Os Indômitos

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OS INDÔMITOS

A Saga dos Bandeirantes

L. G. Gonçalves

Agradecimentos
Este livro é dedicado primeiramente a Deus que me
proporcionou o dom de viver e ver as cores do mundo,
a minha esposa que muito me apoia nessa longa
caminhada e a todos os brasileiros que veem nessa
vasta nação a riqueza de seu povo que além de
indômito é alegre e batalhador.

“Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a


ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões
minam e roubam; Mas ajuntai tesouros no céu,
onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e
onde os ladrões não minam nem roubam. Porque
onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o
vosso coração.” Mateus 6:19-21

Índice
I. Prólogo( A SITIAÇÃO NORMAL ATÉ QUE ELE RECEBE O
CHAMADO.....................................................................................
.... 1
II. O Poço das Almas ( A AJUDA O HERÓI PRECISA DO
AUXÍLIA DE ALGUÉM MAIS
VELHO.........................................................................
III.A PARTIDA NÃO ESTÁ MAIS EM
CASA...................................................................................
IV. TESTES (A SOLUÇÃO DE UM ENIGMA, MATA UM
VILÃO, ESCAPA DE UMA ARMADILHA
V. A MAIOR PROVAÇÃO O PIOR MEDO DO HERÓI
VI. A CRISE ENFRENTA A MORTE PESSOAS IMPORTANTES
MORREM MAS RENASCE
VII. RECOMPENSA COMO PRÊMIO O HERÓI REIVINDICA
UM TESOURO
VIII. DESFECHO
IX.RETORNO AO SEU MUNDO NORMAL
X. NOVA VIDA ESSA MISSÃO MUDOU O HERÓI
XI.RESOLUÇÃO TODAS AS TRAMAS DO ENREDO SÃO
RESOLVIDAS
XII. SITUAÇÃO NORMAL MAS ELEVADA A OUTRO NÍVEL
Prólogo

As chuvas de março caiam torrencialmente e às margens do ribeiro Pedro Borba
estava prestes a recolher as ferramentas.

- Vou tentar mais uma vez – suspirou – quem sabe dessa vez darei alguma sorte.

A peneira de estanho mergulhou nas águas turvas do ribeiro tocando no fundo repleto
de cascalho. O homem já tinha repetido aquela ação por mais de uma centena de vezes e nada
de valioso havia surgido, somente galhos folhas e cascalhos. Aquilo era um trabalho pesado,
seus braços e costas doíam. Alguns negros da mina poderiam fazer aquele trabalho, mas em se
tratando de ouro, Pedro Borba preferia se sujeitar ao labor árduo a correr o risco de enriquecer
e ser enganado. Afinal a ganância tem a sua vontade própria e corrompe até os cativos
acostumados a ver o seu brilho reluzente. Novamente a peneira vinha cheia, seria essa a
última tentativa, estava ensopado até os ossos e ansiava por um gole de água ardente.
Peneirava para um lado e para o outro e novamente seixos e mais seixos, alguns galhos,
folhas, lodo. A peneira de estanho já estava ficando quase vazia e novamente o fracasso se
apontava, não ia ser a primeira vez nem talvez a última. Pedro já estava em Cachoeira do
Campo a mais de três anos e os únicos êxitos que o homem havia conseguido foi a roça que
lhe garantia a sobrevivência, nem a criação dos poucos animais que trouxera foi bem
sucedida. O gado pequeno não durou um ano, logo morreram as galinhas logradas por toda
qualidade de bicho selvagem astuto e silencioso, o singelo rebanho de cabras logo se provou
estéril já que o único reprodutor foi abatido por uma mortal picada de cobra, sobraram alguns
poucos porcos e dois muares um deles bicheirento sem uma orelha, este Pedro Borba usava
para carregar os mantimentos. Deus parecia não tê-lo abençoado naquele lugar. O fundo da
peneira começava a aparecer, mais algumas pedras e lascas de madeira podre, mas no meio
dos objetos de sempre algo irregular e pequeno menor que a falange de seu dedo mindinho
chamou a sua atenção, era de uma cor transparente, reluzente com os raios de sol em seu
interior, mas e tão brilhante como a Estrela da Alva. - Meu Deus! Um diamante! - A sorte
parecia sorrir para Pedro Borba, o Azarão, sua avó já o chamava assim desde menino pela
data infortuna de seu nascimento: “menino duas vezes aziago nascido em 24 de agosto, mês
de desgosto no dia de São Bartolemeu, única data em que o próprio diabo engana os
arcanjos e fica livre a andar pela terra”. – Pedro riu segurando a pequena pedra brilhante na
palma da mão:

- Quem é o azarado agora? – pensou sarcasticamente. – Um outro pensamento


invadiu a sua mente: Será esse o passaporte para a minha redenção?

Pedro o Azarão saíra de Portugal movido pelo espírito aventureiro de enriquecer.


Deixara pra traz seus pais e uma promissora pretendente. O plano era seguir para as minas
brasileiras e em um ano juntar para si uma pequena fortuna suficiente para reerguer o nome de
sua casa, há muito em desprestígio. Porém, seus planos foram logrados, talvez pelo azar
natural que o acompanhava. Das terras das minas brasileira a única coisa de valor que
conseguiu foi um casamento não oficial com uma mestiça dos últimos remanescentes carijós,
cuja alcunha era Joana, mulher de feições pouco delicadas cabelos escuros, pele morena,
sobrancelhas ralas e dentes amarelados, bugra dada a trabalhos pesados. De seu
relacionamento fornicador Pedro teve também, um filho, menino franzino feito um pé de
mandioca, cego do olho direito de nascença, tudo por causa de uma deformidade rara que
dava ao olho inútil o formato de uma pupila em fenda, tal qual cobra, seu nome de cristão
ainda não se tinha dado, esperavam que um padre por aquelas bandas passasse para que o
menino assim fosse batizado e recebesse a alcunha de Santiago porque no dia de seu parto
uma tempestade de raios e trovões sacudiram a tapera, contudo, depois de três anos nenhuma
visita receberam e o menino ficou sendo chamado de Xuatê que na língua de sua mãe
significa Cascavel. Esses eram os únicos consolos do português.
Mas o sonho de Pedro com o passar de mais de mais de três anos por essas terras
inóspitas agora eram outros. Não se importava mais em juntar grandes riquezas, queria apenas
um montante que o fizesse voltar para a terra natal e aquela pequena pedra seria o seu passe
para casa. Mas teria ele a coragem de abandonar a mestiça e seu único filho que a quase três
anos tanto lhes fizeram companhia? Escolhê-los significava ficar e definhar em uma terra rude
que em nada lhe agradava gastar o farto montante.

A chuva começava a diminuir e Pedro Borba não iria esquentar a cabeça com esses
problemas de agora. Arreou e carregou as duas mulas e como de praxe a Bicheirenta
carregava as ferramentas usadas no garimpo, mas dessa vez algo mais valioso estava
escondido em meio aos pratos e peneiras de estanho. Pensava consigo: Seria sensato dar
pérolas aos porcos? Quem desconfiaria?

- Tomarei um bom gole de água ardente na Espelunca do Messias lá nos rumos da


encruzilhada, para espantar os fantasmas da minha alma, depois decido meu destino...

A Espelunca da Encruzilhada era o lugar mais próximo de trocas, vendas e comércio


das minas. Lugar frequentado por toda espécie de gente: libertos, padres, reinóis, colonos,
tropeiros, contrabandistas, comerciantes, bandeirantes. Foi criado por um aventureiro de nome
Messias, o Pardo, que após anos tentando em vão achar ouro, viu no comércio uma
oportunidade de subir na vida. O lugar começou com uma palhoça de tamanho modesto mas
estrategicamente colocado em uma encruzilhada que dava acesso a estrada que levava aos
Currais da Bahia, mas depois de quase seis anos o lugar já havia crescido um bocado e a
palhoça agora tinha um modesto estábulo, um paiol e uma rústica adega de onde se podia
consumir uma cachaça de procedências duvidosas e de baixa qualidade, mas a única opção em
oito léguas de distância. Lugar de murmúrios, de boatos, de lendas e fofocas. Único lugar por
onde se podia obter alguma informação da Metrópole, sobretudo quando chegavam aquelas
paragens caravanas de mascates ou pelos viajantes aventureiros.

A boca da noite se aproximava recolhendo os pássaros nas copas das árvores, a


chuva havia cessado e espaços relâmpagos cortavam o manto escuro da noite. Pedro o
Azarão deixou as mulas no estábulo e da baldrana embolorada de Bicheirenta o homem
retirou a pedra preciosa que mudaria a sua vida. Guardou-a por dentro da sua bota de longo
cano. Tudo o que ele queria era um lugar seco onde pudesse se embriagar em paz.

A espelunca estava movimentada àquela noite haviam um padre da Companhia de


Jesus, uns comerciantes de reputação duvidosas e dois homens de aparência embrutecida que
ao verem Pedro o Azarão adentrar no recinto com suas botas de cano longo, cuspiram no chão
olhando-o com hostilidade e pronunciaram em tupi-guarani “mboaba”. Pedro ainda não
dominava bem o dialeto local mas sabia em seu íntimo que não era bem vindo naquela mesa.
Os habitantes locais não gostavam muito da presença de estrangeiros, sobretudo na região da
mina. Eles diziam que “o povo de fora” só traziam o que não se prestava da Europa. Isso não
era totalmente verdade, mas tinha lá sua cota de credibilidade, já que tudo o que causava
desconforto, ordem, e mudança brusca provinha das mãos de um agente português vindo da
Metrópole, homens de gostos requintados, roupas espalhafatosas e dados a mordomia, coisa
repugnada sobretudo pelos bandeirantes que de um modo geral sobreviviam com a audácia e
os ardis que só aquele povo havia desenvolvido. Comiam toda qualidade de caça oferecida
pela mata, suas roupas eram sobretudo simples e suas botas de viagem eram leves para
aguentarem longas jornadas a pé, muito diferentes das longas botas portuguesas. A vida dura
de um explorador das matas oferecia-lhes grande intimidade com armas não só portuguesas
como o mosquete, o arcabuz e o sabre como aprenderam a dominar as armas dos povos
selvagens, sendo assim não era raro vê-los usando arcos e flechas embebidas em veneno de
sapos e cobras. Muitos eram mestiços, filhos de portugueses com alguma índia de alguma
etnia qualquer, não eram dados a muita conversa e pelo modo de vida quase nômade se viam
como homens livres reis de seus próprios destinos e senhores de seus negócios, não
costumavam obedecer ordens da coroa à não ser que houvesse um contrato que pudesse lhes
oferecer alguma quantia em dinheiro ou mercê. Do contrário ignoravam ou burlavam as leis
impostas. Sua maior autoridade era se não um outro como eles de modos semelhantes cujo
título respeitosamente chamavam de “capitan” se diferenciando talvez pela capacidade de
escrever umas poucas palavras e por possuir alguma mercê real. Não eram visto com
frequência, do nada chegavam e do nada sumiam na mata. O povo das cercanias, apesar de
conhece-los melhor que “O povo de fora”, não nutriam por eles muitos afetos. Lendas e
boatos povoavam as histórias de suas andanças. Uns diziam que eram apenas pobres coitados
esfarrapados de pés descalços, reduto de bastardos de fidalgos, muito maltrapilhos outros
diziam que eram homens bravos e destemidos, capazes de escravizar até o próprio Rei se
oportunidade tivessem. Homens que não temiam nem mesmo as almas dos selvagens que
matavam. Pedro sabia que àquela mesa não sentaria. “Mas que importa tinha tirado a grande
sorte”, talvez sentasse próximo dos comerciantes e do padre, pelo menos ali poderia ter
notícias do Minho.
Passou pela mesa dos bandeirantes, caminhou até o outro extremo do cômodo onde
achavam-se o padre, o bugre e três comerciantes:

- A benção, padre!? - O religioso olhou para o homem molhado com suas botas de
canos longos, meio de soslaio e deu sua benção sem gracejos:

- Deus abençoe e lhe faça feliz! – Pedro beijou sua mão e tomou acento. O Padre da
companhia de Jesus era esquálido com aparência de ave de rapina, graças aos poucos cabelos
brancos semelhantes a penugens e um nariz adunco, comia um ensopado de peixe com pão e
achava-se em companhia de um negro da terra, que sentado ao chão, só observava. Pedro o
Azarão percebeu também que naquela mesma mesa três homens, ao que tudo indicava
comerciantes, estavam sentados e conversavam em francês, não entendia nada, mas sabia que
era alguma discussão, pois um deles batia o punho na mesa com força enquanto apontava o
dedo na cara dos outros dois. Quem se importa! Todos temos dias ruins – pensou Pedro,
pedindo um gole de cachaça.

A noite lentamente já se estendia e espelunca se esvaziava. A cachaça já fazia a


cabeça do azarado português rodar. Alguns dizem que o álcool é o vício dos abatidos, o
remédio para as angústias, a distração dos tolos e a quem diga o caminho mais fácil para se
descobrir segredos ocultos.

- De onde vens, estrangeiro? Botas de cano longo não são comuns nessas terras, a
menos que sejais de fora. – Disse um dos comerciantes, homem de sobrancelhas espessas e
dono de uma barba negra e espeça. Também estava a beber, mas de forma mais comedida
como se estivesse desinteressado com o conteúdo no fundo de seu copo, apontando para o
calçado incomum de Pedro Borba.

- Sou do nordeste do Minho, meus pais têm algumas posses por lá, respondeu o
português, meio desconfiado – Vocês são das rotas de comércio francesa? – um dos homens,
o que outrora discutira com os demais, deu um riso de escárnio e apressou-se a respondeu
antes mesmo que o outro pudesse abrir a boca:

- Digamos que sim, fazemos muitos negócios em muitos lugares, somos de todos os
lugares e não somos de lugar nenhum, vamos aonde os negócios tem melhores ares. Diga nos,
caro amigo das botas longas, o que faz tão longe de casa?

- Vim em busca de riquezas no Novo Mundo – nesse momento a mão de Borba


escorreu para o cano da bota - mas nada de bom consegui por aqui, a não ser um bastardo e
muitas desventuras, por isso estou deixando esse lugar miserável, sugiro que façam o mesmo,
não há nada para nenhum homem digno por aqui, só o infortúnio e a desilusão.

- Não parece que estais a viajar, não leva qualquer coisa de bagagem, nem qualquer
coisa de comida. Estais fugindo? - perguntou sagazmente o comerciante de barba hirsuta.

- Ora não seja tão indelicado com o nosso amigo viajante, deixai-o ir, ser livre é uma
dádiva nos dias de hoje, veja este índio, poderia ser livre mas vive como um animal doméstico
aos pés do padre – interrompeu bruscamente outro. – Desculpe os modos de meus camaradas,
sou Sebastião, este é Carvalho mas pode chama-lo pelo nome de Barba Ruim e sentado ao
lado dele Coelho, somos a Companhia de Negócios Mercadorias e Vinténs e espero que faça
uma ótima viagem de volta para casa.

- Peço licença, a vossas senhorias vou me retirar. Tenham todos uma boa noite de
prosa, disse o padre com um semblante e voz de cansaço, chamando o índio que ao seu lado
estava na posição de cócoras junto ao pé da mesa.

- Espere padre! Preciso de um favor seu. – disse Pedro Borba, segurando a ponta da
batina do padre – Estou indo embora dessas terras bárbaras, mas tenho um pedido a vossa
senhoria. Tenho um bastardo, nem nome de cristão ainda tem pois esperei por muito tempo
que um de vós viesse por aqui para que fosse batizado. O menino já tem três anos, atende pelo
nome de Xuatê, sua mãe atende por Joana, queria que o senhor fizesse a bondade de ir aonde
ele se encontra e pudesse batiza-lo com o nome cristão de Santiago, esse é o meu único
presente para aquele pobre coitado, afinal não se pode furtar de ninguém a possibilidade de
conhecer o céu. – O homem puxou o padre pelo braço até um canto reservado e explicou o
caminho que o fizera até chegar ali.

- ... mas não vou para esses rumos – disse o padre contrariado - Daqui partirei bem
cedo para a Serra do Mar, este índio será meu guia e isso haverá de atrasar em muito as
minhas obrigações, mas se na volta ainda me sobrar disposição passarei pelos garimpos. –
religioso soltou a mão de Pedro com um solavanco e retirou-se para um dos catres da
espelunca.

Pedro pegou o copo em sua mesa tomou o último gole de bebida e despediu-se. –
Senhores, também irei me retirar, não quero atrapalhar os seus assuntos de negócios e,
particularmente, prefiro viajar à noite, me sinto mais à vontade. – Os homens olharam para ele
cumprimentaram-se fazendo um último brinde e o viram sair pela porta que lavava ao
estábulo.

- Este homem deve ter algo de algum valor. – Dizia Coelho sussurrando para
Sebastião. Coelho era um dos três comerciantes da Companhia de Negócios Mercadorias e
Vinténs, homem de pele tão branca e sardenta que aos poucos raios do sol faziam-no ficar
totalmente rosa e não raras vezes cheio de bolhas, seus cabelos eram tão loiros que pareciam
brancos e seus dentes tortos e avantajados mal cabiam dentro da boca davam-lhe uma
aparência cavalar.

- Sim, meu amigo perspicaz, tenho minhas desconfianças de que aquele homem tirou
a sorte grande no garimpo, afinal ouvistes o que o padre disse, e como bons negociantes que
somos não podemos deixar nossa oportunidade de ouro fugir de nossas mãos. – Dizia
Sebastião. – Mas temos que descobrir de onde é a fonte. Tenho um bom plano, você e Barba
Ruim vão atrás daquele português idiota, matem-no e revistem tudo não deixem de olhar um
só fiapo de cabelo daquele vermezinho, enquanto isso eu ficarei e farei algumas perguntas ao
padre, pois tenho certeza que aquele velho sabe o El Dourado fica. Não se demorem, saiam
sem alarde e partam tão já antes que fique difícil de alcançá-lo.

Falando tais coisas os dois malfeitores Carvalho o Barba Negra e Coelho o Albino
saíram pela soleira da porta. Na saída os dois homens se esbarraram em um dos bandeirantes
que havia saído da Espelunca para urinar do lado de fora, o homem sem muitos modos
empurrou Barba ruim para o lado ignorando a presença de seu comparsa. – Arreda-te da
minha frente, imundo! Estais a me atrapalhar. – Barba Ruim fez umas feições de desprezo e
sumiu madrugada a fora.

POÇO DAS ALMAS



- Maldito seja o dia em que decidi te ouvir, Barba Ruim! – reclamava Coelho,
matando com um tapa violento mais um pernilongo que deleitava-se em farto banquete,
sugando o sangue de suas bochechas sardentas. – Você diz: “a sorte está do nosso lado, não
tem erro, vamos ganhar essa aposta fácil, fácil. Os números estão a nosso favor”. Mas nessa
sociedade ninguém me ouve, “não deem ouvido a ele, ele é muito pessimista”. – Eu não sou
pessimista sou um realista! Mas não! Ninguém ouve os concelhos do Coelho. Eu falo: “Não
façam negócios com os franceses.” Mas eles dizem: “Os franceses são todos idiotas, vamos
lucrar sobre eles”. Aí eu digo: “tenho maus pressentimentos. Corsários são homens violentos,
são iguais aos piratas.” Mas, não! Nunca me ouvem, estou cansado de ser ignorado e depois
ter que tampar os buracos dos planejamentos idiotas do Sem Vintém.

- Ora, pare de reclamar Coelho! Tão logo teremos saldado a nossa dívida com o
francês. Se o Sem Vintém estiver certo essa semana limparemos nossos nomes e tiraremos
nossos pescoços da forca.

- Você diz, nossos, Barba Ruim! Mas ninguém me escuta, eu falei já ganhamos o
suficiente nesse maldito jogo de cartas, vamos embora, mas não! Você quis arriscar tudo e
conseguiu! Meus parabéns! Você conseguiu foder com as nossas finanças. Às vezes penso
que se você não fosse sangue do meu sangue já o teria matado. Nas Canárias escapamos
porque tínhamos algum crédito com os espanhóis, mas parece que você nunca aprende, está
sempre a querer falir os nossos negócios. Mas o que esperar de uma companhia de comércio
que tem por líder um judeu com a apelide de “Sem Vintém”

- Pare de choramingar, Coelho, não somos uma companhia de comércio, não se


convença das suas próprias mentiras, somos contrabandistas e para sua segurança é melhor
que você mantenha essa sua língua afiada e venenosa guardada nessa sua boca horrenda, não
se esqueça que também somos judeus e, a menos que não queira maiores problemas, é melhor
que esse segredo continue bem guardado.

- Você me fala em não arranjar maiores problemas! E o que você me diz de sermos
perseguidos em todo o litoral de São Vicente por corsários franceses sádicos e sedentos pelo
sangue de três ratos trapaceiros que apostaram mais do que podiam e fugiram sem saldar a sua
dívida. – Naquele momento uma rasga mortalha saltou de um galho e fazendo um voo
macabro e noturno sobre a cabeça dos dois homens, como um vulto fantasmagórico. – Ave
agourenta, até parece que sabe que sabe o que estamos prestes a fazer.

- Deixe de ser frouxo, Coelho, vamos nos apressar, temos que voltar antes que o sol
nasça para que não levantemos suspeitas.

Os dois judeus não tardaram em montar a tocai de espera, o poço onde os viajantes
levam os animais para beber água ficava meio envolto por árvores que facilmente encobriam
uma malta de salteadores, o local não passava de um capão após uma grande curva
esgueirada, fácil de entrar e difícil de sair, dado o gargalo que se formava, local difícil de
manobrar qualquer montaria, até mesmo para um cavaleiro experiente, lugar feito de
propósito daquele jeito afim de atrasar a passagem da tropa para arrecadar o pedágio, mas
àquelas paragens não havia se quer uma viva alma se não os dois mal feitores e a rasga
mortalha que pressentia o cheiro do sangue. Não restava mais nada a eles, além de esperar o
correr da madrugada e esquecer os medos das armadilhas da mata escura.

A madrugada se arrastava preguiçosa, mas nada silenciosa, a mata bailava em vida,


uma melodia orquestrada pelo próprio Criador, sons de todos os tipos, dos grilos aos pássaros
noturnos, uma anta passara pelo bebedouro lenta e desconfiada, e os mosquitos ainda se
banqueteavam sem dar uma trégua se quer. O sono parecia vir junto, lento, em passos
pesados, como se arrasta-se as correntes do tempo atrelado aos seus calcanhares, mas antes
dos primeiros raios de sol a mata calou, a quantidade de mosquitos aumentaram e a anta fugiu
de repente, já fazia muito tempo que aqueles homens andavam por aquelas paragens e sabiam
minimamente interpretar os sinais do universo, alguém estava vindo. Eles não tinham poder
de premonição, nem sentidos especiais, mas sabiam o que tais sinais indicavam.

- Preciso evacuar, toda essa tensão e espera me deixam de intestino frouxo –


Choramingava, mais uma vez o Coelho.

- Você não consegue controlar-se, não ouviste que a mata calou – cochichava o
Barba Ruim – Ele está chegando, logo terá tempo suficiente para mijar ou cagar aonde quiser,
espere mais um pouco e logo tudo estará terminado.

- Não consigo é mais forte do que eu vou descer prometo que não demoro. – Desse
modo o homem desceu produzindo um baque surdo no chão, assustando a rasga mortalha que,
em protesto, alçou um vôo emitindo piados semelhantes a uma máquina de costurar. Coelho
andou alguns passos para dentro do mato procurando um lugar mais cômodo, se é que isso era
possível, já que quando baixou as calças para obrar muitos pernilongos decidiram picar as
nádegas sardentas do homem, deixando-o em uma situação desconfortável, no qual não sabia
se concentrava-se para fazer o seu trabalho ou se espantava os inconvenientes insetos, - local
dos infernos, não se pode nem cagar em paz, tomara que todo esse esforço faça valer a pena
– pensava o homem na posição de cócoras.

Ao longo um farfalhar de cascos pisoteando as folhas secas do caminho era ouvida,


cada vez mais perto, ao que parecia era chegada a hora, Coelho mal conseguira terminar o
serviço que se propusera – Diabos! Lá vem ele. - Vestiu-se sem nem mesmo limpar-se pois
sabia que não restava mais tempo. – Se eu subir, irei entregar a posição do Barba Ruim, vou
ficar aqui embaixo mesmo e atacá-lo por detrás, vai ser um susto e tanto. – O homem apenas
escondeu-se tendo que suportar o mal cheiro do serviço incompleto que ele mesmo deixara no
local.

O cavaleiro em sua mula inconfundivelmente decrépita passara pelo funil e


aproximava do gargalo onde se achava o poço e o bebedouro dos animais. Apeou olhando
para os lados desconfiados como se esperasse o perigo. Abaixou-se e pôs a mão no cano do
bato mais uma vez, verificando se seu bem mais preciso achava-se no lugar de sempre.

- Senhores Sebastião, Carvalho e Coelho, este negro da terra é tão livre quanto
vocês, já ouvi falar de seus negócios pelos portos. Você é Sebastião o Sem Vintém e estes
homens são seus irmãos, ao que me recordo estão oferecendo uma boa quantia pelo paradeiro
de vocês especialmente os franceses, então é melhor não me tomar por tolo sei que são
contrabandistas.

O DIA DA CAÇA


“Hora temos aqui um rato na gaiola de uma cobra”
Cena

 Objetivo: o que vai acontecer na cena

 Conflito: o desenrolar da cena

 Desastre: o final da cena (chamado de desastre porque o herói sempre se


dá mal, vencendo – é claro – só no final

Sequela

 Reação: o que acontece ao personagem depois do desastre

 Dilema: onde o personagem fica em dúvida sobre o que fazer

 Decisão: quando o personagem se recompõe e parte novamente para a


ação

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