se a solução é reconstitutiva ou compensatória, portanto, é


necessário analisar sempre a circunstância concreta.

MODALIDADES DA INEFICÁCIA

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Introdução ao Direito

Encontram-se, principalmente, na linha ascendente da OJ (3ª linha).


Estamos a falar de casos em que os efeitos jurídicos (ou parte deles) de
determinados atos não se reproduzam. Esta modalidade vai se desdobrar em:
inexistência jurídica, invalidade (divide se em duas: nulidade; anulabilidade),
ineficácia em sentido restrito. Nestes casos não vai ocorrer a produção dos efeitos
jurídicos esperados. Podemos falar de ineficácia jurídica total ou parcial, vejamos:

1. Inexistência jurídica: um casamento celebrado sem a declaração da vontade de


um dos nubentes não produz qualquer efeito jurídico, ou seja, o mesmo é dizer
que o ato não existe juridicamente; Ou seja, a OJ, perante um ato tão grave
contra si, reage como se não tivesse existido. Art. 1628º do CC.
2. Invalidade jurídica: quando um ato materialmente existente está inquinado na
sua validade por um vício, também deixa de produzir efeitos jurídicos por
invalidade. Se ofenderem interesses públicos, a invalidade assume a forma de
nulidade (Art. 286º), pode ser invocado a todo o tempo (seja um mês ou 20
anos) por qualquer interessado e ainda pode ser declarada oficiosamente por um
juiz em tribunal. Se estiver em causa a lesão de interesses particulares, a sanção
de invalidade toma a forma de anulabilidade (Art. 287º). Apenas poderá ser
invocada a favor de quem foi estabelecida, é sanável pelo decurso do tempo e
não pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.
3. Ineficácia em sentido estrito: casos em que o ato violador é válido, contudo, não
produz total ou parcialmente os seus efeitos. Por exemplo, o casamento de
menores (Art. 1649º/1 do CC).

SANÇÕES PUNITIVAS
Estão presentes, essencialmente, na linha de base (direito civil) e na linha
ascendente (direito penal).
Estas sanções são as mais pesadas visto que são aquelas que dizem respeito à
aplicação de uma consequência negativa para o infrator como repreensão da
violação de uma norma, privando-o de bens como a liberdade, o património, e, em
certos países, a própria vida.

As sanções punitivas, ou penas, podem ser de diversas espécies:

1. Criminais: são sanções próprias do direito penal, só intervêm em última estância


para defender os bens jurídicos fundamentais da comunidade quando tenham
sido ofendidos com culpa e visam a prevenção do crime em geral e a
ressocialização do agente.
2. Contraordenacionais: são aplicadas pela administração pública e punem com
coima certas condutas que lesam interesses fundamentais, como é o caso das
violações das regras de trânsito.
3. Civis: estas pertencem ao direito civil e ocorrem em caso de verificação de
comportamentos indignos, como é o caso da incapacidade sucessória de alguém.
4. Disciplinares: aplicam-se à infração de deveres por parte de determinadas
categorias profissionais no exercício das respetivas funções: por exemplo, a
repreensão, a suspensão e o despedimento.

SANÇÕES PREVENTIVAS
São aquelas que estão destinadas a impedir a violação da OJ e o incumprimento das
normas jurídicas. Desempenha aqui um papel de relevo a atividade das autoridades
públicas que condicionam, limitam e fiscalizam a ação dos particulares. Com
exemplos concretos podemos indicar o internamento de inimputáveis (anomalia

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Introdução ao Direito

psíquica), a inibição do exercício de tutela (instrumento que visa acompanhar


menores e interditos através de um tutor) e ainda a inabilitação para o desempenho
de funções públicas. São preventivas porque são medidas aplicadas antes da
violação de qualquer direito.

FUNÇÃO SECUNDÁRIA (OU ORGANIZATÓRIA)


A par da função primária ou prescritiva da Ordem Jurídica, encontramos a função
secundária ou organizatória, no âmbito da qual esta se volta para si própria a fim de
se auto-organizar para conseguir subsistir evitando a natural desorganização própria
da natureza humana.

Esta necessidade de organização surge também porque a Ordem Jurídica integra


também uma multiplicidade de exigências e elementos entre os quais podem surgir
incompatibilidades ou contradições, como é o caso dos conflitos de direitos, as
antinomias entre normas ou entre normas e princípios.

Se a norma é a consequência da realidade, as sanções organizatórias não serão


normas, mas sim regras que visam estruturar o ordenamento jurídico e garantir-lhe
uma coerência interna, evitando contradições (entre normas e princípios) e
estabelecendo os modos de criação do direito, os órgãos a quem lhe compete essa
criação e, por isso, todo o funcionamento e efetivação prática das prescrições que a
OJ estabelece.

MOMENTO SISTEMÁTICO (OU DA UNIDADE


SISTEMÁTICA)
Para essa organização acontecer, é necessária uma hierarquização de critérios e
uma constituição de uma unidade sistemática que se chama de MOMENTO
SISTEMÁTICO, que são as regras secundárias que visam evitar contradições entre
regras secundárias e/ou normas primárias e apresentam-se de diferentes modos:
Sabendo que:
CONCORRÊNCIA SINCRÓNICA DE CRITÉRIOS PRIMÁRIOS
Ser norma – implica ter conteúdo normativo, tendo uma prescrição para a ação e
Encontramos várias instâncias em que dois direitos subjetivos igualmente
uma consequência
importantes para a mesma.
se contradizem ou se mostram incompatíveis um com o outro, e, nesses
casos, é preciso sacrificar um deles a favor do outro.
Ser regra
Para estes– não é a existem
casos, definiçãodois
de um comportamento,
critérios podemafastar
que prentendem ser primárias ou
o respetivo
secundárias.
problema:
 O critério da hierarquia (lex superior derogat legi inferiori): os critérios
hierarquicamente inferiores devem ser interpretados de acordo com os critérios
hierarquicamente superiores (remissão para o art. 112º da CRP, que estabelece a
relevância relativa dos atos normativos).
P.e.: lei constitucional > leis e decretos-lei > regulamentos
 critério da especialidade (lex specialis derogat legi generali): havendo uma
norma especial, é essa que se aplica, derrogando a geral (se a geral for alterada,
a especial mantém-se, como vemos no art.7º/3 do CC).
Isto é, a lei geral não revoga a lei especial, exceto se essa for a intenção
inequívoca do legislador.

CONCORRÊNCIA DE CRITÉRIOS NO ESPAÇO


(AS NORMAS DE DI PRIVADO COMO CRITÉRIOS SECUNDÁRIOS)
É onde encontramos conflitos entre leis e jurisdições de ordenamentos jurídicos
diferentes, aplicando-se, no direito internacional privado, o princípio da não
transitoriedade dos critérios. Estes conflitos são causados pela plurinacionalidade.
No direito da UE, existe a harmonização com uma forte base cultural e a cedência
da autonomia em função de um projeto comum, fazendo com que haja um regime
jurídico que vigora do mesmo modo em (quase) todos os Estados-membros.

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Entre os arts. 25º e 65º do CC está a indicação da lei competente ou pelo menos dos
critérios secundários para a determinação da conjugação dos diferentes
ordenamentos jurídicos nacionais em causa e de qual vai responder aquele problema
plurilocalizado.

São estas as chamadas normas de DI privado enquanto critérios secundários: as


ditas regras de conflitos, que visam determinar qual o ordenamento jurídico nacional
que responde a um determinado problema plurilocalizado.

CONCORRÊNCIA DE CRITÉRIOS NO TEMPO


As normas jurídicas não são estanques, estando sujeitas a mudanças com o tempo e
a evolução histórica.

O facto de elas se desenvolverem pode ou não ser alheio às alterações legislativas.


Independente da lei mudar ou não, aquele contrato está em desenvolvimento.
O problema que surge é: será que as leis novas sobre aquele tipo de relação jurídica
alteram o seu conteúdo já anteriormente estabelecido? Qual deveremos utilizar (a lei
antiga ou a lei nova)?
Posto isto, depende do que está em causa. O ato jurídico é o da sua validade aferido
à luz do ordenamento da lei em vigor quando ele é constituído.
É, por isso, necessário determinar como se irá selecionar o critério jurídico a
mobilizar para resolver o problema: se seleciona o que estava em vigor no momento
em que o ato foi estabelecido ou a lei que posteriormente entrou em vigor.
Neste caso, o principal princípio a ter em conta é lex posteriori derogat legi priori
(a lei posterior derroga a lei anterior, ver artigo 12º CC) e aplica-se, por motivos de
segurança jurídica, o princípio da não-retroatividade.
As leis e decisões jurídicas podem ter dois tipos de efeitos: ex tunc (desde o início),
tendo efeitos no passado, e ex nunc (desde agora) tendo efeitos para o presente e
futuro.
Regra geral: considera-se que as decisões jurídicas ex tunc são nulas. A
Constituição proíbe expressamente a retroatividade nalgumas situações (pagamento
de impostos retroativos, punição de crime anterior à lei segundo as sanções nela
previstas e aplicação de leis restritivas de direitos, liberdades e garantias), mas exige
uma decisão retroativa numa instância: caso uma nova lei preveja uma sentença
mais leve para um arguido.

MOMENTO CONSTITUTIVO
Também chamado de momento de desenvolvimento constitutivo, este garante o
desenvolvimento da ordem jurídica.
Ou seja, o problema aponta para a existência do direito vigente na História: a
necessidade de a OJ manter a estabilidade da relação jurídica, existindo uma relação
entre estabilidade e mutação, isto é, se ao direito cabe a conferência de estabilidade
nas relações jurídicas e previsibilidade das resoluções, cabe-lhe também a
atualização e acompanhamento com a realidade.

Esta conjugação entre a estabilidade e a mutação exige também regras (regras


secundárias), que questionam sobre a constituição do direito, sobre quais as fontes
de direito, o modo e o tempo do início e da cessação da vigência das leis.

Como sabemos, a ciência (e o direito está incluído) resulta da discussão e não da


tomada de uma posição unívoca por todos os sujeitos. Serve, então, para modelar a
nossa prática.

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Como se constitui, então, o direito como direito vigente?

O primeiro problema que enfrentamos neste momento são as fontes de direito. O


segundo é a vigência e cessação de leis.

FONTES DE DIREITO

Seguindo a tendência histórica das codificações modernas, estabelecem-se as


fontes de direito admissíveis através de critérios secundários (que, por sua vez, são
estabelecidos através de outros critérios legais) que determinam a constituição do
direito.

São os Arts. 1º a 4º do CC:

1. as fontes imediatas do direito - as leis e as normas corporativas (ordens


profissionais)
2. os assentos
3. o valor jurídico dos usos
4. o valor da equidade assumida como a concretização da justiça num caso
concreto

INÍCIO E CESSAÇÃO DA VIGÊNCIA DAS LEIS


Como entra uma lei em vigor?
Existem regras fundamentais que respondem a esta questão. Sabemos que é
necessário que o órgão legislativo aprove o diploma, que será promulgado e
referendado para que possa entrar em vigor (sendo, depois, publicado no DR).
A entrada em vigor e a sucessão da vigência são momentos constitutivos – o art.
112º da CRP determina quais os atos normativos e o art.119º/1 da CRP determina a
sua publicação.

Quando é que uma norma entra em vigor?


A ordem jurídica tem de estar minimamente organizada para ser considerada uma
ordem e não um caos, mas esta organização não tem de ser estática. Como a
concorrência de critérios no tempo mostra, a ordem jurídica tem de estar aberta à
mudança. Porém, esta mudança não pode ser demasiado repentina ou constante. A
ordem jurídica deve estabelecer uma dialética entre a estabilidade e a mudança,
garantindo tanto a segurança como a evolução.
Portanto, o que o art. 5º/1/2 do CC nos diz, respetivamente, é que a lei só se torna
obrigatória depois da publicação no jornal oficial, entrando em vigor no tempo em
que ela própria determina (se a lei nada disser, nunca entrará em vigor no dia em que
é publicada e sim no quinto dia após a publicação – espelhado na lei nº 74/98, de 11
de novembro).
Já a lei 74/1998 na redação da lei 43/2014, determina os critérios quanto à entrada
em vigor dos diplomas legais.
Um dos corolários da segurança jurídica é a proibição dos pré-efeitos, ou seja, uma
lei não entra em vigor no preciso momento em que é aprovada, precisa de
estabelecer e respeitar um período de vacatio legis (tipicamente de cinco dias).
O art. 7º do CC estabelece os modos de cessação da vigência, sendo hoje
determinado maioritariamente pela revogação (surgimento de uma nova norma legal
de igual nível hierárquico que cessa a vigência do diploma legal anterior).
Quando não se distingue que uma lei vigore temporariamente, essa mesma lei irá
terminar a sua vigência até ter sido revogada por outra.
Revogação: ato legislativo de igual ou superior valor hierárquico à lei que revoga e
que faz cessar a vigência dessa lei agora revogada, de diversos modos.

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 Expressa – tem de haver um ato legislativo de igual ou superior valor,


declarando que revoga uma lei anterior;
 Tácita – incompatibilidade do regime jurídico novo e do anterior, sobre o
mesmo assunto;
 Global – se a nova lei regula completamente um instituto jurídico ou
apenas um ramo do direito;
 Específico – quando a lei nova revoga apenas uma lei anterior;
 Total (ab-rogação) – quando a lei anterior cessa completamente a sua
vigência;
 Parcial (derrogação) – quando a lei anterior cessa apenas numa parte a sua
vigência;

Temos também outro tipo de problemas: O problema da consideração de


normas que criam órgãos e lhes atribuem competência.
Toda a organização política do Estado consagrada na CRP (no que diz respeito
desde logo aos órgãos de soberania e suas competências) cumprirá esta função
constitutiva.

Quanto à cessação, pode ser por caducidade ou por revogação.


A caducidade ocorre quando um facto previsto pela própria lei desaparece ou a
realidade que disciplinava muda.
A revogação é a cessação de vigência de uma lei através de outra de valor
hierárquico igual ou superior. A esta chama-se lei revogatória. A revogação pode ser
expressa ou tácita; global ou específica; total ou parcial.

MOMENTO ORGÂNICO E MOMENTO


PROCESSUAL/PROCEDIMENTAL
Um momento orgânico e associado a este, mas separável, o momento
procedimental processual (também momento orgânico, no caso de se considerar o
iter “caminho” de resolução das instâncias competentes nas questões resultantes da
aplicação das normas primárias, o conjunto desses atos num processo).
Momento orgânico: constituição de órgãos e conferência de competência aos
mesmos para a realização da prescrição que a função primária estabelece.
Momento processual/procedimental: regras formais de construção estrutural do iter
procedimental e processual, regras de processo, regras que visam estabelecer o
sentido de construção interna das decisões e regras de juízo.

A existência de um processo formal é essencial para a existência de critérios pré-


objetivados. Alguns sistemas de direito nem sequer têm critérios pré-disponíveis,
orientando-se através de precedentes (sistema de case law, em que os tribunais criam
direito através da decisão em casos concretos e definem depois se a decisão se
poderá aplicar a casos análogos).

CRIAÇÃO DE ÓRGÃOS E ATRIBUIÇÃO DE PODERES E COMPETÊNCIAS


No que diz respeito à dimensão processual, está em causa o conjunto de regras
secundárias que determina o caminho percorrido na realização institucional das
prescrições jurídicas constantes das normas primárias.
No que diz respeito ao processo, estão em causa as regras das entidades
administrativas, falando-se, sobretudo, de um procedimento propriamente dito, i.e., a
realização do prescrito nas normas primárias pelas instâncias judiciais.

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REALIZAÇÃO PROCEDIMENTAL-PROCESSUAL

Neste processo estão em causa as regras secundárias.

Assim, teremos de considerar, nas regras referentes ao momento procedimental


processual (momento do processo):

As regras de procedimento, que determinam que tribunais existem, as suas


competências, que tipos de ação judicial existem, quem pode ser sujeito, quais os
passos do item processual, etc., isto é, as regras que determinam como se procede
um momento a nível formal (decisão formal): são o modus operandi das autoridades
a quem compete a efetivação das prescrições que o direito estabelece (que atos, em
que momento e como se procederá à efetivação). Em suma, são as regras de
procedimento que determinam os processos que os órgãos devem seguir para chegar
a uma decisão.

As regras de juízo, que visam orientar a construção da decisão judicial


substancial/quanto ao seu conteúdo (decisão interna) – p.e., os arts. 9º e 10º do CC,
onde se confere os critérios metódicos e pré-fixados à elaboração do juízo decisório,
para a sua construção interna ao nível do conteúdo. Ou seja, são as regras de juízo
que regulam a forma como os órgãos interpretam a lei, fixando nomes, prazos e
relações entre as partes.

CONCLUINDO:

A ordem jurídica tem que estabilizar a sua dinâmica, pois só assim garantirá a sua
subsistência. A função secundaria é a mais importante, porque é por mediação desta
que a ordem jurídica logra subsistir como ordem, evitando quer a obsolescência
anacrónica, quer o utopismo voluntarista.

Alguns autores defendem que o ordenamento jurídico é composto por regras


primárias e secundárias (racionalizando as primeiras).

Outros autores defendem que apenas estes fatores bastariam para tornar a ordem
jurídica uma ordem de direito.

ANÁLISE DA ORDEM JURÍDICA


NOTAS CARACTERIZADORAS
A ordem jurídica é dotada de certas notas caracterizadoras. Essas notas
caracterizadoras mostram-nos que a OJ, enquanto um operador fundamental da
nossa vida social, prossegue valores que visam uma certa convivência pacífica e não
uma mera coexistência.
Por isso, o direito pretende que as suas prescrições sejam observadas não pela
ameaça da sanção, mas pelo acordo dos seus destinatários relativamente às suas
prescrições.

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Desta forma, o objetivo do direito vigente não é apenas ser eficaz, mas ser válido
enquanto ordem normativa de cumprimento espontâneo e positivo, com relações
intersubjetivas procuram favorecer uma convivência pacífica entre nós.

A ORDEM COMO COSMOS CULTURAL


Afirmamos, de forma elementar e singela, que a Ordem Jurídica é uma Ordem. Na
verdade, ao afirmarmos que a Ordem Jurídica é um cosmos, estamos a dizer que não
é um puro caos (chaosmos: caráter natural do caos e caráter cultural do cosmos).
Contudo, a ordem jurídica afirma-se como uma ordem e não como um caos, sendo
necessário um certo grau de coerência. Esta ideia já foi expressa na função
secundária da ordem jurídica.
Isto, só por si, tem algumas implicações: para ser um cosmos e não um caos, a
ordem jurídica tem de obedecer aos princípios da identidade e da não contradição
(não pode defender uma coisa e o seu contrário simultaneamente) e tem de obedecer
a uma lógica formal, ou seja, a Ordem Jurídica, por ser Ordem (invocando
estabilidade, dinâmica e unidade), evita e sana indesejáveis contradições (procura
uma harmonia de valores e princípios); apresenta-se como um todo tendencialmente
coerente.
Dentro da ordem jurídica encontramos então a naturalidade do caos, que, de certa
forma, tem algo de ordem, e a dimensão cultural do cosmos, que também tem algo
de caótico em si, garantindo a compossibilidade coerente de fatores, impedindo
contradições tanto em termos de princípios e normas, mas também em termos de
continuidade, oferecendo segurança e igualdade na forma como os conflitos são
julgados, impedindo o arbítrio e oferecendo previsibilidade.
Este todo coerente traduz um esforço cultural: a ordem jurídica não se forma do
nada, é criada e utilizada para compensar o caráter inacabado do ser humano. Como
não nascemos a saber tudo aquilo que precisamos para fruir do mundo ao máximo
possível, precisamos de nos guiar por uma ordem coerente. A ordem jurídica torna-
se uma segunda
natureza, um hábito natural.

O CARÁCTER COMUNITÁRIO
Este esforço cultural assume um caráter comunitário: esforço da OJ visa a
integração dos sujeitos para construir uma comunidade jurídica, baseada na
comunhão de valores relativos ao direito – direito enquanto instância que visa
estabelecer um controlo da vida comunitária de modo pacífico. Portanto, haver áreas
intersubjetivas em que o direito não se intromete ou que nós não permitimos que o
direito o faça, é uma opção cultural.
Tendo em conta que a ordem jurídica é um esforço cultural, podemos afirmar que
irá variar de cultura para cultura, tendo como marca o historicismo.
O que a ordem jurídica cria é uma comunidade concreta: esta comunidade tutela
valores específicos e institui um determinado modo de vida de acordo com estes. Ao
impor-nos prescrições e regras, a ordem jurídica não está só a delimitar as
intersubjetividades para garantir a fruição do mundo, está também a afirmar-se como
um integrante comunitário e como uma conquista civilizacional e cultura.
Assim, o seu caráter comunitário apresenta-se sob 2 formas:
- Sentido formal: em que a OJ define o padrão normativo comum a uma determinada
comunidade concreta
- Sentido material: em que a OJ, no que concerne aos valores que a fundamentam,
define o sistema/padrão normativo de uma comunidade concreta, tornando-se um
fator de integração.

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Em suma, somos uns com os outros e a OJ define, formalmente, o comum


normativo de uma comunidade concreta. Mas é sobretudo quando referida aos
valores que materialmente a fundamentam que a OJ aparece como um autêntico
integrante comunitário.

OBJETIVIDADE
Ao afirmarmos que a ordem jurídica enquanto esforço cultural é uma segunda
natureza, ou um segundo mundo, estamos a reconhecer-lhe uma certa objetividade,
afirmando que existe como algo externo e heterónomo a nós próprios.
Esta objetividade não faz da ordem jurídica um objeto alheio, traduzindo-se em
duas dimensões.

OBJETIVIDADE AUTÁRQUICA
(plano de autossubsistência institucional)
A OJ não é um objeto (“entidade objetiva”) qualquer: a sua objetividade apresenta,
desde logo, uma autossuficiência (a OJ subsiste por si no tempo – estabilidade e
permanência) podendo, por isso, qualificar-se como autárquica (objetividade
autárquica). A autarcia da Ordem surge como uma exigência da própria
objetividade; a subsistência da OJ assenta nas suas próprias forças, das quais ressalta
o carácter autárquico da respetiva objetividade.
Para existir, a ordem jurídica não precisa do nosso consentimento ou aceitação. Mas
isto não significa que não precise de legitimidade para se afirmar.
Para se legitimar, a ordem jurídica tem de estabelecer um diálogo connosco para
que se lhe possa afirmar alguma validade. Aqui, a ordem jurídica legitima-se pela
justificação prática aos seus destinatários, identificando-nos como sujeitos e não
como objetos: a sua
própria instância criadora serve para a legitimar.

Com que legitimidade apresenta uma Ordem Jurídica uma objetividade autárquica?
Quando falamos em legitimidade da Ordem, já não tocamos a sua mera realidade,
mas autenticamente o seu sentido, que remete a uma validade. A legitimidade da OJ
consiste na sua justificação prática para os respetivos destinatários; para a OJ, não
somos apenas objetos, mas autênticos sujeitos, pois o Direito é um modo de
mediação de sujeitos como o mundo.

OBJETIVIDADE DOGMÁTICA
(plano intencional-material)
Por outro lado, intencionalmente e ao nível do conteúdo, a OJ apresenta uma
objetividade dogmática;
Um dogma é uma premissa indiscutível imune à crítica. O estudo do direito
promove o pensamento crítico, mas todas as culturas têm uma dimensão dogmática
dentro da qual encontramos alguns valores, princípios e normas que servem de
premissa e pressuposto para tudo o resto. Mesmo quando se preocupa constituir uma
nova ordem através da crítica da antiga, esta constituição é uma reconstituição, ou
seja, todo o nosso pensamento crítico parte de um dogma.
Mas, fará sentido a ordem jurídica apresentar esta caraterística dogmática? Se
pensarmos na cultura onde está inserida a ordem jurídica, pressupõem a referência a
dogmas, ou seja, todo o agir humano assenta em pressupostos que não se discutam.
Se questionássemos tudo, não agíamos.
Os dogmas são condicionantes da prática, e são condicionantes necessários pois a
prática é essencial para a vida humana, e seria impossível fazer escolhas se sempre

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que quiséssemos agir tivéssemos de constituir toda uma ordem de novo. O


pressuposto é o que permite a existência da ação e da dúvida.
Há razões culturais ligadas ao espírito científico que critica os pressupostos
dogmáticos que estão por trás das ações do Homem, mas a ciência parte também de
um certo paradigma.
Há, também, razões políticas ligadas à ideia da democracia, porque em democracia
somos todos chamados a dar as nossas razões para o projeto comunitária e muitas
vezes as nossas razões chocam com os dogmas já pré-estabelecidos. Na democracia
também é necessário a existência de dogmas, porque sem esta base dogmática não
estaríamos em condições de agir.
Esta base dogmática existe e é muito importante, só que essa base dogmática não
pode ser absolutizada, ou seja, não podemos radicalizar esta ideia ao extremo. Há
uma herança dogmática por trás de nós, todavia esta base dogmática está aberta à
evolução (revisível). O Homem é um ser aberto e sempre em evolução.
O Homem quando age não parte do zero. Só que essa base dogmática de onde
partimos corresponde já a um passo evolutivo.
O que aconteceria se absolutizássemos a base dogmática?
Estaríamos paralisados no tempo. A tradição cultural é importante, mas quando a
recebemos nós próprios estamos a contribuir para essa revisão, e não a vamos
transmitir da mesma forma, mas já num estado evolutivo.

O que determina a evolução da ordem jurídica e do direito?


São os problemas que determinam a evolução dos próprios pressupostos que visam
responder aos problemas. É um constituendo. Uma reconstituição analógica da
ordem jurídica, segundo o Doutor Pinto Bronze.

A PROJEÇÃO PRÁTICA
NA AUTORIDADE
A nota da objetividade autárquico-dogmática é fundamental para compreender a
prática da OJ (toda a prática postula uma dogmática).
Se considerarmos que a legitimação autárquica da OJ assenta na legitimação
democrática, todos seremos autores da mesma nesse sentido (p.e., na manifestação
da nossa legitimação democrática para a construção legislativa).
Por outro lado, não somos uns meros destinatários da OJ, pois esta é dinâmica e
nela participam todos os sujeitos que lhe são destinatários.
Logo, essa objetividade, faz de nós simultâneos destinatários e autores da OJ (todos
nós participamos na construção da OJ).
Ora, existem certas decisões que damos por adquirido, sendo essas referências
axiológicas que se vão constituindo e impondo (através da prática).
A prática não admite a indefinição, dado que implica uma base dogmática e exige
uma decisão – p.e., o art. 8º do CC. No direito, não pode deixar de existir decisão,
mesmo que existam discordâncias.
Por exemplo, seria muito difícil se todos os dias de manhã nos levantássemos e
tivéssemos de deliberar quem ia fazer o almoço. Não o fazemos porque isso vai
sendo constituído ao longo do tempo. Assim, com todas estas características, a OJ
projeta-se como autoridade, delimitando a posição dos sujeitos e regulando as suas
intersubjetividades.

EFEITOS IMEDIATOS DE UMA QUALQUER OJ

RACIONALIZAÇÃO

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Introdução ao Direito

A ordem jurídica exige a racionalização, que se traduz nuclearmente a articulação


horizontal de diversos factos numa certa conexão unitária.
Na verdade, sendo o Homem um ser livre, não codificado, ele é necessariamente
um ser dispersivo; todavia, o Homem não pretende que o seu comportamento seja
contingente e, para isso, tem que fazer um esforço cultural de racionalização.
O esforço cultural necessário para a existência da ordem como um cosmos coerente
e não como um caos tem como efeito um esforço cultural de racionalização, e este
esforço tem como expressão a própria ordem jurídica.
Porém, não podemos simplesmente afirmar uma racionalização geral como efeito
imediato da ordem jurídica enquanto cosmos cultural. Esta racionalização é de um
tipo específico.
Alguns encaram a racionalidade como um modelo de fundamentação (ideia
sustentada por Weber, com uma perspetiva sociológica de axiologia ou valor),
dentro do qual todos os nossos comportamentos remetem para um fundamento (ver:
dogmas da ordem), outros como uma unidade estratégica, em que se estabelece que
a ordem tem um fim, um objetivo pragmático que tem de ser atingido. Esta última é
uma racionalidade quase tecnológica que se faz sentir principalmente na política
e na economia. Porém, no plano da prática faz-se mais sentir a racionalidade como
modelo de fundamentação. Esta tem uma perspetiva sociológica de finalidade.
Estas duas primeiras estabelecem então uma relação entre meios e fins.
Por fim, fala-se também de racionalização sistémica. Sendo que os nossos
comportamentos em sociedade tendem a ter um efeito desagregador, é preciso um
tipo de racionalidade específica para os ordenar num sistema próprio, ou seja, é a
legitimação da ação que tem a ver com a pacificação e redução da complexidade,
sem o comprometimento com os fins ou os valores.
Desta forma, concluímos que a determinação estrutural sistémica poderia ser
puramente procedimental.

INSTITUCIONALIZAÇÃO
A racionalização, em qualquer dos seus tipos, tem como efeito a
institucionalização.
Uma instituição é uma organização que persiste, pelo que se traduz na estabilização
dessa persistência para permitir criar padrões de comportamento a que obedecemos
quase sem pensar e aos quais as gerações vão recorrendo sucessivamente.
A ordem jurídica é uma instituição, estabelecendo padrões de comportamento com
um sentido e valores próprios. Dentro da grande instituição que é a ordem jurídica
encontramos outras instituições, que correspondem a categorias próprias do direito.
- Status = aquilo que está organizado para subsistir/está estabilizado
- In status ou “institucionalizar” = garantir a subsistência e estabilidade
Fazemo-lo através de instituições: estas garantem-nos um conjunto de apoios aos
mais diversos níveis (sentidos, prestações, organização logística, etc.), que nos
permitem encontrar um sentido já estabilizado onde nos integramos e com o qual
dialogamos.
Podemos perguntar qual o sentido das instituições, mas sabemos que todas as
instituições têm já um valor intrínseco, bem como um padrão estabilizado de
comportamentos que nos garante estabilidade.
Por isso, para a integração social do ser humano, as instituições oferecem um
horizonte de referência que lhe poupa as angústias e o trabalho (p.e., a universidade,
os hospitais, as associações, as ordens profissionais e até a OJ são uma instituição).
As instituições judiciais (da OJ) constituem a nossa sociedade.

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Introdução ao Direito

A OJ é, assim, uma instituição judicial que regula as relações jurídicas, estabelece


padrões de comportamento e critérios de juízo, delimita as liberdades (garantindo o
exercício das mesmas, em certo modo) e garante segurança, liberdade e paz.

Tudo o que se acaba de afirmar, revela-nos a existência de uma dialética: o


Homem, porque é livre, cria as instituições; instituições estas que, por sua vez,
limitam a sua liberdade.

Como resolver adequadamente esta dialética?


Criando instituições que reconheçam e integrem equilibradamente a comunidade
e a liberdade; e a OJ é precisamente uma dessas instituições. Ou seja, pelo facto
de sermos mutáveis e indeterminados e simultaneamente sociais e associais é
necessária uma ordem que integre esta dialética – ora, é precisamente essa a
missão da OJ, que tem esse efeito de racionalização institucionalizada dos
comportamentos interferentes.

Liberdade vs Comunidade
Como sabemos, o mundo vai-se institucionalizando e as instituições desoneram o
Homem do esforço requerido por um permanente exercício da liberdade. A
institucionalização limita a liberdade, mas sem ela a liberdade não poderia realizar-
se, pois consumir-se-ia a si própria.
Por outras palavras, as instituições são igualmente perpassadas por tensões
insuportáveis, logo também estimulam o exercício da liberdade, para se
dinamizarem e a liberdade não deixa igualmente de recear a abertura que a predica,
para se viabilizar.
Em suma, a OJ é também uma instituição. As instituições são necessárias, pois
compensam o Homem das suas naturais indeterminação, abertura e mutabilidade.
Por isso, podemos afirmar que a comunidade é autenticamente dimensão e condição
de humanização do Homem. Quer tudo isto dizer também que somos
simultaneamente seres sociais e anti sociais.

SEGURANÇA
A institucionalização tem como efeito imediato a segurança. Aqui, segurança surge
no sentido de estabilidade e previsibilidade, permitindo-nos saber quais serão as
consequências das nossas ações.

O princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, por


exemplo, é um dos subprincípios concretizadores do Estado-de-direito. Dentro deste
princípio encontramos vários corolários.

O princípio da precisão e determinabilidade das normas jurídicas exige que estas


sejam claras quanto ao seu processo de elaboração e tenham um mínimo de
conteúdo prescritivo. O princípio da proibição dos pré-efeitos, por exemplo, garante
que há um período transitório antes de uma nova norma entrar em vigor.
Encontramos também a proibição da retroatividade.

Para alguns filósofos, como Hobbes, a segurança era o valor mais importante da
ordem jurídica e do direito em si. As sociedades caracterizadas pela insegurança e
incerteza são também marcadas pelo medo, pelo que o motivo porque necessitam
principalmente do direito é para sentirem que estão protegidas. Nestas sociedades, e
na filosofia de Hobbes, o trabalho do governante é precisamente garantir a
segurança.

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Introdução ao Direito

Para Hobbes, para isto ser possível era necessário transmitir-lhe alguns dos nossos
direitos, limitando a nossa liberdade em troca de segurança.

LIBERDADE

Tanto a institucionalização como a segurança representam limitações à nossa


liberdade e autonomia individual.
Para muitos, a única forma do homem se realizar é através de uma liberdade
absoluta que lhe permita fazer tudo o que queira. Mas a afirmação desta liberdade
absoluta é a negação da liberdade em si, pois um mundo onde não são impostos
limites à nossa liberdade é um mundo onde também não são impostos limites à
liberdade dos outros.
Aqui o respeito pelos nossos direitos depende da vontade dos outros em respeitá-
los. A liberdade absoluta é a afirmação da supremacia do mais forte (ou, como
vemos na economia, do mais rico).
A ordem jurídica, nas suas notas caracterizadoras e efeitos, limita a liberdade
nalguns aspetos, mas, num ponto de vista muito mais abrangente, garante-a de forma
proporcional para todos.
Ou seja, a prático-consonante limitação da liberdade é uma garantia da própria
liberdade; e a institucionalização limita a liberdade para a salvar em termos
praticamente razoáveis. Significa isto que a liberdade juridicamente relevante é
sempre uma proporcionalmente igual liberdade para todos e que o Direito deve ser
um fator de oposição aos obstáculos que se deparem à realização de uma
pra4camente adequada liberdade geral.

PAZ COMO ANTECIPAÇÃO REGULATIVA


Muitos encaram o direito simplesmente como uma forma de resolver conflitos.
Nesta visão, um mundo regido pelo direito é um mundo de paz. Logo, a existência
de uma ordem jurídica deveria, neste pensamento, traduzir-se numa harmonia
completa.

Na verdade, a função e o efeito da ordem jurídica é muito mais complexa do que


isso. O que a ordem jurídica faz é afirmar valores que nos integram, juntamente com
meios para os efetivizar (sanções) e instituições para garantir o seu cumprimento e
respeito. O principal objetivo aqui é impedir o abuso de direito e a justiça privada.

Assim sendo, a ordem jurídica só se traduz em paz enquanto for válida e eficaz.

A paz em si não tem um sentido inerentemente positivo. De certa forma, os


governos totalitários instituem paz pois não permitem contradições e críticas aos
seus sistemas. Esta é uma paz opressiva.

A paz que procuramos fundamenta-se essencialmente no valor de justiça, um


referente do direito que, como a própria estrutura da ordem jurídica deixa a entender,
tem várias dimensões diferentes, e traduz-se tanto na exigência da resolução de
conflitos como na necessidade de solicitude entre os membros da sociedade. Uma
verdadeira justiça irá traduzir-se em paz.

Justiça: o direito vigente implica que haja um conjunto construído


intersubjetivamente de valores materiais que traduzam uma ideia de justiça
jurídica. A justiça é apontada como o "caminho esquecido para a paz"

Podemos então afirmar que a paz é tanto efeito como objetivo da ordem jurídica.
Afirma-se como um regulativo orientador permanentemente inacabado.

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Introdução ao Direito

Sendo a paz um objetivo, o direito substitui a força bruta pela razão, motivo pelo
qual os conflitos entre partes são resolvidos ao dar a razão a quem tiver a
argumentação melhor fundamentada (tanto em termos lógicos como normativos), e
tenta acima de tudo prevenir os conflitos antes de estes acontecerem, principalmente
através da sua função primária (mais precisamente, pela sua afirmação enquanto
princípio de ação).

EXCURSO

DIREITO PRIVADO E DIREITO PÚBLICO

A distinção entre Direito Público e Direito Privado encontra as suas raízes num
fragmento do Corpus Iuris Civilis, que definia o Ius Publicum como o governo da
república e o Ius Privatum como o que vela pelos interesses dos particulares.

No entanto, não existe uma perfeita equivalência entre a dualidade do direito


romano e a do direito moderno.

A evolução histórica dos conceitos implicou diferentes critérios de divisão:

CRITÉRIO DOS INTERESSES EM JOGO

Temos os interesses públicos e os interesses privados.

Existem áreas do direito privado que prosseguem interesses públicos e vice-versa –


p.e. o licenciamento de obras particulares no âmbito do direito administrativo
(público), a regulação do casamento da filiação onde as relações privadas têm
repercussões públicas relevantes ou o contrato de compra e venda de bens imóveis
celebrados por escritura pública ou por documento particular autenticado (art. 875º
do CC).

Não utilizaremos este critério: crítica à simultaneidade dos interesses em jogo


(interesses públicos e interesses privados).

CRITÉRIO DA QUALIDADE DOS SUJEITOS

Temos as entidades públicas e as entidades privadas.

Existem situações em que os sujeitos de direito privado são entidades públicas e


vice-versa – p.e. a repartição de uma entidade pública é instalada num espaço
privado, sendo o seu contrato de arrendamento tratado pelo direito privado;

Não utilizaremos este critério, embora seja o critério mais geralmente aceite, salvo
algumas exceções.

CRITÉRIO DA POSIÇÃO DOS SUJEITOS

Este é o critério no qual a doutrina se apoia.

Existe direito público quando os sujeitos intervenientes se relacionam conforme a


sua veste de entidade pública, no exercício da sua publica potestas (entidade
soberana) e quando a relação que se estabelece é entre os sujeitos de entidade
pública com os sujeitos privados.

Será de direito público:

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Introdução ao Direito

- A regulação da organização e atividade do Estado e de outras entidades públicas


menores (como as autarquias regionais e locais)

- As relações estabelecidas por esses entes públicos entre si no exercício dos poderes
que lhes competem

- Relação entre esses entes públicos e os sujeitos particulares

Isto acontece, pois, o órgão público atua no exercício da sua autoridade pública e
os particulares são os sujeitos que se lhe dirigem, procurando obter uma resposta
dessa autoridade à pretensão afirmada.

Existe direito privado (que regula as relações entre sujeitos privados e/ou sujeitos
privados e públicos) quando estes não atuem no exercício da sua publica potestas,
não estando revestidos de um poder de autoridade e, assim, se encontrarem num
plano de igualdade.

DIREITO PÚBLICO
 Organização e atividade do Estado e outros entes públicos menores (autarquias,
regionais e locais);
 Relação dos entes publicas entre si no exercício dos poderes que lhes competem
 Relações dos entes públicos, enquanto revestidos de poder de autoridade
(publica protestos), com os particulares.

Ramos do Direito Público: Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito


Penal, Direito Fiscal, Direito Processual e Direito Internacional Público.

No direito público teremos sempre referências que dizem respeito à organização da


coletividade social.

DIREITO PRIVADO

 Relações entre particulares;


 Relações entre particulares e entes públicos, quando estes não intervenham
revestidos de poder de autoridade.

Ramos do Direito Privado: Direto Civil, Direito Comercial, Direito Internacional


Privado, Direitos Reais, Direito da UE, Direito do Trabalho, etc...

No direito privado já não será tanto assim, embora haja refrações fundamentais das
relações jurídicas privatísticas, já que elas produzem efeitos que têm relevância
também pública, como p.e. o direito da família, direito da propriedade, etc…

Subdivisões do direito público e direito privado ver na sebenta (pág. 17 a 21)

A ORDEM JURÍDICA E O PROBLEMA DO


SENTIDO DO DIREITO
(ver na sebenta)

A estrutura formal da ordem jurídica permite a sua mobilização para responder a


questões quid iuris. Mas a ordem jurídica tem um sentido inerente que se afirma
simplesmente pela sua existência, mesmo quando não o estamos a considerar
diretamente.

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Introdução ao Direito

Este não é um sentido objetivo e universal visto que, dada a importância da cultura,
isto seria impossível. O que se pretende aferir é o sentido do direito para nós, o seu
sentido enquanto instância socialmente regulativa e intencionalmente humanizante.

Alguns poderiam dizer que o sentido da ordem jurídica é ser uma ordem, criar um
sistema coerente de prescrições, etc... Qualquer ordem que demonstre uma estrutura
formal com as mesmas funções, notas caracterizadoras e efeitos da ordem jurídica é
uma ordem jurídica. Mas nem todas as ordens jurídicas são ordens de direito.

Um regime totalitário, por exemplo, pode impor uma ordem com uma estrutura
triangular onde se reconhecem as relações entre particulares e Estado, funcionando
como princípio de ação e critério de sanção, ordenando as prescrições de forma
coerente e apresentando-se como um cosmos cultural dotado de dogmaticidade
autárquica e dogmática. Mas, os regimes totalitários em si, são uma negação do
direito. Até os efeitos dessa ordem seriam manchados: a paz, nessas ordens, seria
uma paz opressiva onde não há crítica não porque os recipientes da ordem estão
satisfeitos e sentem-se seguros, mas sim porque não lhes é reconhecido o direito de
criticar a ordem. Essa paz seria a negação da liberdade.

Nem é preciso que uma ordem negue diretamente o direito para considerarmos que
não é uma ordem de direito. A eficiência, por exemplo, é considerada importante
para o bom funcionamento da ordem jurídica, realçando-se até a importância de um
processo célere e em tempo útil. Mas, uma ordem jurídica que adote apenas a
eficiência enquanto valor, não se irá preocupar realmente se as suas instituições (e
principalmente a sua justiça) são corretas ou boas, irá preocupar-se se são ou não
eficientes. Aqui podem perder-se direitos essenciais como o direito à defesa.
Existem também várias ordens análogas à ordem jurídica, como a máfia, que são
dotadas de características semelhantes, mas que não podem de maneira alguma ser
consideradas ordens de direito. Isso significa que, a existência de uma Ordem é
condição necessária do Direito, mas não suficiente.

Estamos perante uma Ordem, mas será uma ordem de Direito? Ora, o Direito (a
Ordem autenticamente de Direito) tem uma carga axiológica que o Homem,
enquanto sujeito ético, assume. Uma Ordem, tal como a descrevemos até aqui, não
define objetivamente o Direito. Assim, a OJ manifesta uma insuficiência objetiva,
pois não basta só por si, para nos revelar o sentido do Direito.

Será que podemos resolver o nosso problema referindo a Ordem Jurídica à


Estadualidade?

Não podemos simplesmente afirmar que uma ordem de direito é qualquer ordem
jurídica marcada pela estadualidade, pois nem todos os Estados são Estados-de-
direito. A estadualidade não é condição necessária.

A equiparação entre Ordem normativa e a Ordem Política do Estado, não é exata por
3 razões basilares:

1. O Direito e o Estado não se identificam: na verdade, o estado e o direito


distinguem-se culturalmente porque tem histórias diferentes; a expressão Direito
identifica realidades muito diversas (direito-legislação, Direito internacional, o
direito primitivo), ou seja, apesar de ser o modo de constituição da normatividade
jurídica vigente mais relevante, não absorve todo o direito, pois existem outras
fontes do direito.

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Introdução ao Direito

- O estado é uma organização de poder enquanto que o Direito é uma Ordem


normativa e remete para um sistema de princípios que afirmam uma validade.

- O estado visa fins, mobiliza o poder e intende à eficácia; diferentemente, o Direito


baseia-se em valores, atua uma normatividade e procura uma realidade.

- A racionalidade do Estado é estratégica de meio-fim; a do Direito é uma


racionalização axiológica, implicada pelo juízo-julgamento.

- O estado afirma um poder e este liga-se a uma estratégia, que se define pelos
objetos que visa; a validade do Direito, está conexionada com valores em que se
funda obrigatoriedade.

- Os valores são universais, enquanto que a estratégia é discriminadora, pois é


seletiva (escolhe o que for conveniente e elimina o que dessa ótica se revela
inconveniente).

2. A Ordem de Direito não e exclusivamente criada pelo Estado: com efeito, nem
todo o Direito que existe é constituído pela imediata mediação do Estado; grande
parte tem como fonte o poder estadual, mas não tem de sê-lo. Para isso, basta pensar
na circunstância de nem todos os sistemas jurídicos serem sistemas de legislação
(como é o caso dos sistemas da Common Law); E mesmo num sistema de legislação
como o nosso, nem todo o direito vigente é criado pelo Estado (o Direito
consuetudinário resulta de uma prática social estabilizada). Note-se ainda que a
distinção entre estado e direito se manifesta logo na prática expressão "estado de
direito". Esta fórmula integra duas dimensões: a da estadualidade e a da juridicidade.
Só por isso se pode afirmar que só é possível estabelecer uma relação por se tratar de
categorias ou realidades diferentes. Ou seja, só estaremos perante um estado-de-
direito quando a juridicidade (e, portanto, a realidade) que nele se manifesta por
autonomia do poder político, pelo que uma OJ não será de Direito apenas por lhe
aditarmos a nota da estadualidade.

3. O poder político que o Estado titula não é fundamento da OJ: se todo o direito
fosse estadual, o poder seria o seu fundamento, mas não é. É certo que o direito e o
poder se cruzam: o direito precisa de autoridade e, por dentro dela está o poder
político. Na verdade, há valores jurídicos que transcendem a legalidade e isto
significa que a legislação para constituir uma Ordem de Direito tem que se inserir no
universo de validade que lhe confere esse carácter. Aliás, a aspiração que hoje se
manifesta é até a inversa; a de dar dimensão de direito ao poder, ou seja, a de
juridiciar o Estado e é por isso que o Estado tende a ser hoje um Estado-de-direito
material - um estado em que o direito é não apenas o limitador do poder, mas o seu
verdadeiro fundamento legitimante.

EM SUMA:

De tudo o que foi dito podemos concluir não ser a estadualidade uma nota
decisivamente caracterizadora do direito.

Por outras palavras, a Ordem é um elemento necessário para que se possa falar de
direito, mas não é um elemento suficiente. Uma ordem socialmente
regulamentadora não pode dizer-se de direito pelo facto de ter sido criada pelo
Estado.

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Introdução ao Direito

Porém, vale a pena notar que, e especialmente desde a época pós-revolucionária, há


uma conexão cada vez maior entre direito e Estado. Mas as suas diferenças culturais
e intencionais mostram que é o direito que fundamenta o Estado, não o contrário.

Por isso, na perceção do que é uma ordem de direito, fala-se na insuficiência


objetiva: não é suficiente ser uma ordem jurídica tutelada por um Estado para ser
reconhecida como uma ordem de direito, tem de expressar uma validade. Podemos
apreender o conteúdo normativo enquanto objeto de conhecimento e descrever os
seus fatores formais, mas isso é insuficiente se não entendermos também o seu
conteúdo axiológico, que é o “espírito” do direito em si.

Este “espírito” é uma subjetividade intencional que representa uma dimensão


material do direito. Para o apreendermos não nos podemos limitar a afirmar
empiricamente aquilo que a ordem jurídica é, temos também de compreender aquilo
que afirma como o seu dever-ser. Este dever-ser não pode ser captado na sua
totalidade, mas pode ser compreendido reflexivamente.

Ao analisarmos formalmente a ordem jurídica podemos afirmar que esta é dotada


de objetividade, que é algo de certa forma externo a nós, mas não podemos fazer
isso com o seu sentido. Quando tentamos compreender o sentido da ordem jurídica
temos de assumir um compromisso pessoal, um papel na constituição do direito. Isto
porque a compreensão é impossível sem mobilizar valores, ao permanecer
perfeitamente neutro, o sentido é trans-objetivo, só é compreendido enquanto
intenção prática.

O homem, e principalmente o jurista, não pode ficar como espetador. Aqui exige-se
que seja um agente-sujeito capaz de pensamento crítico, determinando-se reflexiva e
Esta determinação é feita através de analogias entre as experiências práticas
concretas e os referentes que nos são propostos (poder político, cultura e economia).

Para fazer estas analogias não nos podemos servir de um mero raciocínio teórico e
analítico (inteligência definida como Verstand pelos alemães), visto que esse apenas
nos permite apreender os factos empíricos da ordem jurídica. Exige uma razão
prática, conhecida como Vernunft.

Tendo já estabelecido que a ordem jurídica é condição necessária para a afirmação


efetiva do direito na realidade concreta (autonomizando-o efetivamente da moral),
restanos descobrir a sua condição suficiente.

Habermas mostrou a juridicidade como o paradigma das pretensões de validade.


Aqui a compreensão do sentido da ordem jurídica é encontrada no mundo dos
valores e segundo a mediação destes.

Mas, o grande problema da dimensão axiológica é que surge sempre ligada à


questão não só da cultura mas da civilização em si. Uma civilização de direito é uma
civilização que autonomizou o direito enquanto referente separado da religião, da
moral e de qualquer outro referente cultural, não negando isto a existência de
elementos religiosos e éticos na civilização, sendo que é assim que se afirmam
alguns dos valores estruturantes por trás da ordem jurídica e os referentes em relação
aos quais o homem se auto-compreende.

Diz-se que a nossa civilização é uma civilização de direito pois reconhece que
todos têm um direito ao direito em si. Reconhece-se que há uma diferença entre o
ilícito e o pecado, e que as pessoas têm o direito de se defenderem e justificar as
suas ações.

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Introdução ao Direito

Percebemos, então, que a ordem jurídica assimila valores, valores esses que são
influenciados por um determinado contexto histórico e cultural. Para permanecer
enquanto ordem de direito, a ordem jurídica tem que sustentar valores vigentes que
sejam aceites pela sociedade atual em geral. Pede-se não só uma intenção normativa
como também eficácia quanto à sociedade em si.

É exatamente por isso que a ordem jurídica subsiste sem ter de vigiar
constantemente os seus cidadãos: nós próprios condicionamos o nosso
comportamento de acordo com os valores que interiorizamos. Quanto mais
interiorizados estiverem os valores vigentes da ordem jurídica, menor será o
sentimento de que é algo externo e alheio que nos é imposto e mais eficaz será a
ordem.

Estes valores refletem-se por isso nas prescrições para que estas sejam mais fáceis
de serem aceites, pelo que o que se exige do jurista é que conheça tanto o critério (a
norma, a lei) como o fundamento que o justifica. A materialidade normativa é
determinada pelos seus referentes axiológicos, não pelos seus critérios pré-definidos,
mas por vezes é difícil determinar exatamente que valores nos servem como
fundamento, nem de que medida.

Já aqui podemos ver alguns problemas da própria dimensão jurídica. É aqui que se
fala de insuficiência normativa. É necessária uma dimensão normativa capaz de
sustentar a vigência da ordem jurídica, transcender as suas prescrições positivadas e
afirmar uma axiologia fundamentante, devendo para isso mobilizar valores mas não
quaisquer valores, nem os mesmos valores para sempre. E para percebermos esta
materialidade normativa essencial à ordem jurídica (e porque é que se afirma esta
insuficiência normativa), temos primeiro de perceber algumas coisas em relação aos
valores: o que são, quais são e como é que nos afetam.

A ética denomina os valores enquanto graus de importância dados a uma coisa ou


ação, afirmando uma forma de atuação pela qual o homem se guia/deve guiar em
sociedade.

Porém, como a insuficiência normativa denota, a mera existência de valores na


ordem jurídica não é o suficiente para esta ser uma ordem de direito.

Para começar, os valores são exigências projetivas. Instituem um dever-ser que


nunca é completamente realizado, apontando para um horizonte e não para um
objetivo. Podemos estabelecer estratégias para os realizar, mas não os podemos
reduzir a essas estratégias nem os sacrificar em seu nome. Isto porque os valores não
são, os valores valem. Não os podemos descrever da mesma forma que descrevemos
fenómenos sociais, pelo que não podemos afirmar que “sociedade x faz y porque é z
e tem valores t”.

Além disso, os valores integrados nas ordens jurídicas não são universais (apesar
de termos valores com intenções universais que perderiam o seu significado e
importância se não tivessem essas mesmas intenções, como a igual dignidade da
pessoa humana). Na verdade, muitos valores surgem ligados a um determinado
espaço e tempo, afirmando-se como uma manifestação cultural vigente. Uma ordem
jurídica não pode subsistir com os valores de outra cultura, tal como não pode
subsistir com os valores de outro tempo.

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Introdução ao Direito

Aqui recupera-se a dialética mudança/estabilidade que encontramos na


institucionalização, só que aqui aplica-se a valores e numa dialética de
tradição/evolução.

Enquanto ordem cultural, a ordem jurídica tem tendência para permanecer fechada.
Mas essa ordem cultural está inserida numa ordem histórica, que é uma ordem
aberta: a passagem do tempo e acontecimentos externos (que estão fora do nosso
controlo e previsão) fazem com que a perceção que os homens têm do mundo se vá
alterando, e com ela os valores que tutelam e interiorizam. Basta ver a forma como
certos acontecimentos históricos (Revolução Francesa, Revolução Industrial, guerras
mundiais) representaram um corte com os valores tradicionais. Estes revelaram-se
insuficientes na sua resposta à nova realidade concreta, não oferecendo segurança
suficiente, pelo que se tornaram obsoletos.

É verdade que a reconstituição constante (e principalmente a rutura abrupta) de


uma ordem jurídica tende a causar problemas, mas também é verdade que as ordens
fechadas tendem a falhar. Mesmo quando tentamos preservar à viva força os valores
iniciais da ordem (proibindo e censurando tudo o que mostre um conteúdo
axiomático divergente), a mutabilidade histórica faz com que estes se alterem. Negar
a mudança e preservar dogmas obsoletos apenas leva a uma rutura mais severa e a
uma descontinuidade mais grave.

Como o direito não está historicamente consumado, a ordem jurídica tem a


necessidade de se ir ordenando e redefinindo de forma moderada, sem chegar a ser
constituída ex novo sempre que se quer fazer uma mudança. Esta dialética
evolução/tradição tem de considerar a necessidade de segurança jurídica.

Podemos identificar uma continuidade dentro da evolução que nos permite


identificar valores que persistem enquanto herança cultural. Por ser trans-normativa
e se estar constantemente a auto-ordenar, afirma-se agora que a ordem jurídica (e a
sua normatividade material fundamentante) é uma ideação do Homem. Os valores
que interiorizamos podem ser influenciados pela nossa história enquanto
comunidade, resultando de uma herança, mas isso não significa que nos sejam
completamente impostos: podem ser os valores dos nossos antepassados, mas não se
manifestam exatamente da mesma forma. De certa forma nós também tomamos
parte nessa reconstituição: o homem é constituendo da ordem jurídica pois é
responsável pela sua dimensão normativa.

O direito é um projeto antecipante porque os valores mudam mais rapidamente do


que os critérios que fundamentam, afirmando uma intenção regulativa muito antes
de se afirmarem efetivamente na ordem jurídica. Mesmo assim, com esta mudança
constante de valores socialmente vigentes, existem princípios que se afirmam de
forma contingente, intrinsecamente ligados com a história própria de cada povo.

Nisto, temos o problema de tentar identificar na dimensão normativa um


fundamento para a ordem jurídica quando os seus valores estão em permanente
mudança. E o derradeiro fundamento do direito é difícil de encontrar não só por
causa da sua mutabilidade, mas também porque todos os valores têm os seus
próprios fundamentos, aquele a que se refere como o dever-ser do dever-ser.

Aqui temos duas hipóteses: ou perseguir eternamente um fundamento capaz de


justificar todos os valores e critérios que dele advêm ou identificar um valor que
podemos, como sociedade, considerar como fundamentante e declará-lo como
pressuposto irredutível.

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Introdução ao Direito

Por isso definimos um princípio que pode servir como última instância do direito e
identificamos esse valor como sendo a igual dignidade da pessoa humana.

Atualmente, toda a nossa ordem jurídica, começando na Constituição e espalhando-


se para todo o resto do ordenamento, funda-se no princípio da dignidade da pessoa
humana, exigindo o respeito pela mesma em todas as suas dimensões. Esta é uma
ideia que foi desenvolvida principalmente por Kant, que afirmou que a pessoa
humana não deveria ser tratada como um meio para atingir um fim, mas sim como
um fim em si. O homem não é uma coisa fungível.

Este é o reconhecimento, que já se afirmava em Aristóteles, de que o homem não é


só um animal político (um zoon politikon) como também um sujeito ético. O direito
exige-nos que nos reconheçamos uns aos outros enquanto seres iguais em dignidade
e liberdade, e nós exigimos ao direito que afirme uma validade que nos respeite
enquanto seres com liberdades e responsabilidades autónomas. Esta é a dialética de
mútuo reconhecimento, e só a partir do momento em que se verifica é que estamos
verdadeiramente obrigados perante o direito.

É a partir do momento em que nos reconhecemos uns aos outros (e que a ordem
jurídica nos reconhece a nós) enquanto sujeitos éticos que começamos a afirmar uma
normatividade baseada numa validade. Aqui, afirmam-se como direitos
fundamentais aqueles que são essenciais para a proteção da dignidade da pessoa
humana (procurando especificamente protegê-la do Estado), e o ilícito torna-se tudo
aquilo que representar uma violação significativa dessa dignidade.

Esta é assim a recusa de uma sociedade cujo direito é baseado unicamente na


eficiência: numa sociedade onde se define uma estratégia pré-ordenada para a
eficiência, aqueles que não são eficientes não têm valor. O direito tem de surgir
como uma força contrafáctica em relação às tendências pragmáticas que visam
transformar o homem numa coisa fungível e sem valor próprio, afirmando que este é
digno de respeito simplesmente por existir.

Mesmo assim, vale notar que nem tudo se torna claro sob este princípio, mesmo
que este seja visto como a derradeira instância. Podemos reconhecer que o direito à
vida e à liberdade é essencial à dignidade da pessoa humana, mas mesmo assim o
debate em relação à pena de morte continua. Agora encontramos outros como o
debate em torno do aborto, da procriação assistida e da eutanásia.

A área da medicina, como mostra a eutanásia, está repleta de problemas éticos,


pelo que não é de estranhar que se tenham criado comissões de ética já em 1995
(Decreto-lei 97/95 de 10 de Maio). A validade que marca a ordem jurídica reflete-se
globalmente em todas as áreas da prática, tal com a sua necessidade de preencher
lacunas e de responder a novos problemas.

Tudo isto contribui para uma das perguntas mais prementes da filosofia jurídica
atual, especialmente tendo em conta que o imperativo de Kant de tratar o homem
como fim e não como meio não oferece nenhuma solução concreta: como é que se
dá este mútuo reconhecimento do homem enquanto sujeito ético dotado de
dignidade?

Isto leva-nos à questão filosófica da consciência e da apresentação de Hegel do


Estado como uma consciência coletiva, ideia rejeitada por Kant e Fichte, que eram
defensores do subjetivismo puro e afirmavam que só existia uma consciência
individual, o que significava que, ou a vinculação ocorria nessa consciência

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Introdução ao Direito

individual (graças à razão), ou ocorria completamente fora da consciência. A


consequência seria um equilíbrio entre a autonomia absoluta e a heteronomia
radical. O problema do subjetivismo puro é que contradiz o caráter geral da ordem
jurídica, e a maior parte dos pensadores parece concordar, o que acaba por levar à
anarquia. E a desgraça da anarquia não é só para a sociedade, mas também para o
próprio anarquista, que acaba por perceber que é impossível criar uma ordem
jurídica do zero.

Para Luhman, o reconhecimento da ordem jurídica vinha da conformidade formal


que o sistema social (dentro do qual se insere a ordem jurídica) impunha através de
sanções e outras medidas coativas. Mas esta ideia mostra o direito como uma
construção fechada, sem margem para a intervenção do sujeito.

Foi John Rawls, no desenvolver da sua teoria da justiça, que afirmou a teoria
consensual (descendente do modelo contratual do iluminismo). As leis consideradas
universalmente importantes (como os direitos fundamentais) eram aceites e
reconhecidas quando os decidentes utilizavam o mesmo veil of ignorance que se
deveria usar para determinar a justiça. Este veil of ignorance convida o decidente a
decidir se a norma em questão é boa ou má sem ter em conta a sua posição social
mas sim a posição de qualquer um. A norma deveria então beneficiar se não todos,
então o maior número possível de pessoas. Isto permitiria a todos partir da mesma
posição original de igualdade. Assim, da mesma forma como o contratualismo
afirmava que dávamos o nosso consentimento a estarmos vinculados ao contrato
social pelo seu caráter geral e abstrato, Rawls afirmava que nos vinculamos à ordem
jurídica pelo seu caráter igualitário.

Habermas sustentou, por sua vez, um modelo discursivo em que se poderia


alcançar o consenso em relação à validade que a ordem jurídica deveria exprimir
para ser considerada de direito através da argumentação, desde que todos partissem
dos mesmos pressupostos formais. Habermas pressupunha também a igualdade e
liberdade de todos os participantes no debate, tal como a ausência de privilégios em
concreto. O que se alcançaria aqui era a justiça formal, não a justiça material. Esse é
o grande problema tanto da teoria de Rawls como da de Habermas: ambas confiam
apenas num procedimento formal, não exigem nenhum critério material.

O SENTIDO GERAL DO DIREITO


(ver a parte da aula prática na sebenta)

O direito não surge num vácuo. Na verdade, afirma-se como normatividade vigente
dentro do seio de uma sociedade. É uma normatividade societária pois visa regular
as nossas relações dentro e com a sociedade tendo em conta certos referentes.

Hoje, temos a expressão direta das diferenças que nos caracterizam.

Perante isto, cabe-nos perguntar qual é, afinal, o papel do direito.

É sobre isso que temos versado: perguntamos qual a função que o jurista encara e
como a desenvolve. Vimos, por outro lado, que mesmo não sendo juristas (e
analisando a OJ), fizemos a descrição à luz de um pressuposto fundamental,
concluindo que o problema do sentido não é meramente observável.

Assim, o direito seria sempre um fenómeno cognoscível: se o direito for, ainda,


uma dimensão normativa e crítica-reflexiva da prática social, que implique

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diferentes intencionalidades e fundamentos, exige uma nova reflexão que procura


pelo seu sentido.

Respostas plurais:

- construções ontologicamente assentes na determinação de um ser que o direito


assumiria e haveria de espelhar na realidade (com um sentido intemporal e
universal)

- correntes mais pragmáticas, que veem no direito uma regulação ao serviço da


sociedade de modo acrítico, i.e., uma regulamentação neutra à qual cabe apenas
cumprir os objetivos que as diferentes dimensões da sociedade se prepusessem
atingir

Do ponto de vista por que olhamos para o direito (que tem a ver com uma linha de
evolução de pensamento e com a convicção direta e tomada de posição da
professora), significa que pensar no direito hoje nos obriga a dialogar com diferentes
compreensões daquilo que o direito seja e do pensamento que o pensa (em termos
dogmáticos imediatamente ou filosóficas mediatamente).

Falámos, assim, da OJ, que não é uma “ilha isolada”.

A SOCIEDADE: SENTIDO GERAL E A


PROBLEMÁTICA DA SUA CONCEÇÃO TEÓRICA
(rever na sebenta, pág. 57 e ss.)
Antes de mais, há que ter noção de que é extremamente difícil caracterizar a
sociedade em que vivemos no momento em que nela estamos inseridos. Muitos
optam por descrevê-la pelo negativo, afirmando mais aquilo que não é do que aquilo
que é e depois, a partir desse “não-é”, afirmar aquilo que é.
Poderemos interrogar uma ciência particular – a sociologia –, mas não é, para nós
(nem para a sociologia), uma tarefa fácil dizer em que consiste a sociedade, pois
vivemos nela e não nos conseguimos distanciar o bastante para a compreender em
termos satisfatórios.
Segundo Castanheira Neves, “A sociedade é a realidade da convivência humana,
enquanto que esta convivência se traduz na multiplicidade e no conjunto das
interações humanamente significativas que se oferece aos membros participantes em
termos de uma particular e objetiva autonomia e na qual eles, quer através de formas
de convivência (seja integrada, seja conflituante), quer através de fins ou intenções
gerais (em que comungam ou que, de qualquer
forma, se propõe), se encontram conexionados mediante uma realidade comunitária
que lhes é comum”.
Esta noção diz-nos ser a sociedade o ponto comum da humana convivência.
Decompondo-a analiticamente temos então que:
- A sociedade é a realidade da própria convivência humana;
- A convivência humana surge aqui entendida como o conjunto das interações
dotadas de significado;
- Essas interações apresentam-se àqueles que nelas participam com uma certa
objetividade e autonomia;
- A sociedade, feita dessas interações entre homens, constitui uma realidade unitária
que lhes é comum, através da qual eles são conexionados entre si.
- Essa conexão resulta tanto da comunhão ou preposição de certos-fins ou intenções
gerais, como de formas de convivência integrada ou conflituante.

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A partir daqui surgem duas questões de debate.


A primeira é: será a sociedade uma realidade em si ou uma estrutura
esquematizante?
- Quando a sociologia surgiu no início do século XIX, muitos sociólogos
adotaram a ideia da sociedade como uma estrutura semelhante ao corpo humano
dentro da qual a nossa existência estava integrada. Esta foi a proposta de Comte,
considerado o pai da
sociologia.
- Durkheim avançou com a ideia de uma sociedade sistemática com uma
consciência comunitária que ultrapassa e transcende a consciência individual.
- Atualmente, com a progressiva superação do positivismo, continua-se a
considerar a sociedade como uma estrutura integradora dentro da qual se formam
relações intersubjetivas. A sociedade é a objetivação da teia dessas relações
significativas.

A segunda é: como se constitui um mundo unitário a partir de indivíduos diferentes?


- Kant afirmou que o homem é ser dotado de uma insocial sociabilidade. É um ser
que entra constantemente em conflito com os outros devido às suas tendências
centrífugas, mas que, por outro lado, procura a vida em comunidade devido às suas
tendências centrípetas. Tal como Aristóteles apontou, muito antes de Kant, o homem
é um animal político que só se pode desenvolver junto dos outros.
- Alguns entendem daqui que a sociedade é uma soma de individualidades, mas
isso implicaria que todos levássemos uma vida isolados uns dos outros, partilhando
apenas o mesmo espaço. Podemos não nos preocupar individualmente com todos os
membros da nossa sociedade (isso associa-se mais ao conceito de comunidade), mas
continuamos a estar integrados num espaço comum. A sociedade pressupõe relações
entre os seus participantes.

As respostas da sociologia (a sociologia é a explicação teorética da sociedade) –


duas perspetivas fundamentais:

Torna-se, então, importante distinguir comunidade e sociedade.


A comunidade também é uma realidade de convivência, mas radica-se num fundo
moral comum. As pessoas da nossa comunidade são pessoas que pensam como nós e
com quem partilhamos características.
Na sociedade, as pessoas não convivem por causa das suas semelhanças, mas sim
por apesar das suas diferenças.
Ambas estas questões (o que é a sociedade e como se constitui) levam a um
problema que surge várias vezes na discussão do direito e representa o cerne da
sociologia: como é que se pode, ao mesmo tempo, integrar o ser humano e respeitar
a sua autonomia individual? Uma ordem social completamente integradora irá privar
o ser humano da sua individualidade, tornando-o um ser fungível. Mas a absoluta
liberdade não permite a vida em sociedade, pois traduz-se sempre em abusos de
direito.
A integração comunitária (objetividade) e a liberdade individual (subjetividade)
servem então como coordenadas para guiar a sociedade. Estes polos estão em
constante tensão.
1. A perspetiva da ação (Max Weber) – a “inter-ação” e as formas de socialização.
Max Weber foi o primeiro a propor uma teoria quanto à integração do ser humano
na sociedade, adotando a perspetiva da ação. Para Weber, a sociedade partia da ação
humana individual, sendo que toda a ação pressupõe um outro capaz de a entender e
de lhe responder.

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Esta perspetiva deixa de fora das interações sociais a mera coexistência, pois esta
não conta com interações significativas. Weber tinha apenas em conta as relações
intersubjetivas que desenvolvemos por necessidade por ou vontade própria.

Dentro deste quadro, Durkheim fez uma diferenciação entre solidariedade mecânica
(predominante em sociedades onde todos os sujeitos desempenhavam funções
semelhantes, mantendo a coesão social através do respeito por valores pré-
instituídos) e solidariedade orgânica (onde cada sujeito desempenha uma função
específica e a coesão mantêm-se graças à interdependência) para justificar a
superioridade económica da sociedade capitalista, mas também a anomia.
A solidariedade orgânica é a mais característica das sociedades atuais, marcadas
por uma nítida divisão social do trabalho; contudo, a solidariedade mecânica não
deixa de se afirmar neste quadro, articulando-se com a solidariedade orgânica.
Neste ponto de vista, a sociedade é a teia integrante das nossas ações, pelo que, na
sociedade, só estaríamos materialmente nós próprios, todavia interagindo.
A orientação mais recente da sociologia não avança da parte para o todo, mas
centra-se nesse todo estruturado, compreendendo a sociedade como o sistema social,
ou seja, como uma entidade integradora que subsiste numa unidade.
2. A perspetiva do sistema (Parsons, Luhmann) – estruturalismo e funcionalismo:
Segundo o estruturalismo de Parsons, cada pessoa representa um sistema e procura
descobrir e realizar o papel tipificado que a sociedade lhe atribui. A sociedade surgia
assim como um sistema integrador de vários outros sistemas.
Porém, este estruturalismo iria traduzir-se numa sociedade estática e incapaz de
mudar. Por isso, Parsons atribuía ao sistema global (e aos sistemas dentro dele) uma
função capaz de dinamizar a estrutura e de estruturar a dinâmica. A economia seria
então o sistema encarregue de estruturar a dinâmica da alocação eficiente de meios,
a política seria o sistema dos fins programados da sociedade e as normas
(especialmente as normas jurídicas) seriam o sistema das ações concretas segundo
certos padrões.
A sociedade seria então composta de instituições.
Luhmann, desenvolveu uma teoria semelhante, mas com uma ideia diferente de
sistema.
Para Luhmann, o grande problema da sociedade era a fruição partilhada do mundo,
uma questão complexa. Assim sendo, a sociedade deveria simplificar essa questão,
mostrando respostas eficientes e satisfatórias para reduzir a complexidade do
mundo. Essa era a sua função, e enquanto a cumprisse poderíamos dizer que os
homens estavam ordenadamente orientados.
Este sistema é auto-organizado e auto-reprodutivo, subsistindo através de atos
comunicativos.
O mundo funcionalizado de Luhmann era uma sociedade que absolutivizava a
objetividade e não permitia a autonomia individual, reduzindo todos os referentes e
valores (incluindo, para o direito, a justiça) à sua eficiência.
Num mundo como o nosso, onde o comportamento humano (tanto nas suas formas
como nos seus fins) é extremamente variável, não se pode optar por uma ordem
social (e muito menos uma ordem jurídica) que negue qualquer tipo de
complexidade.

A síntese reflexiva: o equilíbrio estrutural entre o “mundo da vida” e o “sistema”:


procurava juntar a perspetiva da ação de Weber e o estruturalismo e funcionalismo
de Parsons e Luhmann. Para isto, separou o mundo em si em duas esferas: o mundo
da vida (Lebenswelt) e o mundo do sistema (System).

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Dentro do quadro da sociedade, estas duas esferas articulavam-se a partir de uma


base material e através da dimensão da prática e da comunicação.
Aqui a questão já não é como é que os indivíduos se integram mas sim como se
situam.
Como já dito na lição 1, perante a ordem jurídica os homens surgem como seres
relativos com um (ou mais) determinado estatuto ao qual corresponde um
determinado papel, uma função na sociedade.
Estes estatutos são correlativos e correspondem a direitos e deveres recíprocos,
criando uma dialética de mútuas correspondências.
A sociedade é palco de várias tensões, como já vimos: a tensão comunidade vs
indivíduo, realidade vs sistema, sujeito absoluto vs sujeito relativo... mas é ainda
marcada pela tensão consenso vs disenso.
Sendo a sociedade um integrante comunitário, é preciso que os sujeitos consintam,
de uma maneira ou outra, a integrarem-se, que concordem pelo menos minimamente
com o quadro de valores em que se baseia a sociedade. É assim que se garante
estabilidade,
tanto atual como histórica, e harmonia.
De outro lado, afirma-se também um antagonismo entre o homem e a sociedade. E
enquanto este pode parecer um elemento destabilizador, a verdade é que é tão
importante como o consenso. Sem dissenso, sem críticas, teríamos precisamente o
tipo de sociedade que não é uma sociedade de direito, onde a dimensão integradora
absorve completamente a individualidade e onde toda a ordem jurídica está
condenada à obsolência.
Este antagonismo não só é natural, tendo em conta o individualismo inerente do
homem, como é desejável para garantir um equilíbrio entre permanência e mudança.
Podemos então classificar várias formas diferentes de consenso e de integração:
1. A coexistência estabelece uma convivência paralela sem verdadeiras
relações entre as pessoas, que estão nas esferas umas das outras
simplesmente por estarem fisicamente no mesmo espaço. Na perspetiva de
Weber, que fazia da ação recíproca a base da sociedade, a coexistência não
chega a ser realmente considerada parte da sociedade, mas a verdade é que
é.
2. A correlação identifica uma forma de mútua dependência. Relacionamos-
nos uns com os outros, mas pela mediação do mundo e das coisas: só
estabelecemos relações com o outro porque precisamos de algo que ele nos
pode dar, e vice-versa.
3. Por fim, a convivência. Esta é a forma que realmente pressupõe um nós,
um grupo de indivíduos com algo em comum além da partilha do mesmo
espaço ou necessidades recíprocas.

O direito nesta realidade social: o direito é o subsistema normativo regulador das


relações que se entretecem na sociedade, pelo que contribui para uma integração
harmónica das várias afirmações individuais no contexto comunitário; consideramos
sempre a sociedade de uma perspetiva estrutural e formal, pelo que apuramos o
efeito de institucionalização da ordem jurídica.

A SOCIEDADE (EM PERSPETIVA MATERIAL):


ANÁLISE ESTRUTURAL DA SOCIEDADE
Supomos serem de três tipos diferentes os elementos materiais constitutivos da
sociedade: os interesses, o poder e os valores.

A DIMENSÃO DOS INTERESSES E O FATOR ECONÓMICO

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Considerar que é a economia que determina o direito é redutor.


Essa consideração transforma o direito:
 numa determinação de adequação entre meios e fins para a adaptação,
colocação de bens/recursos escassos às necessidades potencialmente infinitas
 num meio (sendo ele próprio, assumindo uma racionalidade finalística em nome
da eficiência económica, mais do que a eficácia – isto, é, direito era
transformado num instrumento ao serviço da eficiência económica)

Isto poderia implicar um sacrifício dos pilares fundamentais historicamente


A economia é precisamente o
constituídos do direito para chegar a conclusões/situações favoráveis estudo da escolha dos
economicamente. P.e., permitir-se a eliminação de alguns sujeitos (pessoas) em instrumentos de mobilização
nome da eficiência económica (os mais frágeis). dos bens de que há carência
Ora, o direito não é imune à economia e, por isso, falamos aqui de uma autonomia para dar satisfação às
relativa, i.e., o direito, por ser direito na nossa experiência cultural, dialoga/é necessidades, isto é, para
condicionado pela economia, mas não é determinado por ela. responder aos interesses.
Ensina, portanto, como se
O que acontece é que o direito, perante a realidade económica, reflete criticamente
resolvem esses problemas em
e propõe soluções de realização de projetos económicos, no equilíbrio com os termos de pragmática eficácia.
valores fundamentais a que corresponde.

Em suma:
 Estes elementos incluem os interesses, a nossa ligação com o mundo enquanto
objeto que pode ser apreendido para satisfazer as nossas necessidades. Os
interesses só por si não são nocivos, afinal de contas, é normal que num mundo
de possibilidades e tempo limitados que os homens tenham interesses e
mobilizem aquilo que têm ao seu dispor para os conseguirem.
 Mas quando não são controlados, os interesses podem tornar-se perigosos para a
dignidade da pessoa humana. Os outros podem tornar-se meios para atingir o
fim do nosso interesse, ou podem até tornar-se um objeto.

O PODER E O FATOR POLÍTICO


Atualmente, a noção de Estado de direito mostra-nos uma interdependência: o
direito precisa do Estado para se impor e o Estado precisa do direito para se
legitimar e fundamentar a sua ação.
A legitimidade que herdamos e a legitimação democrática são coisas distintas.
A legitimação democrática é uma importante parte da fundamentação da atuação
do Estado e mostra, decisivamente, a tensão dialética entre Estado e direito.
Isto acontece porque, de facto, fazer residir as opções políticas na legitimação
democrática implica uma convocação do direito diretamente para construção dessa
legitimidade (já que o direito legitima e limita), i.e., o direito limita negativa e
positivamente o poder, dialogando continuamente com o poder.
Sempre existiram propostas de redução do direito à política (programa finalístico,
levado a cabo através de uma certa estratégia), o que é diferente de reduzir o direito
ao político (conjunto de valores que dizem respeito à ação numa determinada
comunidade, à atuação na polis).
Conclui-se, assim, que o direito é uma atuação do político, mas não
necessariamente uma atuação da política, já que a política implica um plano
estratégico de atuação com uma racionalidade finalística associada.
EM SUMA:
A política traduz a organização, em termos estratégicos, da sociedade (objetivos
fundamentais) para esta se afirmar como tal.
O poder corresponde à institucionalização da dimensão política de uma sociedade.

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OS VALORES E O FATOR CULTURAL


Falamos agora da relação que o direito estabelece com os valores e com a
dimensão cultural.
O direito é um fator cultural fundamental na nossa experiência/hemisfério
civilizacional.
Manifesta-se como um referente autónomo da nossa cultura, uma autonomia
cultural dialogante com as outras dimensões da prática.
Referimo-nos à cultura enquanto sistema de valores, sentidos e referentes de
significação humana de uma sociedade.
Relacionamo-nos uns com os outros enquanto agimos e, por isso, a ação
pressupões
sempre uma fundamentação (fundamentos estes que nos são dados pela nossa
cultura).

O DIREITO COMO SÍNTESE SELETIVA DOS FATORES MENCIONADOS


Quando falamos do papel do direito na sociedade, consideramos que o direito tem
um papel social, por ser direito, por ter as características que comporta, por ter os
fundamentos que convoca e por ter as consequências que produz.
Este papel social é, simultaneamente, de regulação constitutiva e de reflexão
crítica.
Visto que estas duas dimensões são a síntese contemporânea e os seus pilares de
regulação, poderemos considerar direito se não estivermos este ponto de vista
crítico-reflexivo? Não.
O direito, sendo uma afirmação com um pressuposto ético e cultural (a partir da
época da idade moderna, pelo menos), vai-se separando da referenciação ético-moral
à procura de uma fundamentação própria. Chegando, inclusive, ao ponto de, numa
perspetiva positivista, abdicar dessa referência para uma fundamentação
transpositiva/suprapositiva, vindo depois a ser criticado exatamente por isso
(recuperando-se, por sua vez, os referentes materiais fundamentais para procurar
conferir o conteúdo e intenção material ao direito, com o grande contributo da
filosofia existencialista, da história do direito, da sociologia jurídica, etc.).

(ver conclusão desta parte na sebenta, pág. 65 e 66)

O DIREITO FUNÇÃO DA SOCIEDADE?


No âmbito das reflexões que estamos a dedicar ao problema da determinação do
modo como o direito se articula com a sociedade, pode enunciar-se assim: será o
direito uma pura função dependente da sociedade?
Há na verdade teses que o sustentam, isto é, respondem afirmativamente a esta
questão. Para estas orientações o direito seria um mero resultado dos elementos
materiais constitutivos da sociedade (interesses, poder e valores), não se lhe
reconhecendo qualquer autonomia. Isto significa que existem correntes defensoras
da ideia de que o direito depende, em exclusivo, da economia, da política ou da
cultura.

A REDUÇÃO DO DIREITO AO ECONÓMICO


Para o economicismo – que sustenta a redução económica da normatividade
jurídica – o direito é a mera expressão normativa das relações económicas, não
traduzindo mais do que a normação do económico.
A este propósito existe o movimento de um modelo teórico (law and economics),
segundo o qual a economia é um elemento dominante e determinante da história.

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A racionalidade do económico é da mera eficácia pragmática. A racionalidade


económica é, pois, funcional, instrumental, de meio-fim; só ajuíza em termos de
eficácia, pelo que deve ser qualificada como uma racionalidade técnica. Significa
isto que, se a realidade social fosse totalmente dominada pela economia haveria
apenas uma única racionalidade – a racionalidade puramente técnico-funcional e
poderia resultar no perigo da instrumentalização do direito aos interesses.
Esta (a redução do direito ao económico) é a posição do marxismo originário, onde
Karl Marx entendia que a estrutura económica da sociedade seria a base real e
aquela que determinaria todas as dimensões de sentido e de valor da vida humana,
desde a sua consciência individual à superestrutura jurídica e política que se viesse a
institucionalizar.

Referência à tese marxista e às revisões neomarxistas:


A relevância da economia para o direito vem com o pensamento moderno, por isso
temos de recuar até aos fisiocratas para explicar a relação e a relevância da atividade
económica na construção da sociedade.
O liberalismo económico é viabilizado pela compreensão formalista do direito, ou
seja, pela compreensão da intersubjetividade, da liberdade, da autonomia privada, da
liberdade contratual mais especificamente.
A compreensão da liberdade como valor fundamental da construção liberal
espelhou-se em todas áreas, incluindo na económica e, nesse sentido, a delimitação
externa descomprometida do conteúdo é uma das vias para concretização desse
liberalismo económico.
Só que esse liberalismo também suscitou conflitos sociais, onde encontramos o
objeto das análises críticas do direito burguês.
Propostas como a de Karl Marx, para quem a base de construção da sociedade são as
relações de produção na infraestrutura económica e para quem a superestrutura
comporta as dimensões culturais, sociais e o direito, enquanto espelho da
organização das relações de produção entre diferentes intervenientes
(nomeadamente no reflexo da atuação dominante de uma das classes face às outras).
Aqui, o económico é o motor do desenvolvimento social a todos os níveis e, com
isso, o direito é um reflexo ideológico do modo de organização das relações de
produção.
Para se considerar que esse direito tem uma componente formalizante é preciso ter
em conta uma construção ideológica de legitimação de um certo modo de produção
(sendo criticável em função de uma assunção ideológica, que poderia levar à
superação do direito por outro modo de regulação).
Ou seja, nesta perspetiva, o económico seria o elemento determinante e o direito
seria o estrato integrante da superestrutura, determinado pelo económico.
Hoje, as análises económicas dominantes do direito assumem a relevância da
eficiência económica na proposta da construção do direito.
Esta crítica à construção liberal burguesa é um ponto de partida fundamental para a
formação das teorias críticas do direito de inspiração neomarxista.
Na crítica neomarxista, a Escola de Frankfurt teve um influência decisiva,
nomeadamente no que diz respeito ao uso alternativo do direito, na década de 60.
Tiveram também influência as propostas sul-americanas emancipatórias, que
falavam dos direitos alternativos num pluralismo jurídico que admitiria a
coexistência de diferentes sistemas ditos jurídicos, ainda que alguns informais, em
paralelo com o sistema jurídico estatal.

Ou seja, a linha do marxismo e neomarxismo que gerou construções em que a


economia era ideia fundamental, rapidamente conjugou a economia com outras
dimensões e viemos a encontrar referências de teorias ideológico-políticas,
assumindo que o direito é política.
Ora, atualmente, a determinação pelo económico não desapareceu, contudo foi-se
desenvolvendo com base noutros ideários: o grande exemplo que a análise do direito
nos dá vem de uma outra linha de evolução, onde o direito é um facto empírico
constitutivo da sociedade, que dialoga com a realidade em termos pragmáticos, isto
é, os resultados das decisões judiciais são essenciais para a sua construção.

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Posteriormente, dá-se lugar à proposta de que o direito deve permitir o livre


desenvolvimento do mercado e, com isso, restringir as limitações à auto-composição
dos interesses.
O direito deveria, para estas perceções de herança liberal projetadas na análise
económica do direito, restringir as limitações que se põe à livre composição dos
interesses – p.e., reduzir os custos de transação.

Mas então, se a superestrutura cultural (direito) também atua sobre a infraestrutura


económica é porque não está na total dependência dela?
Inicialmente, o pensamento marxista começou por afirmar uma estrita e
monocausal redução da superestrutura (direito incluído) à infraestrutura económica.
Depois, a partir da aceitação da evidência de que o direito era o enquadrante
estrutural da economia, foi-se abrindo ao reconhecimento de uma dialética entre
estes dois planos
Ao longo dos anos, a relação entre a estrutura económica e a dimensão ético-
jurídica da sociedade tem variado.
O económico é ainda hoje, o referente decisivo, mas nem sempre o foi, e o
marxismo compreendeu isto mesmo e passou a distinguir o elemento dominante do
elemento determinante da história.
Se a tese sustentada pelo economicismo fosse verdadeira, a relação entre a
infraestrutura e a superestrutura seria constante e seria sempre o económico o
fundamento determinante e o elemento dominante da história.
No entanto, esta relação tem-se modificado ao longo dos anos, e hoje é igualmente
pertinente distinguir a racionalidade económica da jurídica.
Racionalidade económica: é funcional, instrumental e de meio-fim, que só ajuíza
em termos de eficiência, pelo que deve ser qualificada como uma racionalidade
técnica.
Sendo que a economia é a ciência que a justifica e que se dedica a equilibrar os
diversos interesses que surgem no palco comunitário, isto significa que se a
realidade social fosse totalmente dominada pela economia, haveria apenas uma
racionalidade puramente técnico-funcional.
Esta racionalidade não se afirma em exclusivo, pois já sabemos que nem todos os
meios podem/devem ser considerados válidos.
Os interesses não podem ser avaliados em termos de pragmática eficiência, sendo
necessário atender à sua válida satisfação, já que existem referentes culturais
mobilizados para ajuizar esses interesses que vão surgindo.

Assim, a intencionalidade condicionante da racionalidade de ambas é diferente uma


vez que a racionalidade do económico se centra na eficácia (assentando numa
eficácia pragmática e de caráter funcional/instrumental com base numa relação de
meio-fim) e a da racionalidade do jurídico enucleia-se na validade.
Tudo isto mostra não ser o económico o determinante exclusivo.

Contudo, Se a realidade social fosse totalmente dominada pela economia haveria


apenas uma única racionalidade: a racionalidade puramente técnico- funcional, o que
poderia resultar no perigo da instrumentalização do direito aos interesses.

 Em relação à apreciação crítica da teoria redutivista do direito à economia:


 O jurídico também atua sobre o económico, como é reconhecido pelo próprio
pensamento marxista;
 O tipo de relação entre a esfera do económico e a esfera do jurídico tem variado
de época para época;
 Se a intencionalidade (que condiciona a racionalidade) de ambos é igualmente
diferente (a do económico centra-se na eficiência, enquanto que a do jurídico
tem como núcleo a validade), então vemos que económico não é o seu
determinante exclusivo ➜ podemos concluir que o económico não reduz, nem
teoricamente nem ao nível da análise histórica, nem atendendo à
intencionalidade os dois domínios em controlo: o ético-jurídico, tendo, contudo,
que contar com ele.

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A REDUÇÃO DO DIREITO AO POLÍTICO


A comunidade tem no político uma dimensão constitutiva do seu próprio sentido,
uma vez que é nele que se encontram os valores e os princípios que o humanizam.
O político é, assim, o húmus fundamentante da prática de qualquer comunidade
concreta.
Distingue-se, portanto, da política que se assume como um programa finalístico
que tem a sua estratégia e que é assumido por um governo.
Para esta concessão (a da política), o direito seria somente a concretização da
voluntas (vontade) política, constituindo como que “a política noutros termos”, ou
seja, o direito seria apenas uma política concretizada em normas.

Será o Direito redutível à política?


Por volta do século XIX surgiram correntes de pensamento que reduziam o direito
à vontade política.
Quando referimos a redução do direito ao Estado temos de fazer uma distinção
entre o político e a política.
A política é aquilo que designamos por poder político. Trata da organização dos
principais objetivos da sociedade e da elaboração de uma estratégia para alcançar os
mesmos.
Mas o político é um conceito presente desde a polis grega, sendo que os gregos o
mostravam como o fundamento tanto a política como do direito, sendo que estes
dois referentes só eram entendidos quando no quadro de uma comunidade. O
político representa os principais valores de uma comunidade.
Durante a Idade Média não havia Estados soberanos da mesma forma que há hoje,
pelo que, o poder político era entendido através de um referente religioso: o
soberano era soberano pois a vontade divina era que ele estivesse no poder.
Esta ideia de o direito divino dos monarcas reinarem terminou com o Antigo
Regime, com o rebentar da Revolução Francesa de 1789 e de várias outras
revoluções liberais por todo o mundo.
A partir do século XIX, com o aparecimento do Estado moderno, muitos
começaram a fazer equivalências entre o direito e o Estado, até que estes dois se
tornaram um só na consciência geral.

Esta equivalência tomou várias modalidades diferentes ao longo da história.


1. O legalismo normativista, que se afirmou com a Escola da Exegese no século
XIX, pouco depois da Revolução Francesa e do aparecimento do Estado como o
conhecemos. Nesta altura, a principal ideia era fazer da lei uma verdadeira fonte de
direito, libertando-a do caráter meramente declaratório que assumia com o
jusnaturalismo. Assim, no contexto social pós-revolucionário, a lei surgiu como
enquadrante racionalizador das liberdades.
Daí passou a ser uma forma de limitar o poder do Estado através do direito. Mas
como eram os legisladores que passavam as leis que delimitavam este poder,
começou a cairse num pensamento falacioso: se o direito é a lei e a lei é criada pelo
Estado, o direito é a
vontade do Estado.
Este pensamento tornava o objetivo inicial do direito (limitar o poder do Estado)
impossível pois seria o Estado que teria o poder de se controlar a si mesmo.
2. O funcionalismo tecnológico-político e social foi desenvolvido por Hans Albert a
partir das ideias de Popper, particularmente do racionalismo crítico, afirmando que
todas as tentativas de justificar a validade de uma tese (e aqui inclui-se a validade
material) serão infrutíferos.
Um dos maiores contributos de Albert para a filosofia (e para o direito) foi o
dilema de Munchhaussen, nome dado em honra de um barão que tentou sair de areia
movediça ao puxar pelos seus próprios cabelos. Albert formulou este dilema a partir
da velha questão da epistemologia em relação ao que é que fundamentava o nosso
conhecimento, mas também pode ser aplicada ao direito.
O dilema de Munchhaussen, para Albert, é que quando tentamos justificar a
validade de qualquer ação, teoria ou tese acabamos sempre por utilizar um raciocínio
circular (premissa A leva a premissa B, mas é a premissa B que torna possível a

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premissa A), um argumento regressivo (requerem-se provas infinitas da validade) ou


um argumento axiológico (partem-se de dogmas já aceites).
3. O funcionalismo ideológico político apareceu com a escola dos Critical Legal
Studies nos anos 70. Os doutrinários desta corrente de pensamento tentavam
demonstrar que grande parte das normas e decisões jurídicas favoreciam os
substratos mais privilegiados da sociedade. O objetivo do direito contemporâneo
deveria então ser a reversão destes privilégios em nome da igualdade.

Em suma:
Havia 3 modalidades que eram:
1. Legalismo normativista, que defende a redução do direito à lei;
2. Funcionalismo tecnológico, segundo o qual o direito é o regulativo instrumental
de objetivos político-sociais;
3. Funcionalismo ideológico, em que o direito seria equiparado à política.

A autonomização da política coincidiu com a afirmação do Estado moderno que


assumia a titularidade de toda a prática da comunidade, e, portanto, também do
direito. Foi nesta época que se cedeu à tentativa de reduzir o direito ao político.
Numa longa fase pré-moderna, o direito era basicamente constituído pelos
costumes, pela jurisprudência e pela doutrina. Havia também leis, mas estas
possuíam um valor meramente declaratório de uma juridicidade que as transcendia.
Com o Estado moderno, o direito passou a ser a legislação e, portanto, uma mera
expressão da vontade do Estado, mas também um fator de limitação do seu poder.
Mais tarde, assumiu-se como critério orientador das próprias ações concretas.
Foi, portanto, a partir da época pré-moderna que se criaram condições para reduzir
o direito à política, à prescrição da vontade do Estado.
Para esta tese, o direito não é mais do que a vontade da instância politicamente
soberana.
O pensador que mais se identificou com este redutivismo foi Hegel que, ao
compreender o Estado como a última expressão do espírito objetivo e da ética, inclui
nele todo o universo prático e portanto, também o direito.
Facilmente questionamos este redutivismo tendo em conta que o direito não está
inteiramente compreendido na lei.
Para além disso, se aludirmos ao plano institucional, o poder será legítimo se
estiver em consonância substantiva com os valores que entretecem o político.
A legitimidade democrática, hoje em dia dominante, radica no reconhecimento
mútuo a nossa dignidade, ou seja, de nos compreendermos uns aos outros enquanto
pessoas.
Por detrás e acima do poder do Estado, afirma-se a dignidade da pessoa.
Isto demonstra que a dimensão axiológica legitimante do poder é o mesmo
conjunto de valências que o direito assimila, razão pela qual a legitimidade do poder
se objetiva numa autêntica normatividade.
Logo, o poder converge com o direito, não existindo qualquer tipo de subordinação
➜ é no político que o poder encontra a sua legitimidade e que o direito tira a
fundamentação da validade que nuclearmente o predica.
O poder invoca a normatividade para se legitimar e, a normatividade precisa do
poder para existir e subsistir, “nenhum direito sem poder, nenhum poder sem
direito”.
Ora, o conteúdo material do poder está condicionado por uma normatividade alheia
ao poder. Se, efetivamente, o poder determinasse as validades, estas estar-lhe-iam
subordinadas e o poder disporia sempre delas.
Hoje, releva-se o poder delimitado, nomeadamente pelo Estado de Direito (que é
uma limitação do poder em nome do direito, i.e., das exigências predicativas da
dignidade ética que nos reconhecemos).

O Estado de direito – uma delimitação ao poder político


O Estado de Direito representa uma tentativa de resolver o problema entre o poder
e as validades.
No entanto, também este “tipo” de Estado foi sofrendo uma evolução.

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Introdução ao Direito

Na época do Estado de Direito de legalidade formal, invocava-se uma legalidade


criada pelo poder, para controlar o poder.
Nos dias de hoje, diferentemente, invocam-se os direitos fundamentais, afirmando-
se uma normatividade translegal e transconstitucional. Fala-se num Estado de
Direito material porque se afirmam valores jurídicos que estão acima da própria
legalidade.
A juridicidade é autenticamente o fundamento material do poder, e, por
conseguinte, da legislação.
No entanto, é ainda essencial ter em conta que mesmo que a legislação seja a forma
jurídica mobilizada pelo poder, isso não significa que o jurídico se esgote na
legislação.
Ora, mesmo de uma perspetiva estritamente política, vai-se compreendendo a
impotência do poder para responder a todos os problemas com que se vê
confrontado.
De facto, existe uma relação entre o Direito e a Política, mas isso não significa que
o direito se identifique e se reduz, necessariamente, com/na política.
Neste nosso amplo hemisfério cultural, reivindicamos a nossa autonomia e
dignidade éticas, recusamo-nos a pôr a nossa liberdade de pessoas nas mãos de
quem quer que seja que pense por nós e assumimos nós mesmos o risco inerente à
tentativa de realização das possibilidades que nos predicam, por isso, reconhecemos
um sentido específico ao direito.
Podemos ainda, fundamentar a afirmação acima destacada, socorrendo-nos de um
ponto de vista intencional/material:
1. Por um lado, o direito e a política têm racionalidades muito distintas. Ou seja, a
racionalidade política é uma estratégia finalisticamente prosseguida, sendo por isso,
discriminadora. Em contrapartida, a racionalidade jurídica/normatividade, como
validade que é, tem carácter universal, perfilando-se como um fundamento
dialogicamente constituível, mobilizável e afinável.
2. Por outro lado, o direito e a política sempre se afirmaram, na história, como
realidades intencionalmente distintas. Ora, num primeiro tempo, o direito natural
opunha-se às estratégias da política, e os critérios que oferecia eram utilizados para
aferir da validade dessas estratégias.
Num outro momento, o direito identificava-se com a legalidade, e, portanto, os
valores jurídicos e políticos coincidiram (os três ideais de igualdade, liberdade,
segurança), não havia, portanto, qualquer subordinação de um à outra.
Todavia, esta coincidência logo se desfez quando a lei deixou de ser o estatuto
universal e o enquadrante estável e racional das liberdades, isto é, a pedra filosofal
da vivência comunitária, e passou a ser um mero instrumento da política.
Esta constatação leva a que, hoje, se insista na distinção entre lei/direito, a
significar a existência de uma normatividade vigente constituída pela jurisprudência
e pela própria realidade jurídica, que reconheça valores jurídicos translegais.
Logo, o direito distingue-se da legislação política e, portanto, não se pode pensar
uma redução linear do direito à política.

A REDUÇÃO DO DIREITO AO AXIOLÓGICO-CULTURAL


O direito assimila os valores que compõem a ordem axiológica da comunidade,
mas também é condicionado pelos problemas concretos da mesma comunidade em
que se inserem.
Contudo, de acordo com as palavras do Dr. Castanheira Neves, o direito só o será
verdadeiramente se for vigente, ou seja, quando a normatividade constituir uma
dimensão real da prática concreta; a vigência é a síntese da validade e da eficácia.
De acordo com autor, o direito é “um dever-ser que é”, ou seja, trata-se de uma
normatividade (um dever-ser) que tem de se encarnar numa prática. Afirma uma
dimensão humana (o direito enquanto compromisso pessoal, uma tarefa que pertence
ao homem por este ser livre), história (sendo caracterizado por uma historicidade,
que se traduz numa tradição herdada e que não se deve degenerar em historicismo) e
positiva (sendo caracterizado por uma positividade que não se deve degenerar em
positivismo).

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Introdução ao Direito

A OJ vive numa constante tensão dialética entre a necessidade de garantir alguma


estabilidade às nossas relações jurídicas e a necessidade de responder aos desafios
da dinâmica da mutação social que é intrínseca à convivência humana.
Resta, agora, saber como queremos responder a essa tensão dialética. Se é
colocando o direito numa regulação economicamente /politicamente/biologicamente
eficiente ou se havemos de o pensar, mantendo-o na tensão.
Se instrumentalizarmos o direito a tensão fica resolvida. Contudo, não queremos
dizer que direito se resume a uma dimensão axiológica (existe, sim uma
referenciação do direito a valores, sobretudo se pensarmos nesses valores como
universais, imutáveis, tal como o pensamento jurídico moderno-iluminista pensou o
direito natural), pois, assim, cairíamos no extremo oposto, de fazer do direito uma
afirmação ideal de valores, sem projeção/adequação prática.
Por isso, falar da autonomia do direito não é falar de uma fechadura/clausura do
direito sobre si mesmo (“o direito não é uma ilha”) que afirma contra tudo e contra
todos uma axiologia atávica, mas significa, sim, pensar no direito como uma
normatividade/orientação que se quer vinculativa para o comportamento dos sujeitos
na prática social.
Por outras palavras, o direito é uma afirmação de um dever ser que é/a que compete
ser (não basta afirmar uma validade, é essencial associar uma eficácia).
Estas duas dimensões constituem a vigência do direito (iremos fazer uma análise
mais pormenorizada em IAD II).
O direito existe em vigência, que é a conjugação da validade (dimensão ideal,
axiológica) e da eficácia (dimensão fáctica, operacional e prática da projeção da
realidade).
O direito é uma normatividade vigente contextualizada, sob pena de não ter
qualquer relevância do ponto de vista prático.
A intenção do direito não é um remédio e sim a afirmação de um sentido
(axiologia) que se quer realizar.
Por isso, tantas vezes, há a distinção da validade e da legitimidade.
Estas dimensões não existem separadas, conjugam-se decisivamente e a verdade é
que, hoje, além de uma construção dialógica da realidade, não temos uma posição
heterónoma da validade (a não ser que assumamos uma perspetiva jusnaturalista,
que afirma a ideia de que o direito positivo vem de fora da conjugação
intersubjetiva, sendo imposto por uma entidade racional, cosmológica, teológica ou
mesmo humana, pressuposta como necessária e inevitável).
O que está em cima da mesa, atualmente, é pensar no direito como uma validade
constituenda, dialogicamente, onde não encontramos uma predeterminação da
normatividade mas uma contínua discussão sobre o que há de ser essa validade
associada a uma legitimidade que irá seguir (associadamente democrática) e que nos
confere responsabilidade a todos.
No fundo, é pensarmos em direito positivo vigente que é na prática e será tanto
mais eficaz quanto menos dermos por ele, pois isso significa que a normatividade
está conjugada pelas convicções vigentes e as práticas instaladas/constituendas numa
determinada comunidade histórico-concreta.
Este é um processo exigente, que implica que contínua e voluntariamente nos
empenhemos em participar/tomar parte na discussão sobre esses fundamentos e a
sua contínua constituição.
É sobretudo esse o objeto da nossa preocupação: Quid ius?
Procuramos, assim, pôr o problema da reflexão sobre o que estamos a fazer, o que,
na conjugação dos diferentes operadores jurídicos, não implica que estejamos a
pensar tudo desde o princípio, mas sim que sejamos todos tributários para perceber
tudo o que a dogmática da própria OJ vigente constitui para dialogarmos com ela.
Noutro sentido, a construção interna do direito também irá aplicar diferentes
dimensões, não apenas a dimensão da legislação, que compõe o sistema jurídico no
seu conteúdo.
Todas essas dimensões contribuem para a criação do direito e relacionam-se
dialeticamente entre si, constituindo assim a normatividade jurídica vigente (que é o
direito).

Quais as dimensões?

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Introdução ao Direito

Os princípios normativos (inspirados, como todos os critérios, no sentido do direito)


 As normas legais
 As jurisprudências judiciais (conjunto de resultados das decisões judiciais)
 As jurisprudências doutrinais/dogmáticas (conjunto de reflexões/ discussões
sobre o sentido teórico-prático do direito)
 A realidade jurídica
 Os bordões procedimentais (conjunto de mecanismos operadores)

Precisamos, então, de compreender que, quando falamos de uma compreensão


pluridimensional do direito, que não se reduz à lei e que é dialeticamente
constituenda, todas estas dimensões são convocadas.
O direito não é apenas a lei, mas existem funções que só a ela cabe cumprir, devido
ao facto de vivermos num Estado constitucional.

(ver aula prática da sebenta, pág.75)

A SOCIEDADE FUNÇÃO DO DIREITO


Não é o direito que irá reduzir-se à sociedade, pois é esta última que irá instituir-se
naquilo que o direito lhe pode transmitir.
Vivemos numa civilização de direito, o que é, por si só, uma opção.
Em vez de dizermos que o direito é funcionalizado à sociedade, o que está em causa
é que um certo sentido de sociedade é missão do direito – a sociedade que o direito
constitui é uma sociedade diferente daquela que seria constituída sem direito.
Abordamos, rapidamente, “Direito ao espelho”, onde o autor põe em causa o ubi
societas ibi ius (onde há sociedade, há direito) – pois isso não é, para ele, garantido.
Poderá ser mais fácil que ubi ius ibi societas (onde há direito, há sociedade) do que
ubi societas ibi ius (onde há sociedade, há direito), mas tudo é rebatível por
depender do tipo de sociedade que o direito pretende criar.
A partir da sociologia, percebemos como são constituídas as relações
intersubjetivas juridicamente relevantes e sabemos que algumas construções da ideia
de Estado implicam um pressuposto de contrato como justificação para a vinculação
jurídica.
Desta forma, excluímos boa parte das relações intersubjetivas (pois, sabendo que
nem tudo pertence ao direito, temos de perceber como o organizamos: num extremo
estão os comunitarismos, que entendem que cada sujeito só se compreende através
da ligação à comunidade, e no outro estão aqueles que não permitem que um sujeito
se ligue à comunidade; não estamos nem num extremo nem no outro).
Estamos perante a constatação de que há, de facto, relações intersubjetivas que
podem gerar relevância jurídica que não resulta de uma vinculação prévia,
consciente e livre e há outras que resultam do contrato.
Ora, claro que nem tudo aquilo que faz parte da nossa vida diz respeito ao direito:
porque a intenção normativa do direito pode não abranger essas dimensões ou
porque nós não admitimos que o direito interfira ➜ é um facto cultural e histórico,
que mantém acesa a consciência de que podia ter sido de outra maneira, mas não foi.
Procuramos, assim, compreender para discordar: existem quatro pontos
fundamentais dado que estamos perante um certo tipo de sociedade como resultado
da atuação do direito (“civilização de direito”):

RÁPIDA ALUSÃO AOS PROBLEMAS DO “POR-QUÊ?” (DO FUNDAMENTO


ORIGINÁRIO) E DO “PARA-QUÊ?” (DA FUNÇÃO HUMANO-SOCIAL) DO
DIREITO
De facto, desde o início da reflexão das relações entre o direito e a sociedade
(respeitantes à 7ª lição) que tem sido posto na conjugação entre o que é o direito e
para que serve o direito.
A questão com que nos deparamos é essa.
“O que é o direito?” é a pergunta orientadora pelo sentido. “O quê direito?” / Quid
ius?

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Introdução ao Direito

“Por-quê direito?” é a pergunta que busca pelo fundamento originário (porque não
o não direito?). É realmente uma opção cultural e histórica.
Temos expressões de civilizações cuja organização não corresponde ao direito
(cultural e historicamente assim reconhecido), falando das expressões de um “Estado
de não direito”: um Estado cuja organização do ponto de vista axiológico, normativo
e prático é contrária ao direito.
Quando perguntamos “O quê? Por-quê?” estamos à procura de saber do que
falamos e porque chegamos aqui: perguntamos à história sobre o direito com que
nos deparamos.
E “Para-quê direito?” Qual a função do direito na sociedade?
Por isso, se o direito não se reduz a nenhuma das dimensões, embora seja
fortissimamente codeterminado por elas (não está isolado das mesmas), então, que
funções desempenha na sociedade? “para-quê” do direito? Temos, primeiro, de
perceber o “por-quê” do direito, isto é, as suas condições de emergência na
sociedade. Para que possa emergir, tem de se verificar 3 condições:
1. condição mundanal, que nos remete para o problema da partilha do mundo (é
apenas um, com recursos escassos que têm de ser repartidos – direito responde a
este problema, definindo que o nosso acesso ao mundo tem de ser legítimo)
2. condição antropológica, que reflete o modo de ser do Homem e a sua natural
indeterminação (num plano biológico-instintivo, o homem é um ser inacabado –
somos, assim, autores de nós mesmos)
As condições anteriores verificam-se sempre, sendo, por isso, estáveis. Exigem a
existência de uma ordem que compense a indeterminação do Homem, por um lado, e
estabilize regras de partilha dos bens escassos, por outro.
Ora, se considerássemos apenas estas duas condições, a ordem exigida não teria
necessariamente de direito. Por isso, para que seja de direito, é necessária uma 3ª
condição, que é variável (pois está dependente da perceção do Homem enquanto
pessoa/ser de valor).
3. condição ética, que assenta na forma como o Homem se autocompreende,
remetendo-nos para o pressuposto axiológico do direito (sentido e conteúdo
material que fundamenta o direito, que já se sabe que provém da consideração
do Homem como um ser com dignidade ética).
Só se o Homem se reconhecer enquanto sujeito portador de uma ineliminável
dignidade ética (reconhecermo-nos como pessoas jurídicas – com autonomia e
responsabilidade, para além da dignidade e liberdade) é que temos as condições para
ter uma ordem de direito.
No fundo, as funções (para-quê) do direito são determinadas pela 3ª condição:
essas funções foram variando ao longo dos tempos, em função da forma como o
Homem se foi autocompreendendo. Portanto, o direito varia de acordo com a
evolução histórica. O Homem não se compreendeu sempre da mesma forma, logo as
funções do direito não foram sempre as mesmas (remissão para os 3 grandes ciclos
histórico-funcionais)
Em suma, a condição mundanal e a condição antropológica surgem como
condições estáveis.
A condição ética é a condição mais variável, pois radica-se na auto-compreensão
historicamente situada que o homem tem de si mesmo e dos outros. Designa o quê
do direito, o seu fundamento material. Atualmente, esse “o quê” do direito é a
dignidade da pessoa humana, princípio escolhido tanto pela sua importância como
pela necessidade de não ficar preso num vórtice eterno de fundamentos.
A função do direito na sociedade traduz-se numa exigência sistemática a todos os
elementos subsistentes da ordem.

Põem-se, então, questões para definir o que é ser sujeito de direito ➜ o referente
axiológico (não apenas antropológico) do sujeito de direito é a pessoa, num certo
sentido cultural.
Ora, isto leva-nos a dizer que ser sujeito pode não corresponder ponto por ponto a ser
pessoa, tal como a ser indivíduo – do ponto de vista cultural.
O individualismo liberal assumia como sujeito de direito uma dimensão do ser
humano que não implicava toda a complexidade da construção da pessoa, estando
em causa fundamentalmente a relação de autonomia (e não a da referenciação
axiológica da relação entre essa autonomia e a responsabilidade).
Ser sujeito pode não implicar ser pessoa, por não lhe ir referido o juízo de dignidade e
por se considerar que o sujeito pode não ser livre.
Concluímos, então, que há duas dimensões fundamentais na construção da pessoa
(jurídica): Pág. 1
Dignidade
Uma ineliminável dignidade ética.
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A FUNÇÃO ESPECÍFICA DO DIREITO E A SUA CONDICIONALIDADE


HISTÓRICA – TRÊS GRANDES CICLOS HISTÓRICO-FUNCIONAIS
As funções que o direito, compreendido como ordem de validade, foi
desempenhando são diferentes ao longo dos tempos. Nessa análise diacrónica devem
distinguir-se três grandes ciclos: época clássica pré-moderna, época moderno-
iluministas e época contemporânea (atual). Em cada uma das épocas o direito foi
desempenhado tributos diferentes.

O DIREITO PRÉ-MODERNO
Vem desde a antiguidade clássica à idade média.
Aqui, o homem compreendia-se enquanto zoon politikon, um animal político, um
cidadão integrado numa ordem social ditada pela ordem do direito natural.
A ordem natural estava além do controlo do homem, e era pré-ordenada, translegal
e imutável. No mundo definido por ela, o homem servia apenas como hermeneuta da
ordem, e as leis que positivava tinham um caráter meramente declarativo. O quê do
direito era a racionalização e explicitação da ordem natural: desempenhava uma
função legitimante e tinha intenção declarativa de uma ordem natural pressuposta,
onde ser humano se inscreveria ao nascer e da qual dependeria para a sua própria
identificação cultural – manifestação da inserção do ser humano numa ordem natural
pressuposta (por referência teológica, a lei eterna ou cosmológica),
independentemente da sua vontade.
Isto levou à distinção entre ius e lex que se reflete nos tempos modernos na
distinção entre common law e statute law no direito inglês.
O direito natural com diversas sedes (referenciação cosmológica/ontológica a
apelar ao princípio racional de construção da normatividade e teológica a pressupor
na razão divina o sentido de construção de direito natural a partir da ideia de lei
eterna) e como fundamentação do direito positivo.

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Esta divisão tripartida (do século IV e V) perdurará no pensamento jurídico


ocidental até ao século XVII, na Idade Moderna.

O DIREITO MODERNO-ILUMINISTA
O direito surge com uma função constituinte de uma legalidade que nasce do
pensamento moderno, onde se abdica da influência divina na ação humana e se
assume o modo de estabelecimento das relações intersubjetivas dos sujeitos o seu
nascimento livre e desvinculado, mas que, por sua vontade racionalmente
confluente, se relacionam entre si juridicamente.
Surge, então, a primeira forma do Estado moderno que conheceremos (e que
aponta para a separação de poderes).
Assim, o teocentrismo é substituído pelo antropocentrismo: caminho para a
consideração de que o direito deve ser criado para todos (ainda que implique a
divisão da sociedade em classes), que confere à lei uma manifestação racional e
politicamente legitimada para a criação do direito.
O pensamento moderno-iluminista conflui que o direito deve ser lei (a definição da
posição relativa dos sujeitos), assentando na racionalidade humana.
Aponta-se aqui para um Estado de direito demoliberal, cujo princípio da separação
de poderes é essencial.

o homem procurou uma rutura ao afirmar a crítica universal e


racional, procurando instituir uma tabula rasa da ordem social onde a liberdade
humana era absoluta.
Tendo isto em conta, o homem moderno considerou que só existia sociedade (e
direito) a partir do momento em que havia um contrato social, realizado pelos
seres humanos de livre e spontânea vontade, a vinculá-los. A ordem político-
jurídica era fruto da deliberação do homem.
A expressão racional do contrato social era a lei, que servia como enquadrante da
liberdade, mas nesta altura o direito ainda não se identificava unicamente com a
lei.
Sendo a autonomia do homem o princípio fundamentante do direito, a sua função
era racionalizar e universalizar a liberdade do homem. O direito não se
identificava com o poder político, tendo autonomia suficiente para o limitar.
Desempenhava uma função constituinte da ordem.

O DIREITO CONTEMPORÂNEO
Surge uma proposta de uma validade axiológico-normativa e reflexivamente crítica
como função do direito na sociedade – temos de salientar que esta não é a via única,
necessária ou maioritária, mas é a proposta considerada.
Iremos, então, pensar no direito com uma função regulativa, constitutiva de um
certo sentido cultural, e com um papel de reflexibilidade prática que obriga a que se
discutam os seus fundamentos para se perceber qual o sentido normativo pretendido
(para que seja vigente e, com isso, quanto menos se der conta por ele mais eficaz
seja, pois aí o direito corresponderá à valoração intersubjetiva da convivência
pacífica, havendo um consenso).
Criar direito é papel de uma entidade legitimamente formada para tal e que é criado
para todos.
Hoje, há a colisão dos discursos e o direito é pressionado pelas outras áreas da
sociedade, o que o leva a reagir de formas diferentes e, assim, formalizar a lei e
abster-se à assunção de fins (tentando recuperar a autonomia).
Nota:
Salientamos Niklas Luhmann, que defende que o direito tem a função de
dirimir/dissolver conflitos sem se comprometer com os objetivos que os outros
subsistemas da sociedade, para lá do jurídico, pretendem prosseguir.

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Neoformalismo do direito em crítica ao neomaterialismo: afirmação de que o


direito tem uma dimensão material de valor axiológico de diferente substrato
cimento agregador e que pressupõe a evidente evolução histórica da ideia, mesmo
que continuemos a falar sempre de um direito natural.
Isto verificou-se até chegarmos à ideia de que o direito natural pode ser absorvido
através da lei (entre os séculos XVII e XVIII) sendo, assim, que se assume a lei
como fonte principal do direito: pensamento (positivista) de que criar direito é papel
de uma entidade legitimada para tal.

DETERMINAÇÃO DA FUNÇÃO CONTEMPORÂNEA DO DIREITO


Hoje, depois da evolução e de posta em causa a formalidade traduzida em
formalismo proveniente do século XIX, encontramos diferentes funções do direito,
relembrando que falar destas é uma opção.
 função regulativo-constitutiva
 função legitimante e crítica
O que quer isto dizer em termos práticos?
Poderíamos dizer que direito será tanto melhor quanto mais adequado for aos fins
que lhe são postos de fora.
Assim, o direito tem de se adaptar à sociedade, não significando que seja
acriticamente aquilo que a sociedade lhe quer impor, pois aí corremos o risco de
deixarmos de ter direito.
Contudo, há também o poder da consideração de que o direito estabelece um
formalismo excludente (fechado em mecanismos complexos formais) ou o de
afirmar que o direito é tanto melhor quanto mais acrítico for.
Em qualquer um dos casos, há perspetivas que radicalizam aquilo que o direito
pode ser.
Ora, dizer que direito tem um fundamento material, intersubjetivamente constituído
e que afirma valores projetados/efetivados na sociedade é uma opção (entre outras
possíveis).
O que queremos que o direito seja está em contínua discussão.

Função contemporânea do direito, segundo Pinto Bronze


Temos cada vez mais sociedades complexas, heterógenas, plurais e desatualizadas,
em que a afirmação das diferenças vai cada vez mais tomando parte vs. um suposto
tronco maioritário.
Com isso, procuramos perceber, enquanto juristas, o que o direito pretende ser e
como queremos contruí-lo para o futuro.

FUNÇÃO INTEGRANTE
De facto, nestas sociedades heterogéneas, o direito surge como único referente
integrante e comum, que torna possível a clareza das relações intersubjetivas e
deixa, assim, de ser poder.
Existem, de facto, referentes muito mais valiosos nas relações intersubjetivas do
que aqueles que o direito estabelece, no entanto, quando estamos perante a ausência
de outras notas comuns de orientação ao sentido da ação e da orientação, temos o
direito enquanto agente integrante.
O direito é, assim, um apoio axiológico a um sentido de construção da
intersubjetividade, o que não significa a concordância individual das prescrições que
o direito estabelece, mas sim que o direito é uma expressão cultural em que se
projeta o sentido das relações intersubjetivas.
Nota:
Esta função integrante hoje não é tão enfatizada quanto já foi e quanto pode ser,
i.e., dizer que o direito tem uma base axiológica que é intersubjetivamente
construída é tomar um compromisso decisivo e, com isso, dizer que tem uma função
integrante confere ao direito uma relevância fundamental nas nossas relações
intersubjetivas.
Nós estamos numa civilização de direito e, sabendo que há zonas da nossa
intersubjetividade em que não admitimos que o direito interfira, há outras em que o
direito é o único referente comum.

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Posto isto, poderíamos falar dos princípios fundamentais consagrados na CRP: a


consagração histórica constituenda (p.e., o art. 13º/1/2 da CRP) é uma dimensão
fundamental e histórica do direito.

Função integrante: tem dimensão negativa, pela qual se constitui a ordem em que
nos encontramos integrados por um referente comum. Atualmente, é o direito que
nos integra dentro da nossa sociedade eticamente fragmentada, tomando o lugar
anteriormente designado para referentes como a religião. Para isso desempenha
determinadas subfunções.

FUNÇÃO DE TUTELA DE VALORES E INTERESSES FUNDAMENTAIS


Na estrutura formal da ordem jurídica encontra reflexo na função
prescritiva. Nesta subfunção da função integradora, o direito institui o respeito por
determinados bens considerados fundamentais, impondo sanções pela sua
transgressão.
No âmbito desta função de imunização, o direito considera que a transgressão de
certos bens tem dignidade penal, tornando-se criminalmente relevantes. Alguns
destes valores nem precisam de uma acusação particular por serem considerados
crimes públicos. Um caso relevante nos dias de hoje é a violência doméstica.
Vale notar que se tutelam também estes valores e interesses face à omissão, à
ausência de comportamentos para os proteger.
FUNÇÃO DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS DE INTERESSES
Se na dimensão anterior tínhamos um sujeito-cidadão, recuperando o que dissemos
para a linha ascendente da OJ, aqui temos um sujeito de direito que desenvolve a sua
autonomia e autodeterminação, sobretudo enquanto sujeito de direito privado.
Encontramos a tutela fundamental do direito civil e do direito comercial, pertencente
à função integrante na descrição da posição relativa dos sujeitos (conferindo o seu
direito de autonomia com a não interferência e a participação voluntária e a
vinculação através dos contratos).
FUNÇÃO DE GARANTIA
Serve para institucionalizar e limitar o poder. É também esta função que possibilita
a atuação do poder político, estabelecendo os padrões para tal. Na nossa sociedade
atual, estas garantias são principalmente o Direito Constitucional e o Direito
Administrativo (que
não tem apenas uma função de execução da lei, funcionando como verdadeiro
elemento constituinte do direito), mas também o Direito Penal.

Estas três subfunções que incluímos na função integrante conexionam-se, na


medida em que concorrem para possibilitar a convivência humana, não obstante a
pluralidade das mundividências que socialmente se afirmam. Elas integram-nos
porque nos dão segurança (o que agora nos aparece como função que o direito
desempenha na comunidade), surgiu-nos então como efeito imanente à ordem
jurídica formalmente perspetivada.

O SENTIDO NEGATIVO E DOGMATICAMENTE FORMAL DA INTENÇÃO


IMEDIATA DA FUNÇÃO INTEGRANTE
Dizer unicamente que a função integrante tem um sentido negativo significa dizer
que o direito é integrante pela negativa – funcionando como uma delimitação
externa.
Por exemplo, no art. 13º da CRP, temos o princípio da igualdade que não está
apenas consagrado em termos formais, dado que há várias dimensões materiais da
igualdade que estão consagradas na CRP.
O sentido de igualdade formal (herdado pelo pensamento moderno-iluminista) foi
posteriormente temperado pela exigência da procura da realização de um certo nível
de igualdade material, que corresponde a uma “correção” daquilo que o formalismo
liberal propôs (i.e., constatando a condição do ser humano em concreto nas suas
circunstâncias específicas e conferindo uma igualdade formal, não bastaria para
preencher aquilo que a prática mostrou ser objetivo do direito).

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Introdução ao Direito

Mas não é isso que está em causa: há uma tutela fundamental de discrição que o
direito garante – a não interferência indevida dos outros sujeitos e do próprio Estado,
o que anui a autonomia a cada sujeito – permitindo uma convivência pacífica.
Então:
- Primeira dimensão da função integrante: garantia recíproca/tutela de discrição e de
participação (salvaguarda das subjetividades de cada um), correspondente ao sentido
negativo.
- Segunda dimensão da função integrante: sentido regulativo-constitutivo e função
de validade legitimante e crítica, correspondente ao sentido positivo.
Em suma:
A função integrante tem um caráter negativo, uma vez que o direito, ao tutelar
certos valores interesses fundamentais, proíbe (sanciona negativamente) a sua
transgressão; ao fornecer critérios para a repartição dos bens e ao resolver os
conflitos de interesses que possam irromper, impede a perturbação injustificada das
posições jurídicas em que cada um esteja validamente investido; e ao consagrar o
princípio da legalidade da incriminação, limita a legitimidade punitiva do poder.

O SENTIDO POSITIVO ESPECÍFICO DO DIREITO COMO VALIDADE


A integração que o direito confere também vale pela positiva.
Vamos considerar no direito a afirmação de um sentido material/de uma validade
específica na normatividade jurídica (a validade que conferimos ao direito e que é
intersubjetivamente construída com força normativa).
Encontraremos, assim, uma função regulativo-constitutiva e uma função crucial de
reflexão crítica (solução de validade legitimante e crítica de si próprio – do direito –
e do poder do Estado com que se relaciona).
REGULATIVO-CONSTITUTIVA
Afirma a trans-objetividade do direito. Antes de os valores identificados pelo
direito serem objetivados em critérios positivos e pré-definidos, constituem um
regulativo intecionado, sendo já reconhecidos como fundamentais.
Na vertente regulativa, esta função reconhece uma normatividade predicativa
através da qual o sistema de direito é renovado conforme as diferentes intenções
normativas, adequando o direito aos novos problemas concretos. É uma abertura do
direito à mudança, sempre tendo em conta a sua herança cultural.
Na vertente constitutiva, reforça-se a função integradora do direito.
Toda esta função reconhece no direito uma dimensão axiológica predicativa.
FUNÇÃO DE VALIDADE LEGITIMANTE E CRÍTICA: O ESTADO-DE-
DIREITO
Aqui, o direito serve como critério para a validades da nossa vida e do poder
político. Para desempenhar esta função, o direito mobiliza valores e atua através de
instituições, afirmando uma inegável dimensão axiológica.
Todas estas funções são desempenhadas num Estado-de-direito material, onde
todas as linhas da estrutura formal da ordem jurídica se desenvolvem de maneira
igualitária.
Porém, nós nem sempre vivemos num Estado-de-direito material.
Para percebermos completamente o direito na sua dimensão material, e como é que
chegámos ao nosso paradigma atual, temos de perceber a sua história. Motivo pelo
qual temos de analisar o antecedente direto da nossa ordem jurídica atual: o
positivismo jurídico, que surge como referente imediato da compreensão do direito.

O DIREITO COMO NORMATIVIDADE JURÍDICA VIGENTE


(O QUE SIGNIFICA HOJE)
Chegando aqui, devemos acrescentar que o direito se relaciona com a política, com
a economia, com a cultura, com a tecnologia e com as dimensões que quisermos
acrescentar, não se reduzindo a nenhuma delas.
O direito assume-se, antes, como uma afirmação de valores próprios, que implicam
o equilíbrio que a comparabilidade entre sujeitos à luz do direito (relativizando-os)
lhes confere e, portanto, que pressupõe sempre (nesta construção) direitos e deveres,
orientando, também, a construção da intersubjetividade juridicamente relevante.

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Introdução ao Direito

O PROBLEMA DO FUNDAMENTO DA VALIDADE DO DIREITO E A


FUNDAMENTAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: AS DIVERSAS GERAÇÕES
DE DIREITOS HUMANOS; OS DIREITOS DO HOMEM E OS DIREITOS
FUNDAMENTAIS
Hoje, é comum verificar propostas que assentam a fundamentação do direito nos
direitos humanos.
Que relação existe entre o fundamento de validade do direito que falámos e a
problemática dos direitos humanos?
Na verdade, a construção histórica dos direitos humanos leva-nos ao período
iluminista, à DDHC (1789), em que se reconhece os direitos e deveres recíprocos
entre todos os cidadãos.
Hoje, depois de uma evolução que levou à consideração não só apenas do homem
universalmente compreendido nas suas liberdades (DDHC de 1789), mas a uma
compreensão do Homem enquanto ser humano concreto, nas suas circunstâncias
específicas, com as suas vulnerabilidade intrínsecas, que vai sendo objeto de
consideração e tutela nas declarações posteriores, nomeadamente na Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, e que vem afirmar dimensões que, na
perspetivação liberal, não estavam incluídas na afirmação de direitos entre sujeitos e
entre sujeitos e o Estado.
Estamos a considerar muito mais uma perceção jurídico política do ser humano e
da sua manifestação em interação, do que uma específica fundamentação material
para o direito que, como vimos, é muito anterior a essa afirmação e
institucionalização de direitos humanos.

NOTA CRUCIAL:
O reconhecimento recíproco entre cidadãos entre si e entre cidadãos e o Estado é algo que vimos corresponder à linha
ascendente, com origem no Estado moderno (pensamento moderno-iluminista, com a institucionalização do Estado
demoliberal).
Surgem-nos,
Esta afirmaçãoentão,
é uma algumas questões
opção cultural quanto:
e histórica, pois consideramos uma perceção jurídico-política do ser humano e da sua
ÀS CONCEÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS
manifestação em interação do que uma específica fundamentação material para o direito que é historicamente anterior à
afirmação/institucionalização
Visão humanista: hádosquem direitosentenda
humanos.que os direitos humanos são direitos
intrínsecos ao ser humano por ser humano.
 Visão política/convencional: há quem entenda que os direitos humanos são o
resultado de estabelecimento intersubjetivo de um núcleo fundamental de
proteção.
 Via da índole/natureza: “o que são direitos humanos?”
 Visão universalista: há quem entenda que direitos humanos são universais e
intemporais
 Visão regionalista: há quem entenda que direitos humanos são resultado de uma
afirmação e evolução cultural que tendeu para o reconhecimento recíproco de
uma específica qualidade e de titularidade de certos direitos e deveres pelos
seres humanos

AO SURGIMENTO, DO PONTO DE VISTA INSTITUCIONAL, DOS DIREITOS


HUMANOS?
Sabemos que o homem e o cidadão a quem se dirige a DDHC (Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão) de 1789 é o homem que corresponde à sociedade
de final do século XVIII e à afirmação de uma classe que, não cabendo na sociedade
tripartida convencional (burguesia), emergia acedendo à afirmação dos seus direitos
e deveres jurídico-políticos.
É, por isso, fundamental o modo como evoluíram os direitos humanos,
considerando o horizonte referencial de 1789.

O modo como a evolução do reconhecimento dos direitos humanos e a


institucionalização jurídico-política no Estado demoliberal europeu se faz não
corresponde ao modo como ex-nuovo a construção dos EUA institucionalizou o
mesmo ideário iluminista → o “velho continente” era mesmo velho!
Karel Vasak fala-nos das dimensões e características internacionais dos direitos
humanos: em 1979 propõe uma divisão dos direitos humanos em gerações, ajudando

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Introdução ao Direito

a compreender esta questão. Faz corresponder cada geração a um dos ideais da


revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.
- 1ª geração (liberdade): direitos liberdades, liberdades consagradas na DDHC de
1789 (ideário moderno-iluminista) – liberdade de expressão, de pensamento, de
conhecimento, de trabalhar, etc.
São os direitos civis e políticos.
- 2ª geração (igualdade): liberdades definidas na DUDH de 1948, sendo que com
estas teríamos, não direitos liberdades (“liberdades de”), mas sim “direitos a”
prestações e às competências atribuídas ao Estado para conferir essas prestações
(construção do Estado Social).
São os direitos económicos, sociais e culturais.
A institucionalização da linha descendente da OJ do 2º pós-guerra mostra-nos que
os acontecimentos históricos implicaram que houvesse uma diferente compreensão
do papel do Estado face aos seus cidadãos e, simultaneamente, uma evolução do
pensamento filosófico e jurídico (desde a arte à filosofia – ler lição nº 12 para a
contextualização e para compreender que a ação humana e a sua fundamentação não
é suscetível de ser conhecida como objeto/fenómeno, mas apenas de ser
compreendida).
P.e., é diferente falar de liberdade de trabalhar e de direito ao trabalho/emprego –
verificamos diferença crucial entre a 1ª e a 2ª geração.
Existe outras propostas para a divisão das gerações dos direitos humanos,
nomeadamente, a proposta de Mário Reis Marques que Estabelece ainda aqui uma
diferenciação - autonomiza uma segunda
geração na viragem do século XIX para o século XX, com a afirmação
dos direitos de participação política, a transição para as democracias. Podemos falar,
p.e., do direito de sufrágio.
Com isto identificamos os direitos civis e políticos na 1a geração e, nesta segunda,
se quisermos autonomizá-la assim, e depois na 2a para Vasak, ou 3a (para quem
entenda que a segunda tem aquela dimensão da participação política), os direitos
económicos, sociais e culturais, e aí estão os “direitos a”, p.e. direito à saúde, à
educação, ao trabalho, etc. E, consequentemente, as competências atribuídas ao
estado de conferir essas prestações aos cidadãos.

Atualmente:
Hoje fala-se ainda de 3a ou 4a geração de direitos humanos, que vai dizer respeito
ao património comum da humanidade, direito ao ambiente, à paz, e mais do que
isso, acrescentando ainda mais uma
geração (século 21), o direito ao silêncio, o direito ao esquecimento nas redes
sociais, a proteção de dados, a identidade genética. Todos estes passos são decisivos
na constituição daquilo que se diz, hoje, direitos humanos.

Para temos a ideia até onde a sequência nos traz, todas estes passos são decisivos
na constituição dos atuais direitos humanos.
Por exemplo, para além da DUDH de 1948, temos a Convenção Europeia dos
Direitos Humanos de 1950, que provém do Conselho da Europa (que não é um
órgão da UE) e que institucionaliza o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (que
não é um tribunal da UE), onde estão 47 juízes de cada país europeu e de onde
provém as decisões sobre esta temática.
Ora, a existência de tantos documentos sobre direitos humanos implica reconhecer
que ser humano e ser titular de direitos humanos pode não significar o mesmo em
todo o planeta – e outras implicações também.
Esses direitos humanos (de origem natural, política, etc.) são direitos morais ou
direitos jurídicos?
Há autores que consideram que são direitos morais, outros consideram que são
direitos jurídicos e outros consideram que são direitos conjugáveis (não sendo
confundidos nunca).
Para a cultura anglo-saxónica, falar de moral rights não significa necessariamente
falar de moral substancial e referente a valores agregadores da sociedade, pois,
embora inicialmente seja a pressuposição objetiva de um sentido orientador dos
valores em que assenta a subjetividade, existem propostas sobre o que seja a

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Introdução ao Direito

morality (há autores que veem na moralidade um referencial crítico unicamente


procedimental, outros que veem a projeção social e política através da political
morality, etc.).
Portanto, dizer que human rights são moral rights pode ter significados diferentes.
Por outro lado, dizer que são direitos jurídicos implica outra reflexão: para direitos
humanos serem jurídicos, na pressuposição do sentido do direito que assumimos,
aos direitos humanos hão de corresponder deveres (diferente dos direitos morais,
que não pressupõe deveres).
Isto coloca em dois planos diferentes os problemas: há várias construções ético-
moral, política e jurídica do que sejam os direitos humanos.
Por isso, ao associar os direitos humanos as diferentes noções de dignidade
humana, podemos estar a falar de múltiplas referências axiológicas sem um referente
garantido e de conteúdos discutíveis e muito discutidos hoje.
Na verdade, os direitos humanos são uma manifestação histórica daquilo que se
assumiu como um certo tipo de ser humano.

Esclarecimento:
No início, direitos do homem e do cidadão como um sujeito liberal burguês, com uma origem
política (embora exista quem diga que a origem é anterior a isso e tem a ver com o modo de
constituição da intersubjetividade na nossa matriz cultural, o modo como se organiza a
autonomia e responsabilidade – desde o DR e o cruzamento da filosofia grega e revelação
cristã, admitindo a existência da dignidade).
É de notar que a ideia de dignidade, na antiguidade oriental, tinha diferentes sentidos (como
tem hoje).
Quando hoje se afirmam, simultaneamente, várias matrizes culturais, ao falarmos de
dignidade humana podemos estar a referir um significante cujos significados se dissipam.

O SENTIDO ESPECÍFICO DO DIREITO


ALUSÃO AO SENTIDO ESPECÍFICO DO DIREITO NO PENSAMENTO PRÉ-
POSITIVISTA
Aqui, deixamos a consideração geral do direito que vimos a partir da atualidade,
para procurar o seu sentido específico e compreender as razões da evolução e
aquelas que levaram à necessidade de afirmação de uma axiologia/ validade
específica do direito, para continuar a ter nele uma disciplina autónoma e
integrada/dialogante com uma prática social cuja origem histórica deve ser
compreendida.
[Num sistema de legislação como o nosso, perante uma circunstância que ponha em causa a nossa
posição enquanto sujeitos, a primeira preocupação é perceber qual é a lei que prevê essa situação – típica
referência de um sujeito atuante num sistema de legislação.]

Evolução histórica do pensamento jurídico ocidental (síntese) – a resposta idealista


(jusnaturalismo antigo, medieval, moderno e contemporâneo)

Notas:
Considerar que o direito é o direito positivo, implica reconhecer a positividade do direito como vigência (ainda que hoje,
implique validade e eficácia).
Falar de positividade (qualidade daquilo que é positivo, i.e., positividade jurídica não implica a redução do direito ao direito
positivo) não é sinónimo de falar de positivismo (redução ao que é positivo -ismo reduz/leva ao limite, i.e., positivismo
jurídico é a redução do direito ao direito positivo, identificando-o com o direito positivado – pode ser sob a forma de lei).
Positivismo (jurídico = redução de todo o direito ao direito positivo) e legalismo (positivismo legalista = redução do direito
ao direito positivado sob a forma de lei), mesmo conjugáveis, não são sinónimos.
Legalismo (redução do direito à lei) pode não implicar positivismo – p.e., se direito tiver como única fonte admissível a lei,
será funcionalista (direito é meio para os objetivos externos) e não positivista.
Há experiências de positivismo do século XIX que não eram legalistas, p.e., o positivismo científico/dogmático alemão (a
fonte do direito crucial não era a lei, mas sim o costume) – diferente do francês.
Se do ponto de vista de compreensão da ciência do direito, há uma confluência entre o positivismo legalista francês e o
positivismo dogmático alemão, do ponto de vista das fontes, é diferente – mostra que a institucionalização política do
direito nas duas matrizes (francesa e alemã) foi radicalmente distinta.
Se o positivismo jurídico do século XIX reduzia todo o direito ao direito positivo, isso implicava excluir/abdicar/rejeitar a
referência da fundamentação da validade do direito positivo a qualquer outra entidade que não seja o direito positivo
(fechamento do direito) – esta não é a nossa herança histórica.
Como o nosso primeiro CC é de 1867, não vigorou entre nós o CC francês de 1807, mas inspirou o nosso.
O segundo CC (e último) é de 1966 e tem forte influência da sistematização alemã com origem na Escola Histórica do
direito.
SURGIMENTO DO POSITIVISMO JURÍDICO DO SÉCULO XIX

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Pensar no direito positivo enquanto direito vigente ao longo dos séculos foi distinto.
Consideraremos duas linhas fundamentais quanto à redução do direito ao direito positivo
(positivismo jurídico):
- Problema da fundamentação do direito:
Resposta idealista
Desde o século VIII a. C. que identificamos como referente fundamental uma
resposta idealista (segundo, p.e., Reis Marques) do direito (fundamentado no
direito natural, como um ideal material e estrutural a atingir e a concretizar sob a
forma de direito positivo).
Essa resposta idealista implica que tenhamos o direito natural como fundamento
positivo e como limite (positivo e negativo) do direito positivo admissível.
Este pensamento durou até ao século XIX, fosse ele de índole cosmológica,
teológica ou antropológica.

Resposta positivista
Por outro lado, contraposta à resposta idealista, temos a resposta positivista, que
sendo mais recente, só vem a efetivar-se de modo institucional/decisivo/absoluto no
século XIX.
Diversos tipos de racionalidade, com diferentes horizontes de concretização prática
e diferentes frentes temporais:
Ora, se no arco pré-moderno (desde a antiguidade clássica grega até ao fim da
idade média) o direito é referido a uma racionalidade primeiro cosmológica e depois
teológica, a partir da idade moderna o referente racional passa a ser humano
(antropológico).

DIREITO PRÉ-MODERNO
Quando o referente do direito natural assume a existência do direito natural como
fundamento positivo, consideramos sempre o equilíbrio do cosmos como horizonte
referencial de validade.
A assimilação, no DR e ao longo da idade média, da referência teológica leva-nos a
assumir que o direito positivo (a dita lei humana) veja como ideal de referência
axiológico a manifestação da razão divina.
Determinação do sentido material que o direito deve seguir enquanto direito
positivo (lei humana):
Marco fundamental I de Santo Agostinho:
o Encontramos isto no século IV e V, quando este nos apresenta uma divisão
tripartida da lei que distingue lei humana, lei natural e lei eterna.
o Como a lei eterna é inacessível à inteligibilidade humana, a possibilidade
de compreender o que a lei eterna estabelece faz-se através da lei natural.
o A lei natural é vista como a transcrição na mente humana da lei eterna.
Marco fundamental II de São Tomás:
o Vemos aqui que, mais tarde no século XIII, por inspiração em Aristóteles, a
conjugação entre a matéria leva a afirmação de que a lei natural é a
participação da mente humana na lei eterna.

Estes marcos perduraram, consoante as zonas geográficas, até mais tarde.


Centro e norte da Europa: através dos movimentos de reforma/contrarreforma,
assume mais a cisão entre o ser humano e a fundamentação transcendente.
Península Ibérica: até ao século XVII permanece a relevância da divisão tripartida
que vimos, pois a neoescolástica peninsular faz uma interpretação da divisão
tripartida da lei num sentido direcionado para a relevância da lei positiva por si e
para uma construção volitiva do direito (i.e., mais do que ser a tradução para o nível
da lei humana da lei eterna através da lei natural, em qualquer um desses três níveis
encontramos uma dimensão de vontades) – ideia da lei natural, humana e eterna
como uma manifestação de vontade (imposição volitiva de auctoritas, a quem é
associada uma proposta de potestas). Centro da Europa: autores tendem para a
manifestação da cisão entre a ação humana (e a respetiva fundamentação) e a
determinação transcendente.

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Isto não significa que a referência à transcendência tenha desaparecido, mas que,
numa assimilação do “Deus cartesiano”, passamos a identificar duas grandes
dimensões de configuração e fundamentação da ação humana: uma parte referida ao
horizonte transcendente e outra não.
De facto, a intersubjetividade social vai progressivamente sendo objeto de
justificação pela dimensão racional humana.
O antropocentrismo moderno traz-nos a acentuação progressiva do horizonte de
validade à racionalidade humana.
Não significa que o direito natural tenha desaparecido, mas que a referência à lei
eterna se vai esbatendo na problemática da fundamentação específica do direito (e
não nas outras dimensões da ação humana).
A redução progressiva da secularização ao secularismo vai levar ao
afastamento/rejeição da referenciação transcendente (algo não idêntico em todos os
autores).

DIREITO NA IDADE MODERNA


Se a racionalidade e a fundamentação da ação se tinham assumido como uma reflexão referida a um
horizonte pressuposto autossubsistente (referência cosmológica da polis grega e da civitas romana ou a
referência teológica na respublica cristiana), a cisão que a idade moderna implica estabelece uma
progressiva libertação das “teias” estabelecidas por esse referente, assumindo-se (a partir do renascimento
e da reforma), que o ser humano faz assentar o seu saber e a sua ação na sua construção racional como
causa a sui (gerado dentro de si).
É por isso que Hugo Grócio com a Deuria Bela a Patris estabelece o referente do direito natural como
fundamentação do direito humano, mas assume que o direito natural continuaria a existir mesmo que
Deus não existisse ou que não se ocupasse das coisas humanas.
As duas referências de fundamentação coexistem para âmbitos de inter-relação distintos: cisão
fundamental progressiva entre a fundamentação racional teológica e a fundamentação racional humana.
Significou que, se até aqui a prática ia referida a um horizonte de referência transumano, agora vai
referida a um horizonte de referência humano.
Desde a antiguidade clássica que se assume pensar = conhecer, esta referência nem sempre implicou
uma determinação estritamente epistemológica (pensamento prático do saber agir = prudência ia referido
ao horizonte da sapiência).

DOIS MODOS DE COMPREENDER A AÇÃO:


Neste contexto, a fundamentação da ação prática é referida a um saber
autossubsistente supra-humano traduzido na sophia (sapiência).
Para o saber agir/fazer, o referente era a pressuposição de conhecimento ligada à
episteme de determinação de um objeto por um sujeito.
Desenvolvem-se, com isto, em sentidos diversos, as ciências empírico-constitutivas
que se orientam no sentido da determinação da verdade quanto afirmação da
regularidade dos fenómenos observáveis e a criação de teorias sobre esses
fenómenos, para a dimensão do saber agir onde o referente fundamental é o
referente axiológico que, pressupondo uma autossubsistente verdade, respeita uma
relação de fundamento-consequência.
Fundamentação do saber agir é a linha do pensamento prático que o direito vai
assimilar: pensamento jurídico (ainda que analisado da perspetiva do século XX), já
no império romano, se autonomiza como pensamento específico sobre o direito
enquanto objeto.
No DR, onde encontramos a autonomização do pretor, das actiones, do direito
enquanto disciplina e do pensamento jurídico sobre o direito, encontramos um
sistema pluridimensional (direito não é composto apenas por leis – existindo
também o costume, a jurisprudência e a doutrina) e não temos um positivismo
(direito positivo é fundamental num direito natural – juristas romanos distinguem a
lei natural da lei humana).

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DOIS NÍVEIS DE AUTONOMIZAÇÃO FUNDAMENTAIS:


- tipos de problemas, pois o problema jurídico = problema específico, que exige uma
magistratura específica, já que o direito tem múltiplas fontes, tendo o sistema
jurídico uma dimensão pluridimensional.
Além da lei, há também o costume, a jurisprudência e a doutrina como fontes de
direito.
- pensamento tópico-prático (a partir dos problemas para a construção e integração
das soluções no sistema)
Pensamento tópico-prático-argumentativo, pois parte dos problemas para a
construção fundamentada a partir de argumentos da sua resolução.
Continua a pensar-se assim na idade média, com notas decisivas para aquilo que o
positivismo do século XIX viria a ser.
Que notas?
o P.e. o Corpus Iuris Civiles, que versa sobre várias áreas do direito e vai sendo
progressivamente redescoberto a partir de finais do século XI (alimentando a
escola do pensamento jurídico dos glosadores, no século XIII, e dos
comentadores, no século XIV), sendo crucial depois no positivismo do século
XIX.

Do ponto de vista das fontes, é crucial a identificação do direito como texto (pensar
juridicamente é pensar nos textos e decidir juridicamente é aplicar o conteúdo desses
mesmos textos) e a sua análise – princípio da autoridade dos textos deixa-nos a nota
crucial de que o direito positivista pode ser identificado com textos do passado.
Do ponto de vista do pensamento, surgindo a ciência iuris num sentido prático,
com um pensamento prático e que é dialético (construído com base na
argumentação).
A idade moderna, com a acentuação da relevância da determinação epistémica, traz
que o paradigma da validade de pensamento vai centrar-se nas determinações de
verdade face à intencionalidade epistémica do que ao referente da sapiência.
Há uma confluência no sentido de que a racionalidade (que permite tornar
inteligíveis as observações e confere cientificidade ao pensamento) é a determinação
de verdade epistémica e não de discussão argumentativa-prática.
Se a construção medieval tinha como pressuposto dogmático a referência à
entidade de validade teológica, o pensamento moderno deixa esse referente e
encontra outros: referente fundamental da determinação epistémica de verdade, que
culmina nas propostas das compreensões positivistas da ciência.
Se, no século XIX, o pensamento jurídico quis ser ciência, teria de ter o mesmo
estatuto do pensamento das mesmas ciências e seguir esse paradigma –
racionalidade implica uma conjugação com a compreensão axiomático-dedutiva de
si mesma.
Lateralmente, a esta construção de uma nova racionalidade, verificamos que o
próprio ser humano se autocompreende de modos diversos: na idade moderna, há
um desligamento/desvinculação do ser humano face a uma ordem externa e
transcendente.
Sendo trazido pelo antropocentrismo moderno, implica-se uma progressiva
assimilação do individualismo (ser humano é compreendido e considerado como ser
des-ligado).
A construção do coletivo implica uma racionalidade humana – construção da
societas como resultado da vinculação de vontades livres no contrato social
moderno.

PENSAMENTO PRÉ-POSITIVISTA E POSITIVISMO JURÍDICO Época moderna:


Positivismo: ▪ Direito como uma construção dedutiva feita a
▪ Surge no século XIX; partir de uma racionalidade axiomaticamente
▪ Trata o direito como estando pura e simplesmente identificado como lei, era posto e imposto pelo afirmada;
poder legislativo;
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▪ O homem libertou-se da transcendência da
▪ O direito era um dado pré suposto; ordem teológica medieval e passou a pretender
▪ O positivismo reduz o direito a uma única fonte. construir uma ordem nova a partir de si mesmo;
Pensamento pré positivista → Filosofia prática ▪ Racionalidade sistemática (substitui a tópica
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(A época moderna vem a seguir à medieval)

FATORES DETERMINANTES
O PENSAMENTO MODERNO-ILUMINISTA
Uma nova compreensão da prática
Os grandes autores do pensamento jurídico que estabeleceram as teorias de direito
natural, nos séculos XVII e XVIII, partem de pressupostos escolhidos dentre as
características humanas, observáveis e consideradas universais e intemporais para as
assumirem como axiomas a partir dos quais serão deduzidos os princípios de direito
natural – é assim, p.e., em Hugo Grócio com a sociabilidade, em Samuel Pufendorf
com uma certa fragilidade que conjuga a apetência para a sociabilidade com uma
certa fragilidade inspirada também na compreensão antropológica negativa de
Thomas Hobbes (não um egoísmo, mas sim uma fragilidade associada à
sociabilidade), em Kant com a insociável sociabilidade do Homem como um ponto
de partida.
Mas há uma distinção muito relevante entre estes: enquanto em Grócio, Pufendorf,
Volf e Thomasius o pressuposto vai constituir o axioma a partir do qual se deduzem
os princípios de direito natural (que vai ser encontrado numa característica
empiricamente observável), em Kant (e mais do que em Rosseau) a compreensão da
fundamentação do direito num direito natural, se assumida como uma referenciação
deontológica para o conteúdo do direito positivo, não pode ser empiricamente obtida
– ponto de partida deixa de ser empiricamente observável, sendo contingente nesse
sentido (será o conhecimento obtido antes e através da experiência, a priori).
Neste sentido, para Kant, o direito natural é uma forma a priori, o que lhe confere
vinculatividade. Mais ainda, a referência no direito natural implica a consideração de
um sistema racional de fundamentação autónomo do direito positivo.
Podemos distinguir dois grandes arcos, seguindo Castanheira Neves:
1. no âmbito da fase moderna até ao final do século XVII
Encontramos aqui um direito naturalmente racional – pressuposição de que o
direito é racional, com um ponto de partida obtido pela observação, assumindo uma
característica como universal e intemporal que será o axioma para a dedução de
princípios do direito natural.
Devemos referir também Thomas Hobbes, cuja compreensão axiológica negativa
fazia identificar um certo egoísmo como uma característica empiricamente
observável e suscetível de universalização por parte da racionalidade humana. De
facto, encontramos uma compreensão da ideia de Estado da natureza que implica,
pela natureza egoísta e pela própria fragilidade humana, o Estado de guerra de todos
contra todos.
Desta forma, Hobbes irá projetar no seu Leviatã a ideia de que a superação desse
Estado de anomia/desorganização tem como remédio a constituição de um Estado
forte e absoluto (monárquico ou ligárquico), o que implica que tenhamos a

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pressuposição de que a intersubjetividade se cria através de um contrato onde o ser


humano nasce livre e desvinculado e apenas se vincula por vontade própria na
constituição de uma societas, que surge como remédio para o Estado de anomia que
o Estado de natureza constitui.
Portanto, a passagem do Estado de natureza para o Estado civil/de sociedade vai
concretizar-se num pactum de sujeição (onde os sujeitos aceitam que, para evitar o
Estado de guerra de todos contra todos, se tornem súbditos de um poder absoluto).
Assim, acentua-se a diferença entre esta construção e aquela que encontramos nas
propostas de contrato social que nos são apresentadas em Rosseau e em Kant.

2. Acentuação iluminista do século XVIII (das luzes)

Encontramos aqui, diferentemente, um direito formalmente racional – a dimensão


da referência à natureza enquanto referência empírica é substituída pela referência
racional pura.
Esta diferença, embora residente na razão humana enquanto fundamentação do
direito positivo, faz-se de modos diferentes consoante o horizonte de referenciação
da validade.
De facto, no pensamento moderno-iluminista (nomeadamente em Kant) os
referentes de validade não podem ser empiricamente obtidos, sendo o direito uma
forma pura a priori, que constitui um sistema racional separado do direito positivo.
Os contratos sociais:
o Em Rosseau, a construção do contrato social implica dois pactos diferentes: não
um pacto de sujeição (os sujeitos não se tornam súbditos), mas um pacto de
união/confluência de vontades livres e, na sua consequência, um pacto de
sujeição (que transforma os sujeitos em cidadãos).
Falamos, então, de uma proposta de celebração de um contrato social como modo
de organização social, em que existe uma confluência de vontades livres que, no
exercício dessa liberdade, se autovinculam, assumindo e aceitando que, dessa
confluência, resulta uma imposição a que obedecem livremente (como se a cedência
de liberdade se transformasse num outro tipo de liberdade depois – liberdade
societariamente consonante).
Assim, do contrato social emanaria uma vontade racional e geral (traduzindo a
ideia do bem comum), que se exprimiria sob a forma de lei com características
essenciais (a lei moderno-iluminista) – esta não se confunde com a vontade da
maioria ou com a vontade de todos.

O FATOR ANTROPOLÓGICO (O INDIVIDUALISMO)


 Nova concessão do homem, nova antropologia;
 O homem liberta-se das entidades supra individuais;
 Passa a compreender-se autocentradamente, como ser de autonomia;
 Constrói uma nova ordem a partir de si mesmo – sociedade;
 Dá a si mesmo as normas da sua existência – legislação;
 Atua na sua liberdade racional;
 Hipertrofia a sua autonomia → dá lugar a um individualismo.
O individualismo progressivo resulta, então, da desvinculação do ser humano face à
transcendência.

FATOR CULTURAL
Divide-se em 3 planos
Plano da religião – secularismo:
 Os valores do mundo já não eram só projeções da vontade divina; o
 homem é responsável pelos valores, pela sua história;
 Rutura com a transcendência;
 O homem é responsável pela sua própria história;
 O homem distancia-se de Deus;
 Hipertrofia (absolutização) da secularização → secularismo.

Plano racional – racionalismo:

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 A razão moderna basta-se a si própria, é autossuficiente,


 fundamenta-se a si mesma;
 Arranca de si mesma, para construir o mundo através dos seus
 axiomas;
 Elabora sistemas acabados para todos os domínios do
 conhecimento, incluindo o direito;
 O direito passou a ser puramente racional e só depois surgiu na
 prática;
 A razão moderna é legisladora da sua própria ordem;
 Surgem condições para a afirmação do legalismo;
 Hipertrofia (absolutização) da racionalidade → racionalismo.

Plano da historicidade- historicismo:


 Anteriormente, com a historicidade compreendia-se a história com
 base numa visão de conjunto, não se separa passado, presente e
 futuro;
 Com o historicismo, perde-se o fio condutor da evolução da história;
 Os acontecimentos passam a regular-se separadamente, como
 camadas que acabam por se anular umas às outras;
 Hipertrofia (absolutização) da historicidade → historicismo.

Resulta da secularização (separação entre pensamento jurídico e forma do direito


natural, a transcendência e a sua radicalização), do racionalismo (não a relevância da
racionalidade, mas o progressivo encaminhamento para uma racionalidade
axiomático-dedutiva que se formalizará) e do historicismo (não a historicidade do
direito, mas a ideia de que a progressão em planos que se superam uns aos outros
encaminha o ser humano para um estado de perfeição racional que apenas a
modernidade lhe trouxe e que o pensamento moderno-iluminista poderá assimilar e
concretizar adequadamente)

O FATOR SOCIAL (O CAPITALISMO)


 O homem opta por revelar os seus interesses económicos, pretendendo
satisfazê-los;
 Emerge um novo modelo de produção: o capitalismo (e o direito comercial);
 O homem pretende afirmar-se como homo económicos;
 O homem liberta os seus interesses individuais, uma vez que se libertou das
teias ético-religiosas que o “agarravam”;
 A sua libertação levou à autonomização dos seus interesses;
 Lucro e sucesso como realização pessoal, a acumulação de capital é o seu maior
símbolo;
 Hipertrofia (absolutização) dos interesses → economicismo.

Todo o movimento de desenvolvimento da idade moderna, começando no


renascimento/reforma, implica que do ponto de vista económico se vá instaurando o
liberalismo: o século XIX será o cerne dessa perspetiva.
Essa pressuposição será conjugada com a assunção racional de que o direito não se
compromete com a intenção de quem age dentro da forma/determinação formal que
a lei lhes concede.

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O FATOR POLÍTICO (O CONTRATUALISMO)


 O homem é um ser livre, de vontade, racional, que prossegue os seus interesses.
Como consegue então construir um mundo de convivência social?
 Sociedade – criação humana com base no contrato social;
 Pensou-se o contrato social como uma vinculação das liberdades, por afirmação
das próprias liberdades, com o objetivo de gerir os interesses e resolver o
problema da convivência social;
 Assenta na vontade, que afirma a liberdade e igualdade dos contratantes, onde
cada um satisfaz os seus interesses;
 Para:
o Hobbes: o contrato visa assegurar a segurança individual (dimensão dos
interesses);
o Locke: direitos naturais anteriores à constituição de sociedade, p.e.,
liberdade;
o Rosseau: assegurar autonomia individual e coletiva através de uma
liberdade em condições de igualdade;
 Como se garante que na passagem do estado de natureza para o estado social
nós permanecemos tão livres e iguais como éramos antes? Através da legislação
– regras;
 Só é direito o que o contrato social determina – as regras de convivência que o
definem são leis;
 As regras eram pré-ordenadas a garantir e coordenar as liberdades.
 As leis tinham de ser:
o Gerais – iguais para todos, “atos de todo o povo para e sobre todo o povo”;
o Abstratas – somente na abstração pode haver dedução; tratam de matérias
comuns ao irrelevarem a individualidade e especificidade das situações;
não considera casos concretos; prevê tipos de problemas/situações em
abstrato e responde-lhes em abstrato;
o Formais – a lei deve limitar-se a impor limites de ordem formal
(formalidade em sentido estrito) e não definir conteúdo sobre como
poderemos usar esse direito.

CONTEXTO IDEOLÓGICO
 Duas ideologias pautaram o surgimento do positivismo;
o Liberalismo – afirma a liberdade “acima” da igualdade, sobrevaloriza as
garantias individuais, direitos naturais, direitos fundamentais (perspetiva de
Locke);
o Democracia – afirma a igualdade “acima” da liberdade, sobrevaloriza a
igualdade, vontade da maioria, participação de todos na formação da
vontade geral (perspetiva de Rosseau);

 Estes dois referentes, quando absolutizados, não são compatíveis;


 O problema do estado foi fortemente marcado por esta tensão;
 Estas duas ideologias acabaram por se sintetizar: deram origem ao estado
representativo demo-liberal;
 Com este, a vivência social seria definida por leis, que, com a sua generalidade
e abstração, podiam concorrer para realizar a liberdade e igualdade entendidas
como valores formais;
 O pensamento estava pronto, mas era ainda apenas um projeto, pelo que
precisava de um facto político que concretizasse essa construção ideal: a
Revolução Francesa.

A conjugação das ideologias liberal (afirmação da liberdade dos sujeitos) e


democrática (progressiva institucionalização da legitimação do poder no povo)
mostram-nos que tudo se encaminha para que, por via do facto político da
Revolução Francesa, se estabeleçam as condições para a institucionalização do ideal
moderno-iluminista do Estado, que será o Estado de Direito de legalidade formal
(Estado demoliberal).

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Esta transição, na medida em que representa uma cisão com o direito natural, vai
acabar por conduzir ao positivismo.

FACTO POLÍTICO
A Revolução Francesa tornou este pensamento realidade, instituindo o estado de
legalidade formal.
Quando nos centramos no pensamento moderno-iluminista, vimos a codificação a
transformar o direito natural em direito positivo. Agora, acabamos de ver a
revolução como o mediador necessário da realização histórica deste pensamento,
levando-o à efetivação na prática política.

A CONCEÇÃO RACIONALISTA DO DIREITO, PROJETADA NA


COMPREENSÃO DA LEGALIDADE: A NORMA RACIONALMENTE GERAL,
ABSTRATA E FORMAL
Que características tem a lei para que o seja, segundo a corrente moderno-
iluminista?
o Generalidade;
o Abstração.

Ainda segundo Rosseau, estas duas traduzem a ideia de que a lei é um ato de todo o
povo para todo o povo sobre uma matéria comum, existindo uma conjugação do
ideário liberal com o ideário democrático.
Traduzem dois sentidos de universalidade racional da lei. Quais sentidos? A
generalidade quanto aos sujeitos, pois a lei é geral porque se aplica a todos. A
abstração quanto à matéria, pois a lei é universal quanto ao conteúdo, não versando
casos concretos (faz uma padronização da realidade para determinar um certo tipo
de situações a que se dirige).

o Formalidade ( em sentido estrito)


Em sentido estrito porque dizer que o direito é formal (descomprometido de
conteúdo) dirá pouco quando confrontado com este sentido estrito.
Neste sentido, falamos da formalidade que Kant faz corresponder à lei jurídica
(para a diferenciar da lei moral). Se para Rosseau a ideia de contrato social era tão
fundamental para a institucionalização dos poderes, para Kant era uma exigência
racional que vai institucionalizar os poderes de forma tripartida e, simultaneamente,
considerar o poder legislativo o poder superior que cria o direito.
Moralidade e Direito são conceitos presentes na teoria de Kant.

Mas o que significa, para Kant, dizer que a lei moral é formal e que a lei jurídica é
formal?
São sentidos diferentes de formalidade.
Especificamente, enquanto a lei moral é autónoma (i.e., o sujeito é autónomo
quando a sua vontade é legisladora de si própria, sendo uma ação moralmente boa
aquela que se submete ao imperativo categórico – na moralidade kantiana não se
impõe um conteúdo, o “faz isto porque é bom”, mas considera-se que a ação é
moralmente boa quando é tomada por dever/cumprimento do imperativo categórico,
o “age de tal modo que a máxima da tua vontade possa ser considerada como um
princípio de legislação universal/age de tal modo que o critério que te orienta possa
ser um critério para todos, em todo o tempo e em todos os lugares”), o direito é
formal em sentido diverso pois basta-se com a conformidade externa dos
comportamentos às suas prescrições.
Por outras palavras, a vontade livre, aquela que é legisladora de si própria e que
implica o cumprimento do imperativo categórico, não é arbítrio (fazer o que se quer,
dado que consciência tem de aderir a esse imperativo categórico).
Então, o direito também não se comprometerá com o conteúdo dos arbítrios, mas
tratará da forma na relação entre os arbítrios, i.e., vai regular as esferas nas quais
cada um age conforme entender (a sua formalidade basta-se com o cumprimento
externo, mesmo que a consciência não adira à intenção).
O direito é coercível, a moralidade não o é.

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De facto, cabe à lei delimitar as esferas dos sujeitos sem se comprometer com a
intenção da atuação que assumem, desde que os limites não sejam tocados.
A lei iluminista, no sentido da sua formalidade, é uma delimitação externa quase
pela negativa (limite que estabelece o que não pode ser ultrapassado), onde o sujeito
agirá conforme o seu arbítrio que não é suscetível de ser compreendido como ação
moral.

A “ESCOLA HISTÓRICA” E O CONCEITUALISMO SISTEMÁTICO

Na Alemanha, apareceu a escola histórica, que visava combater o


legalismo emergente em França (Escola da Exegese).
A Escola Histórica opôs-se ao legalismo da Escola da Exegese, afirmando que o
direito não era o produto de uma razão abstrata e universal, mas sim a manifestação
do espírito de um povo, sendo o seu conteúdo determinado pelo passado de uma
nação. Era impossível existir uma ordem jurídica ou social a-histórica, regida
unicamente por leis naturais e universais, motivo pelo qual criticaram não só a
Escola da Exegese como também a Escola Clássica da economia. Esta ideia de
historicidade foi principalmente tutelada por Savigny, mas influenciou também os
trabalhos de Marx, seu aluno.
Portanto, temos a Escola Histórica na busca das origens romanas do direito
germânico.
Nesse sentido, temos a acentuação da dimensão da historicidade constitutiva da
perspetiva material (cimento agregador que cria o direito) e a acentuação da fonte
fundamental no costume e não na lei.
Isto leva a que a compreensão do sistema jurídico seja diferente e que todo o modo
de encarar a construção do direito só venha, mais tarde, a acompanhar a construção
que ocorreu em França.

Segundo a professora, tal não significa que houvesse um atraso no


desenvolvimento da ciência jurídica, pelo contrário, verificou-se a sistematização
dos elementos de interpretação que hoje conhecemos (elemento gramatical,
histórico, sistemático e teleológico), segundo Savigny.
Uma das grandes influências da Escola Histórica foi o romantismo, uma corrente
literária e filosófica que serviu de reflexo do individualismo mas que, em vez de se
traduzir numa racionalidade absoluta, traduziu-se em nacionalismo. Afirmou assim
um idealismo alemão.
Os filósofos da Escola Histórica começaram a procurar o direito nas instituições
culturais da nação (sendo que só depois de se criar, a partir daí, o direito alemão é
que se poderia pensar em codificá-lo), fazendo do direito uma ciência histórica. Mas
aquilo que podia ser a marca de historicismo que faltava à Escola da Exegese acabou
por se degenerar numa absolutização do contributo da história para o direito: mais
uma vez, o jurista perdia o poder de criação do direito, voltando ao trabalho de
hermeneuta, mas em vez de interpretar o direito natural interpretava e desvendava a
nova fonte primária de direito: o Volksgeist, o espírito de um povo.
Ao contrário da Escola da Exegese, que afirmava uma única fonte de direito, a
Escola Histórica identificou outras fontes de direito secundárias à história, como a
legislação, a jurisprudência (no sentido de ciência do direito) e o costume. Mas na
sua tentativa de apreender o verdadeiro objeto da ciência jurídica, a Escola Histórica
procurou investigar apenas as principais instituições jurídico-culturais de uma nação,
procurando o fundamento do seu “direito real” no direito romano, mas privando-o
de muitas das suas características mais marcantes.
Na Escola Histórica vemos o direito enquanto normatividade, mas o modo e o
pensar não é tão diferente assim: como vimos, o pensamento jurídico para o
positivismo quis ser ciência e teve de seguir os métodos das outras ciências para isso
– isto foi comum tanto em França como na Alemanha.
CONCLUINDO:
Temos dois movimentos distintos que confluem na intencionalidade teorética
(epistemológica, cognoscitiva e de construção teorética/de enunciados
progressivamente mais gerais e abstratos e de induções dos dados particulares) que

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conferem ao pensamento jurídico – tudo se encaminha no sentido de dizer que o


direito é o direito positivo, vigente e institucionalizado.
O direito natural perde a relevância de fundamentação material, com o surgimento
do positivismo nestes dois contextos.
Segundo a professora, tal não significa que houvesse um atraso no desenvolvimento
da ciência jurídica, pelo contrário, verificou-se a sistematização dos elementos de
interpretação que hoje conhecemos (elemento gramatical, histórico, sistemático e
teleológico), segundo Savigny.
São, de facto, diferentes porque, em França, temos o positivismo legalista (porque
o direito parte da lei) e, na Alemanha, é o positivismo científico-dogmático (porque
o direito parte também de normas legais, mas não necessariamente delas, sendo a
fonte de direito fundamental o costume).

O POSITIVISMO EPISTEMOLÓGICO – OS DUALISMOS METODOLÓGICO E


INTENCIONAL (SUB SPECIE IURIS)

Com uma breve referência ao positivismo epistemológico, i.e., a pressuposição de


que o direito é dado ao sujeito cognoscente como objeto cognoscível e cabe a esse
sujeito cognoscente, que será o interprete e o jurista decidente do pensamento
jurídico, conhecê-lo, interpretá-lo, elaborar a partir dele princípios gerais de direito e
conceitos e aplicá-lo.
Se o pensamento jurídico foi prático durante todo o arco pré-moderno e durante
boa parte da idade moderna, na transição para o positivismo vai-se assumir o
pensamento como uma determinação de verdade sobre um objeto (ideia de que
pensar é conhecer).
Esta ideia já nos acompanha há muito: desde a Grécia antiga, onde tinha um
referente de verdade que também tinha um referente de validade material (a sophia),
passando por Roma (pela sapiência), pelo dogma teológico como pressuposição de
validade e valor que depois se vai esbatendo no sentido de que pensar continua a ser
conhecer mas também é interpretar os textos de autoridade, na Idade Média.
Neste sentido, pensar é conhecer só que a ligação entre esse conhecimento que é
traduzido na desimplicação das determinações assumidas dogmaticamente, seja na
sapiência seja na referência teológica, vai sendo substituído por uma referência
racional humana que permanece como fundamento de uma racionalidade prática
(i.e., continuamos a assumir que pensar é conhecer, mas que esse conhecimento
conjuga a dimensão epistemológica e prática – o direito é uma prática e o
pensamento jurídico é um pensamento prático).
A transição para o pensamento moderno-iluminista vai progressivamente conduzir
a uma abstração face ao objeto pensado (e, com isso, uma formalização da
racionalidade) que se distingue/separa do objeto pensado – isto associado ao
cumprimento das determinações da cientificidade do pensamento que o positivismo
traz, i.e., a determinação epistemológica para o pensamento jurídico que, com isso,
deixa de ser prático e se assume como um pensamento teorético-cognitivo (teórico e
determinado pela base cognoscitiva e a intencionalidade epistemológico-científica, o
conhecer e elaborar sobre o objeto conhecido enunciados de verdade).
Estas são notas cruciais para compreender que, uma vez verificada a transição
política para o Estado demoliberal, todas estas propostas se assumam no
enquadramento dessa mesma compreensão do Estado e, com isso, aquilo que era a
proposta moderno-iluminista vai transformar-se em construção racional
institucionalizada, legitimada por um poder e visando decisivamente a sua
prescritividade.

Dualismo metodológico:
▪ Por um lado, temos uma técnica: interpretação da lei e aplicação e as decisão das
questões de quid iuris → tarefa do juiz, imediatamente prática;
▪ Por outro lado, temos a teoria da ciência do direito: o pensamento jurídico fornece,
para auxiliar, uma teoria da interpretação e aplicação das leis pré criadas pelo poder
legislativo.
Dualismo intencional:
▪ A intenção/tarefa prática do direito era deixada ao poder legislativo;
▪ A intenção teorética do discurso decisório era deixada aos juristas que deviam apenas Pág. 1
conhecer esse direito objetivado nas leis, interpretá-lo segundo a teoria da ciência do
direito e aplicá-lo depois lógico-objetivamente, de modo neutral.
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COORDENADAS CARACTERIZADORAS DO POSITIVISMO


Apesar de o positivismo ter a sua origem em fatores do pensamento moderno-
iluminista, transformando as ideias originais, mas ao fim de algum tempo o
pensamento jurídico positivista desenvolveu as suas próprias coordenadas, partindo
de alguns valores e ideias do modernismo iluminista (o individualismo, a
racionalidade, a perfeição da lei, etc.) e levando-os a extremos.

COORDENADA POLÍTICO-INSTITUCIONAL
O positivismo jurídico identifica-se principalmente com o Estado demo-liberal.
Este Estado era uma efetivação do contratualismo individualista, baseando-se nos
valores da liberdade e da igualdade, exigindo que as normas que regulavam a vida
em sociedade fossem gerais, abstratas e formais, sem chegar a conter nenhum
conteúdo normativo específico. Por isso se diz que este era um Estado-de-direito
meramente formal. Este Estado guiava-se por três princípios.
1. princípio da separação de poderes
Este vinha sendo construído por vários autores, nomeadamente John Locke,
Montesquieu e Kant, em sentidos diferentes. Agora, irá projetar-se numa efetiva
atribuição de cada poder aos sujeitos que o titulam de modo constitucionalmente
consagrada e legislativamente estabelecido.
Esta separação de poderes, que permite distinguir o poder legislativo, executivo e
judicial, assume-se como, essencialmente, distinguido nestas três vertentes,
originariamente de forma a evitar ingerências recíprocas, i.e., no sentido de
estabelecer um sistema de pesos e contrapesos com uma divisão quase empírica dos
poderes, no sentido de que os poderes devem limitar-se reciprocamente (segundo
Montesquieu) quase que negativamente (no sentido de que uma delimitação que visa
evitar que os poderes extrapolem as suas fronteiras).
De facto, ao poder legislativo cabia criar direito em forma de lei; ao poder
executivo cabia a dimensão administrativa e a execução do que fosse determinado
pela lei; ao poder judicial cabia dizer a lei, isto é, aplicar em concreto aquilo que a
lei em geral e abstrato determinasse.
Para Montesquieu, existe uma ligação entre estratos sociais e distribuição dos
poderes: o poder legislativo, nas diferentes câmaras, representaria a aristocracia e o
povo (reside aqui uma ideia de democracia); o poder executivo representado pelo
monarca; o poder judicial, pelos diferentes tipos de jurisdição, não seria
verdadeiramente representativo, mas, de certo modo, nulo (por não ser um poder
constitutivo e sim declarativo, cuja relevância da sua atuação reside na sua
independência).
Depois, segundo a construção kantiana, a exigência racional da delimitação passa a
residir na assunção das competências, onde, pela positiva, teremos os três poderes
enquanto constituição do Estado, por excelência, que garante o poder criativo que
cabe ao legislador e a independência judicial.

2. o princípio da legalidade
Este determina que o direito é criado sob a forma de lei, o que nos traz as noções de
reserva de lei e de preferência de lei (i.e., em princípio o direito é preferencialmente
criado sob a forma de lei).
Há matérias sobre as quais só a lei pode criar direito – mantemos, em parte, essas
matérias na reserva de competência legislativa da AR (absoluta, no art. 164º da
CRP, e relativa, no art. 165º da CRP).

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E porquê? Porque a legitimação (democrática) é soberana na construção do direito


sob a forma de lei.
Existem momentos e movimentos positivistas que nem admitem sequer outra fonte
de direito que não a lei, p.e., o legalismo positivista centra o direito positivo na lei.
Nota:
- Não confundir o positivismo jurídico (identificação do direito com o direito
positivo e a ausência de fundamentação do direito noutras ordens normativas, como
o direito natural) e o positivismo legalista (identificação do direito com a lei);
- Não esquecer que há outros positivismos (p.e., o alemão que vimos anteriormente
e que não assenta exclusivamente na lei pois admite outras fontes de direito);
- Ser legalista não garante que estamos perante um positivismo como o do século
XIX (p.e., existem legalismos finalistas – reduções do direito económico, social, etc.
que podem assumir como única fonte do direito a lei que são legalistas e não
positivistas no sentido do século XIX. – se o direito for instrumento para a
realização de objetivos externos, deixa de existir um descomprometimento com o
conteúdo, contudo podemos assumir que apenas a lei é fonte desse direito);
- Os formalismos que o século XIX nos legou não foram apenas normativistas-
legalistas (como o positivismo francês), pois também há formalismos nos sistemas
de common law, p.e..
- Positivismo alemão não foi legalista mas foi normativista porque, do direito
consuetudinário a ciência do direito elaboraria proposições normativas gerais,
abstratas, formais e com hipótese/estatuição que eram objeto do direito.
- No positivismo legalista francês temos uma conjugação de normativismo,
legalismo e positivismo.

3. princípio da independência judicial


Este leva-nos a considerar o poder judicial como um poder, de certo modo, nulo
(como disse Montesquieu).
Ser nulo não significa que tenha a sua relevância reduzida, mas no sentido em que,
para além de não representar nenhuma classe social, assume a função de aplicação a
lei (i.e., ao juiz cabia apenas declarar direito através da sua aplicação lógico-
dedutiva).
Dizer que os juízes apenas estão submetidos à lei garante a sua independência e
autonomia, embora o desonere da sua tarefa.
Mais do que isso, quando Montesquieu propõe que ao juiz, p.e., não devia caber a
interpretação/problematização do sentido das normas e que as dúvidas deveriam ser
remetidas para o poder legislativo (problema da interpretação autêntica) fá-lo com o
objetivo de proteger o juiz, dizendo que este é a mera “boca que pronuncia as
palavras da lei”, e não reduzir a sua relevância.
Se, de facto, a jurisprudência judicial não é, neste contexto, considerada fonte do
direito, a verdade é que continua a ser através da aplicação lógico-dedutiva que o
direito é posto aos sujeitos vinculativamente.
Isto significa que quando considerarmos o método jurídico positivista iremos
concluir que a aplicação da lei é um momento técnico, i.e., nesse momento todos os
problemas de interpretação de uma norma legal já estarão resolvidos.

COORDENADA ESPECIFICAMENTE JURÍDICA


 o direito identificado com a lei e o sentido moderno-iluminista da lei (norma
geral, abstrata, formal e imutável)

Esta coordenada diz respeito à compreensão da lei.


No positivismo legalista francês o direito identifica-se com a lei.
Que lei é esta?
Poderemos dividi-la em dois sentidos:
• institucionalmente, é o resultado da atuação do poder legislativo (sendo
imperativa)
• científica/dogmaticamente, é vista como uma norma (jurídica e legal)
Que norma?
Norma enquanto comando/orientação para a ação.

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A norma jurídica e legal que é um enunciado de universalidade racional e cuja


validade aí reside e é composta por hipótese/estatuição, tendo por características
fundamentais aquelas que herdou do pensamento moderno-iluminista (a
generalidade, a abstração e a formalidade a que vem associada a permanência e
imutabilidade, que garante, por um lado, a manutenção do ideário que
institucionalizou as revoluções liberais, e por outro lado, a certeza das soluções
jurídicas).
Enquanto para o pensamento moderno-iluminista, a generalidade (enquanto
universalidade dos sujeitos), a abstração (enquanto universalidade do conteúdo) e a
formalidade (enquanto descomprometimento da intencionalidade), agora são
características atualmente impostas – a lei vale por ser lei, do ponto de vista
imperativo, enquanto norma, e apenas é norma se cumprir estas características.
Conclusão:
De facto, o direito identifica-se com a lei e com um certo tipo de lei; se até aqui
esse tipo de lei era um enquadramento racional externo, agora, por ser esse
enquadramento racional externo, é a razão para a ação e a fonte de legitimação e
móbil de ação.
A lei, no positivismo, é a legitimação e a definição da ação intersubjetivamente
relevante do ponto de vista do direito.
Por isso, é a projeção, pela via da institucionalização do Estado demoliberal, do
ideário da lei moderno-iluminista, continuando a manter as características
fundamentais que vimos.
A separação de poderes que o Estado demoliberal operou garantiu que a criação do
direito caberia exclusivamente ao legislador e a sua aplicação exclusivamente ao
poder judicial, ao ponto de se considerar que os juízes apenas declaram/aplicam
direito.
Agora é, então, o poder legislativo institucionalizado que estabelece a norma no
sentido moderno-iluminista, institucionalizando-a como o móbil legitimante para a
ação.
Esta coordenada liga-se com a axiológica porque é essa lei geral, abstrata, formal e
imutável que vai garantir validade ao direito.

COORDENADA AXIOLÓGICA
A validade concedida ao direito não é, agora, substancial/material.
Segundo uma axiologia puramente formal, a validade do direito resulta da
universalidade racional das normas (uma norma é válida se for geral, abstrata,
formal, imutável e composta pela estrutura hipotético-condicional), que constitui o
direito (sob a forma de lei) e lhe garante validade.
Consolidando…
A formalidade da lei, segundo a distinção entre moralidade e direito de Kant, significa genericamente
a ausência de imposição de conteúdo e a mera delimitação de fronteiras onde os sujeitos poderão
agir conforme o seu arbítrio (opostamente à lei moral, onde existe uma exigência de adesão da
consciência ao imperativo categórico).
Esta formalidade é distinta da formalidade associada ao direito que trata da sua exterioridade: a
interioridade moral e a exterioridade do direito, que nos é imposto de fora e se basta com a
conformidade externa dos comportamentos às suas prescrições.

A lei jurídica é formal porque não faz relevar a intenção com que os sujeitos atuam; a lei moral é
autónoma porque é legisladora de si própria (o sujeito impõe à sua consciência o cumprimento da
norma moral), o direito é heterónomos porque não compromete a realização da ação livre e
moralmente boa mas apenas regular os arbítrios (e não o seu conteúdo), consoante o horizonte da lei
geral de liberdade.
A imutabilidade aparece-nos em dois planos: o plano ideológico-político e a garantia da certeza das
decisões jurídicas (lei ser imutável é um fator de segurança).

o a igualdade perante a lei e a certeza do direito


Neste ponto, os valores que estão em causa são a igualdade perante a lei, que é
garantida por essas características de universalidade que vimos (todos são iguais
perante a lei, por isso esta aplica-se a todos).

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Simultaneamente, a igualdade perante a lei garante a segurança enquanto certeza


do direito.
Estas são duas características cruciais para a compreensão desses dois valores aqui
vistos num sentido puramente formal.

o carácter formal desta axiologia


A axiologia é vista de um ponto de vista formal e até procedimental.
O direito é válido se for, primeiro, criado segundo o procedimento
institucionalmente estabelecido para tal e se for como lei geral, abstrata, formal e
imutável porque isso garante a igualdade perante a lei e a segurança do direito.
Posteriormente, verificaremos que esta igualdade puramente formal perante a lei
acabou por desconsiderar muitas desigualdades materiais. Tal levará a que, na
superação do positivismo, vejamos a afirmação de um sentido de igualdade material
complementar à igualdade formal que o ideário moderno-iluminista liberal afirmou.
Já quanto à certeza do direito, veremos que falar de certeza/segurança do direito é
falar, sobretudo, da garantia da existência e estabelecimento de consequências para
as questões juridicamente relevantes. Contudo, em superação à perspetiva
positivista, para lá da construção da certeza/segurança do direito, é preciso
pensar/falar/tratar do problema da certeza/segurança dos sujeitos perante o direito.
Consequentemente, temos uma relação específica e bem delineada entre o direito e
o poder. Se isso tem sido claro até agora, será ainda mais notória de uma outra
coordenada, a funcional.

COORDENADA FUNCIONAL
Esta vai dirigir-se à função desempenhada pelo direito, por um lado, e pelo
pensamento jurídico, por outro.
Durante todo o período pré-positivista, dominou uma compreensão de que o direito
é uma ordem normativa prática e o pensamento jurídico é um pensamento
intencionalmente prático.
Já na viragem do pensamento moderno-iluminista para o positivismo, com a
assimilação das exigências racionais das disciplinas empírico-analíticas, o
pensamento jurídico, querendo ter o estatuto de ciência, teve de assumir-se como
ciência na relação entre um sujeito e um objeto (em que o sujeito é cognoscente o
objeto é o objeto conhecido).
Esta cisão gera um dualismo normativo-intencional e metodológico.
O dualismo normativo traduz-se na afirmação de que o direito é criado e
pressuposto como dado/objeto cognoscível, enquanto que o pensamento jurídico é o
conhecimento desse direito.
Por outras palavras, traduz-se em continuar a reconhecer que o direito é uma ordem
normativa prática (constituída legitimamente pelo poder legislativo e pressuposta)
criada e dada ao pensamento jurídico, que surge como um pensamento teorético-
cognitivo e lógico-apofântico a quem cabe o conhecimento desse objeto dado e a
construção de enunciados de universalidade explicativa (teorias) sobre esse mesmo
objeto. Com isto, o direito é criado pelo poder politicamente legitimado para tal e a
ciência do direito assume-o como um pressuposto.
Temos com isso, consequentemente, um dualismo intencional, porque a função que
o pensamento jurídico assume é, agora, a de estabelecer o conjunto de afirmações
sobre a regularidade de fenómeno direito (enquanto objeto dado cognoscível) e, por
isso, se o direito é intencionalmente prático o pensamento jurídico é
intencionalmente teorético.
Este dualismo normativo-intencional projetar-se-á no dualismo metódico: o direito
é, no sistema jurídico, constituído, assumindo-se como uma entidade racionalmente

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Introdução ao Direito

autossubsistente e como objeto da ciência do direito. Por isso, o momento da criação


do direito é intencionalmente distinto dos momentos da sua construção hermenêutica
e conceitual e da sua aplicação.

Conclusão:
Temos de considerar a relação entre o direito e o poder, no sentido de que o direito
é criado por um poder legitimamente estabelecido para tal e, uma vez criado, é, para
o pensamento jurídico, pressuposto.
O direito é um ordenamento normativo prático e o pensamento jurídico é um
pensamento teorético que visa ser ciência e, por isso, tem de cumprir as exigências
das ciências empírico-explicativas na conceção positivista do século XIX.
Significa que o direito é criado pelo legislador e vai ser tratado pela ciência do
direito como um objeto cognoscível.
Se a intenção do direito é prática (porque regula a vida social), a intenção do
pensamento jurídico é teorética (porque é a construção de uma ciência do direito).
• Dualismo normativo: o direito é criado pelo poder legislativo e não pelo
pensamento jurídico ou pelo poder judicial;
• Dualismo intencional: o direito é intencionalmente prático e o pensamento jurídico
é intencionalmente teorético;
• Dualismo metódico: transitamos para a próxima coordenada;

COORDENADA EPISTEMOLÓGICO-METODOLÓGICA
De facto, o método jurídico positivista que encontramos na confluência das
propostas de duas escolas, implicava alguns momentos fundamentais numa
construção hermenêutica, primeiro, e científica, depois, bem como um momento
técnico de aplicação.
Nos dois primeiros momentos (relacionados entre si), estamos no âmbito da
intenção teorética do pensamento jurídico – a ele cabe pensar e interpretar (momento
hermenêutico) o direito pré-dado e, subsequentemente, a construção teorética e
conceitual sobre o objeto (momento científico), onde já teremos o direito objetivo
enquanto direito cientificamente tratado em princípios gerais de direito e em
conceitos.
Já no terceiro momento, encontramos a aplicação do direito pré-constituído e já
hermenêutico-cientificamente tratado.
Neste sentido, existe uma cisão lógica e cronológica entre o momento da
interpretação/construção conceitual e o momento da aplicação.
A aplicação é tida como cientificamente aproblemática porque todas as questões
referentes à elaboração científica e sentido do direito já estão tratadas.
Isto não significa que a norma não seja interpretada e que o juiz ou outro operador
jurídico) não interpretasse a norma, mas sim que a interpretação era feita num
momento anterior ao momento da aplicação.
Que aplicação?
A aplicação lógico-dedutiva das normas no positivismo do século XIX, seja ele
legalista ou científico-dogmático.
Isto é, a aplicação é considerada como uma operação de lógica formal que é feita
através da convocação de um silogismo jurídico, onde teremos uma premissa maior,
uma premissa menor e a conclusão.
- A premissa maior é a norma jurídica.
- A premissa menor é a subfunção do facto à hipótese da norma (só faz sentido
falar de uma relação entre facto e norma se o facto for uma espécie em concreto do
género que a norma descreve em abstrato).
Temos, então, uma relação entre factos e normas que é ajuizada.

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Isto significa que as características fundamentais do positivismo do século XIX se


concentram nestas cinco coordenadas caracterizadoras.

A ATUAL SUPERAÇÃO DO POSITIVISMO JURÍDICO


FATORES DO CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL E POLÍTICO-SOCIAL

À medida que fomos avançando na análise das notas caracterizadoras do


positivismo jurídico do século XIX demos conta que, em cada uma delas, há
afirmações postas em causa pelas correntes discordantes do positivismo.
Assim, ponto por ponto e face a cada uma das coordenadas, encontraremos
argumentos contrários que visam rebater essas afirmações essenciais do positivismo
do século XIX.
A proposta que seguimos, partindo das lições de Pinto Bronze, leva-nos a
identificar fatores de cariz cultural e político-social que procurarão conjugar a
referência a um novo sentido de cultura e a uma nova intencionalidade político-
social.
Fundamentalmente, está em causa a análise de uma nova antropologia, uma nova
compreensão quanto à racionalidade e quanto à intencionalidade político-social.
Sabemos que esta superação do formalismo do positivismo jurídico, para além de
não ser unívoca, não apagou as características do mesmo.
Desde logo, o intelectualismo científico que dominou o pensamento positivista,
seguindo o paradigma das ciências da natureza (empírico-experimentais/analíticas),
a que correspondeu o pressuposto fundamental da racionalidade formal do contexto
liberal foi sendo superado e posto em crise, nomeadamente no que diz respeito à sua
dimensão empírico-analítica, filosófico-matemática e lógico-apofântica.
Especificamente, consideramos que a racionalidade privilegiada pelo positivismo
foi, desde a sua afirmação, criticada do ponto de vista da fundamentação do direito
que convocava (abdicando da referência a um direito natural e, portanto, afastando
as perspetivas jusnaturalistas e moderno-iluministas, para afirmar que o direito
positivo não necessitava de qualquer fundamento fora dele próprio, bastando-se a si
mesmo na sua racionalidade e prescritividade formal).
Enfrentamos, assim, a crítica à perceção de que a racionalidade tem como único
paradigma o cientismo.
Para esse efeito, vários fatores contribuem. Porque, mesmo que crítica à construção
formalista advenha de diversas áreas do conhecimento e se desenvolva em diferentes
sentidos, existe alguma confluência.
Nesta viragem do século XIX para o XX, existe a constatação de que a
consideração dos sujeitos como formalmente iguais, livres e desvinculados,
relacionando-se se e na medida em que tenham interesse nisso, deixa veladas muitas
desigualdades e injustiças materiais.
Por isso, considerar que os problemas da vida prática são suscetíveis de ser
resolvidos como se de problemas científicos se tratassem é uma redução da realidade
a factos (fenómenos cognoscíveis e determináveis cientificamente).
Mas a vida não é só isso. Por isso, há uma espécie de novo renascimento que vem
de vários movimentos, como p.e., o vitalismo, o intuicionismo, o existencialismo, a
fenomenologia e outros posteriores que encontraremos na construção da
intersubjetividade.
Aqui, o objeto do nosso estudo implica tomar consciência de que, ao lado da
determinação epistemológica da racionalidade (i.e., da dimensão teorético-
cognitiva), há uma dimensão de compreensão a que vai ligada a racionalidade
prática.

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Portanto, há uma diferença fundamental que Kant já tinha estabelecido de modo


indelével: para lá da dimensão epistemológica da determinação teorético-cognitiva,
temos a dimensão prática da racionalidade que não apela ao conhecimento de um
objeto, mas à compreensão/pensamento concreta sobre a ação.
Para além disso, verifica-se a determinação cognitiva das ciências, que sofrerão
uma alteração no seu paradigma entre sujeito e objeto e assumirão uma
discursividade comunicativa com uma relevância fundamental que veremos a seguir.
Assim, a diferenciação entre a dimensão teorética e a racionalidade prática, é ainda
hoje muito discutida, com o objetivo de compreender a distinção entre a
racionalidade (determinação lógico-científica) e a razoabilidade (questão
compensatória na ausência da racionalidade para a compreensão do sentido).
Na perspetiva que analisamos, uma sem a outra não fazem sentido, pois não há
apenas a racionalidade teorética ➜ o cerne da superação é a racionalidade prática,
ao lado do logos teorético, bem como a assunção e desenvolvimento das disciplinas
hermenêuticas enquanto filosofia prática.

UMA NOVA CULTURA


A ideia de que a interpretação da cultura, mesmo que a víssemos na referenciação
da tradição enquanto um texto hermenêuticamente determinável, tem implicações
reflexivas práticas.
Assim, a sua constituição não depende apenas de determinações lógico-teoréticas.
Esta transição da perspetiva da cultura irá manifestar-se em vários movimentos:
filosófico-culturais, artísticos (a afirmação da especificidade da obra de arte face à
possibilidade de reprodução de imagens que, na época, a fotografia começava a
permitir, o que nos leva à transição do realismo para o surrealismo ou do
impressionismo para o pós-impressionismo), etc..
Esta projeção estética da compreensão do singular, do único e do concreto é tão
relevante que vários autores escrevem sobre a perda que a reprodução automática
provoca quando se perde a ligação direta entre o autor e a obra (com a reprodução
em massa, p.e.)

UMA DIFERENTE PERSPETIVA ANTROPOLÓGICO – CULTURAL


Assim, enfatizamos que, neste contexto, a afirmação da individualidade da
dimensão estética é transponível para a concretização do ser humano na realidade.
A ideia de que ao se considerar que o sujeito liberal burguês é predefinido, em
geral e abstrato, como um ser livre/desvinculado que estabelece ligações em função
do interesse da realização da sua autodeterminação e está, simultaneamente,
padronizado em função de uma generalidade, abstração e formalidade consideradas,
se perde toda a singularidade em concreto da circunstância de cada sujeito.
Esta perceção, na segunda metade do século XX, tem grande incidência, p.e., ao
nível da literatura, em obras como “A obra de arte na época da sua reprodutividade
técnica”, “A sociedade industrial” ou “O homem dimensional”, onde verificamos
exatamente a perda que a massividade provoca quanto ao caráter concreto e
circunstancial da condição humana (“eu sou eu e vivo na minha circunstância”).
A intersubjetividade é vista como condição essencial à construção do sujeito e a
circunstância concreta do mesmo como elemento constitutivo.
Encontramos, então, a alteração da compreensão da posição do ser humano perante
si, os outros ou a intersubjetividade (incluindo jurídica).

UM NOVO QUADRO EPISTEMOLÓGICO (AS “CIÊNCIAS DA CULTURA”, A


HERMENÊUTICA)
Por outro lado, encontramos a superação da relação sujeito-objeto (i.e., a
construção da objetividade científica da verdade na relação entre um sujeito
cognoscente e um objeto conhecido).

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Conjuga-se, mesmo nas ciências empírico-explicativas, a epistemologia crítica com


a estrutura dialógica da construção da verdade, significando que se supera o método
indutivo pelo método dedutivo (método progressivo da tentativa-erro) – o crivo da
experiência: a corroboração ou falsificação, pela experiência, das afirmações que se
apresentam como hipóteses para criar teorias cuja validade científica depende da
discussão entre pares.
Então, por um lado, a estrutura sujeito-objeto permanece, mas o método científico
muda no sentido de que se abandona a construção indutiva que logicamente
permitira a construção de conceitos alheando-se da observação e da experiência,
para afirmar que o método científico é dedutivo, estando em causa refletir
criticamente sobre a projeção prática das afirmações (teorias tentativa que são
experimentadas e, posteriormente, corroboradas ou falsificadas).
Esta nota é crucial para compreender que, de facto, o discurso científico muda, ainda
que a pressuposição da determinação epistemológica do sujeito cognoscente e objeto
conhecido permaneça.
Mas há uma nota fundamental: ao lado da compreensão das ciências empírico-
explicativas, recupera-se a construção das ciências sociais e humanas (p.e., a
sociologia do direito) que afirmarão a sua racionalidade prático-argumentativa e a
construção discursiva comunicativa de sentidos com validade científica (diferente da
afirmada pelo cientismo).

A RESTAURAÇÃO DO SENTIDO ESPECIFICO DA PRAXIS


(o fazer e o agir, a técnica e a prática)

Logo, temos toda uma recompreensão do sentido da prática que verificamos: se até
aqui tínhamos uma cisão entre o logos teorético com efetiva racionalidade e verdade,
de um lado, e o logos prático, do outro, agora temos uma recuperação da
racionalidade prática que convoca uma fundamentação material para a conferência
de sentido numa relação de fundamento-consequência para as suas prescrições e
decorrentes ações.

Assim, há dois paradigmas que agora convivem, bem como correntes que
avançarão no sentido da técnica/saber fazer dadas pela epistemologia.
Toda esta construção encaminha-se para as considerações de que:
- além dos problemas do conhecimento/determinação epistemológica, há problemas
de compreensão que, por serem do ser humano, não se reduzem apenas à primeira
dimensão
- o ser humano não é definível em geral e abstrato, mas sim um ser que particular e
concretamente assume características muito específicas (sendo a dimensão material
crucial)

UMA NOVA INTENCIONALIDADE POLÍTICO-SOCIAL


Encontraremos um avanço na afirmação de um individualismo liberal, i.e., a ideia
de que os Homens são abstratamente livres e iguais, onde a conceção formal de
igualdade sofre uma progressiva construção para um ideal social-democrata em que,
por um lado, por baixo das desigualdades formais se vão afirmando as desigualdades
materiais e se afirma progressivamente uma compreensão material da igualdade.
Isto não significa que a igualdade implique sempre ser uma determinação geral,
abstrata e formal, como um pressuposto necessário cuja correção passe pela
diferença/diversidade.
A igualdade material não é o inverso da igualdade formal, mas sim um reverso, pois
uma dimensão não existe sem a outra (por exemplo, o art. 13º da CRP).

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De facto, a transição para as democracias sociais implicou a afirmação da dimensão


de concreto que é intrínseca ao ser humano.
Portanto, a ideia de concretização de igualdade material implica muito mais do que
a definição geral e abstrata da igualdade.

O COMPROMISSO SOCIAL
(O Estado social ou o Estado providência e a sua crise atual)

Isto implica, por um lado, um compromisso social que se veio a institucionalizar


sob a forma de Estado social / providência (aquele que assume como sua
incumbência a prestação de bens/serviços aos seus cidadãos, hoje em crise social) e
as próprias construções pós-liberais do Estado (que evoluíram no sentido das
democracias liberais ou num sentido mais neoliberal).
Estas duas dimensões não são extremas, mas implicam uma diversidade ideológica
por conviverem hoje na construção dos Estados de direito do nosso tempo.

A CHAMADA AO CONCRETO E ÀS CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICO-SOCIAIS


Esta chamada ao concreto, às circunstâncias histórico-culturais, à perspetivação do
ser humano na sua circunstância e aos ideários que, quer por via das consequências
da revolução industrial quer por via das duas grandes guerras mundiais, gerou
perspetivações constitucionalmente consagradas que conferem diferentes
compreensões do sentido material do direito e fazem impender sobre o Estado um
conjunto de competências e deveres fundamentais para a manutenção de um certo
sentido de equilíbrio material que em muito diverge da pressuposição que ao Estado
demoliberal presidia (competia-lhe garantir a segurança dos cidadãos e a certeza do
direito).

FATORES ESPECIFICAMENTE JURÍDICOS


O novo contexto cultural trouxe uma nova compreensão do homem e a recuperação
da compreensão da prática, o que trouxe, inevitavelmente, a mudança da esfera
especificamente jurídica.

A SUPERAÇÃO DO JURIDICISMO FORMAL POR UMA INTENÇÃO


JURÍDICA MATERIAL
(“cláusulas gerais”, “abuso do direito”, o novo sentido do “principio da autonomia privada)
Nesta compreensão, cruzam-se sentidos de superação da coordenada político-
institucional, especificamente jurídica e axiológica do positivismo.
Poderemos, a partir desta cisão entre o juridicismo formal e intenção jurídica
material, superar todas as coordenadas.
De que juridicismo formal se fala?
Efetivamente, para o positivismo, primeiro, o sujeito de direito seria o sujeito visto
geral e abstratamente como indivíduo que o liberalismo construiu.
Desta forma, o direito é aí visto como uma prescrição formalmente estabelecida no
sentido de que, desde que cumpridos os requisitos formal-procedimentalmente
escritos, o direito admitiria qualquer conteúdo.
Com isto, reafirma-se que o direito visaria tutelar as posições relativas dos sujeitos,
mas aquilo que o caracterizaria como direito não era o conteúdo afirmado e sim o
modo da afirmação (no positivismo legalista, por exemplo, todo o conteúdo que
fosse criado sob a forma de lei seria direito) – o conteúdo não seria discutido, apenas
a forma estaria em causa quando se considerasse a juridicidade.
Isto é assim na coordenada político-institucional (princípio da separação dos
poderes e da legalidade), na coordenada especificamente jurídica (direito identifica-

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se com a lei geral, abstrata, formal e imutável), na coordenada axiológica (a lei é


válida, garantindo a igualdade formal perante a lei e a certeza do direito), na
coordenada funcional (a lei criada pelo poder legislativa é, para o pensamento
jurídico, objeto de conhecimento enquanto norma e vai, em abstrato, ser interpretada
por ele, sendo sobre a norma elaborados princípios gerais de direito e conceitos
como enunciados de verdade científica sobre a regularidade do fenómeno lei) e na
coordenada epistemológico-metodológica (a lei, depois da operação científica em
abstrato, será aplicada lógico-dedutivamente aos factos que lhe correspondam).
Este juridicismo formal tanto se afirma do ponto de vista institucional, projetado na
lei, no sentido de relevância do ponto de vista e da aplicação, quanto no modo por
que os sujeitos destinatários desse direito-lei o encaram reciprocamente.
Se o direito regula, formalmente, a relação entre os arbítrios (e não o conteúdo),
quem age no contexto do âmbito formal que lhe é definido, age com intenção que
quiser o seu arbítrio.
A lei é enquadramento e móbil de ação.
Neste sentido, temos aqui de compreender que, formalmente, o direito deixaria de
fora boa parte das circunstâncias da realidade.
Assentaremos a validade do direito na construção comunitária de compromissos
(dialógica, mas não meramente discursiva-procedimental), sendo que os valores que
fundamentam o direito são construídos intersubjetiva e dialogicamente e não são
meramente contingentes, sendo projetados para fora da comunidade e
retroprojetados como condições de possibilidade de realização de um certo sentido
material que, no direito, será traduzido na confluência de um compromisso prático
em torno de valores fundamentais a realizar que serão traduzidos para o sistema
jurídico sob a forma de princípios normativos.
Assim, falar de uma fundamentação trans-legal do direito é falar de uma
axiologia/conteúdo específico do direito a que vai associado um modo de
pensamento prático também específico para o direito.
Exemplo caricatural:
Prever, em geral e abstrato, a proibição da mendicidade seria muito diferente
consoante os destinatários, mas poderia estabelecer-se numa norma geral, abstrata,
formal e imutável e, portanto, seria imposta igualmente a todos.
É deste tipo de formulação descomprometida do conteúdo e da posição concreta
dos destinatários da lei que se trata quando se fala do juridicismo formal do ponto de
vista da construção legislativa, por um lado, e da compreensão que os sujeitos têm
sobre a sua atuação intersubjetiva no domínio da juridicidade.
Para a construção positivista, a afirmação da autonomia é muito mais ampla que a
determinação da responsabilidade.
Veremos que a superação dessa intenção formalística conduz a uma progressiva
relevância do sentido material do conteúdo e da intenção com que o direito é criado
e como é exercido pelos sujeitos (seus titulares) que vai implicar que, em virtude de
uma responsabilização pela intenção/conteúdo, a dimensão da responsabilidade do
comune se dilate na superação do positivismo.
Vemos esta dilatação e relevância da intencionalidade material na consideração dos
valores e das circunstâncias concretas dos diferentes ramos do direito:
 Direito constitucional: no modo como os direitos fundamentais estão
consagrados nas constituições (comparando a CRP de 1976 com a de 1822).
 Direito administrativo: para lá da determinação formal da atuação dentro da
legalidade, temos duas dimensões materiais de proibição do excesso (princípio
da proporcionalidade) e da discricionariedade enquanto característica da atuação
administrativa no enquadramento formal e material da lei habitlitante.

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Por outras palavras, veremos que além da dimensão da legalidade, a dimensão dos
fundamentos materiais (reconhecidos sob a forma de princípios normativos).
 Direito penal: a acentuação progressiva do direito penal do facto (e não da
personalidade), de que a pena só pode corresponder à prática de um facto típico,
ilícito e punível com base na perceção ética de pessoa, incluindo o arguido.
 Direito privado civil (onde nos concentraremos):
Aqui, iremos analisar a relação direta que, no nosso direito positivo se verifica,
entre a construção individualista do CC de 1867 e as propostas de superação
materializante do CC de 1966.

O INSTITUTO DO ABUSO DO DIREITO


A superação do juridicismo formal para uma intenção jurídica material no âmbito
da construção do nosso CC de 1966.
Pensar em abuso do direito implica que pressuponhamos a distinção entre direito
objetivo e direito subjetivo.
Esta matéria iremos analisá-la em IAD II, mas agora é essencial estabelecer esta
diferença:
Direito objetivo: direito visto da perspetiva da OJ, o direito enquanto ordenamento
jurídico que está objetivado perante nós (destinatários do mesmo) – direito
positivado sob forma de normas legais, por exemplo;
Direito subjetivo: sendo o sujeito titular de direitos, este é o direito titulado por um
sujeito – direito à imagem, de personalidade, por exemplo.
Neste sentido, o abuso do direito refere-se ao abuso do direito subjetivo por parte
do seu titular.
Não se trata, por isso, do direito ser vítima de abuso enquanto conjunto de leis.
Há que distinguir o abuso de poder e o abuso do direito: o poder, uma competência
conferida por lei a um sujeito, implica direitos e deveres no âmbito do exercício de
uma determinada função; o abuso do direito é o exercício abusivo de um direito que
se titula.
Que relevância tem como exemplo de superação do positivismo do século XIX?
Para o positivismo do século XIX, a compreensão formal da definição dos direitos
e do próprio exercício dos direitos subjetivos implica que o direito não se
comprometesse a intenção com que o sujeito exercia o seu direito, desde que não
ultrapassasse os limites formais da definição legal.
Vemos, p.e., o art. 13º do CC de 1867, segundo o qual “quem, em conformidade
com a lei, exerce o próprio direito não responde pelos prejuízos que possam resultar
desse mesmo exercício”: aqui temos uma delimitação formal de que, quem age
dentro dessa delimitação formal do direito subjetivo, não responde por danos que
não estejam tipificados e tenham sido provocados por esse mesmo exercício.
Ora, esta delimitação formal de que quem age no âmbito do seu direito subjetivo é
livre de o exercer no sentido que bem entender segundo o seu arbítrio,
independentemente de isso prejudicar ou não terceiros, foi alvo de críticas muito
diretas porque, em termos jurisprudenciais, a determinação formal da licitude pode
encobrir prejuízos que deveriam ser juridicamente relevantes (e que, no contexto do
positivismo do século XIX, não eram).
Esta construção, com início na jurisprudência francesa, será corroborada, p.e., por
Laurent da Escola da Exegese, que irá procurar saber se o exercício de um direito
subjetivo é, do ponto de vista material, ilimitado.
Posteriormente, as dogmáticas influenciaram a construção dos vários CC.
A projeção desta ideia para o nosso CC tem forte influência do art. 281º do CC
Grego.

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O nosso CC de 1966, no seu art. 334º, consagra o abuso do direito: “é ilegítimo o


exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos
pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Assim, segundo Castanheira Neves, no exercício abusivo de um direito temos uma
desconformidade entre a delimitação formal do direito subjetivo e a violação, em
concreto, do fundamento que, material-normativamente, constitui esse direito (i.e.,
uma contradição entre o cumprimento da estrutura formal e a violação do
fundamento material do direito subjetivo que se titula).
Por isso, se um proprietário que constrói no seu terreno uma chaminé com única e
exclusiva finalidade de prejudicar as vistas do proprietário vizinho, temos um
exemplo de abuso do direito.
Por outro lado, não incorrerá em abuso do direito quem não for titular de um
direito: se A entra na casa de B, sem ter de nenhum direito sobre essa casa, A não
estará a abusar de um direito pois não titula nenhum.
Para existir abuso do direito quem o exerce tem de ser titular do direito.

O PRINCÍPIO DA LIBERDADE CONTRATUAL E OS SEUS CONTORNOS


MATERIAIS

Este exemplo tem a ver com o conteúdo intencional da atuação no âmbito do


exercício de direitos, mas diz respeito a um contrato.
O princípio da liberdade contratual está consagrado no art. 405º/1 do CC, onde
falamos da livre fixação do conteúdo dos contratos.
Estando dentro do princípio da autonomia privada, comporta as liberdades de (não)
contratar, da escolha de quem se contrata e de afixação do conteúdo dos contratos
(no art. supracitado).
Para uma perspetiva formalista-positivista, esta liberdade contratual implicaria a
total liberdade na construção desse contrato e, eventualmente, a não relevância de
uma intenção danosa não prevista que pudesse estar a presidir a celebração do
mesmo.
Uma vez celebrado o contrato, vigoraria o princípio respeitante à eficácia dos
contratos, no art. 406º/1 do CC, o chamado pacta sunt servanda (“os pactos devem
ser respeitados”).
Ora, este princípio era crucial no positivismo e continua a sê-lo hoje.
A questão reside, agora, em saber se era possível admitir algumas exceções a
este princípio.
Temos, assim, três momentos na construção e desenvolvimento de um contrato:
1) Momento da negociação
Uma compreensão formalista dita que aqui não há responsabilidade.
Porém, o nosso CC consagra a responsabilidade civil pré-contratual (ou culpa in
contrahendo) – p.e., o art. 227º/1 do CC.
Assim, existe uma exigência material de compromisso prévia à celebração do
contrato quando uma das partes contraentes se retira e isso produz danos,
culposamente, para a outra.

2) Momento da celebração

3) Momento da execução/cumprimento
Os sujeitos estão vinculados ao cumprimento do contrato, mas existem exceções.
P.e., supondo que em virtude de alguma situação imprevista que implicasse que
uma das partes se visse na contingência de cumprir a sua obrigação. Quid iuris?

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Introdução ao Direito

Para uma compreensão positivista, o pacta sunt servanda implicaria que os sujeitos
ficassem absolutamente vinculados à vinculação livre.
Na superação do positivismo, é proposta a cláusula rebus sic stantibus que permite
a alteração superveniente das circunstâncias das coisas – no art. 437º/1 do CC.

CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS


Teremos de considerar a limitação à liberdade de fixação do conteúdo dos
contratos estabelecida por estas cláusulas, pelo estabelecimento de contratos apenas
compostos por estas.
As cláusulas contratuais gerais são cláusulas estabelecidas padronizadamente em
contratos pré-tipificados que visam a celebração de contratos em massa, regulados
pelo decreto lei nº 446/85 de 25 de outubro, e que estabelecem os limites a esse tipo
de conteúdo contratual já que, nos casos concretos, uma das partes fica com a sua
liberdade contratual de aderir ou não a estas cláusulas limitada.
Neste sentido, acentuamos que todas as dimensões materiais que a liberdade
contratual positivista defendia têm hoje algumas limitações materiais em nome da
dimensão comunitária e da responsabilidade da validade material da atuação.

AS CLÁUSULAS GERAIS
Os conceitos indeterminados são conceitos cujo conteúdo e extensão são incertos e
indeterminados – pensamos em circunstâncias de facto, que só em concreto são
possíveis de determinar, como p.e., as circunstâncias do caso, o feito
social/económico do direito, a afetação grave, os riscos próprios do contrato, etc.
As cláusulas gerais são conceitos normativos extralegais para que a lei nos remete,
que serão fundamentais para uma realização normativamente adequada do caso
concreto.
Seguindo a noção de Reis Marques, temos de verificar que as cláusulas gerais são
remissões que as leis fazem para juízos extralegais, para a dimensão trans-legal e
para a fundamentação material.
Por exemplo, a referência ao princípio da boa-fé.
Desta forma, temos aqui vários mecanismos que nos mostram que, por um lado, o
só formalismo da terminação legal é redutor para a realização do direito, por outro
lado, que o juízo decisório não pode ser lógico-dedutivo porque, se o for, realizará
logicamente o direito, mas não a justiça material (jurídica) para o caso concreto.

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