O Segredo Do Padre Brown

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Nesse momento, o velho porteiro,

conhecido por Sam,


e habitante solitário do teatro
durante as horas mortas,
aproximou-se do director,
a quem entregou um cartão de visita,
informando-o de que Lady Miriam Marden
desejava falar com ele.
Mastou-se, mas o padre Brown
continuou a olhar
durante alguns segundos
na direcção da mulher de Manderville
e reparou que o seu rosto descorado
exibia um sorriso.
No entanto, não se tratava
de uma expressão de alegria.

--
-- 0�� 84
G. K. CHESTERTON

O SEGREDO
DO
PADRE BROWN

PUBUCAÇOES EUROPA-AMÉRICA
Título original: The Secret of Father Brown

Tradução de Ana Maria Braga

Capa: estúdios P. E. A.

Direitos reservados por


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ou gravação, sem autorização pr�via escrita
do editor. Exceptua-se naturalmente a transcri­
ção de pequenos textos ou passagens para apre­
sentação ou critica do livro. Esta excepção não
deve de modo nenhum ser interpretada como
sendo extensiva à transcrição de textos em re­
colhas antológicas ou similares donde resulte
preju!zo para o interesse pela obra. Os trans­
gressores são pass{veis de procedimento judicial

Editor: Francisco Lyon de Castro

PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, L.vA


ApartadoS
2726 MEM MARTINS CODEX
PORTUGAL

Edição n. e 135584 / 4665

Execução t�cnica:
Gráfica Europam, L."",
Mira-Sintra - Mem Martins

Depósito legal n.' 22385/88


Ao
padre John O'Connor
de St. Cuthbert's Bradford
cuja verdade é mais estranha que a ficção,
com uma gratidão maior que o mundo.
ÍNDICE

Pág.

O segredo do padre Brown . . . . . . 9


CAPÍTULO I- O espelho do magistrado . . . . . . . . 17
CAPÍTULO II- O homem com duas barbas . . . . . 34
CAPÍTULO III - A canção dos peixes voadores . . 52
CAPÍTULO IV- O actor e o álibi . . . . . . . . . . . . . . . . . . ffi
CAPÍTULO V- O desaparecimento de Vaudrey 85
CAPÍTULO VI - O pior crime do mundo.. . . . . . . . . 102
CAPÍTULO VII - A Lua Vermelha de Meru. . . . . . . 117
CAPÍTULO VIII- O inconsolável
Marquês de Marne . . . . . . . . . . . . .
. 132
O segredo de Flambeau . . . . . . . . . 151
O SEGREDO DO PADRE BROWN

Flambeau, outrora o mais célebre criminoso da França e mai s


tarde um detective mui to particular em Ingl aterra, há mui to que
abandonara ambas as profi ssões. A carreira do crime tornara-<>,
segundo alguns, demasiado escrupuloso para se dedicar à i nvesti­
gação. Fosse como fosse, após uma vida de fugas românticas e es­
tratagemas de evasão, acabara por se i nstalar num sítio que
muitos considerariam o lugar apropriado: um castelo em Espanha.
Embora relativamente pequeno era um e difíci o sóli do, e a mancha
escura da vinha, juntamente com as ]eiras verdejantes da horta
ocupavam uma exten são razoável na vertente acastanhada da co­
lina. Na verdade, Flambeau, depoi s das suas numerosas e vi olen­
tas peripécias, ainda possuía o que é comum a mui tos latinos mas
que fal ta, por exemplo, a um grande número de americanos: a
energia para se aposentar. Encontramos essa característica em
mui tos propri etários de grandes hotéi s, cuja única ambição é se­
rem pequenos agricultores. Encontramo-la também em muitos
comerciantes franceses da província, que fazem uma pausa no mo­
mento em que estavam prestes a tornar-se detestávei s milioná­
rios e a comprar uma rua inteira de lojas, para se de dicarem cal­
ma e confortavelmente aos assuntos domé sticos e ao domi nó.
Flambeau apaixonara-se, por acaso e de uma forma quase abrup­
ta, por uma dama espanhola, casara-se e criara uma famíli a nu­
merosa numa herdade castelhana, sem mostrar qualquer desejo
de voltar a transpor os seus limite s . Mas uma certa manhã a famí­
lia achou-<> particularm ente irrequieto e excitado: escapou-se aos
filhos numa corrida e desceu quase até ao fundo da longa encosta,
para ir ao encontro do visitante que atravessava o vale, apesar de
aquel e não passar ainda de um ponto negro ao longe .
A fi gura foi aumentando gradualmente de tamanho, sem no en­
tanto apresentar grande alteração na forma, poi s, a bem dizer,
continuava arredondado e preto. As negras vestes sacerdotais, não
eram coisa desconhecida naquelas paragen s . No entanto, esta in­
dumentária, embora clerical, tinha à primeira vista' um ar vulgar
e quase airoso comparada com a sotaina e i ndicava que quem a ves­
tia era oriundo das ilhas do noroeste, tão certo como se exibi sse um 9
rótulo com a indicação de Claphan Junction. Vinha munido de um
guarda-chuva curto e resistente, com um castão que parecia uma
moca, à vista do qual o seu amigo latino quase verteu lágrimas de
comoção, pois esse objecto participara em muitas aventuras que
ambos haviam partilhado em tempos. Tratava-se do seu amigo in­
glês, o padre Brown, que lhe retribuía uma visita há muito dese­
jada, mas que demorara a concretizar. Embora trocassem corres­
pondência com assiduidade, não se viam há anos.
O padre Brown não tardou a integrar-se no seio da fami1ia, tão
numerosa que dava ideia de se tratar de uma companhia ou de
uma colectividade. Foi apresentado às grandes imagens dos três
Reis Magos, esculpidos em madeira pintada, que levam os presen­
tes às crianças no Natal, pois a Espanha é um país onde os assun­
tos que dizem respeito aos miúdos representam um papel muito
importante na vida doméstica. Teve ocasião de conhecer o cão e o
gato, além do gado da quinta. Foi também apresentado a um vizi­
nho que, tal como ele, trouxera até àquele vale a maneira de ves­
tir e os modos próprios de terras distantes.
Na terceira noite da sua estada no pequeno châ teau, o padre
teve o ensejo de observar um sujeito de aspecto imponente cumpri­
mentando o dono da casa com reverências que nenhum fidalgo es­
panhol conseguiria imitar. Era um cavalheiro alto, magro, de ca­
belo grisalho, com uma elegância verdadeiramente espantosa. No
entanto, o rosto comprido não apresentava aquela languidez vul­
garmente associada aos punhos altos e às mãos tratadas das cari­
caturas inglesas. A sua expressão era viva e mordaz e os olhos ti­
nham uma intensidade inocente e curiosa que raramente condiz
com os cabelos grisalhos. Só isso bastaria para indicar a naciona­
lidade do homem, além do tom nasalado da voz, da sua maneira
distinta de falar e do deslumbramento perante a antiguidade in­
comensurável de todas as coisas europeias que o rodeavam. Tra­
tava-se, na verdade, de Mr. Grandison Chace, de Boston, um via­
jante americano que decidira fazer uma pausa nas suas andanças,
alugando a propriedade vizinha, um castelo algo semelhante
àquele, situado numa colina quase igual. Sentia-se encantado no
seu velho castelo e considerava o seu amável vizinho uma anti­
guidade local do mesmo tipo. É que, como já dissemos, Flambeau
conseguira apresentar um aspecto de homem aposentado, como se
tivesse criado raízes naquele lugar.Dir-se-ia que crescera ali des­
de sempre com a sua vinha e a sua figueira. Retomara o seu ver­
dadeiro apelido Duroc, pois o outro, «TheTorch»', não passava de
um nom de guerre, que um homem como ele usaria para combater

10 1 « A Tocha>>, Ü Archote>>. (N. da T.)


«
a sociedade. Gostava muito da mulher e dos filhos e nunca se afas­
tava de casa mais que o tempo necessário para uma curta caçada.
Aos olhos do globe trotter americano, ele era a personificação des­
se culto de uma respeitabilidade feliz e de um luxo comedido,
caracteristicas que o viajante sabia ver e apreciar nos povos medi­
terrânicos. O viajante inveterado do Oeste sentia-se feliz por po­
der repousar durante algum tempo naquele rochedo do Sul onde se
acumulara tanto musgo. Mas Mr. Chace ouvira falar do padre
Brown e, ao dirigir-se-lhe, alterou ligeiramente o tom de voz,
como quem se dirige a uma celebridade. O seu instinto inquisitó­
rio despertou, subtil mas tenso. E se agiu com o padre Brown como
se ele fosse um dente que pretendemos arrancar, fê-lo com a extre­
ma habilidade e ausência de dor da melhor odontologia americana.
Estavam sentados numa espécie de pátio exterior parcialmen­
te descoberto, desses que vulgarmente constituem a entrada das
casas espanholas. O crepúsculo ia dando lugar à escuridão e, como
o ar da montanha arrefece de repente depois do pôr do Sol, havia
um pequeno fogão sobre as ]ages, com os seus olhos cintilantes e ru­
bros de demónio, pintando no chão formas vermelhas. No entan­
to, os raios luminosos mal chegavam aos tijolos inferiores do gran­
de muro castanho e nu que se erguia acima deles, desaparecendo
na noite escura. O vulto de Flambeau, de ombros largos e bigode
de pontas aceradas como sabres, distinguia-se vagamente na pe­
numbra, mexend(}-se de um lado para o outro, servindo o vinho es­
curo que ia tirando de uma grande pipa. No seu canto, na penum­
bra, o padre parecia muito pequeno e encolhido, como se estivesse
debruçado sobre o fogão, enquanto o visitante americano, inclina­
do para a frente com elegância, apoiava o cotovelo no joelho, apre­
sentando à luz o rosto fino e alongado, onde os olhos lhe brilhavam
com inteligência curiosa.
-Posso garantir-lhe - disse ele -, que consideramos a sua
participação no caso do <<Homicídio ao Luar>> o mais notável triunfo
conseguido na história da investigação policial.
O padre Brown murmurou qualquer coisa que podia muito bem
confundir-se com um gemido.
-Todos nós estamos a par- prosseguiu com firmeza-, das
pretensas façanhas de Dupin e de outros que tal, como Lecocq,
Sherlock Holmes, Nicholas Carter e outras figuras imaginárias.
Mas constatamos que existe uma diferença notável, em muitos as­
pectos, entre o seu método de investigação e o desses pensadores,
sejam eles fictícios ou reais.Tem-se especulado sobre se essa di­
ferença de método não será antes uma ausência de método.
O padre Brown manteve-se calado por instantes.De súbito es­
tremeceu, como se tivesse estado a cabecear sobre o lume, e disse:
-Desculpe ... sim ... ausência de método. E ausência por dis-
tracção, receio bem. 11
-Eu diria que se trata de um método científico rigorosamente
estabelecido- prosseguiu o outro.- Edgar Poe improvisa uma
série de pequenos ensaios em forma de diálogo para explicar o mé­
todo deDupin com os seus admiráveis elos de lógica. O Dr. Watson
teve de ouvir diversas exposições do método de Holmes com a res­
pectiva observação de detalhes materiais. No entanto, parece que
ninguém ainda apresentou uma descrição do seu método, padre
Brown, e, segundo me disseram, o senhor recusou uma proposta no
sentido de fazer uma série de palestras nos Estados Unidos sobre
este tema.
- Sim, recusei a proposta - concordou o sacerdote olhando
para o lume e franzindo o sobrolho.
-A sua recusa deu lugar a comentários deveras interessantes
-observou Chace.-Posso afirmar que alguns dos meus compa-
triotas são de opinião que a sua ciência não pode ser divulgada, vis­
to tratar-se de algo mais que uma simples ciência natural. Dizem
até que o seu segredo não pode ser divulgado, por ser de natureza
oculta.
-Por ser o quê?- perguntou o padre Brown num tom brusco.
- Ora, de natureza esotérica-replicou o outro.-Posso ga-
rantir-lhe que as pessoas ficaram extraordinariamente impre­
ssionadas com o assassínio de Gallup, com o de Stein, depois com
o do velho Merton e ultimamente com o do juiz Gwynne e com o du­
plo homicídio deDalmon, que era um homem muito conhecido nos
Estados Unidos. E lá estava o senhor, em cima do acontecimento,
sempre no momento exacto, pronto a explicar a toda a gente o que
tinha acontecido, sem no entanto revelar como o descobrira. Daí
haver quem pensasse que o senhor sabia as coisas sem precisar de
vê-las, digamos assim. Carlotta Brownson até proferiu uma con­
ferência sobre «Formas de Pensamento>>, indo buscar exemplos a
esses seus casos. A Irmandade da Segunda Visão, de Indianó­
polis ...
O padre Brown, de olhos postos no fogão, observou em voz alta,
como se não tivesse consciência de que o estavam a ouvir:
-Pois é, isto não pode continuar.
-Não sei bem como é que irá evitá-lo-replicou Mr. Chace de
bom humor.-A irmandade da Segunda Visão gosta de ir ao fun­
do das coisas. A única forma que eu vejo de o senhor acabar com isto
é revelar-nos o segredo.
O padre Brown resmungou qualquer coisa e em seguida deixou­
-se ficar em silêncio, com a cabeça apoiada nas mãos, como se ti­
vesse sido assaltado por um turbilhão de ideias. Finalmente er­
gueu a cabeça e declarou num tom grave:
-Muito bem, tenho de revelar o segredo.
Deixou correr o olhar em volta, pelo cenário mergulhado na
12 sombra, passando das cintilações rubras do pequeno fogão à rígi-
da exten são do velho muro, acima do qual sobressaíam cada vez
mais brilhantes as estrelas do sul de intensa luminosidade .
- O segredo - declarou - é o seguinte. - Dito isto calou-se ,
como se não fosse capaz de continuar. Depois retomou a palavra e
concluiu: - Fiquem sabendo que fui eu que matei essas pessoas.
- O quê? - perguntou o outro em surdina, no meio de um si­
lêncio profundo.
- Fui eu próprio que os assassinei - explicou o padre Brown
com toda a paciência. - Por isso consegui explicar tão bem com o
a s coisas s e passaram.
Grandison Chace erguera-se em toda a sua imponência, como
se uma lenta explosão o houvesse impelido em direcção ao tecto. Fi­
tando atónito o seu interlocutor, repetiu m ais uma vez a incré du­
la pergunta.
- Planeei cuidadosamente cada um dos crimes - prosseguiu
o padre Brown . - Pensei com exactidão como executar uma coisa
daquelas e qual o estilo ou o estado de espírito necessário para se
poder levar a cabo uma tal tarefa. E quando me senti na pele do cri­
minoso, estava em con dições de saber quem ele era.
Chace libertou gradualmente uma espécie de débil suspiro.
- Sim senhor, conseguiu assustar-me! - observou . - Por mo­
mentos pensei que estaria a fal ar a sério quando disse que era o as ­
sassino. Já estava mesmo a imaginar a notícia impressa em todos
os jornais dos Estados Unidos: «O Piedoso Detective Revelou-se
Um Assassino: Os Crimes do Padre Brown.>> Mas claro se se tra­
ta apenas de uma figura de retórica para nos explicar a form a co­
mo tentou reconstituir a psicologia . . .
O padre B rown bateu secamente n o fogão com o cachimbo cur­
to que se preparava para encher. Um dos seus raros espasmos de
enfado contraiu-lhe o rosto.
- Não, não, não - insistiu, qp.ase zangado. - Não se trata
apenas de uma figura de retórica. E isto que acontece quando uma
pessoa tenta falar de assuntos profundos . . . Mas afinal para que
servem as palavras? Quando alguém resolve referir-se a uma ver­
dade meramente moral , todos pensam que se trata de uma metá­
fora. Um homem vivo, real , com duas pernas, confessou-me, uma
vez: «Só acredito no E spírito Santo num sentido espiritual.>> E cla-
ro que respondi : «Em que outro sentido poderia acreditar?>> E foi
então que ele se convenceu de que, na minha opini ão, ele não pre­
cisava de acreditar em nada, a não ser na evolução, na fraternida-
de ética ou noutra treta qualquer . . . O que eu quis dizer foi que ima­
ginei o meu próprio eu, real, a cometer esses crime s . Não matei os
homens servindo-me de bens materiais, mas não é essa a questão.
Qualquer tij ol o ou outro instrumento podia tê-los morto. Quero
com isto di zer que pensei e tornei a pensar em como é que um
homem se pode tornar num homicida, até chegar à conclusão de 1 J
que eu era realmente assim em tudo, excepto no que diz respei to
ao desfecho final da acção. Isso foi-me sugerido uma vez por um
amigo, como sendo uma espécie de exercício religioso. Julgo que ele
se i nspirou no papa Leão XIII, que, ali ás , foi um dos meus herói s .
- Receio be m que tenha de m e explicar muita coisa para e u
conseguir compreender o que me di z - observou com ceptici smo
o americano, sem desviar os olhos do padre, como se este fosse um
animal selvagem. - A ciência da detecção . . .
O padre Brown d e u um estalo com os dedos, mantendo o mes­
m o ar contrariado.
-É isso mesmo - exclamou. - É precisamente aí que nós di ­
vergimos. A ciência é algo extraordinário quando conseguimos
apreendê-la. Na sua verdadeira acepção, é uma das palavras mais
admirávei s do mundo. Mas, nove vezes em dez, que quererão di zer
as pessoas quando a utili zam hoje em dia? Quando afirmam que
a detecç ão é uma ciênci a? Quando garantem que a criminologi a é
uma ciência? Entendem que ela consiste em estudar exteriormen­
te um homem como quem estuda um insecto gigantesco, de uma
forma que consideram crua e imparcial e que eu apeli daria de mor­
ta e desumanizada. Entendem que é permanecer muito longe de­
l e como se de um monstro pré-histórico se tratasse, observar o for­
mato do seu <<crânio de criminoso», qual fantástica excrescência,
semelhante ao chifre no focinho do rinoceronte . Quando o cienti s­
ta se refere a um tipo, nunca está a pensar em si próprio, mas sim
no seu semelhante , provavelmente no seu semelhante mais pobre.
Não nego que a luz crua possa por vezes oferecer vantagens, em­
bora seja, num certo senti do, exactamente o reverso da ciência.
Longe de se tratar de conhecimento, é de facto a supressão daqui ­
lo que sabemos . Equivale a tratar um amigo como um estranho e
a si:gmlar que uma coi sa familiar é na verdade remota e misterio­
sa. E como afirmar que um homem tem uma tromba entre os olhos
ou que mergulha numa crise de i nsensibili dade uma vez em cada
vinte e quatro horas . Ora bem, aquilo a que chama «O segredo» é
precisamente o contrário. Eu não tento colocar-me fora do homem.
Procuro entrar dentro do assassi no ... De facto é muito mai s que is­
so, não vê? Eu estou dentro dele . Estou sempre dentro de um ho­
mem que mexe os braços e as pernas, mas aguardo até saber que
me encontro dentro de um assassino, cogitando os seus pensamen ­
tos e lutando com as s u as paixões, até me adaptar à s u a forma d e
estar, sempre à espreita e dominado pelo ódio, até conseguir obser­
var o mundo com os seus olhos congestionados e vesgos, perscru­
tando através dos antolhos da sua concentração alucinada, em
busca da hipótese mais fácil e directa de encontrar o caminho que
conduza directamennte a um mar de sangue . Até me tornar real ­
mente um assassino.
14 - Oh ! - exclamou Mr. Chace, observando-o com uma expres-
são grave e austera, e acrescentando: - E o senhor chama a i sso
um exercício religioso.
- Sim - retorquiu o padre Brown . -É preci sam e nte a i sto que
chamo um exercício reli gioso.
Após uns momentos em sil êncio, prosseguiu:
-E é-o de tal forma que mais valia não ter dito nada sobre i s­
to. Mas não podia consentir de modo algum que andasse por aí a
di zer aos seus compatriotas que eu utilizo uma magi a secreta
relacionada com formas de pensamento, p oi s não? Talvez não me
tivesse explicado bem, mas é verdade. Um homem só pode consi­
derar-se realmente bom quando descobrir até que p onto é mau ou
poderá vir a sê-lo, até perceber exactamente que direito é que tem
de se mostrar arrogante e desdenhoso e de se referir aos <<crimino­
sos» como se fossem gorilas, numa floresta a dez mil quilómetros
de di stância, até se libertar do i nfame convencimento com que fa­
la de tipos de baixo nível e mentes débei s, até espremer da sua al­
ma a última gota do óle o dos fariseus, até a sua única esperança
consistir em ter capturado um criminoso, conservando-o são e sal ­
vo, sob a sua alçada.
Flambeau aproximou-se, encheu uma grande taça de vinho es­
panhol e colocou-a diante do amigo, tal como já fizera em relação
ao outro vi sitante . Em seguida, falou pela primeira vez:
- Creio que o padre Brown se tem visto a braços nestes últimos
tempos com uma nova série de mi stéri os. Ainda um destes dias es­
tivemos a fal ar nisso. Suponho tem lidado com pessoas bem estra­
nhas desde o nosso último encontro.
- Na verdade tenho uma vaga i deia dessas hi stórias, mas des­
conheço os pormenores das investigações - declarou Chace, er­
guendo o copo pensativamente . - E capaz de me falar de alguns
exem plos? E stou cá a pensar se . . . diga-me uma coisa, utili zou es­
se seu método introspectivo nestes últimos casos?
O padre Brown também ergueu o seu copo e o brilho do fogo
tornou o vinho tinto transparente, fazendo lembrar o glorioso ver­
melho sangue do vitral representando um mártir. A chama rubra
parecia pren der o olhar do sacerdote e absorvê-lo, levando-o a
mergulhar cada vez mai s fundo, como se aquela simples taça en­
cerrasse um m ar vermelho de sangue de todos os homens e a sua
alma fosse um mergulhador, penetrando numa humil dade som ­
bria e imaginação inverti da, mai s fundo q u e os monstros mai s i n ­
fames e o s lodos mai s antigos. Nessa taça, como num espelho en­
carnado, via muitas coi sas: os acontecimentos dos últimos dias,
num movimento de sombras carmesim ; os exemplos que os outros
lhe haviam solicitado, voltavam num bailado de figuras simbólicas
e assim desfilaram diante dos seus olhos todas as hi stórias que
aqui serão contadas . O vinho lumi noso era como um enorme pôr do
Sol rubro sobre as areias de um tom vermelho escuro, onde se er- 1 5
guiam vultos negros de homens - u m estava caído e outro corria
para ele. Em segui da, o pôr do Sol pareceu romper-se em fragmen­
tos: lanternas vermelhas balouçando-se nas árvores de um jardim
e um lago com reflexos do mesmo tom . E então a cor voltou a uni­
ficar-se, transformando-se numa grande rosa de cristal verme­
lho, uma jóia que iluminava o mundo como um sol rubro, à excep­
ção de um vulto de grandes dimensões, de turbante, qual sacerdo­
te pré-histórico, para depois voltar a desaparecer até não restar
mai s que um fogacho de barba hirsuta e ruiva, arrastado pelo ven­
to por sobre um pântano agreste e soturno. Todas estas coi sas, que
mai s tarde poderão ser observadas sob outra perspectiva e em es­
tados de espírito que não o seu, lhe vieram à memória na altura em
que o assunto foi trazi do à baila, passando a tomar a forma de his­
tórias e de enredos.
- Si m - disse o sacerdote, levando l entamente o copo de vi nho
aos lábios . - Lembro-me perfeitamente . . .

16
CAPÍTULO I

O ESPELHO DO MAGISTRADO

James Bagshaw e Wilfred Underhil1 eram velhos amigos e gos­


tavam muito de vaguear à noite pelas ruas, numa conversa inter­
minável, dobrando esquina após esquina, naquele labiri nto silen­
cioso e aparentemente sem vi da do enorme subúrbio on de viviam .
O primeiro, um sujeito grande, moreno e bem humorado, de bigo­
dinho preto, era detective de profissão e trabalhava na polícia. O
outro, um gentleman de rosto afilado, olhar arguto e cabel os loiros
era um am ador interessado na detecção . Poderão ficar chocados os
leitores dos m elhores romances científicos se eu lhes di sser que era
o polícia que falava, enquanto o amador o escutava, evidenciando
mesmo um certo re speito.
-O nosso ofício é o único em que se consi dera que o profi ssio­
nal está sempre errado - dizia Bagshaw. - Afinal de contas, nin­
guém escreve histórias em que os barbeiros não sabem cortar o ca­
belo e têm de pedir aj uda a um cliente , ou em que o motorista de
táxi não sabe conduzir até que um passageiro lhe explique como
con duzir . Ape sar de tudo isso, nunca neguei a tendência que temos
muitas vezes de entrar na rotina. Ou, por outras palavras, as des­
vantagens de seguirm os um sistema de regras.
- Decerto! Sherlock Holmes diria que se guiava pelas regras
da lógica - observou Underhil l .
- E provavelmente tinha razão - retqrquiu o outro-, m a s eu
referia-me a um regulamento colectivo. E como o trabalho admi­
nistrativo de um exército. Encarregamo-nos de recolher infor­
mações.
- E acha que os romances policiais não tomam isso em consi­
deração? - indagou o amigo.
- Bom , vejamos como exemplo qual quer um dos casos imagi­
nários de Sherlock Holmes e Lestrade, o detective oficial . Sherlock
Holmes, digamos, consegue deduzir que um sujeito compl etamen-
te desconhecido que vai a atravessar a rua é estrangeiro, apenas
pelo facto de el e olhar primeiro para a esquerda e depoi s para a di- 17
rei ta. Estou pronto a admitir que Holmes é capaz de o deduzir e
Lestrade não. No entanto, excluem uma hipótese: embora incapaz
de fazer tal raciocínio, o polícia provavelmente j á estava a par des­
se facto. Com efeito, Lestrade podia saber que se tratava de alguém
de fora, uma vez que o seu departamento tinha obrigação de vigiar
todos os estrangeiros. Aqui, poderia acrescentar-se que essa vi gi­
l ância deveria estender-se a todos os ci dadãos nacionai s . Como
polícia alegra-me que a instituição onde trabalho esteja tão bem
informada, pois qualquer pessoa gosta de desempenhar conve­
nientemente as suas funções. Mas, como cidadão, às vezes pergun­
to-me se a informação não é excessiva.
- Não me diga que está a fal ar a sério! - exclamou Underhill ,
i ncrédulo. - Quer di zer q u e sabe tudo acerca d e toda a gente de
uma qualquer rua desconheci da? Se um homem saísse agora da­
quela casa, você saberia tudo a seu respeito?
- Certamente, se se tratasse do locatário - respondeu B ags­
haw. - Aquela casa está alugada a um escritor de origem anglo­
-romena que vive normalmente em Pari s, mas que se encontra ac­
tualmente no nosso país por causa da apresentação de uma obra
da sua autoria. Chama-se Osric Orm e pertence à nova vaga de
poetas, muito difícil de ler, aliás, segundo consta.
- E quanto aos outros moradores da rua? - indagou o outro.
- E stava a pensar em como tudo me parece estranho, novo e anó-
nimo, com estes m1,1ros altos e nus, estas casas perdi das no mei o de
j ardins enorme s. E impossível que os conheça a todos .
- Conheço al guns - respon deu Bagshaw . - Este muro, por
exemplo, ao longo do qual cami nhamos, limita a propri edade de Sir
Humphrey Gwynne, mais conheci do por juiz Gwynne, o velho ma­
gistrado responsável por toda aquela polémica que houve duran­
te a guerra em torno da espionagem. A casa a seguir pertel}ce a um
rico negociante de charutos, que vei o da América Lati na. E um su­
j eito bastante moreno e com ar de espanhol , mas usa um nome
muito inglês: Buller. A casa que fica por detrás dessa . . . ouviu aque­
l e barulho?
- Sim, pareceu-me ouvir qualquer coisa, mas não faço ideia do
que seja - di sse Underhill.
- Poi s eu sei - replicou o detective -, foram doi s tiros de re­
vólver de grande calibre, segui dos de um grito de socorro. Os sons
vieram direitinhos do jardim que fica por detrás da casa do juiz
Gwynne, esse paraíso de paz e de legalidade .
Olhou rapidamente para ambos os sentidos da rua e acrescen­
tou:
- E o único portão das traseiras fica a cerca de uns oitocentos
metros daqui , do outro lado do muro. Gostaria que este muro fos­
se um pouco mais baixo ou eu um pouco mais leve, mas é preciso
18 tentar.
- Ali adiante não é tão alto - observou U nderhill -, e há uma
árvore que talve z possa servir de ajuda.
Caminharam apressadamente ao longo do muro até chegarem
a um ponto onde a parede parecia inclinar-se de repente, como se
tivesse sido parcialmente tragada pela terra; ai, uma árvore de jar­
dim, flamejante, com os seus ramos cobertos de flores, emergia do
recinto escuro, embelezada pela luz de um candeeiro solitári o.
Bagshaw agarrou-se ao ramo torcido e passou uma perna por ci­
ma do muro baixo. Dali a pouco achavam-se os dois do outro lado,
submersos até ao joelho no meio do elegante arranjo de flores de
um canteiro.
O jardim do juiz Gwynne constituía um espectáculo invulgar
visto à noite . Ocupava uma vasta área e situava-se na orla desa­
bitada do subúrbio, à sombra de uma casa al ta e escura, a úl tima
daquela rua. A casa estava literalmente às escuras, de janelas
cerradas e sem luz, pelo menos do lado sobranceiro ao jardim . Mas
este , situado à sombra do edifício e que, por isso mesmo, deveria es­
tar mergulhado na m ai s absoluta escuri dão, ostentava um brilho
despropositado, como o de um fogo de artifíci o que se extingue. Era
comç se um foguete gigante se tivesse despenh ado entre as árvo­
res. A medida que foram avançan do, perceberam que se tratava da
luz proveniente de diversas lanternas coloridas, que pendiam das
árvores como os frutos preciosos de Aladi n o. A mai s forte provinha
de um pequeno lago re dondo, ilumi nado com cores pálidas, como
se tivessem acen di do um foco sob as águas.
- Será que é um a fes ta? - indagou Underhil l . - O jardim pa­
rece tão iluminado . . .
- N ão - retorquiu Bagshaw. - Este é o passatempo d o juiz .
E, segundo creio, prefere fazer isto quan do está sozi nho. Gosta de
brincar com a instal ação el éctrica, cujos coman dos se encontram
ali, naquel a cabana on de ele costuma trabalhar e guardar as pa­
peladas. Buller, que o conhece muito bem, diz que as l âmpadas co­
loridas são o sinal que ele costUIUJil. usar quando não quer ser inco­
modado.
- Uma espécie de sinais vermelhos de perigo - sugeriu o ou­
tro.
- Santo Deus! Receio bem que sejam mesmo sinais de perigo!
- e, de súbito, desatou a correr.
Pouco depois Underhill viu o que o companheiro descobrira. O
anel opale scente de luz, semelhante ao hal o que rodeia a lua, em
volta das margens do l ago estava cortado por duas faixas negras,
imediatamente identificadas como sendo as longas pernas de um
homem que se encontrava caído, com a cabeça enfiada no lago.
- Venha cá - gritou o detective -, parece-me que . . .
Tinha perdido a voz, enquanto corria através d o extenso relva-
do, ligeiramente iluminado pela luz artificial , seguindo em linha 1 9
recta em direcção ao lago e ao vulto caído . Underhill seguia o mes­
mo trajecto num passo rápido e firme, quando algo na atitude do
amigo lhe provocou um sobres salto . Bagshaw, que corria rápido
como uma bala para o corpo caído junto ao lago iluminado, fe z um
súbito desvio e começou a correr ainda mais depressa em direcção
à casa. Underhill não fazia i deia do motivo que o levara a mudar
de trajecto . Dali a pouco, já o detective havia desaparecido no es­
curo, e ouviu-se, vindo de ssa zona, um barulho de briga e al guém
a praguejar após o que Bagshaw apareceu, arrastando con sigo um
homenzinho ruivo que se debatia, tentando libertar-se. O cativo
havia-se obviamente escapado, procurando abrigar-se junto do
edifício, mas o ouvido apurado do detective detectara a restolhada
que ele fazia entre os arbustos.
- Underhill, agradecia-lhe que fosse depressa até ao lago ver
o que se passa - pe diu o detective . - E agora diga-me lá, quem
é você? - perguntou ao desconhecido. - Como é que se chama?
- Michael Flood - respondeu o homem com despacho. Era um
sujeito baixo e anormalmente magro, de nariz adunco e demasiado
largo para o tamanho do rosto, tinha uma pele sem cor, que fazia
lembrar pergaminho, em contraste com o tom avermelhado do ca­
belo. - E u cá não tenho nada a ver com isto. Encontrei-o ali mor­
to e fiquei assustado. Só aqui vim com a ideia de o entrevistar para
um jornal .
- Quando vai entrevistar celebri dades costuma trepar pel o
muro do jardim? - i n dagou Bagshaw, apontando com um ar sole­
ne para as pegadas que se viam no chão, em sentidos opostos, na
direcção do canteiro.
O homem que atribuíra a si próprio o nome de Flood fez uma ex­
pressã9 i gualmente solene.
- E muito possível que o entrevistador por vezes se veja obri­
gado a saltar os m uros - retorquiu ele . - Toquei à porta e nin­
guém me atendeu . O empregado tinha saído.
- Como é que sabe? - perguntou o detective, desconfi ado.
- Sei, porque não sou a única pessoa que salta os muros do jar-
dim. Tudo me leva a crer que o senhor também o fe z - replicou
Flood com uma calma quase irreal . - Mas, seja como for, o certo
é que o empregado saltou mesmo o muro, pois vi-o fazer isso junto
do portão, do outro l ado do jardim .
- E p or que é que ele não se serviu do portão? - perguntou o
inquiri dor.
- Sei lá. Se calhar porque estava fechado. Mas o melhor será
perguntar-lhe a ele . Olhe, ei-lo precisamente neste momento a
aproximar-se da casa.
Com efeito, começou a avistar-se um outro vulto, através do
clarão. Era uma fi gura atarracada e de cabeça quadrada, que usa-
2O va um colete encarnado, peça que sobressaía do resto da indumen-
tc-iria, uma libré bastante coçada. O homem parecia dirigir-se com
uma certa pressa para uma porta lateral da casa, quando Bagshaw
o chamou, obrigando-o a parar. Aproximou-se então deles com
uma certa relutância, revelando um rosto amarelo, de expressão
marcada, onde se notavam uns certos traços asiáticos que condi­
ziam com o negro azulado do cabelo.
Bagshaw voltou-se bruscamente para o homem chamado
Flood.
- Haverá alguém na casa que possa confirmar a sua identi­
dade?
-Duvido que haja sequer muitas pessoas neste país que me co­
nheçam-resmungou Flood.-Acabo de chegar da Irlanda. A úni­
ca pessoa que conheço nas redondezas é o padre da igreja de St. Do­
minic, o padre Brown.
- Nenhum dos senhores tem licença de sair daqui- declarou
Bagshaw. E, dirigindo-se ao empregado, acrescentou: - No en­
tanto, você pode ir dentro de casa e telefonar para o presbitério de
St. Dominic a pedir se o padre Brown não se importa de vir até cá
imediatamente. Mas nada de truques, ouviu?
Enquanto o dinâmico detective tomava conta dos potenciais fu­
gitivos, o seu companheiro, de acordo com as suas directrizes, acu­
dira prontamente à verdadeira cena da tragédia. Tratava-se, com
efeito, de uma cena bem estranha e, se não fosse o aspecto trági­
co do acontecimento, poderia ser considerado algo de verdadeira­
mente fantástico. O morto- o mais sumário dos exames confir­
mou tal facto - jazia no chão, com a cabeça mergulhada no lago,
enquanto o brilho da iluminação artificial a rodeava, provocando
um efeito semelhante a um halo enorme. O rosto apresentava-se
esquálido e assaz lúgubre, e, na cabeça, calva na parte anterior, os
caracóis de um grisalho ainda escuro, pareciam anéis de ferro.
Apesar dos estragos produzidos pela bala, que lhe atingira uma
têmpora, Underhill não teve dificuldade em reconhecer as feições
reproduzidas nos muitos retratos de Sir Humphrey Gwynne que
já tivera ocasião de ver. O morto envergava trajo de noite e as suas
longas pernas com calças pretas, tão finas como as de uma aranha,
estendiam-se em ângulos diferentes sobre o declive inclinado da
margem onde caíra. Como por capricho do destino, de arabesco dia­
bólico, o sangue brotava muito lentamente, desenhando na água
luminosa um serpentear de círculos de um tom vermelho transpa­
rente que lembrava o colorido das nuvens ao pôr do Sol.
Underhill não sabia ao certo quanto tempo estivera a observar
esta macabra figura quando, ao levantar a cabeça, avistou um
grupo de quatro pessoas que conversavam um pouco mais longe.
Reconheceu Bagshaw e o seu prisioneiro irlandês e não teve difi­
culdade em adivinhar o estatuto do empregado, com o seu colete
vermelho. No entanto, a quarta figura apresentava uma espécie de 21
solenidade grote sca que, curiosamente, parecia estar adequada
àquela incongruência. Tratava-se de uma figura baixa e atarraca­
da, de rosto redondo e um chapéu de aba l arga que mai s pareci a um
halo preto. Percebeu então que se tratava de um padre. Contudo,
havia algo nele que lhe fazia lembrar uma estranha imagem pre­
ta esculpida em madeira e representada na Dança da Morte.
Ouviu Bagshaw dizer ao sacerdote :
- E stou sati sfeito por ver que conhece este individuo, mas tell_l
de compreender que até certo ponto ele constitui um suspeito. E
claro que pode estar inocente ; no entanto, entrou no jardim de uma
forma irregular.
- Bom , eu também estou convencido de que ele está inocente
- observou o padre num tom inexpre ssivo. - Mas é evidente que
me posso ter enganado.
- Que é que o leva a considerá-lo inocente?
- O facto de ele ter entrado no jardim de forma irregular - re-
torquiu o sacerdote . - Como sabe, eu entrei aqui de uma manei­
ra norm al , m as pelo que vejo fui o único. Parece que hoje em dia
qualquer pessoa que se pre ze prefere saltar os muros.
- Que é que entende por maneira n ormal? - indagou o detec­
tive.
- Bom - retorquiu o padre Brown , fitando-o com um ar cir­
cunspecto -, entrei pela porta da frente . Geralmente é assim que
faço.
- Desculpe - interveio Bagshaw -, mas acha que é assim tão
importante a forma como entrou aqui? A não ser que queira con­
fessar o crime.
- Pois quanto a mim , acho que isso interessa - tornou o pa­
dre, com brandura. -A verdade é que q uando vinha a entrar aper­
cebi-me de algo que penso ter escapado a todos vocês e que eu con­
sidero importante neste caso.
·

- Que é que viu?


- Uma grande confusão - declarou o padre Brown, no mesmo
tom calmo. - Um enorme espelho partido, uma pequena palmei­
ra tombada e o vaso feito em cacos no meio do chão. Pareceu-me
que alguma coisa se passou ali .
- Tem razão - retorquiu Bagshaw. - Realmente d á ideia de
que isso estará relacionado com o caso.
- Ora, precisamente se assim for, há uma pessoa que nada tem
a ver com isto, segundo me parece - di sse o sacerdote . - Trata­
-se de Mr. Michael Flood, que entrou aqui de uma forma irregu­
lar, saltando por cima do muro, e que depois tentou sair pelo mes­
mo processo. E exactamente essa irregularidade que me leva a crer
na sua inocência.
- Vamos para dentro de casa - di sse Bagshaw subitamente .
22 Ao entrarem por uma porta lateral, guiados pel o empregado,
Bagshaw deixou-se ficar um pouco para trás e dirigiu-se ao
ami go.
- Há qualquer coisa de estranho em relação ao criado - obser­
vou.
- Diz que se chama Green, mas não me parece. No e ntanto, tu­
do indica que se trata realmente do criado de Gwynne, o único que
ele tinha. Mas o mai s esquisito é que ele negou que o patrão esti­
vesse no j ardim, morto ou vivo. Declarou que o jui z tinha ido a um
banquete , facto que ele aproveitou para se escapar de casa, uma
vez que o patrão iria estar ausente durante algum as horas.
- E ele apresentou alguma desculpa por ter entrado em casa
daquela maneira tão e stranha? - indagou Underhi l l .
- Não, n ã o explicou n ada d e j eito. Não consigo percebê-lo. Pa­
rece estar assustado com qualquer coi sa.
Ao transporem a porta lateral, encontraram-se na extremi ­
dade do corredor que s e esten dia a o longo d a casa até à entrada
principal, cuja porta ostentava uma bandeira antiquada e lúgu­
bre . Uma luminosidade ténue, desmaiada, começava agora a so­
brepor-se à escuridão, como um pálido raiar de aurora. No entan­
to, a única luz ali exi stente provi nha de um candeeiro, também ele
de um modelo antigo, assente num suporte, a um canto do vestí­
bulo. Essa 1 uz permitiu a Bagshaw observar os estragos a que o pa­
dre Brown se referira. Uma palmeira alta de longas folhas encon­
trava-se caída no chão e o vaso vermelho quebrado em pedaços. Os
cacos espalhavam-se pelo tapete juntamente com os de um es­
pelho, cuja,moldura, quase vazia, pendi a <;la parede ao fun do do
veshbulo. A direita da porta principal da casa e do lado oposto
àquela por onde tinham entrado, havia uma outra p assagem se­
melhante, que conduzia ao resto da habitação e no extremo da qual
se via o telefone de que o criado se servira para chamar o padre e
ainda uma porta entreaberta, através de cuja fresta se avistavam
fileiras cerradas de grandes livros com encadernações em pele, in­
dicando ser ali o escritório do juiz.
Bagshaw ficou a olhar para o vaso caído e para os cacos espa­
lhados a seus pés.
- Tem toda a razão - disse para o padre -, houve aqui luta.
E foi sem dúvida entre Gwynne e o assassino .
- Realmente pareceu-me q u e tinha acontecido aqui qualquer
coi sa - observou modestamente o sacerdote .
-É bem claro o que aqui se passou - afirmou, peremptório, o
detective. - O criminoso entrou pela porta principal e deparou-se
com Gwynne, que, provavelmente , o deixou entrar. Houve luta re­
nhida e talvez um tiro ocasional que atingiu o espelho, embora
também o possam ter quebrado na confusão da luta. Gwynne con­
seguiu escapar-se e fugir para o j ardim, ten do si do perseguido pe-
lo assassino que finalmente o alvejou a tiro à beira do lago. Pare- 23
ce-me ser esta a história do crime . No entanto, preciso de inspec­
cionar o resto da casa.
Os outros aposentos, porém, pouco revelaram de interessante,
embora Bagshaw tivesse consi derado significativa a descoberta de
uma pi stola automática carregada, que encontrou numa gaveta da
secretária da biblioteca.
- Dá a impressão de que ele estava à espera que isto aconte ­
cesse - observou o detective. - Mas também é estranho não ter
l evado a arma quando foi abrir a porta.
O grupo regressou ao vest:tbulo e encaminhou-se para a porta
de entrada, enquanto o padre Brown olhava em volta, muito pen­
sativo. Nos dois corredores, monótonos, forrados com o mesmo pa­
pel cinzento desbotado, sobressaíam o pó e a sujidade a cobrir os
escassos ornamentos vitorianos, o verdete que devorava o bronze
do candeeiro e o dourado baço da moldura do espelho partido.
- Dizem que partir espelhos dá azar - observou. - Parece a
casa dp. má sorte. Até a própria mobília . . .
- E estranho - atalhou Bagshaw. - Pensei que a porta d a en­
trada e stivesse fechada à chave, mas afinal está apenas no trinco.
Ninguém fez qualquer comentário e saíram para o jardim que
ficava em frente da casa. Era também um espaço florido, embora
fosse m ai s reduzido e estive sse arranj ado de uma maneira mais
formal . Numa das extremidades deste recinto, via-se uma sebe
aparada de forma curiosa, com uma abertura, como uma gruta ver­
de, sob cuja sombra se vislumbravam alguns degraus parti dos.
O padre Brown encaminhou-se para lá e enfiou primeiro a
cabeça e depois o corpo. Dali a pouco, depois de ele ter desapare­
ci do completamente, ficaram surpreen didos ao ouvi-lo falar cal­
mamente por cima das suas cabeças, como se estivesse em poleira­
do numa árvore a conversar com alguém . O detective resolveu i mi­
tá-lo e descobriu que os estranhos degraus conduziam a uma es­
pécie de ponte em ruínas que se elevava acima da zona mais escura
e erma do jardim . Contornava a esquina da casa até ao ponto de on­
de se avistava o campo de luzes, que se estendia l á em baixo um
pouco mais adiante . Tratava-se, provavelmente, da relíquia de al­
gum capricho arquitectónico entretanto abandonado, de fazer
uma espécie de terraço assente em arcadas, a atravessar o relva­
do. Bagshaw achou que era um sítio bem estranho, aquele cu! de
sac1, para encontrar alguém àquelas horas mortas, entre a noi te e
o dia - de qualquer forma não seria a altura adequada para se re­
parar em pormenores desse tipo. O que interessava era o sujeito
que ali encontrara e para quem estava agora a olhar.

24 1 Cul de sac - beco sem saída. (N. da T.)


De costas voltadas, baixa estatura, e envergando um fato cin­
zento claro, o único pormenor que sobressaía naquele in dividuo
era a sua formidável cabeleira, tão loira e desl umbrante como um
enorme dente-de-leão. Parecia-se de tal maneira com um halo
que essa associ ação fe z com que o resto, ao voltar-se lentamente,
provocasse neles um choque por contraste . Essa auréola devia en­
volver um ros to arre don dado e angeli cal , m as aquele , pel o contrá­
ri o, era velho e desagradável , de maxilares fortes e nari z curto, fa­
zendo de certo modo l embrar o dos pugili stas.
- Este senhor, se não me engano, é Mr. Orm, o consagrado poe­
ta- di sse o padre Brown com a calma de q uem está a apresentar
duas pessoas numa sal a de visitas.
- Seja quem for, terá de me acompanhar e de responder a umas
perguntas - decl arou Bagshaw.
Mr. Osric Orm, o poeta, não se mostrou propriamente um m o­
del o de loquaci dade quando chegou o momento de responder às
tai s perguntas. Al i , naquele canto do velho jardim , enquanto o
crepúsculo cinzento que antecede a manhã começava a trepar por
detrás das sebe s e da ponte em ruínas, e após toda um a série de cir­
cunstâncias e etapas da investigação policial, cada vez mais amea­
çadoras, recusou-se a dizer fosse o que fosse, afirmando apenas
que tencionava vi sitar Sir Humphrey Gwynne, mas não consegui­
ra, uma vez que ninguém viera atender à porta. Quando lhe foi di ­
to que a porta se encontrava praticam ente aberta, resmungou
qualquer coi sa. Quan do al guém sugeriu que era um bocado tarde
para fazer vi sitas, limi tou-se a rosnar . O pouco que di sse não foi
muito claro, ou por falar mal inglês ou por achar que era o melhor
que tinha a fazer. As suas opiniões pareciam se.r do tipo niili sta e
destrutivo, tal como o era a sua poesia para aqueles que a conse­
guiam entender. E podia pôr-se a hi póte se de que o assunto que ti ­
nha a tratar com o jui z, ou o pomo da di scórdia entre ambos, tives­
se algo a ver com a anarquia. Gwynne era conheci do pela mania
que em tempos tivera dos espiões alemães . Qe qualquer modo, deu­
-se uma estranha coincidência, momentos após a captura de Orm ,
que levou Bagshaw a confirmar a impressão que ti nha de que
aquele caso devia ser tomado mui to a sério. Quando iam a sair do
portão principal , cruzaram-se com outro vi zinho, Bull er, o nego­
ciante de charutos que vi vi a na casa ao l ado, com um ar todo res­
peitável , de rosto moreno, expressão viva e orquídea na botoeira­
era afamado neste ramo da horticultura. Para grande surpresa de
todos, cumprimentou o vi zinho poeta com toda a naturali dade, co­
mo se estivesse à espera de o encontrar ali .
- Ol á . Cá estamos nós outra vez - di sse ele. - Então, conver­
sou muito com o velho j uiz?
- Sir Humphrey Gwynne morreu - informou Bagshaw. - Es­
tou a investigar o caso e gostaria que me explicasse o que acabou
de di zer. 25
Buller ficou hirto como o candeeiro que se achava ao seu lado,
possivelmente devi do à surpre sa. A ponta incandescente do charu­
to ora se avivava ora esmorecia, num ritmo regular, enquanto o seu
rosto permanecia na sombra. Quando retomou a palavra, o tom de
voz alterara-se.
- A única coi sa que eu queria di zer é que há duas horas atrás,
quando por aqui passei, Mr. Orm ia a entrar para falar com Sir Hu­
mphrey.
- El e afirma que não chegou a vê-l o - observou Bagshaw ­
e que nem sequer entrou em casa.
- Convenhamos que é muito tempo para se ficar assim à entra­
da da porta - tornou Buller.
- Sim - comentou o padre Brown -, e também é muito tempo
para se ficar assim na rua.
- Eu entretanto fui a casa - atalhou o negociante de charu­
tos. - Estive a escrever cartas e agora voltei a sair para as ir pôr
no correio .
. - Mai s tarde terá de explicar tudo i sso - declarou Bagshaw .­

Boa noite . . . ou bom dia.


O julgamento de Osric Orm, acusado de ter assassinado Sir Hu­
mphrey Gwynne, assunto que encheu as páginas dos j ornais du­
rante semanas a fio, girou em torno desse ponto crucial , tal como
acontecera na conversa à luz do candeeiro da rua, quando a madru­
gada cinzenta esverdeada rompia, envolvendo as ruas escuras e os
jardins. Tudo ia desembocar no enigma dessas duas horas vazias
entre o m omento em que B uller vira Orm a transpor o portão e
aquele em que o padre Brown fora dar com ele, aparentemente a
vaguear pelo jardim. Durante esse espaço de tem po ti nha tido
oportunidade de cometer meia dúzia de assassinatos e talvez o fi ­
zesse apenas para se entreter, poi s não foi capaz d e apresentar n e ­
nhuma explicação coerente d o q u e andava a fazer. A acusação ar­
gumentou que também tivera oportunidade de cometer o crime,
uma vez que a porta principal apenas estava encostada e a porta
l ateral se encontrava aberta. O tribunal segui u com bastante i nte­
resse a reconstrução que Bagshaw apresentou da l uta que se tra­
vara no vestíbulo, cujos traços eram tão evi dentes ; é claro que a
polícia tinha logo encontrado a bal a que partira o espelho. Final ­
mente, o buraco na sebe através do qual o suspei to fora seguido ti ­
nha, segundo ele, todo o aspecto d e um esconderijo. Por outro la­
do, Sir Matthew Blake, notável advogado, encarregado da defesa,
utilizou este último argumento de uma outra maneira: perguntan­
do por que razão um homem se iria encurralar a si próprio num lu­
gar de onde provavelmente não poderia sair, quando seria mui to
mais fácil esgueirar-se para a rua. Sir Matthew Blake invocou
t?-mbém o mistério que continuava a e nvolver o motivo do crime.
26 E óbvio que em relação a i sto, a troca de palavras entre Sir Mat-
thew Blake e Sir Arthur Travers, um não menos brilhante advo­
gado, encarregado da acusação, favoreceram bastante o réu. Sir
Arthur apenas conseguiu apresentar sugestões rel acionadas com
um a conspiração bolchevique, que não encontraram qualquer eco.
Mas quando chegou a altura de investigar os factos relacionados
com o misterioso co!T!portamento de Orm naquela noite, revelou­
-se muito mais eficiente .
O réu tomou assento no banco das testemunhas, sobretudo
porque o seu astuto advogado de defesa imaginou que se ele o não
fi zesse iria causar má impressão. Mas Orm mostrou-se tão reser­
vado em relação à defesa como à acusação. Sir Arthur Travers fe z
todos os possíveis para vencer o seu silêncio mas os seus esforços
foram em vão.
Este advogado era um in divíduo alto e magro, de rosto cadavé­
rico, em contraste com Sir Matthew Blake, de aspecto vigoroso e
olhar inteligente e vivo. Se este, todo seguro de si, fazia l embrar um
pardal espertalhão, o outro podia ser comparado a um grou ou a
uma cegonha e quando se inclinava sobre o réu, espicaçando-o com
perguntas, porque o seu longo nariz parecia um bi co aguçado.
- Mas quer convencer o júri de que n ão chegou a entrar para
se avistar com a vítima? - perguntou ele num tom esganiçado de
incredulidade .
-É verdade - respondeu Orm com firmeza.
- Queria vê-lo, segundo penso. Devia estar muito ansioso por
se encontrar com ele. Não é verdade que e sperou duas horas a pé
firme à entrada da porta?
- Sim - retorquiu o outro.
- E no entanto riem reparou que a porta estavà aberta.
- Não.
- Mas afi nal , que diabo esteve você a fazer 9-urante duas ho-
ras n aquel e jardim? - insistiu o advogado. - E claro que fez al­
guma coisa e nquanto ali esteve .
- Sim .
-É um mistério - disse Sir Arthur num tom j ocoso.
- Para si é - retorquiu o poeta.
Foi baseado nesta sugestão de se tratar de um mistério que Sir
Arthur resolveu desenvolver a sua linha de argumentação contra
o réu. Com um arrojo que alguns consideraram destituído de es­
crúpulos, converteu o mistério do móbil, que consti tuía a parte
mais sólida da defesa, num argumento a seu favor. Considerou--o
o primeiro indício de uma conspiração que vinha sendo pl aneada
há muito tempo, na qual um patriota havia perecido, como se tives-
se sido apanhado pelos tentáculos de um polvo. .
- Sim - gritou ele com a voz vibrante -, o meu ilustre cole-
ga tem toda a razão! Desconhecemos o motivo pelo qual este res­
peitável servidor público foi assassinado. Nem tão pouco conhece- 2 7
mos o motivo pel o qual o próximo servidor público será morto. Se
o meu prezado amigo vier a tornar-se uma vitima da sua eminên­
cia, se aqueles que zelam pela Lei passarem a constituir um alvo
de ódio das forças maléficas da destruição, ele irá perecer, ignoran­
do o motivo. Muitos dos respeitáveis ci dadãos que aqui se encon­
tram serão barbaramente assassinados nas suas camas e nós fica­
remos sem saber porqu ê . Nunca viremos a conhecer o motivo da
chacina, nem tão pouco conseguiremos pôr fim ao massacre, que
assim irá despovoando o nosso país, enquanto for permitido à de­
fesa impedir toda a acção legal , sempre a bater na mesma tecla do
«motivo», quando todos os outros factos, todas as incogruências, to­
dos os silêncios flagrantes nos i n dicam que estamos na presença de
Caim .
- Nunca vi Sir Arthur tão empol gado - observava Bagshaw
dali a pouco, dirigindo-se ao grupo que o acompanhava. - Ouvi co­
mentar por aí que ele tinha excedi do os limites habituais e que a
acusação, num caso de homicídio, não se devia mostrar tão ranco­
rosa. No entanto, devo reconhecer que há qualquer coi sa de repug­
nante naquele gnomo de trunfa loira; aquele homem não engana
ninguém. Veio-me por várias vezes à ideia uma coisa que De Quin­
cey disse acerca de Mr. Williams, esse horrível criminoso, que cha­
cinou duas fam11ias inteiras sem ninguém dar por isso. Se não me
engano, di zia ele que Williams tinha uma cabeleira de um amare­
lo vivo artificial e estava convencido ,de que a havia pintado se­
gundo uma técnica que aprendera na ln di a, onde era costume pin­
tarem os cavalos de verde ou de az ul . Depois, há aquele estranho
silêncio em que se fechou , como um troglodita. Não nego que tudo
i sso teve influência em mim , l evando-me a consi derá-lo uma es­
pécie de monstro, Se foi apenas devido à eloquência de Sir Arthur,
então ele teve certamente uma grande responsabilidade, ao falar
com tanta paixão.
- De facto era amigo do pobre Gwynne - informou U nderhill,
baixando a voz . - Um sujeito meu conhecido viu--os a conversar
amigavelmente a seguir a um banquete, há uns dias atrás. Eu di­
ria que foi essa razão que o l evou a empenhar-se tanto neste ca­
so. Ponho até em dúvi da se, numa situação destas, um homem se
deve deixar dominar por sentimentos pessoais.
- Mas ele não faria uma coisa dessas - retorquiu B agshaw.­
Tenho a certeza de que Sir Arthur Travers não se deixaria levar
pelos sentimentos, por muito fortes que eles fossem . Ele tem _uma
noção muito rígida do papel profissional que desempenha. E um
daqueles indivíduos que continuam ambiciosos mesmo depois de
já terem satisfeito as suas ambições . Não conheço ninguém que se
preocupe tanto em manter a sua posição. Não, Underhill, você ex­
traíu a moral errada do meu estrondoso sermão. Se ele se entusias-
28 mou daquela maneira é porque está convencido de que irá obter a
condenação e pretende encabeçar um movimento político contra a
conspiração a que se referiu. Deve ter al guma razão de peso para
querer condenar Orm e acredi�'l que o conseguirá. Isto significa
que os factos o apoiarão. A sua confiança não parece ser favorável
ao réu. - De súbito, apercebeu-se de uma figura insignificante no
meio do grupo. - Então, padre Brown, que pensa deste caso? -
perguntou, sorridente .
- Bom - replicou o sacerdote, algo di straído -, o que mai s me
impressionou foi verificar como os homens fi cam diferentes com
cabeleiras postiças . Têm estado aqui a fal ar de forma extraordiná­
ria como o advogado de acusação tem actuado, mas tive ocasião de
vê-lo, por escassos momentos, sem a cabeleira, e não imaginam co­
mo ele é diferente. Reparei, por exemplo, que é bastante calvo.
- Não me parece que isso o impeça de ser brilhante no seu dis­
curso - observou Bagshaw. - Suponho que não pretende basear
a defesa no facto de o advogado de acusação ser calvo, pois não?
- Não se trata bem disso - retorquiu o padre Brown , bem hu­
morado. - Para lhe dizer a verdade, estava a pensar no pouco que
certos tipos de pessoas sabem a respeito de outros tipos. Imagi ne
que eu me encontrava entre um povo qual quer que nunca tinha o u ­
vido falar de Inglaterra. Suponha que eu lhes dizia que existia u m
homem na minha terra que não colocava uma que stão de vida ou
de morte, sem primeiro colocar na cabeça uma excrescên cia feita
de crina de cavalo, com umas tranças na parte de trás e caracóis
esbranquiçados de um lado e do outro, como uma velha da época
vitoriana. Eles iriam pensar que esse indivíduo devia ser bastan­
te excêntrico, mas não se trata de uma excentricidade e sim de uma
convenção . E por que razão é que el es iriam pensar isso? Porque
nada sabem acerca dos advogados ingleses, nem fazem ideia do
que será um advogado. Pois bem, este advogado não sabe o que é
um poeta. Não percebe que as excentricidades de um poeta não pa­
receriam excêntricas aos olhos de outro poeta . Sir Arthur conside­
ra estranho o facto de Orm ter ficado num belo jardim durante
duas horas, sem nada que fazer. Santo Deus! Um poeta não iria
achar nada de extraordinário em percorrer o mesmo pátio duran­
te duas horas, se estivesse embrenhado na criação de um poema.
O advogado de defesa também não deve nada à inteligência. Nun­
ca lhe ocorreu fazer a pergunta óbvia ao réu .
- A que pergunta se está a referir?- inquiriu o outro.
- Sobre o poema que ele estava a criar, é claro - replicou o pa-
dre Brown num tom impaciente. - Em que verso é que ele ficara
emperrado, qual o adjectivo que procurava, que clímace tentava
ele elaborar, por exem plo. Se houvesse alguém culto neste tribu­
nal , que soubesse o que é a literatura, perceberia perfeitam ente se
el e tinha estado ou não a fazer alguma coisa em especial . Qualquer
pessoa se lembraria de perguntar a um industrial qual o modo de 2 9
funcionamento da sua fábrica, e, no entanto, ninguém se mostra
preocupado em saber as condições em que a poesia é fabricada. Ela
faz-se não fazendo nada.
- Isso está tudo mui to certo, mas por que é que ele se escondeu?
- perguntou o detective. - Que o terá l evado a trepar pel as esca-
das em ruínas e a parar ali? Aquela pas sagem não conduzia a la­
do nenhum .
- Precisamente por i sso, por não levar a lado nenhum - res ­
pondeu irritado o padre Brown . - Qualquer pessoa q u e olhasse
com atenção para aquele recanto entre o céu e a terra iria perce­
ber que se tratava do lugar i deal para um artista, tal como para
uma criança.
Calou-se por momentos, a pestanejar, e prosseguiu em tom de
desculp a:
- <clue me perdoem, mas acho tão estranho que nenhum deles
compreenda estas coisas! E há ainda outro porm enor . Não sabem
que para um artista tudo tem um aspecto ou um ângulo exacta­
mente perfeito ? Uma árvore, uma vaca e uma nuvem , em determi­
nada relação, só têm um si gnificado, tal como três letras, numa
certa ordem , representam uma palavra. Ora bem, a visão do jar­
dim iluminado que se desfrutava da ponte em ruínas era a vi são
perfeita daquele local . Tão única como a quarta dimensão. Trata­
va-se de uma espécie de recanto de fadas ; era como se fosse o céu
vi sto de cima, com todas aquelas estrelas a nascer dos ramos das
árvores e o lago luminoso como uma lua caída no relvado, numa be­
l a história de encantar. Orm podia ter ficado ali para sem pre em
contemplação. Se lhe di ssessem que aquele caminho não conduzia
a lugar nenhum, ele responderia que o tinha levado ao país do fim
do mundo. Mas jul gam que ele se atreveria a dizer uma coisa des­
tas em pleno tribunal? Que diriam dele se o fi zesse? Di z-se que
qual quer pessoa tem direito a um júri constituído pelos seus pares .
Por que não arranjar, neste caso, u m j úri formado por poetas?
- O senhor fala como se também fosse poeta - observou Bags­
haw.
- Agradeça à sua boa estrel a o facto de não o ser e ainda o fac­
to de um padre ter de ser mai s caridoso que um poeta. Que o Se­
nhor tenha piedade de nós. Se soubessem a raiva, o ódio que ele
tem por todos vocês, iriam sentir-se como se estivessem sob as ca­
taratas do Niagara.
- Admito que o senhor saiba mais acerca do temperamento dos
artistas que eu - disse Bagshaw -, mas, afinal de contas, a ex­
plicação é simples. O senhor pode demonstrar que ele podi a fazer
o que fez sem ter cometido o crime, mas também é verdade que ele
podia tê--l o cometido. E quem mai s podia ter si do?
- Já pensou na hipótese de ter si do Green, o empregado? ­
perguntou o sacerdote. - A hi stória que ele nos contou é bastan-
30 te esqui sita.
- Ah! -exclamou Bagshaw. - Então acha que foi ele?
- Tenho quase a certeza de que não foi ele - retorquiu o pa-
dre Brown. - Limitei-me apenas a perguntar-lhe se já tinha pen­
sado na tal história que ele contou. Saiu por um motivo qualquer
sem im portância, para beber um copo, encontrar-se com al guém
ou outra coisa assim do género. No entanto saiu pela entrada prin­
cipal e no regre sso saltou o muro. Por outras palavras, deixou o
portão aberto, mas quando regressou encontrou-o fechado. Por­
quê? Porque alguém saíra por ali.
- O assassino - murmurou o detective pouco convenci do. -
Sabe de quem se trata?
- Sei como ele era e nada mais - respondeu calmamente o pa­
dre Brown . - Quase consigo vê-lo no momento em que entrou pe­
la porta principal iluminada pela luz do candeeiro do vestJ.bulo; a
sua figura, a i n dumentária e até o resto!
- E então?
- Parecia Sir Humphrey Gwynne.
- Mas que diabo está para aí a dizer? - in dagou Bagsha w. -
Gwynpe estava morto ao pé do l ago.
- E claro.
Dali a pouco prosseguiu:
- Mas vol temos a essa sua teoria, que era muito boa, embora
eu não estej a de acordo com ela. Parece-lhe que o assassino entrou
pel a porta da frente, deu de caras com o juiz que se encontrava no
vestíbulo, lutou com ele e foi então que o espelho se partiu. O j uiz
foge para o j ardim e é então morto a tiro. Sej a como for, não con ­
sidero isto natural . Admitindo que el e tenha fugido pelo corredor,
há duas portas ao fu n do, uma para o jardim e outra para o interior
da casa. Ora, dá a im pre ssão de que ele devi a ter optado pel a se­
gun da, poi s era ali que se encontrava a arma, o telefone. e , tanto
quanto ele pensava, o criado. Até os vizinhos mai s próximos se si­
tuavam nessa direcção. Por que razão é que ele iria optar pel a por­
ta do jardim e fugir para a área mais deserta?
- Mas di sso estamos nós certos: ele saiu realménte de casa­
retorquiu o outro, confu n di do. - Nós sabemos que ele saiu lá para
fora, pois foi encontrado no jardi m .
- Ele nunca saiu d e casa, porque nunca a í esteve - replicou
o padre Brown . - Nessa noite, quero eu di zer. Estava no banga­
ló. Li essa mensagem no escuro, l ogo de início, nas estrel as verme­
lhas e douradas espalhadas pelo jardim. As luzes eram comanda­
das da cabana e se o j ui z ali não tivesse estado, elas não estariam
acesas . O assassino matou-o quando ele ia a correr em direcção à
casa e ao telefone.
- Então e o vaso caído, a palmeira e o espelho partido? - per­
gu ntou Bagshaw, irri tado. - Foi o senhor mesmo que os encontrou
e que insi nuou ter havi do luta no vestíbulo . 31
- Fui? - O sacerdote pestanejou, como se vive sse um mo­
mento difícil. - Eu não disse isso, nem nunca tal me passou pela
cabeça. O que eu disse foi que alguma coisa tinha acontecido ali . E
i sso é um facto. Mas luta é que não houve.
- E ntão e que nos diz do vidro parti do? - perguntou Bagshaw.
- Foi uma bal a - respondeu o padre Brown -, uma bala di s -
parada pelo assassino. O s pedaços d e espelho que cafram eram su­
ficientemente grandes para virarem o vaso e a palmeira.
- E contra quem é que o assassino disparou? Não foi contra
Gwynne?
- Isso é uma questão metafísica delicada - retorquiu o sacer­
dote com um ar sonhador. - Digamos que ele estaria de facto a di s­
parar contra o juiz; no entanto, Gwynne não se encontrava ali . A
única pe ssoa que estava no vestíbulo era o crimi noso.
Ficou calado durante uns instantes e depoi s prosseguiu:
- Imaginem o espelho, ao fundo, do corredor, antes de se par­
tir, e a palmeira inclinada sobre ele. A média luz, reflectida nas pa­
redes páli das, devia parecer o final da passagem . Um homem ali
reflectido daria a impressão de alguém vi ndo do interior da casa.
Pareceria o dono da casa ... se a imagem fosse parecida com el e .
- E spere aí - atalhou Bagshaw. - Creio que começo a . . .
- Já começa a compreender por que razão todos o s suspeitos
neste caso se encontram inocentes. Nenhum deles podia ter con­
fundido a sua imagem reflecti da no espelho com o j uiz Gwynne.
Orm, por exemplo, teria vi sto imediatamente que a sua cabeleira
loira não era uma cabeça calva. Flood teria logo conhecido a sua ca­
beça ruiva e Green a sua libré encarnada. Além disso, todos eles
são baixos e deselegantes; nenhum desses homens iria confundir
a sua própria imagem com um senhor alto, magro e de fato de ce­
rimónia. Precisamos de outra pessoa, um indivíduo também alto
e magro, tal como o juiz. Era a isso que eu me referia quando dis­
se há pouco que sabia qual o aspecto do assassino.
- E que pretende concluir de tu do isso? - indagou Bagshaw.
O padre soltou uma espécie de risada aguda numa atitude mui­
to diferente da forma moderada como habitualmente se exprimia .
- Pretendo concluir precisamente aquilo q u e o senhor disse ser
tão absurdo e im possível .
- Que quer dizer com isso?
- Vou basear a defesa no facto de o advogado de acusação ser
calvo.
- Oh, meu Deus! - exclamou o detective, espantado, pondo-
-se de pé.
O padre Brown prosseguiu a sua explicação com toda a calm a.
- A policia tem vindo a seguir os movimentos de muita gente,
neste caso. Tem-se interessado muitíssimo, por exemplo, pelos do
32 poeta, do criado e do irlandê s. Ora, o homem cujos movimentos têm
sido um pouco esquecidos, é precisamente a própria vítima. O seu
criado mostrou-se sinceramente espantado ao ver que o patrão já
havia regressado. O j uiz Gwynne tinha ido a um banquete onde
iam estar presentes os principais magistrados . No entanto, saíra
bruscamente da reunião e voltara para casa. Não se sentia mal ,
pois não pediu assistência a ninguém; di scutira certamente com
algum dos seus colegas. Devíamos ter começado por procurar o ini ­
migo entre o grupo desse s magi strados. Regressou então a casa e
fechou-se no bangaló, onde guardava os seus documentos particu­
lare s referentes a actividades subversivas. Mas o líder da Ordem ,
sabendo que existiam provas contra si entre esses docum entos,
lembrou-se de seguir o juiz. Também ele trajava fato de cerimónia
e levava um revólver no bolso. Foi assim que as coisas se passaram
e ninguém iria suspeitar se não se tivesse dado o incidente com o
espelho.
Pareceu olhar no vazio por instantes e depois pros seguiu:
- O espelho é um objecto bem estranho: uma moldura rodean­
do centenas de imagens diferentes, todas elas reais e para sempre
extintas. E, no entanto, havia algo de especialm ente estranho na­
quele espe!ho pendurado ao fundo do corredor cin zento, junto da
palmeira. E como se de um espelho mágico se tratasse, com um des­
tino diferente dos outros espelhos. Digamos que a sua imagem po­
dia, de certo m odo, sobreviver ao próprio espelho, su spensa no ar,
como um espectro, naquela casa sombria. Ou, pelo menos, como
um diagrama abstracto, a estrutura de um argumento. Podíamos
em todo o caso evocar do vazio essa coisa que Sir Arthur Travers
viu . A propósito, você disse uma grande verdade acerca dele.
- Muito me alegra ouvi-lo dizer i sso - observou Bagshaw, sor­
ridente. - E que foi?
- Afirmou que Sir Arthur devia ter uma razão muito forte pa­
ra querer levar Orm à forca.
Uns dias depois, o padre Brown encontrou o detective e soube
por ele que as autoridades já haviam iniciado as investigações de
acordo com a nova pista, tendo sido obrigados a interrompê-las de­
vido a um acontecimento sensacional .
- Sir Aithur Travers ... - começou o padre Brown .
- Sir Arthur Travers morreu - informou Bagshaw seca-
mente.
- Ah! - fez o sacerdote, com alguma comoção -, quer dizer
que ele . . .
- Sim, voltou a atirar sobre o mesmo h omem, só q u e desta vez
não foi num e spelho.

33
CAPÍTULO II

O HOMEM COM DUAS BARBAS

Esta história foi contada pelo padre Brown ao professor Crake,


o famoso criminologista, depoi s de jantarem num clube, onde fo­
ram apresentados um ao outro como partilhando ambos um ino­
fensivo passatempo relacionado com homicídios e roubos. No en­
tanto, como a versão relatada pelo sacerdote minimiza o seu papel
no desenrolar dos acontecimentos, faremos aqui a sua apresenta­
ção de uma forma mais imparcial . Tudo surgiu de uma amigável
troca de palavras em que o professor se mostrou muito científico e
o padre bastante céptico.
- Mas, meu caro senhor - dizia o professor num tom de pro­
testo -, não consi dera a criminologia uma ciência?
- Não estou bem certo disso - replicou o padre Brown . - E o
senhor, acha que a hagiologia é uma ciência?
- Que é i sso? - indagou o outro.
- Não tem nada a ver com o estudo da feitiçaria nem com a ca-
ça às bruxas - respondeu o sacerdote, sorridente . - Trata-se do
estudo das coisas sagradas, dos santos e dos assuntos relacionados
com o tema. A Idade das Trevas tentou criar uma ciência acerca
das pessoas que praticavam o bem. Em contraparti da, a nossa era,
tão humanitária e esclarecida, só se mostra interessada numa
ciência relativa àqueles que se dedicam ao mal . No entanto, pen­
so que a experiência nos ensina que todas as espécies concebíveis
de homens têm sido santos e desconfio que irá igualmente verifi­
car que to das as e spécies concebíveis de homens têm si do assas­
sinos.
- E stamos convencidos de que os assassinos podem ser clas­
sificados com bastante exactidão - observou Crake. - A li sta
afigura-se-me longa e monótona, mas penso que é exaustiva. Em
primeiro lugar, podemos dividir os homicídios em racionais e irra­
cionais . Consi deremos estes últimos em primeiro lugar, vi sto se­
rem em muito menor número. Existe uma coisa chamada mania
homici da ou amor à carnificina, no senti do abstracto. Há ainda a
34 antipatia irracional, embora raramente conduza ao homicídio. Em
seguida, temos os verdadeiros m otivos: de todos eles, alguns são
menos racionai s, atendendo à sua natureza meramente romântica
e retrospectiva. Os actos de pura vingança são fruto de desespero.
Assim, um apaixonado mata um rival que nunca iria suplantar, ou
um rebel de assassina um tirano uma vez consumada a conquista.
Mas a maioria das vezes até mesmo estes actos têm uma probabi­
lidade racional . São assassinos movi dos pela esperança, que pode­
remos incluir n a secção mai s vasta do segundo grupo a que chama­
remos crimes prudente s . Estes, por sua vez, subdi vi dem-se em
duas espécies, que passarei a descrever. Um homem mata outro
para lhe roubar o que ele possui , por roubo ou herança, ou para o
impedir de cometer determinado acto, como no caso do assassina­
to de um chantagista ou de adversário político ou, em rel ação a um
obstáculo mai s passivo, um marido ou uma e sposa cuja exi stênci a
interfere noutras coisas. Pensamos que esta classificação é muito
completa e , se for devidamente aplicada, abarca a totali dade dos
as sassinatos . Mas receio que isto se esteja a tornar fastidioso. Es·
pero não estar a maçá-lo com a conversa.
- De maneira nenhuma - replicou o padre Brown . - Peço
desculpa se me mostrei um pouco ausente, mas a verdade é que me
estava a lembrar de um i ndivíduo que em tempos conheci. Era um
assassino, mas não estou a ver onde encaixá-lo no seu museu de
homici das . Não se tratava de um l ouco mas gostava de matar. Nem
tão pouco odiava o homem que matou : mal o conhecia e , certamen­
te, nada tinha contra ele. A vítima não possuía nada que lhe pudes­
se interessar, nem o seu procedimento era de m olde a que o assas­
sino lhe quisesse pôr cobro. Também não se achava em condições
de o prejudicar, nem de magoá-lo. Não foi por causa de uma mu­
lher nem por questões políticas. O homem em causa matou um in­
divíduo que praticamente desconhecia e isso aconteceu por uma
razão muito estranha, possivelmente única na História da huma­
nidade.
E assim contou a hi stória no seu tom mai s coloqui al . O caso po­
deria perfeitamente ter ti do início num cenário assaz respeitável ,
à mesa do pequeno-almoço de uma farm1ia suburbana, de apeli do
Bankes, onde o comentário habitual sobre as notícias do jornal ha­
via dado lugar a uma conversa em torno de um mistério ocorrido
ali perto. Por vezes, embora estas pessoas sejam acusadas de ma­
le dicência em relação aos vi zinhos, revelam-se, nesse aspecto, ino­
centes, de uma form a quase inumana. Os aldeões rústicos contam
histórias acerca da vi zinhança, umas verdadeiras, outras falsas,
mas a cultura dos modernos subúrbios acredita em tudo o que fi­
gura nos jornais sobre a perversidade do papa ou o martírio do rei
das ilhas Canibais e, com a excitação provocada por estes temas
se nsacionalistas, nunca sabe o que se passa ao pé da porta. Nes-
te caso, porém, as duas formas de interesse eram de facto coinci- 3 5
dentes, n um conj unto de i n tensi dade emocionante . Até a própria
zona onde viviam vi nha referida no seu jornal preferi do. Quando
viram o n ome impresso, sentiram-se perante uma nova prova da
sua exi stência, como se antes tivessem permaneci do inconscientes
e invi síveis. Agora eram reai s como o rei das ilhas C anibai s.
Afirmava-se no jornal que um criminoso outrora célebre, co­
nhecido por Michael Moonshine, e por muitos outros nomes, que
presumivelmente não seriam os seus, fora solto recentemente,
após um l ongo período de pri são, por numerosos asssaltos. O seu
paradeiro era m anti do em segre do; n o entanto, corria o boato de
que se h avia instalado no subúrbio em causa, a que chamarem os,
por uma questão de conveniência, Chi sham . }. notícia incluía um
resumo de algumas das suas célebres e ousadas façanhas e eva­
sões, poi s tratava-se de um tipo de imprensa destinada àquela es­
pécie de público cujos leitores são desprovidos de memória. En­
quanto um camponês se recorda durante séculos dos fora-da-lei ,
como Robin Hood ou Rob Roy, um empregado de escritóri o mal se
lembrará do nome do criminoso sobre o qual travou uma discussão
acesa doi s anos atrás.
No entanto, Michael Moonshine dera provas de ssa patifaria he­
róica própria de um Rob Roy ou de um Robin Hood, pelo que me­
recia ser converti do numa lenda e não figurar apenas em n otícias
de jornal . Era um ladrão demasiado competente para ser conside­
rado um assassino. No entanto, a sua força terrível e a facili dade
com que deitava abaixo os polícias como se estes fossem pauli tos
do j ogo do fito, a forma como dominava as suas vítimas e as atava
e amordaçava, conferia uma espécie de toque final de medo ou mis­
tério à circunstância de nunca as m atar. Na verdade, as pessoas
chegavam a consi derar que seria mais humano se ele o fi zesse.
Mr. Simon B ankes, o pai , era simul taneamente mai s letrado e
mais antiquado que o resto da farm1ia. Era um indivíduo alto e for­
te, de barbicha grisalha e fronte sulcada de rugas. Ti nha propen­
são para contar histórias e velhas recordações e lembrava-se per­
feitamente desses tempos em que os londrinos passavam a noite
acordados, à espera de ouvirem os passos de Mike Moonshi ne, tal
como faziam em relação a Jack, esse de quem se di zi a ter mo las nos
tacões dos sapatos . Havia depois a mulher de Bankes, uma senho­
ra morena e magra. Notava-se nela uma espécie de elegância aze­
da, poi s a sua fami1ia tinha muito mais dinheiro que a do mari do,
embora menos cultura. Possuía até um valioso colar de esme­
ral das, que estava guardado no andar de cima, e que lhe conferia
o direito à superioridade naquela di scussão acerca de ladrões. Se­
guia-se a filha, Opal, magra e m orena como a mãe e, segundo cons­
tava, dotada de poderes de vi dente - pelo menos no seu entender,
uma vez que a fami1ia não a encorajava nesse sentido. Os espíri-
36 tos de tendência ardentemente astral ficarão avisados quanto às
desvantagens de se materializarem como membros de fami1ias
grandes. Havia ainda o irmão, John, um jovem corpulento, parti­
cularmente exuberante na indiferença que ostentava perante as
tendências espíritas da irmã;_para além disso, só se distinguia no
interesse pelos automóveis. Parecia estar sempre envolvido na
venda de um carro e na compra de outro e, graças a um processo
que os economistas dificilmente entenderiam, era-lhe sempre
possível adquirir um artigo muito melhor, com a venda de um ou­
tro danificado ou sem valor comercial. O irmão Philip, um rapaz de
cabelo preto e encaracolado, caracterizava-se pela atenção que de­
dicava à indumentária, o que sem dúvida constitui parte da tarefa
de um escriturário de corretor da bolsa, embora não a sua totali­
dade, como o patrão lhe costumava dizer. Por fim, encontrava-se
presente naquele cenário familiar um amigo da casa, Daniel
Devine, também moreno, que vestia com requinte, mas com uma
barba de corte invulgar, de um estilo estrangeiro e, por isso mes­
mo, um tanto ameaçadora para muitas pessoas.
Foi Devine que começou por falar no tema referido na notícia,
usando assim todo o seu tacto, ao conseguir distraí-los, com eficá­
cia, do que parecia ser o início de uma discusão familiar. A meni­
na vidente começara a descrever uma visão que tivera de uma sé­
rie de rostos a pairar no vazio da noite, do lado de fora da janela,
e John Bankes procurava, aos berros, sobrepor-se a esta revela­
ção, própria de um estado de espírito superior, com uma veemên­
cia que ultrapassava a habitual.
No entanto, a referência do jornal ao novo e talvez alarmante
vizinho não tardou a silenciar os dois contendores.
-Mas que coisa assustadora-exclamou Mrs. Bankes.-De­
ve ser alguém recém-chegado, mas quem poderá ser? ,
- Não conheço ninguém que se tenha vindo instalar há pouco
por estes lados, a não ser Sir Leopold Pulman, de Beachwood Hou­
se - observou o marido.
- Que ideia tão absurda, querido... Sir Leopold, vejam só! ­
tornou a mulher, acrescentando depois de uma breve pausa: - Se
sugerisses o secretário dele... aquele sujeito de patilhas. Eu sem­
pre disse, desde que ele ficou com o lugar que devia ser para
Philip...
- Nada feito- comentou o filho em questão, languidamente,
prest."1ndo assim a sua única contribuição para a conversa.-Não
era suficientemente bom para mim.
- O único recém-chegado que conheço- observou Devine -
, é aquele sujeito chamado Carver que se instalou na quinta de
Smith. Leva uma vida muito pacata, mas é um fulano muito inte­
ressan_te. Julgo que John tem negócios com ele.
-E um tipo entendido em automóveis - admitiu John. - Mas
ainda vai ficar a saber mais quando experimentar o meu novo
carro. 37
Devine fez um ligeiro sorriso, pois já toda a gente tinha sido
ameaçada com a h os pital idade do novo automóvel de John. Depois
acrescE}ntou, pensativo:
- E isso que eu penso dele . Percebe muito de motores e é um
homem viajado, mas agora passa o tempo em casa, de volta das col­
meias de Smith. Dizem que só se interessa por apicultura e que por
isso se instalou na quinta. Parece-me um passatempo muito cal­
mo para um homem da sua espécie, mas estou certo de que o car­
ro de Joh n vai provocar-lhe algum a agitação.
Ao fim da tarde, quando partiu, Devine ia pensativo. As suas re­
flexões talvez merecessem a nossa atenção, mesmo nesta fase
inicial dos acontecimentos . No entanto, bastará aqui referir que o
resul tado prático foi a decisão de ir ime diatamente a casa de Mr.
Smith vi si tar Mr. Carver. Quando se dirigia para lá, encontrou
Barnard, o secretário de Beechwood House, com aquela sua figu­
ra característica, algo magro e com aquelas patilhas farfalhudas
que ofendiam Mrs. Bankes de uma forma muito especial . Conhe­
ciam-se vagamente e, por isso mesmo, a troca de palavras entre
eles foi breve; no entanto, Devine colheu naquele encontro maté ­
ria suficiente para posteriores cogitações .
- Diga-me uma coisa - indagou ele com brusquidão -, des­
cul pe perguntar, mas é verdade que Lady Pulman tem em casa
jóias de muito valor? Não sou propriamente um ladrão profi ssio­
nal, mas ouvi dizer que anda por aí um a rondar.
- Hei-de dizer-lhe para ter cuidado - respondeu o secretário.
- Na verdade eu próprio já a avisei, espero que ela me tenha da-
do ouvi dos.
Enquanto assim falavam, ouviu-se o som estridente de uma
buzina e John Bankes parou junto deles, todo satisfeito, sentado
ao volante do seu automóvel . Quando soube o destino de Devine,
anunciou que também para ali se dirigia, embora o tom em que o
disse denunciasse uma satisfação invul gar em oferecer boleia às
pessoas. Durante a viagem não se cansou de fazer elogios ao auto­
móvel , referin do-se, desta feita, à capaci dade de adaptação do
mesmç às condições atmosféricas.
- E hermético como um cofre - dizia ele - e abre-se com tan­
ta facili dade como o senhor abre a boca.
No entanto a boca de Devine é que não se abriu assim tão facil ­
mente , tendo chegado à herdade de Smith ao som de um solil óquio.
Mal transpôs o portão, Devine encontrou o homem que procurava
sem preci sar de entrar em casa, pois ele andava a passear no jar­
dim de m ãos nos bol sos e grande chapéu de palha na cabeça. Era
um sujeito de rosto comprido e queixo quadrado. A aba larga do
chapéu projectava-lhe uma faixa de sombra na parte superior do
rosto, dando ideia de uma máscara. Por detrás dele via-se uma fi -
38 la de colmeias, ao longo da qual caminhava um homem mais vel ho,
provavelmente Mr. Smith, acompanhado por um outro i ndivíduo
baixote e de aspecto vulgar, vesti do com um fato preto de ama­
nuense .
- Sabe uma coisa? Trouxe o meu carro para levar o senhor a
dar um passeio - declarou o i ndomável John, antes sequer de De­
vine ter tido tempo de cumprimentar o sujeito. - Vai ver que é
mai s veloz que um raio .
Mr. Carver esboçou um sorriso que, embora tentasse ser afável,
não conseguiu disfarçar a sua má disposição.
- Receio estar demasiado ocupado para poder dedicar-me a di­
versões - retorquiu .
- Como as atarefadas abelhinhas - observou Devine num tom
enigmático. - As suas abelhas devem trabalhar muito para o
manterem ocupado até de noite. Estava a pensar . . .
- Em quê? - i ndagou Carver, mostrando-se u m tanto descon­
fiado.
- Di z-se que devemos ceifar o trigo enquanto brilha o Sol -
tornou Devine. - Ta ve z se deva preparar o mel ao luar' .
Na sombra da aba do chapéu de Carver brilhou um clarão: eram
os seus olhos a chispar.
- Talvez o luar tenha um papel importante nes se processo ­
comentou -, no entanto, avi so-o de que as minhas abelhas para
além de fabricarem m el também picam .
- Vem ou não vem dar uma volta no meu carro? - insi stiu
John.
Embora tivesse abandonado por momentos o ar sini stro com
que antes lhe respondera, manteve-se firme na sua recusa, falan­
do, contudo, num tom e ducado.
- Provavelmente não poderei ir. Tenho umas cartas para es­
crever - respondeu . - De qualquer modo, se está realmente in­
teressado em companhi a, talvez não se importe de levar a passear
estes meus amigos, Mr. Smith e o padre Brown .
- Com certeza. Eles que venham - concordou B ankes entu­
siasmado.
- Muito obrigado - agradeceu o sacerdote -, mas lamento
não poder acei tar. Daqui a poucos minutos tenho de ir dar a bên­
ção do Santíssimo.
- Então Mr. Smith é o homem que procura - declarou Carver,
deixando transparecer uma certa impaciência na voz . - Estou
certo de que Smith está desejoso por ir dar um passeio de auto­
móvel.

1 Jogo de palavras co m o nome Moonshine (luar), apelido do célebre


ladrão, personagem implicada na história. (N. da T.) 39
O sujeito em causa, exibindo um sorriso rasgado, não dava, no
entanto, mostras de desejar o que quer que fosse . Tratava-se de
um homenzinho activo, já de certa i dade, com uma dessas perucas
tão pouco naturais como um chapéu, e de um tom amarelado que
não condizia nada com a sua tez.
- Lembro-me de ter feito esta estrada numa maquineta de s­
sas há dez anos atrás - di sse ele, meneando a cabeça com firme­
za. - Tinha i do visitar a minha irmã. Desde então nunca mai s vol­
tei a percorrer este caminho de carro. Mas garanto-lhe que foi uma
viagem dificil .
- Há de z anos! - observou John Bankes des denhoso. - Há
dois mil as pessoas andavam de carro de boi s. Pensa que os auto­
móveis não mudaram em dez anos? E as estradas? No meu carro
nem se dá pelo girar das rodas, até parece que vamos a voar.
- Tenho a certeza de que Smith há-de gostar di sso - atalhou
Carver. - O sonho da vida dele é voar. Vá, Smith, vá até Holmga­
te visitar a sua irmã. Lembre-se que até preci sa de ir vê-la. Se qui ­
ser pode lá ficar esta noite .
- Bem, como eu geralmente vou a pé, acabo por passar lá a noi ­
te - di sse o velho Smith . - Não é preciso estar a incomodar este
senhor.
- Mas lembre-se como a sua irmã se havia de divertir ao vê-
-lo chegar de automóvel ! - insistiu Carver. - Eu acho que você
devia ir. Não seja tão tími do.
- Poi s é, não seja tímido - apoiou Bankes com benevolência.
- Olhe que não lhe acontece nada. Está com medo, é?
- Bem, não pretendo ser tímido, nem estou com medo - dis-
se Mr. Smith pestanejando -, e já que põe as coisas nesses termos,
então vou mesmo consigo.
E lá partiram os doi s no meio de mui tos acenos que, de certo mo­
do, pareciam dar àquele pequeno grupo a aparência de uma mul­
tidão que se despedia. No entanto, Devi ne e o padre participaram
apenas por mera cortesia, convenci dos de que era o gesto domi nan­
te do seu anfitrião que lhe conferia o ar de um ade us, pormenor que
lhes transmitiu uma curiosa sensação da força persuasiva da per­
sonali dade daquele homem .
No momento em que o carro desapareceu ao longe , o dono da ca­
sa voltou-se para eles como quem se desculpa e exclamou :
- Que alívio!
Disse i sto com aquele ti po de franqueza que constitui o rever­
so da hospitalidade. Esta excassa jovialidade levou-os a pensar
que ele estava a mandá-los embora, e Devine apressou-se então
a fazer as despedi das:
- Bom, tenho de me ir embora. Não devemos interromper o tra­
balho das abelhas. Percebo muito pouco de abelhas , nem sequer
4o consigo distingui-las das vespas.
- Também já tenho apanhado vespas - observou o mi sterioso
Mr. Carver.
Quando já ti nha percorrido alguns metros, Devine, que cami ­
nhava pela estrada abaixo acompanhado do padre Brown, voltou­
-se impul sivamente para o seu companheiro e observou:
- Que cena tão esquisita, não acha?
- Sim, realmente foi . E que lhe pareceu a si tudo i sto? - i n da-
gou o padre .
Devine olhou para o homen zinho vesti do de negro e houve al ­
go na forma como o outro o fi tava com os seus grandes olhos cin­
zentos que lhe deu nova coragem.
- Pareceu-me que Carver estava ansioso por ficar sozinho em
casa esta noite. Não sei se também ficou com essa impressão.
- Eu cá tenho as minhas suspeitas - replicou o padre -, no
entanto, não tenho a certe za se serão as mesmas do senhor.
Nessa noi te, quando o crepúsculo deu lugar à escuridão, que ia
envolvendo os jardin s da faml1ia, Opal Bankes vagueava pelos
quartos vazios e soturnos com um ar ai nda mais ausente do que era
habitual , e quem a olhasse de perto havia de notar que a sua pa­
li dez pareci a mai s acentuada. Apesar do luxo burguês com que es­
tava decorada, a casa apresentava, no seu todo, um aspecto geral
de melancolia. Tudo ali deixava transparecer aquel a espécie de
tri steza que normal mente se desprende dos obj ectos que são mais
velhos que antigos . Podi a dizer-se que a sua decoração era de um
estilo ultrapassado sem, no entanto, ter direito a perte ncer à his­
tória, com objectos demasiado recentes para poderem ser reconhe­
ci dos como m ortos . Aqui e ali viam-se vi draças colori das, caracte­
rísticas do primeiro período victoriano, por onde se escoava a luz
crepuscular. Os tectos altos faziam que os quartos compridos pa­
recessem ainda mai s estreitos . No extremo do compartimento on­
de Opal se encontrava via-se um a daquelas janelas redondas, que
é vulgar encontrar nas casas dessa época. Quando se aproximou do
meio do aposento estacou e, em seguida, vacilou ligeiramente, co­
mo se uma mão invi sível lhe tivesse dado uma bofetada.
Dali a pouco ouviu-se bater na entrada pri ncipal da casa, sen-
do o barulho das pancadas abafado pelas di versas portas fechadas.
Opal sabia que os outros habi tantes da casa se encontravam nos
andares superiores, mas não consegui u analisar o motivo que a l e­
vou a encaminhar-se para a porta da entrada . Ao abri-la deparou­
-se com uma figura baixa e atarracada, toda vesti da de preto, que
imediatamente reconheceu como sendo o padre católico romano
chamado Brown . Conhecia-o apenas vagamente, m as gostava de-
le . Ele não encorajava as suas vi sões sobrenaturais; pelo contrário,
de sencorajava-as, mas fazi a-o como se el as tivessem de facto im­
portânci a e não como se se tratasse de meras banalidade s . Não era
uma questão de se mostrar indiferente às suas opiniões, poi s até 4 1
a ouvia, só que não concordava com ela. Tudo isto se lhe apresen­
tava ao espírito de uma form a caótica quando, antes sequer de
cumprimentar o sacerdote ou de lhe dar tempo a di zer ao que vi ­
nha, lhe declarou;
- Ainda bem que aqui está. Acabei de ver um fantasma.
- Não se preocupe - respondeu o padre Brown . - Isso acon-
tece com frequência. A maior parte deles não são fantasmas e os
poucos que o são não lhe farão mal nenhum . Mas era algum fan­
tasma em particular?
- Não - admitiu a rapariga, dando mostras de um vago sen­
timento de alívi o -, não foi propriamente a coi sa em si , m as o ar
de decadência horrível, uma e spécie de ruína. Era um rosto. Um
rosto na j anela, pálido e de olhos arregal ados. Parecia a cara de
Judas.
- Bom, há pessoas assim - observou o padre -, e por ve zes es­
preitam pelas janelas. Posso entrar para ver onde é que isso acon­
teceu?
Quando ela voltou à sala com o vi sitante, já ali se encontravam
outros membros da família, e alguém de entre eles, menos dado a
fenómenos sobrenaturais, tinha-se lembrado entretanto de acen­
der as luzes. Ao ver-se na presença de Mrs. Bankes, o padre Brown
assumiu um ar mai s convencional e pediu desculpas pela sua in­
tromi ssão.
- Receio estar a cometer um certo abuso em relação à sua ca­
sa, Mrs . Bankes - di sse o sacerdote. - No entanto tentarei expli­
car-lhe até que ponto este assunto tem a ver consigo. Estava e u em
casa dos Pulman quando me telefonaram a pedir que viesse até cá,
para me encontrar com um i ndivíduo que aqui virá também para
lhes comunicar algo do vosso interes se . Não me teria integrado no
grupo se tal não me tivesse sido pedido, uma vez que testemunhei
o que aconteceu em Beechwood. Na verdade, fui eu que dei o alar­
me.
- Mas que aconteceu? - indagou Mrs . Bankes.
- Houve um assalto - respondeu o padre Brown com ar gra-
ve . - E o pior é que as jóias de Lady Pulman desapareceram e o
seu infeli z secretário, Mr. Barnard, foi encontrado no jardim, aba­
ti do a tiro pelo ladrão em fuga.
- Esse homem - exclamou a dona de casa -, e eu a pensar que
ele era . . . - preparava-se para concl uir a frase, mas o seu olhar
cruzou-se com o do sacerdote e não acabou de dizer o que queria,
sem, no entanto, saber o motivo que a levara a�alar-se .
- Comuniquei o facto à polícia - continuou o padre - e a ou­
tras autoridades interessadas no assunto, e todos são unânimes
em considerar que mesmo um exame superficial revela que tanto
as pegadas como as impressões digitais pertencem a um conheci -
42 do criminoso.
Nesta altura, a conversa foi interrompi da pela entrada de John
Bankes que regressava da sua gorada expedição de carro. Ao que
parecia, afinal de contas o velho Smith revel ara-se um fracasso na
qualidade de passageiro.
- Acabou por desistir à última da hora - anunciou com evi­
dente desagrado. - Pôs-se a andar enquanto eu verificava se ti­
nha um furo num .pneu. Foi a última vez que levei um labrego no
meu carro . . .
Porém, a s suas queixas pouca atenção receberam n o meio da
excitação provocada pelas novas trazidas pelo padre Brown .
- Há uma pes soa que irá chegàr, não tarda, e que me irá ali ­
viar desta responsabilidade - prosseguiu o sacerdote com o mes­
mo ar reservado. -Depois de o apresentar a todos, darei por cum ­
prida a minha tarefa como te stemunha neste caso tão grave. Só me
resta di zer que um a das criadas da mansão Beechwood afirmou ter
visto um rosto através da janela . . .
- Eu também vi u m a cara a espreitar numa j anela cá d e casa
- declarou Opal .
- Mas tu estás sempre a ver caras por todo o lado - resmun-
gou Jo} m .
- E o mesmo q u e ver factos, embora se trate apenas d e rostos
- di sse o padre Brown. - E crei o que o rosto que viu . . .
O barulho das pancadas na porta ressoou por toda a casa e da­
li a pouco surgi u na sala um novo vi sitante . Devine quase saltou
da cadeira ao vê-lo.
Tratava-se de um i n dividuo al to e muito direi to, de rosto lon­
go e cadavérico e queixo largo. Tinha uma fronte bastante calva e
uns olhos muito azuis e brilhantes, olhos esses que da última vez
que Devine os vira, se achavam obscurecidos pela sombra da aba
larga de um chapéu de palha.
- Por favor, não se i ncomodem, deixem-se estar - pediu o su­
jeito de nome Carver, com corte sia. Mas para o espírito conturba­
do de Devine, aquela delicadeza apresentava uma semelhança ex­
traordinári a com a atitude de um meliante que domina um grupo
de pessoas, apontando-lhes uma pi stola.
- Faça o favor de se sentar, Mr. Devi ne - di sse Carver. - E
se Mr. Bankes me dá licença seguirei o seu exemplo. A minha pre­
sença aqui necessita de uma expli cação. Quase apostari a que to­
dos vós su speitáveis de mim, como sendo um famoso ladrão.
- De facto assi m pensava - admiti u Devine.
- Como o senhor mesmo afirmou - lembrou Carver -, nem
sempre é fácil di stinguir uma vespa de uma abelha. - E depoi s de
uma pausa prossegui u: - Quanto a mim, posso afirmar que sou
um dos insectos mai s úteis que exi stem, embora bastante incómo­
dos. Sou detective e fui encarregado de inve stigar o suposto rea­
cender das activi dades de um conheci do criminoso que dá pelo no- 4 3
me de Michael Moonshine. A sua especiali dade era o furto de jóias.
Ora deu-se j ustamente um roubo na mansão Beech wood, o qual se
provou, graças aos testes técnicos levados a efei to, ter sido obra
desse homem . As impressões digitais coinci dem e, além di sso, há
a questão do disfarce. Como provavelmente devem saber, no m o­
mento em que foi preso ele u sava um di sfarce - uma barba pos­
tiça ruiva e um par de óculos de grandes aros de osso.
Opal Bankes, que o ouvia com toda a atenção, exclamou muito
excitada:
-É i sso. Foi um rosto assim que eu vi através dos vi dros . Ti­
nha uns óculos enormes e uma barba ruiva, como Judas. Até pen­
sei que era um fantasma.
- Foi o mesmo fantasma que a criada da mansão viu - con­
cluiu Carver. Colocou alguns papéi s e pacotes em cima da mesa
e começou a desembrulhá-los cui dadosamente. - Como já disse,
fui encarregado de fazer alguns inquéritos acerca dos planos cri­
minosos desse tal Moonshine. Foi por essa razão que me mostrei
interessado pel a apicultura e me fui instalar na casa de Mr. Smith.
Fez-se silêncio e dali a pouco Devine observou:
- Não está com certe za a insinuar que aquele velhote tão sim ­
pático . . .
- Francamente, Mr. Devine - interveio Carver com u m sor­
ri so -, quer di zer que aquele sítio era um bom esconderijo para
mim, no caso de ser eu o criminoso, mas não para ele .
Devine acenou c o m a cabeça e o detective regressou aos seus pa­
péis.
- Como eu suspeitava de Smi th, queria afastá-lo do cami nho,
para poder fazer uma busca entre os seus pertences. Por i sso
aprovei te i a gentileza de Mr. Bankes ao oferecer-se para ir dar um
passeio de automóvel com ele . Durante essa busca que fiz em sua
casa encontrei alguns objectos curiosos, que não é frequente en­
contrar-se entre as coisas de um inocente criador de abelhas. Eis
um desses objectos.
Di zendo i sto, tirou de dentro de um embrulho uma longa bar­
ba postiça de cor escarlate, do género das que são usadas no tea­
tro. Junto dela encontrava-se um par de óculos de pesados aros de
osso.
- Mas ainda encontrei outra coisa - prosseguiu Carver ­
trata-se de algo que di z mai s directamente respeito a esta casa e
que constitui o motivo da mi nha presença aqui . Encontrei um me­
morando com algumas notas e o registo do presumível valor de di ­
versas peças de joalheria que se encontravam nas casas da vi zi­
nhança. Logo a seguir à referência à tiara de Lady Pulm an, era
mencionado o colar de esm eraldas pertencente a Mrs . Bankes.
A senhora em causa, que encarara a invasão da sua casa com
44 u m ar confuso e altivo, mostrou-se, d e súbito, muito atenta à s pa-
lavras do detective. O seu rosto parecia dez anos mai s velho e a ex­
pressão tomou-se-lhe mai s inteligente . Mas antes de conseguir
pronunciar o que quer que fosse, já John se erguera de um salto,
fazendo grande espalhafato.
- A tiara já se foi - rosnou ele -, e agora o colar . . . o melhor
é eu ir ver se ele ai nda lá está!
- Não é má idei a - observou Carver, e nquanto o rapaz se pre­
cipitava para fora da sala -, apesar de termos estado de olhos bem
abertos des de que aqui nos encontramos reuni dos . Demorei um
certo tempo a traduzir o memorando, que se encontrava escrito em
código. O tel efonema do padre Brown com a notícia do roubo che­
gou quan do eu estava quase a chegar ao fim . Pedi-lhe então que
viesse até cá o mai s depressa possível para vos dar conta do que se
passara e dis se-lhe que eu próprio viria l ogo que pudesse. Sendo
assim . . .
O seu discurso foi então interrompido por u m grito. Opal esta­
va agora de pé e apontava para a janela redonda.
- Ali está ele outra vez! - gritava ela.
E durante um breve instante todos viram al go - o suficiente
para ilibar a jovem das acusações de ser mentirosa e histérica de
que frequentemente era vítima. Em contraste com o vazio da es­
curidão nocturna, o rosto apresentava uma palidez muito acentua­
da ou talvez parecesse ainda mai s branco por estar comprimi do
contra a vi draça. Os olhos grandes e desmesuradamente abertos,
cercados pelos aros dos óculos, tornavam aquela cara semelhante
a um peixe a espreitar pela vigia de um navio. Mas, neste caso, as
barbatanas do peixe eram de um tom vermelho acobreado - tra­
tava-se, na verdade, de umas patilhas ruivas e da parte superior
de uma barba da mesma cor. O rosto não tardou a desaparecer.
Quando Devine acabava de dar um passo na direcção da jane­
la ouviu-se um grito estri dente que ressoou por toda a casa e pa­
receu abaná-la nos seus alicerces. Embora fosse demasiado ensur­
dece dor para se disti nguirem as palavras, foi o suficiente para que
o detective estacasse, consciente do que acontecera.
- O colar desapareceu ! - bradou John Bankes, surgi ndo de
rompante à porta da sala, para desaparecer de ime diato, como um
cão de caça no encalço da pre sa.
- O ladrão ainda agora ali estava a espreitar! - exclamou o de­
tective, correndo para a porta, atrás de John, que entretanto já se
encontrava no jardim.
- Cui dado - avisou a dona da casa -, eles costumam andar
armados.
- Eu também estou armado - respondeu a voz do impetuoso
John no meio da escuridão do j ardim .
De facto, Devine reparara que o jovem brandia um revólver em
ar de desafio e fazia votos para que não fosse obrigado a usá-lo. No 4 5
momento em que i sso lhe veio à i deia ouviu dois estam pi dos, como
se um fosse a re sposta ao outro, provocando uma série de ecos em
cadeia que se propagaram através daquele jardim calmo de subúr­
bio. Depois estabeleceu-se um profundo silêncio.
- John morreu? - perguntou Opal com voz trémula.
O padre Brown, que se embrenhara na escuridão, e que, de cos­
tas voltadas para os outros, olhava para qualquer coisa no chão,
respondeu-lhe :
- Não, foi o outro.
Carver aproximou-se dele e durante uns momentos os dois
vultos, o alto e o baixo, impe diram o resto do grupo de observar
aquilo que a lua caprichosa lhes permitia ver. Depoi s, afastaram­
-se para o lado e os outros tiveram ocasião de observar a fi gura pe­
quena e magra contorci da n o chão, como se tivesse fi cado assim
depoi s de travar a sua derradeira luta. A barba falsa estava espe­
tada para o ar como que a desafiar os céus e a luz do luar reflectia­
-se nos óculos daquele homem que dava pelo nome de Moonshine1 •
- Mas que morte - murmurou o detective . - Depoi s de tan-
tas aventuras quem havia de di zer que iria ser morto quase por aci­
dente por um escriturário num j ardim de uma casa de subúrbio.
O escriturário encarava o seu próprio triunfo de uma forma
mais solene, mas com algum nervosismo.
- Fui obrigado a atirar - alegou, ofegante . - Lamento o que
aconteçeu, mas ele ·disparou sobre mim .
- E claro que terá de se proceder a um i nquérito - observou
Carver. - Mas penso que não preci sa de se preocupar com isso. H á
um revólver onde falta uma bala, caído ao lado dele e com certeza
que não di sparou depoi s de você o ter alvejado.
Nesta altura já se encontravam todos de novo na sala e o detec­
tive reunia os seus p apéis, preparando-- s e para se ir embora. O pa­
dre Brown estava de pé em frente dele e olhava para a mesa nu­
m a atitude de grande concentração. De súbito, declarou:
- Mr. Carver, não há dúvi da de que o senhor resolveu um ca­
so assaz complicado de uma forma magistraL Sempre suspeitei da
sua verdadeira profissão; no entanto, nunca imaginei que fosse ca­
paz de ligar as coisas assim tão depressa . . . as abelhas, a barba, os
óculos, o código, o colar e todas essas coi sas.
-E sempre uma sati sfação chegar vitorioso ao fim de mai s um
caso - desabafou o detective .
- Sim - concordou o padre Brown, sempre de olhos fitos na
mesa. - Admiro muito i sso. - E depoi s acrescentou, numa atitu­
de de modéstia que quase parecia timidez : - No entanto sinto--m e

46 1 Luar em português. (N. da T.)


na obrigação de ser honesto para consigo e de lhe confessar que não
acredito numa palavra daquilo que disse .
Devine dobrou-se sobre a mesa numa atitude de súbito inte­
resse.
- Não acredita então que foi Moonshine quem roubou?
- Eu sei que ele era ladrão, mas desta vez não foi ele o autor
do roubo - declarou o padre Brown. - Tenho a certeza de que não
veio cá nem foi à mansão no i ntuito de roubar, e também sei que
não foi alvejado quando i a a fugir com as j óias. Onde é que elas es­
tão, afinal?
- Devem estar onde é costume em casos destes - retorquiu
Carver. - Ou as escondeu algures ou as. entregou a um cúmplice .
Isto não foi trabalho de um s ó homem. E claro q u e o m e u pessoal
já anda a passar uma busca ao jardim e a fazer avi sos por toda a
região.
- Talve z o cúmplice tenha roubado o colar enquanto Moonshi ­
ne espreitava pela janel a - sugeriu Mrs. Bankes.
- E por que razão é que Moonshine terá espreita do pela jane­
la? - indagou o sacerdote. - Por que mo tivo é que ele quereria es­
preitar pela j anela?
- E qual é a sua opini ão? - perguntou John muito animado.
- Eu acho que ele nunca quis espreitar.
- Então p or que é que o fez? - inquiri u Carver. - Parece-me
que estas conjecturas não nos levam a nada. E afinal todos nós as­
sistimos ao que se passou.
- Tenho presenci ado muitas coisas nas quai s não acre ditava
- replicou o padre Brown . - E você também, quer no palco, quer
fora dele.
- Diga-nos uma coisa, padre Brown - pediu Devine num tom
respeitoso -, por que razão é que não acredita no que os seus olhos
vêem?
- Bom, vou tentar explicar-lhes - di sse o padre . E prosse­
guiu: - Sabem quem eu sou e todos nós nos conhecemos. Não nos
incomodamos uns aos outros e esforçam o-nos por ser amigos de to­
dos os vi zinhos. Mas não pensem que andamos cegos, que não sa­
bemos nada. Preocupamo-nos com aquilo que nos diz respeito,
mas conhecemos aqueles que nos rodeiam . Eu conhecia muito bem
este homem que agora está morto. Era seu confessor e seu grande
amigo e sabia, dentro da medi da do possível, o que lhe ia no espírito
quan do ele hoj e saiu daquel e jardim. A sua mente assemelhava-se
a um cortiço de vidro cheio de abelhas douradas. Posso garantir
que o seu desejo de se reformar era sincero. Pertencia a esse grupo
dos grandes penitentes que conseguem extrair mais frutos da pe­
nitência do que outras pessoas da virtude . Já vos di sse que era seu
confessor; no entanto era eu que i a ter com ele para me confortar.
Fez-me bem conviver com um homem tão bom. E quando o vi ali , 4 7
estendido no chão, sem vida, foi como se estranhas palavras pro­
nunciadas outrora a seu respeito se repetissem aos meus ouvi dos .
E havia motivo para tal, poi s se alguma vez um homem segui u di­
rectam ente para o céu, pode ter sido ele .
- Mas repare - interveio John Bankes com nervosismo - não
nos podemos esquecer de que ele era um ladrão declarado.
- Claro, e só um homem como ele é que um dia ouviu a promes­
sa: «Esta noite estarás comigo no Paraíso.>>
Ninguém parecia ser capaz de quebrar o silêncio que se seguiu
àquelas palavras, até que Levine acabou, finalmente, por per­
guntar:
- Então como é que consegue explicar o que aconteceu?
O sacerdote abanou a cabeça.
- De momento não consigo explicar nada - confessou. - Vis­
lumbro uma ou duas coisas estranhas, mas não as entendo. Por en­
�uanto, não tenho quaisquer elementos que provem a inocência do
liomem, a não ser o próprio homem . Mas tenho a certe za de que es­
tou dentro da razão .
Suspirou e estendeu a mão para o seu enorme chapéu preto.
Nesse instante, ficou a olhar para a mesa com uma expre ssão di­
ferente e a cabeça inclinada, como se um animal estranho tivesse
saído de dentro da copa, num truque de ilusionismo. Os outros, po­
rém, se olhassem para a mesa, apenas veriam os documentos do
detective, juntamente com os ·óculos e a barba posti ça.
- Valha-nos Deus - murmurou o sacerdote . - Mas ele jaz lá
fora com a barba e os ócul os ! - rodou bruscamente sobre os cal ca­
nhares e dirigi u-se a Devine: - Aqui tem um enigma para desven­
dar. Por que razão é que ele tinha duas barbas ?
E, di zendo isto, encaminhou-se a toda a pressa para a saída,
mas Devine, agora roído de curiosidade, seguiu-o até ao jardi m .
- Por enquanto nada lhe poderei di zer - decl arou o padre
Brown. - Não tenho a certeza e estou preocupado com aquilo qu�
devo fazer. Apareça amanhã, e talvez já lhe possa contar tudo. E
possível que o caso esteja esclareci do nessa altura e . . . ouviu aque­
le barulho?
- Era um automóvel a arrancar - observou Devine.
- Parecia o carro de Mr. John Bankes . Creio que anda m uito
depres!'a·
- E o que ele di z - disse Devine com um sorriso.
- Irá longe e depressa, e sta noite - declarou o padre .
- Que quer di zer com i sso?
- Quero di zer que não voltará - retorquiu o sacerdote . - John
Bankes suspeitou de que eu sabia alguma coi sa. Partiu e levou con­
sigo as esmeraldas e as outras jóias .
No dia seguinte, Devine foi encontrar o padre Brown a andar de
um lado para o outro em frente das colmeias. Tinha um ar tri ste,
mas sereno.
48 - Estive a contar às abelhas o que aconteceu - declarou . -
Alguém tinha de lhes dizer! A «Obreiras sibil antes erguendo telha­
dos de ouro.» Que frase admirável ! - e prossegui u, num tom mai s
abrupto: - Ele gostaria que alguém ficasse a tomar conta destas
abelhas.
-E penso que não será desejo dele descurar os seres humanos,
quando até o próprio enxame arde de curiosi dade - observou o jo­
vem . - Tinha toda a razão ontem à noite quando afirmou que Ban­
kes tinha partido com as jóias; no entanto, não faço i deia como é
que descobriu i sso, nem o que havia para descobrir.
O padre Brown olhou com ar benevolente para as colmeias e co­
meçou :
- Uma pessoa tropeça nas coi sas, digamos assim, e houve uma
logo ao princípio. Fi quei perplexo com a morte do pobre Barnard,
em Beechwood House. Mesmo quando se achava no auge da sua
carreira, Michael tinha um ponto de honra; que o enchia de vai da­
de: nunca precisara de matar ninguém. Parecia-me, poi s, extraor­
dinário que quando se tornara uma espécie de santo, deci disse sair
do seu caminho para com eter um pecado que sempre condenara no
tempo em que fora um pecador. O resto do caso intrigou-me até ao
último pormenor: nada fazia senti do para mim, a não ser o facto de
que tudo aquilo era fal so. Por fim tive um rasgo de i nteligência
quando me deparei com aqueles óculos e a barba postiça em cima
da mesa e me lembrei de que o ladrão estava disfarçado com os
mesmos adereços. Claro que ele podia ter duplicados, mas parecia­
-me pelo menos coinci dência o facto de não usar os anti gos, quan­
do estes se achavam em bom estado. No entanto também se podia
pôr a hipótese de ter saído sem eles e ter sido por i sso obrigado a
arranjar outros óculos e outra barba. No entanto, i sso não me pa­
recia mui to viáveL Por outro lado, nada o obrigava a ir passear de
automóvel com Bankes, e se na realidade tenci onava praticar al ­
gum roubo podia facilmente levar os disfarces no bolso. Al ém di s­
so, não se encontram barbas postiças por aí aos pontapés, pelo que
lhe teria sido difícil obter essas coisas de um momento para o outro.
- Quanto mais pensava no assunto, mai s estranha achava es­
sa história de di sfarces duplos. E, de repente, a verdade começou
a surgir no meu espírito e obtive a certeza daquilo que j á sabia por
mero instinto. Quan do saiu de carro com Bankes, Moonshine não
tinha qualquer intenção de se di sfarçar. N ão utili zou sequer esses
acessórios. Houve, si m, alguém que os conseguiu arranjar e depoi s
lhos colocou.
- Lhos colocou, como? - i n dagou Devi ne. - Como é que i sso
é possível?
- Voltemos atrás e vejamos as coisas através de uma ou tra ja­
nel a. A janela através da qual a jovem viu um fantasma - suge­
riu o padre Brown.
- O fantasm a! - exclamou o outro com um li geiro estremeci -
m e n to . 49
- Foi assim que ela lhe chamou - replicou o sacerdote . - E se
calhar não estava muito longe da verdade. De facto ela é aquilo a
que chamam vi dente e o seu único erro é pensar que ser vi dente é
ser espiritual. Há animai s que também possuem este dom . De
qualquer modo, el a é sensível e estava certa quando pressentiu
que aquele rosto na j anela tinha uma espécie de halo horrível que
lembrava a morte .
- Quer di zer . . ? - adiantou Devine.
.

- Quero di zer que se tratava realmente de um h�mem morto,


esse que foi visto a espreitar pelas janelas das casas. E tétrico, não
é? No entanto tratava-se, de certo modo, do i nverso de um fantas­
ma, pois não era a alma liberta de um corpo, mas si m o corpo liber­
to da alma.
Brown olhou de novo para os cortiços e prosseguiu :
- Em todo o caso, penso q u e a explicação mais simples consis­
te em expor os factos do ponto de vi sta do culpado. Conhece-o sem
dúvi da: é John Bankes.
- Era a última pessoa de quem eu suspeitari a - confessou De­
vine.
- Poi s foi ele o primeiro de quem suspeitei, tanto quanto me era
permitido suspeitar de alguém. Não há tipos nem actividades so­
ciai s que possamos consi derar bons ou maus, meu caro. Qualquer
pessoa se pode tornar num assassino como John; qualquer i n diví­
duo, até o mesmo homem, pode ser um santo, como o pobre do
MichaeL No entanto, há um tipo de i n divíduos que, em certas oca­
siões, tendem a mostrar-se mai s ímpios que outros: são os homens
de negócios. Estes seres desumanos não possuem i deai s sociai s e
muito menos religião, além de não terem as tradi ções do verdadei­
ro gentleman nem a consciência de classe que caracteri za os sin di ­
calistas. O alarde que John fazia, vangloriando-se de ter consegui ­
do bons negócios, era afinal a confissão de que enganara alguém .
A forma como troçava das pobres tentativas de mi sticismo da irmã
era detestáveL Embora o mi sticismo da rapariga fosse um dispa­
rate, o que ele odiava era o espiritualismo, apenas por se tratar de
e spirituali dade. De qualquer modo, não restam dúvidas de que foi
ele o mau da fita e o único interesse que o dominava resi de num as­
pecto original de vilania. O mo ti vo do crime pode consi derar-se no­
vo e único. Consisti a em utilizar o cadáver com o um elemento do
cenário, uma espécie de boneco ou fantoche hediondo. Inicialmen­
te concebeu um plano para matar Michael no carro e depoi s levá­
-lo para casa e fingir que o elimi nara no j ardim. Mas todos os re­
toques de fantasia surgiram com naturalidade a partir do facto
fundamental : ter à sua disposição, num carro fechado, à noi te, o ca­
dáver de um ladrão reconheci do e reconhecíveL Podia utili zar as
suas impressões digitais e a marca das suas pegadas, podia encos-
5O tar aquele rosto familiar às vidraças e fazê-lo desaparecer. Lem-
bre-se de que Moonshine apareceu ostensivamente à janela e vol ­
tou a desaparecer no momento em que Bankes se ausentara da sa­
la com o pretexto de ir procurar o colar de esmeraldas.
- Finalmente , só lhe restava colocar o cadáver no relvado e dis ­
parar u m tiro de cada pi stola. Talvez nunca vi esse a ser desmasca­
rado, se não fosse a questão das duas barbas.
- E por que razão é que o seu amigo Michael terá conservado
a antiga barba postiça? Não é estranho? - indagou Devine, pen­
sativo.
- Para mim, que o conhecia bem, não me faz qualquer espéci e ·

- replicou o padre Brown. - Toda a sua atitude se assemelhava


a essa barba. Não tinha qualquer intenção de usá-la como
di sfarce . Já não ia preci sar desse acessório; no entanto, tinha me­
do dele. Consi derava uma fal sidade destruir a sua barba fal sa: era
como se estivesse a escon der-se, e ele não pretendia i sso. Moons­
hi ne não andava a esconder-se nem de Deus, nem de si próprio. Vi ­
via em plena luz do di a e mesmo que voltassem a encerrá-lo na pri ­
são continuaria a sentir-se feli z . Não tinha si do caiado de branco
por fora, mas totalmente purifi cado. Havia nele algo de muito es­
tranho, quase tão estranho como a grotesca dança da morte para
a qual o arrastaram depoi s de morrer. Quando se movi a de um la­
do para o outro, a sorrir, por entre os cortiços, já não vivia, acha­
va-se isento em relação à possibili dade de ser julgado neste
mundo.
Fez-se silêncio, até que Devi ne encolheu os ombros e observou:
- Voltamos àquela questão da semelhança entre as abelhas e
as vespas deste mundo, não é verdade?

51
CAP ÍTULO III

A CANÇÃO DOS PEIXES VOADORES

A alm a de Mr. Peregrine pairava corno urna mosca, rondando


em torno de um gracejo e de um objecto que lhe pertencia. Podia
consi derar-se urna piada sem graça, poi s consi stia apenas em per­
guntar às pessoas se já conheciam os seus peixi nhos dourados.
Também poderíamos di zer que se tratava de uma piada cara, mas
não se sabe se ele não estaria secretamente mai s ligado à piada que
ao preço que ela custava. Quando conversava com os vizi nhos que
moravam no pequeno bairro de casas novas que se haviam ergui­
do em torno do relvado da velha al deia, não perdia tempo em con­
duzir a conversa para o seu tema preferi do. Com o Dr. Burdock, um
eminente biólogo de queixo largo e cabelo cortado em escova, como
um alemão, Mr. Smart não tinha dificul dade em abordar o as­
sunto:
- A propósito, urna vez que se interessa por história natural,
não gostaria de ver os meus peixinhos dourados?
Para um evolucionista ortodoxo como o Dr. Burdock, era
indubitável que a natureza constituía um todo indi scutivelmente
digno de interesse, mas assim, à primeira vista, não estava a per­
ceber qual o elo de ligação entre uma coisa e outra, vi sto ser um es·
pecialista que se dedicara inteiramente ao estudo da ascendência
primitiva da girafa.
Em relação ao padre Brown, pároco de uma igreja da ci dade
mai s próxima, seguiu um fio de pensamento ao longo do qual abor­
dou os temas de <<Roma; S. Pedro; o pescador; os peixes; os peixi­
nhos dourados.>> Conversando com Mr. lmlack Smith, o gerente do
banco, um indivíduo magro e páli do, que vestia cornn el egânci a e
tinha modos di scretos, puxou a conversa de uma forma abrupta,
fazendo referência ao padrão ouro, o que di stava apenas um pas·
so do tema dos peixinhos dourados . Ao falar com o brilhante eru­
dito e viajante oriental , o conde Yves De Lara (o título era francês
e a aparência russa, para não di zer tártara), o versátil conversa-
S2 dor revelou um interesse profundo e inteligente pelo Ganges e pelo
oceano Í ndico, o que conduziu naturalmente à possível hi pótese da
existência de peixinhos dourados naquelas águas. Quanto a Mr.
Harry Hartopp, cavalheiro muito rico e não menos tímido e cala­
do, que ali chegara recentemente vin do de Londres, conseguiu ex­
torquir a i nformação de que este j ovem inibido não se interessava
pela pesca e apressou-se a perguntar:
- E por falar em pesca, já viu os meus peixinhos dourados?
O pormenor peculiar destes peixes era o facto de serem de ou­
ro. Faziam parte de um brinquedo excêntrico e caro, que havia si­
do mandado fazer, ao que constava, por um príncipe qualquer do
Oriente e que Mr. Smart arranjara num leilão ou numa dessas lo­
jas de bric-<L--brac que costumava vi si tar, com o objectivo de encher
a sua casa de peças raras e i núteis. Visto da outra extremi dade da
sala, o tal brinquedo fazia lembrar uma taça de grandes dimen­
sões, contendo vários peixes vivos i gualm ente gran des. No entan­
to, uma inspecção mais minuciosa revelava um enorme globo de vi ­
dro vene ziano, muito fino e iri di scente, matizado com delicados
tons, em cujo crepúsculo colori do pairavam vários pei xi nhos dou­
rados de grandes olhos de rubi s. O objecto, no seu conjunto, era sem
dúvi da bastante valioso, não só pel o material de que era feito, mas
também graças às ondas de loucura que costumam varrer o mun­
do dos coleccionadore s . O novo secretário de Mr. Smart, um jovem
de nome Francis Boyle, embora irlandês e, como tal, pouco preocu­
pado em tomar medidas de precaução, ficou surpreendi do ao ouvi ­
-lo falar abertamente das jóias da sua col ecção ao grupo de i n di ­
víduos, por assim di zer pessoas estranhas, que haviam assentado
arraiai s na vi zinhança de uma forma algo nómada, atendendo so­
bretudo ao facto de os coleccionadores serem geralmente vigilan­
tes e até reservados. Ao i niciar as suas novas funções, Mr. Boyl e
apercebeu-se de que não era o único a pensar assim e que os sen­
timentos dos outros em relação a i sso iam de sde o pasmo relativo
até à atitude de profunda desaprovação.
- Admiro-me por ai nda não lhe terem cortado o pescoço - ob­
servou Harris, o criado de Mr. Smart, deixando transparecer uma
hi potética sati sfação, como se tivesse dito num senti do puramen­
te artí§tico: « Que pena!»
- E extraordinário como ele se mostra desleixado com as coi ­
sas - observou Jameson, chefe da contabili dade de Mr. Smart,
que se deslocara do escritório para prestar assistência ao novo se­
cretário -, e é que ninguém o convence a pôr essas mal ditas tran­
cas na porta.
- Em rel ação ao padre Brown e ao médico não há problema ­
disse a governanta de Mr. Smart, com a energia que lhe era habi ­
tual , sempre que expre ssava uma opinião -, mas quando se tra­
ta de pessoas estranhas acho que se está a tentar a provi dênci a.
Não me refiro só ao conde . Aquele sujeito do banco, quanto a mim,
tem uma pele m uito amarela para ser inglês. 53
- Bem, o jovem Hartopp é suficientemente i nglês, a ponto de
nada ter a dizer a seu favor - observou Boyle, trocista.
- Mais tempo tem para pensar - sentenciou a governanta. ­
Pode não ser estrangeiro, mas não deve ser tão tolo como parece .
Cá para mim os estrangeiros não merecem confiança - concluiu
com ar grave.
A sua opinião reforçar-se-ia se tivesse escutado a conversa que
tivera lugar na sala no patrão naquela tarde e cujo tema versava
os pei:rinhos dourados, embora o ofensivo estrangeiro tendesse ca­
da vez mais a tornar-se na figura central . Não é que falasse mui ­
to, mas até nos seus silêncios havia algo de positivo. Apresentava
um aspecto mais imponente do que o habitual , talvez por se encon­
trar sentado em cima de um monte de almofadas e , visto assim, ao
crepúsculo cada vez m ais acentuado, o seu rosto de mongol , pare­
cia brilhar como uma grande 1 ua. Tal ve z o cenário contribuísse pa­
ra lhe conferir ao semblante e ao aspecto geral um ar asiático, poi s
a sala era um amontoado de curiosi dade s de todos os preços , entre
as quai s se contava um sem número de armas orientais de lâminas
curvas e cores quentes, cachimbos e recipientes, instrumentos mu­
sicais e m anuscritos enfeitados com iluminuras, tudo provenien­
te dessas regiões asiáticas. À medida que a conversa avançava,
mais semelhanças Boyle encontrava entre o homem sentado nas
almofadas, visto à luz crepuscular e os contornos de uma estátua
de Buda.
A conversa generalizara-se, poi s estava ali presente o peque­
no grupo habitual . Tinham criado o hábito de se visitarem mutua­
mente e nesta altura já constituíam uma espécie de clube, forma­
do pelas pessoas que viviam nas quatro ou cinco casas situadas em
redor do campo relvado da al deia. De todas as moradi as, a mai s an­
tiga era a de Peregrine Smart, para além de ser a maior e a mai s
pitoresca. Ocupava praticamente u m dos lados d a praça, deixan­
do apenas espaço suficiente para uma pequena vivenda, habitada
por um coronel reformado de nome Varney, i nvál i do, segundo
constava, que nunca saía à rua. Em ângulo recto com elas havia
duas ou três lojas, que satisfaziam as necessidades mai s simples
dos habitantes do povoado, e à esquina ficava a estalagem do Dra­
gão Azul , onde Mr. Hartopp, o forasteiro de Londres, estava hos­
pedado. Do lado oposto ficavam três casas, uma arrendada pelo
conde De Lara, outra pelo Dr. B urdock, encontrando-se a tercei­
ra desabitada. No quarto lado da praça situava-se o Banco, com
uma casa de habitação anexa para o gerente e ainda uma cerca que
rodeava um terreno desti nado à construção. Tratava-se, pois, de
um grupo muito limi tado, e o vazio relativo dos campos em redor
da al deia atraía os seus membros para um convívio cada vez mais
estreito. Nessa tarde, porém, um forasteiro viera quebrar o círcu-
54 lo mágico. Tratava-se d e um sujeito d e rosto duro, sobrancelhas e
bi gode hirsutos e andrajosamente vesti do que devia ser um milio­
nário ou um duque se viera, como afirmava, para negociar com o
velho coleccionador. Todavia, pelo menos na e stalagem do Dragão
Azul, era conheci do por Mr. Harmer.
Como não podia deixar de ser, já lhe haviam falado das glórias
dos peixinhos dourados e já ouvira as criticas relativamente à fal ­
ta d e cui dado com que aqueles eram guardados.
- Toda a gente me di z que eu devia guardá-los melhor - ob­
servou Mr. Smart, olhando por cima do ombro para o empregado
que lhe viera trazer uns papéi s do escritório. Smart era um velho
baixo e gordo, de rosto re dondo, fazendo l embrar um papagaio de
cabeça depenada.
- Jameson, Harris e os outros empregados passam a vi da a di ­
zer-me que ponha trancas nas portas, como se isto fosse al gum a
fortaleza medieval . Se bem q u e essas barras d e ferro ferrugento
sejam de facto suficientemente me dievai s para impedir seja quem
for de entrar. Cá por mim, prefiro confiar na sorte e na polícia local .
- As trancas mais fortes nem sem pre impedem as pessoas de
entrar - observou o con de. - Tudo depen de de quem pretende fa­
zê-lo. Havia um antigo ermita hindu que vivi a nu numa caverna
e consegui u passar através de três exérci tos que cercavam o rei ,
para roubar o rubi que enfeitava o turbante do tirano, tendo-se de­
poi s esgueirado como uma sombra, sem ni guém dar por ele. Qui s
assim ensinar aos poderosos quão frágeis são as leis do espaço e do
tempo.
- Ao estu darmos as leis de espaço e de tempo - resmungou o
Dr. Burdock -, normalmente descobrimos como se fazem esses
truques. A ciência oci de!ltal consegui u expli car uma grande par­
te da magia do Oriente. E evi dente que muitas dessas coisas se de­
vem ao hipnoti smo e ao poder de sugestão, para não falar da pres­
ti di gitação .
- O rubi não se encontrava na tenda real - observou o conde,
com o ar sonhador que lhe era habitual -, teve de o descobrir en­
tre cem tendas .
- Mas i sso não poderá ser explicado pela telepatia? - i n dagou
o mé dico, em tom incisivo.
A pergunta pareceu ainda mai s seca devi do ao silêncio pesado
que se lhe seguiu, como se o di stinto viajante das terras do Orien­
te, num gesto indelicado, tivesse adormeci do.
- Queiram desculpar - di sse ele, levantando-se com um sor­
riso. - Esqueci-me de que estávamos a falar por meio de palavras.
No Oriente comunicam9s através do pensamento e por i sso nun-
ca há mal-entendi dos. E estranho como todos vocês adoram pala­
vras e se satisfazem com elas. Que diferença fará um facto a que
agora chamam telepatia e dantes chamavam parvoíce? Se um ho­
mem trepa ao céu por uma mangueira, que diferença fará afirmar 5 5
que se trata de levitação em lugar de se di zer que não passa de uma
aldrabice? Se uma feiticeira medieval agitasse uma varinha e me
transformasse num babuíno azul, diria que se tratava de um sim­
ples atavi smo.
O médico fez uma expressão como se estivesse a preparar-se
para declarar que a mudança não teria sido assim tão grande, m as
antes de conseguir expressar a sua irri tação, dessa o u d e outra for­
ma, o homem chamado Harmer i nterveio bruscamente :
- É verdade que estes presti digitadores indianos conseguem
fazer coi s�s estranhas, mas tenho verificado que apenas o conse­
guem na India. Talvez graças aos seus acólitos ou então devi do a
um fenómeno de psicologia colectiva. Não creio que esses truques
tenham sido alguma vez tentados numa al deia inglesa e julgo po­
der afirmar que os peixes dourados do nosso amigo não correm
qualquer perigo.
- Vou contar-lhes uma hi stória - anunciou De Lara no seu
tom de voz indolente - que não ocorreu na Í ndia, mas junto de um
quartel inglês, na zona mai s moderna do Cairo. Estava uma sen­
tinela no interior do recinto da parada a olhar para a rua por en­
tre as grades. Foi então que surgi u do lado de fora um mendi go an­
drajoso e de pés descalços, que lhe pediu num inglês correctíssimo,
que o deixasse ir buscar um documento oficial que se achava guar­
dado no cofre. O soldado respondeu-lhe, é claro, que não o podia
deixar entrar lá dentro e o outro perguntou-lhe a rir: <<Que é estar
do lado de dentro e do lado de fora?»
O soldado sorria ainda com ar trocista, quando se apercebeu de
que, embora não se tivesse mexi do do sítio onde estava, se en­
contrava agora na rua a olhar para a parada do quartel, onde o
mendigo se achava imóvel e sorri dente. Depois, ao ver o mendi go
voltar as costas e dirigir-se para o e difício, a sentinela despertou
e gritou para os companheiros que se encontravam no interior, avi­
sando-os que o prendessem . <<Não vai s conseguir sair daí de den­
tro>>, ameaçou ele, vingativo, e o mendigo respondeu-lhe com a sua
voz metálica: ••Que é estar do lado de dentro e do lado de fora?» E
o soldado, sempre a olhar através das mesmas barras, voltou a re­
parar que estas o separavam novamente da rua, onde o mendi go,
agora livre e sorridente, o olhava, ostentando um papel na mão.
Mr. Imlack Smith , o gerente do banco, de cabeça baixa, fi tava
o tapete, quando falou pela primeira vez :
- E aconteceu alguma coi sa a o documento? - inquiriu.
- Os seus instintos profi ssionais estão correctos , meu caro -
observou o conde, com afabili dade . - Tratava-se de um documen­
to de consi derável importância fi nanceira e as consequências que
daí advieram repercutiram-se a nível i nternacional .
_: E spero que tais ocorrências não sejam frequentes - di s se o
56 jovem Hartopp.
- Não estou a referir-me ao aspecto político da questão - ex­
plicou o conde, - m as sim ao aspecto filosófico. O que acabo de con­
tar ilustra como os homens sábios conseguem dominar o espaço e
o tempo e accionar as alavancas de comando, por assim dizer, de
tal form a que o mundo inteiro se inverte perante os nossos olhos.
Mas, afinal , é tão difícil para todos vós acreditar que o poder espi ­
ritual é m uito superior ao material .
- Bem, de facto não me considero uma autoridade em matéria
de poderes espirituai s - observou Smart, prazenteiro. - E que
pensa disto, padre Brown?
- A única coi sa que me faz confusão - retorquiu o sacerdote
- é que todos os actos sobrenaturais de que até agora se tem fa-
lado parecem di zer respeito a roubos. Ora, roubar por meios espi­
rituai s é, quanto a mim, o mesmo que fazê-lo por meios materi ai s .
- O padre Brown é um filisteu - comentou Smi th, sorri dente .
- Tenho simpatia pela tribo - admiti u o sacerdote . - Um fi-
li steu é apenas um homem que tem razão sem saber porquê .
- Tudo i s to é demasi ado subtil para mim - declarou Hartopp,
animado.
- Talvez preferi sse fal ar sem palavras, como o conde há pou­
co sugeriu - aventou o padre Brown sorri dente . - Ele começari a
por não dizer nada de concreto e você responder-lhe-ia com um
acesso de mutismo.
· - Há coi sas que podem ser resolvi das através da música ­
murmurou o conde, sonhador. - Seria bem melhor que todas es­
sas palavras.
- Sim, por música já eu compreendia - assentiu o jovem em
voz baixa.
Boyle seguira o fi o da conversa com atenção e curiosi dade, poi s
notou algo signifi cativo e até estranho n a atitude d e alguns dos in­
terlocutores . Quando a conversa enveredou pela música, com es­
pecial agrado do elegante gerente bancário (que era um músico
amador de certo méri to), o jovem secretário lembrou-se subi ta­
mente das suas obrigações profi ssionai s e lembrou ao patrão que
o chefe da contabili dade continuava a aguardar pacientemente ,
com os documentos na mão.
- Deixe l á i sso agora Jameson - disse Smart com precipita­
ção. - Apenas uma coi sa sobre a minha conta, mas falarei mai s
tarde com Mr. Smi th . Di zia que o violoncelo, Mr. Smith . . .
N o entanto, a aragem fri a dos negócios bastara para dispersar
os fumos da conversa transcendental e os convidados começaram
gradualmente a despedir-se . Só Mr. Iml ack Smith, o gerente do
banco e músi co, permaneceu até ao fim. Depois, quando os outros
partiram, ele e o seu anfitrião dirigiram-se à sala interior, onde es­
tavam guardados os peixinhos dourados, e fecharam a porta.
A casa era longa e estreita, com uma varanda coberta que se es- 5 7
ten dia ao longo do primeiro andar, o qual consi stia fundamental ­
mente num conjunto de aposentos utili zados pelo próprio dono da
cas a - o quarto de dormir, um quarto de vestir e uma sala interior
onde o seu tesouro mais valioso era muitas vezes guardado duran­
te a noite em vez de fi car no rés-ào-chão. A varanda e a porta pri n ­
cipal d a c a s a (insuficientemente seguras) eram motivo de preocu­
pação, quer para a governanta, quer para o chefe dos empregados
e os outros que lamentavam o descui do do coleccionador. No en­
tanto, aquele velho senhor era mais prudente do que parecia. Não
ti nha muita confiança nas antiquadas trancas da casa, que a go­
vernanta, cheia de pena, ia vendo encherem-se de ferrugem ; no
entanto, concentrava a sua atenção em pontos estratégicos que
consi derava mais importantes. Durante a noite, guardava sempre
os seus queridos peixes dourados na sala i nterior que ficava jun­
to do quarto onde dormia, nunca se esquecendo da pistola que con­
servava debaixo do travesseiro. E quando Boyle e Jameson, que
entretanto aguardavam que ele terminasse o seu tête à tête, viram
fi nalmente a porta abrir-se e o patrão aparecer, verificaram que
e ste segurava a enorme esfera de vidro tão cautelosamente com o
s e se tratasse da relíquia d e um santo.
Lá fora, os últimos raios de sol poente ainda incidiam nos can­
tos da praça relvada, mas dentro de casa já haviam acendi do as lu­
zes e, assim, sob aquela lumi nosi dade proveniente do Sol e das
lâmpadas, o globo colorido cintilava como uma jóia monstruosa,
enquanto os fantásticos contornos dos peixes pareciam conferir ao
conjunto da peça o aspecto mi sterioso de um tali smã, lembrando
estranhas sombras vistas por um vi dente na sua bola de cristal .
Por cima do ombro do velho coleccionador, o rosto cor de azeitona
de Imlack Smith ostentava uma expressão esfíngica.
- Parto esta noite para Londres, Mr. Boyle - declarou Mr.
Smart com um ar mais grave do que era habitual . Eu e Mr. Smith
iremos no comboio das sei s e quarenta e ci nco. Preferia que você
dormisse esta noite no meu quarto, Jameson . Se puser a taça no
quarto interior, como é costume, não haverá problema. Não é que
eu esteja com receio que aconteça alguma coisa.
- Tudo pode acontecer de um momento para o outro e seja on­
de for - observou Mr. Smith sorri dente . - Creio que costum a dor­
mir com um revólver ao seu lado. O melhor é deixá-l o cá ficar.
Peregrine Smart não respondeu e sai u para a rua que contor­
nava a praça, acompanhado pelo vi sitante.
De acordo com as ordens recebi das, o secretário e Jameson dor­
miram nessa noite no quarto do patrão. Para ser mai s preciso, Ja­
meson deitou-se no quarto de vestir, mas deixou ficar a porta de
ligação aberta, transformando assim os aposentos praticamente
num só. No quarto de dormir havia uma porta envidraçada que se
58 abria para a varanda e uma outra, d o lado oposto, que dava para
o quarto interior onde a taça dos peixes dourados havi a sido col o­
cada para maior segurança. Boyle arrastou a cama de forma a bar­
ri car esta última porta, m eteu o revólver debaixo do travesseiro,
despiu-se e deitou-se, convencido de que tinha tomado todas as
precauções contra um impossível ou improvável evento. Não lhe
parecia que houvesse perigo de um assalto normal, e quanto ao
roubo de natureza espiritual , das histórias do conde De Lara, se
dele se lembrou no momento em que estava prestes a adormecer
era porque tudo i sso era feito da mesma massa dos sonhos . E, com
efeito, tai s pensamentos não tardaram a converter-se em sonhos
intercalados com alguns períodos de um leve torpor. O velho em­
pregado da casa mostrava-se mais desperto que o habitual, mas
depoi s de ter cirandado um pouco pelo quarto, sempre a repetir as
mesmas lástimas e os mesmos avi sos, acabou por se deitar e ador­
mecer. A lua brilhou e tornou a desaparecer por cima da praça rel ­
vada e das casas cinzentas, envolvendo tudo em silêncio e solidão;
e foi no momento que os primeiros alvores da madrugada rompiam
por entre o céu carregado, que tudo aconteceu .
Sendo o mais novo d o s dois, Boyle tinha o sono mai s pesado.
Embora fosse uma pessoa activa quando acordado, experimenta­
va sempre uma grande dificul dade em despertar. Além di sso, os
seus sonhos eram do ti po pegaj oso, que se fixavam na mente como
os tentáculos de um polvo. Eram uma mistura de mui tas coi sas, in­
clui ndo a última vi são que tivera do alto da varanda, das quatro es­
tradas e do relvado da praça sobre a qual iam dar. No entanto, as
imagens iam-se alterando e deslocando ao som de um estranho
ranger, que mais parecia o barulho de um rio subterrâneo e que afi ­
nal poderia ser apenas Jameson a ressonar. No entanto, no espí­
ri to do sonhador todos aquel es murmúrios e movimentos se acha­
vam vagamente relacionados com as palavras do conde De Lara
acerca dessa tal sabedoria capaz de accionar as alavancas do espa­
ço e do tempo, a ponto de subverter o mundo. E, de facto, no sonho
era como se um mecanismo gigantesco e murmurante, colocado de­
baixo do chão, fosse capaz de mover toda a paisagem, fazendo apa­
recer os confi ns da Terra num simples jardim ou transportasse es­
se mesmo jardim até ao outro l ado do mar.
As primeiras impres sões de que teve consciência foram as pa­
lavras de uma canção acompanhada de uma música de sons agu­
dos e metálicos. A voz que a cantava tinha um sotaque estrangei­
ro e parecia-lhe sim ui taneamente estranha e vagamente familiar.
Também não tinha a certeza se não seria ele próprio que estava a
criar aquele poema durante o sono.

59
Vinde peixes de ouro,
Voai sem parar,
Por cima da terra,
Atra vés do mar.
Não é deste m undo
A minha canção
Que os vai despertar.
Mas. ..

Pôs-se de pé de um salto e viu que o seu companheiro já esta­


va levantado; Jameson espreitava através da porta envi draçada
que dava para a varanda, dirigin do-se em altos brados a alguém
que presumivelmente se encontrava na rua.
- Mas que vem a ser i sto? Que é que quer daqui? - e , dando
mostras de gra�de agitação, voltou-se para Boyle, anunciando­
-lhe : - Está alguém lá fora a rondar. Eu bem dizia que i sto não era
seguro. Mesmo que digam que não serve de nada, vou lá abaixo
trancar a porta.
Correu pela escada que levava ao rés-do-chão, e Boyle ouvi u­
-o colocar as trancas na porta principal ; dirigiu-se então para a
varanda, e, olhando para a rua, julgou estar a sonhar.
Na estrada cinzenta que atravessava a zona pantanosa e con­
duzia à pequena al deia, via-se uma criatura que parecia ali ter
chegado vinda directamente da selva ou de um bazar oriental.
Lembrava exactamente uma personagem de As Mil e Uma Noites.
O crepúsculo cinzento e fantasm agórico que começava a definir e,
simultaneamente, a descolorir tudo no m omento em que a luz dei­
xara de se locali zar apenas a nascente, levantava-se com lenti dão,
como um véu de gaze, deixando a descoberto uma estranha fi gura
envolta em vestes exóticas . Um grande e volumoso lenço azul ma­
rinho envolvia-lhe a cabeça como um turbante e depoi s o queixo,
fazendo lembrar um autêntico capuz; o seu rosto parecia uma más­
cara. Uma das pontas do lenço tombava-lhe sobre a cara à laia de
véu, e a cabeça inclinava-se sobre um estranho instrumento mu­
sical fei to de prata ou de aço e com a forma de um vi olino torci do.
Para o tocar, servia-se de uma espécie de pente de metal e os sons
que dele se desprendiam eram curiosamente finos e penetrantes.
Antes de Boyle ter consegui do abrir a boca, a mesma voz de sota­
que estrangeiro voltou a brotar da sombra daquele estranho ser:

Assim como as aves de ouro


Aos seus ramos irão dar,
Vão os peixinhos dourados
Aos meus braços regressar.
Vinde. . .
60
- Não tem nada que estar aí - gri tou Boyle exasperado, em­
bora não percebesse nada do que o outro di zia.
-Ai i ssó é que tenho. Os peixes dourados são meus - respon­
deu o forasteiro num tom mai s próprio do rei Salomão que de um
beduíno andrajoso e de pé descal ço. - E vão voltar para mim !
Vinde!
Di sse estas palavras ao mesmo tempo que começava a tanger
o estranho violino, de onde se desprendeu um som de tal modo agu­
do que parecia perfurar a mente. Logo a seguir ouviu-se um outro,
desta vez mais ténue, apenas um murmúrio, como que uma respos­
ta ao primeiro, mas desta vez proveniente do quarto interior on de
se encontrava a taça com os peixes de ouro.
Boyle voltou-se naquela· direcção e, ao fazê-lo, percebeu que o
eco ouvido no quarto i nterior se transformava num tinir prolonga­
do, semelhan te ao som de uma campainha el éctrica, logo seguido
de um vago estilhaçar. Tinham decorri do apenas escassos segun­
dos desde que ele i nterpelara o homem da varanda; no entanto, o
velho empregado já vinha outra vez a chegar ao cimo das escadas,
um pouco ofegante, vi sto tratar-se de um homem de i dade .
- Bom, a porta já está trancada - declarou .
- Depoi s da casa roubada . . . ' - observou Boyle, fal ando do
quarto interior.
Jameson foi ter com ele, encontrando o secretário a olhar, m ui­
to espantado, para o chão onde se viam inúmeros bocados de vi dro
colorido, que mais pareci am bocados de arcO:...í. ri s.
- Que quer dizer com i sso? - indagou Jameson .
- Quero di zer que a casa já foi roubada - replicou Boyle. - O s
peixinhos bateram as asas a o som dos as sobios daquele tipo árabe,
como verdadeiros cãezinhos amestrados .
- Mas como é que ele fe z isso? - expl odiu o velhote, indigna­
do com tal acto .
- Como v ê , eles desapareceram. O globo de vidro está feito em
cacos e os peixes não estão cá. Não faço i deia como é que i sto acon­
teceu, mas penso que devíamos perguntar ao nosso amigo.
- Estamos aqui a perder tempo - declarou Jameson. - O me­
lhor é irmos já no seu encalço.
- Eu acho preferível telefonar à políci a - sugeriu Boyle. -
Eles têm outros meios de o apanharem, bem m ais rápidos que se
formos nós atrás del e pela aldeia, assim, no meio da noi te. No en­
tanto, estou convenci do de que há coi sas que nem mesmo a polícia,
com os carros e os rádios, vai conseguir resolver.

1 Referências ao ditado popular, segundo o qual: Casa roubada,


trancas à porta. (N. da T.) 61
Enquanto Jameson ligava para a esquadra, falando num tom
agitado, Boyle voltou a espreitar da varanda, perscrutando o ho­
rizonte envolto na luz cinzenta do amanhecer. Não se vi slumbra­
va qualquer vestígio do homem de turbante, nem outros sinais de
vi da, para além de um ligeiro barulho, que um especialista iden­
tificaria como proveniente da estalagem do Dragão Azul . Naque­
le momento, Boyle reparou, pela primeira vez, de uma forma cons­
ciente, num pormenor que já antes notara inconscientemente . Foi
como se um facto, submerso na m ente, lutasse pelo direito ao seu
significado. Na verdade, o cenário cinzento nunca fora inteiramen­
te dessa cor - havia um ponto dourado, uma lâmpada acesa nu­
ma das casas que ficavam do l ado oposto da praça. Al go, talvez ir­
racional, lhe dizia que estivera acesa toda a noite, tornando-se
agora mais ténue, com o raiar da alvorada. Contou as casas e, atra­
vés dos seus cálculos, chegou a um resultado que lhe parecia con­
di zer com qualquer coisa, não sabia bem o quê. De qualquer forma,
tratava-se aparentemente da casa do conde Yvon De Lara.
O inspector Pinner chegara, acompanhado de vários homens,
apressando-se a levar a efeito diversas diligências, de uma forma
resoluta, consciente de que o elevado valor dos objectos desapare­
ci dos justificaria uma grande projecção do caso nos jornai s. Tendo
medi do e examinado tudo pormenorizadamente, registou os depoi­
mentos, recolheu as impressões digitais de toda a gente, virou a ca­
sa de pernas para o ar e no fim viu-se perante um facto inacredi­
tável : um árabe do deserto viera pela estrada fora até à resi dência
de Mr. Peregrine Smart, onde se achava guardado um aquári o com
peixes artificiais de ouro. Ao chegar ali, cantara ou recitara um pe­
queno poema e a taça de vidro explodira, como uma bomba, tendo
os peixes desaparecido como que por magia. Mas nem sequer a ex­
plicação dada pelo conde estrangeiro, numa voz suave e ronrona­
da, segundo a qual os limites da experiência estavam a ser alarga­
dos, satisfez o inspector.
Na verdade, cada um dos membros do pequeno grupo reagiu à
sua maneira. Peregrine Smart chegou de Londres na manhã se­
guinte, altura em que teve notícia da perda que sofrera. Natural­
mente ficou abalado, mas era típico da sua personali dade, enérgi­
ca e prática, que lhe conferia ao rosto aquele aspecto de pássaro,
mostrar-se mai s interessado na i nvestigação dos acontecimentos
que deixar-se deprimir. O homem que dava pelo nome de Harmer
e que viera até ali com o obj ectivo de comprar os peixes de ouro, ti ­
nha desculpa de s e mostrar um pouco irritado a o perceber q u e eles
não estavam à venda, pelo m e nos de momento. Mas, na verdade,
o seu bigode, aliás bastante agressivo, e o seu franzir de sobrolho
deixavam transparecer algo mais que o simples desapontamento,
e os olhos, muito atentos às reacções do grupo, mostravam-se de
62 tal modo vi1,:ri lantes que quase era motivo para suspeita. O rosto
descorado do gerente do banco, que também viera de Londres, em­
bora noutro comboio, pareci a atrair cada vez mai s o olhar do outro,
como um íman . Ao contrário dos restantes membros do grupo, o pa­
dre Brown permanecia silencioso quando não se lhe diri giam e
Hartopp, confuso, manti nha-se calado, mesmo nos momentos e m
que devia fal ar .
No entanto, o conde não era pessoa para deixar passar o que
quer que fosse, desde que i sso lhe pude sse oferecer al guma vanta­
gem em relação aos seus pontós de vi sta. Sorriu para o médi co, seu
rival racionali sta, como quem sabe que é possível irritar com mo­
dos insinuantes.
- O doutor há-de concordar - di zia ele -, que pelo menos al­
gumas das histórias que o senhor consi dera tão inverosímei s pa­
recem ser hoje mai s prováveis do que pareciam ontem. Quando um
maltrapilho qualquer, do género daqueles que eu descrevi, é capaz
de com uma simples palavra estilhaçar um sólido reei pi ente que se
encontra fechado dentro de quatro pare de s, estando ele lá fora, po­
demos afirmar que nos achamos perante um exemplo daquilo que
eu tive ocasi ão de afirmar acerca dos poderes espiri tuai s e das bar­
reiras materi ais .
- E também poderá servir d e exemplo para o q u e eu di sse so­
bre o facto de um pouco de conhecimento científi co ser sufici e nte
para mostrar como esses truques se fazem - retorquiu o m édico.
- Acha que é mesmo capaz de lançar al guma luz ci entífica so­
bre todo este mi stério? - perguntou Smart, excitado.
- Sou capaz de lançar um pouco de luz sobre aquilo a que o con­
de chama um mistério, poi s não se trata de mi stério al gum - afi r­
mou o médico. - Parte da hi stória até é muito fácil de expli car. Um
som não é mai s que uma onda de vibração e algumas vibrações con­
seguem partir vi dro, des de que um e outro reúnam as caracterís­
ticas adequadas . O homem não se limitou a fi car ali na rua a pen­
sar, como o conde nos pretende fazer crer. Pôs-se a cantar em voz
bem al ta e fez vibrar uma determinada nota no instrumento. E i s­
to assem elha-se a inúmeras experiências por meio das quai s foi
possível partir vidro de uma composição especial .
- Tal como aconteceu com a experiência por meio da qual di ­
versos peixes de ouro maciço deixaram subi tamente de exi stir ­
concluiu o conde.
- Mas aqui vem o inspector Pinner - interveio Boyl e . - Creio
que ele consi deraria a expli cação racional do doutor tão inadmi s­
sível como a versão sobrenatural do conde. Mr. Pinner é uma pes­
soa m uito céptica, sobretudo em relação à minha pessoa. Estou
convenci do de que ele suspei ta de mim.
- Julgo que todos nós somos su speitos - atalhou o con de .
Foi precisamente a exi stência desta suspeita que levou Boyl e a
pedir a opinião do padre Brown . Passeavam ambos em redor da 6 3
praça da al deia, nesse mesmo dia, quando o sacerdote, que olha­
va pensativo para o chão enquanto escutava, estacou de repente.
- Já viu isto? - perguntou. - Alguém esteve a lavar esta par­
te do passeio . . . este bocado aqui , mesmo junto da casa do coronel
Vamey. Gostava de saber se teria sido ontem .
O padre Brown olhou para a casa que era alta, estreita e com
estores pintados de cores garri das, embora já desbotadas. Os espa­
ços através dos quai s se podia ver o interior da resi dência eram
muito escuros, quase pretos, em contraste com a fachada de tons
dourados, vi sta à luz i ntensa daquela m anhã.
- Esta é a casa do coronel Varney, não é verdade? - i ndagou
o sacerdote . - Também veio do Oriente , segundo creio. Que espé­
cie de homem é ele?
- Nunca o vi - respondeu Boyle. - Julgo que ninguém o c o­
nhece, a não ser o Dr. Burdock, e penso que mesmo ele só o vê o in­
dispensável .
- Bom, vou fazer-lhe uma pequena visita - declarou o pa­
dre Brown .
A grande porta de entrada abriu-se e engoliu a pequena figu­
ra do padre, enquanto o seu amigo ficou a olhá-lo, espantado, de
uma forma quase irracional, como se não acredi tasse que ela se
abrisse de novo. No entanto, dali a poucos minutos o padre Brown
voltou a surgir à entrada da resi dência, com um sorriso nos lábios,
e continuou o seu passeio lento em redor da praça. Por vezes, pa­
recia esquecido do assunto que estava a ser tratado, poi s tecia co­
mentários acerca de assuntos hi stóricos ou sociai s ou então refe­
ria-se às perspectivas de desenvolvimento da região. Falou do ter­
reno usado pelo banco para a construção de uma nova estrada e
olhou para o outro lado da praça com uma expressão vaga no olhar.
- Terra baldia. Eu acho que as pessoas deviam pôr ali os gan­
sos e os porcos a pastar. Assim, tal com o está, é que só serve para
alimentar os cardos e as urtigas. E pena que uma terra que pare­
ci a ser um grande prado se tenha transformado num terreno bal ­
dio. A çasa do Dr. Burdock é aquela, ali em frente, não é?
- E - respondeu Boyle, sobressal tado com a brusca mudança
de assunto.
- Muito bem . Nesse caso parece que vou voltar para dentro.
Quando abriram a porta da casa de Smart e enquanto subiam
as escadas, Boyle repetiu para o seu companheiro muitos dos por­
menores do drama que ali tivera lugar ao nascer do dia.
- Penso que não voltou a adormecer, pois não? - i n dagou o pa­
dre . - De forma a dar tempo a que al guém pudesse escalar a va­
randa enquanto Jameson descia ao rés-do--ch ão para trancar a
porta.
- De maneira nenhuma. Tenho a certeza. Acordei quando ou-
64 vi Jameson a falar lá de cima com o desconheci do. Depoi s ouvi--o
correr pela escada abaixo e colocar as trancas, após o que me pre­
cipitei para a varanda.
- Ou será que ele se esgueirou lá para dentro sem darem por
isso? Há outras entradas para a casa sem ser pela porta da frente?
- Parece que não - respondeu Boyle com um ar grave.
- Mas o melhor é certificarmo-nos, não acha? - perguntou o
padre Brown em ar de desculpa, começando de novo a descer as es­
cadas . Boyle ficou no quarto da frente a olhar desconfiado para ele .
Dali a pouco, o rosto redondo e rústico reapareceu a o cimo das es­
cadas, com um largo sorri so estampado no rosto e uma expressão
que lembrava a de um nabo fantasmagórico.
- Bom, a questão das entradas já está resolvida - declarou ele
todo sati sfeito. -E agora posso afirmar que reuni tudo numa cai ­
xa herméticamente fechada, por a_ssim dizer. Podemos, poi s, ana­
li sar o material de que dispomos. E, de facto, um caso bastante cu­
_
noso.
- Acha que o conde, o coronel ou qualquer desses viajantes do
Oriente terá alguma coi sa a ver com esta história? - in dagou Boy­
le. - Na sua opinião tratar-se-á de um assunto . . . sobrenatural?
- Garanto-lhe que se o conde, o coronel ou qualquer dos outros
vizinhos se tivesse mascarado de árabe e trepado pel a varanda no
meio da escuri dão da noite ... então sim, isso seria algo sobrena­
tural.
- Não estou a perceber. Então mas porquê?
- Porque o tal árabe não deixou marcas de pegadas - respon-
deu o padre Brown. - O s vi zinhos mai s próxi mos são ú gerente do
banco de um lado e o coronel do outro. Entre esta casa e o edifício
do banco fica um espaço baldio de terra barrenta, onde as marcas
dos pés descalços ficariam de certo assinaladas como se fossem
moldes de gelo, além de que os pés deixariam sinai s da sua passa­
gem por todo o lado. Tive de afrontar o mau humor do coronel pa­
ra conseguir obter a i nformação de que o pavimento em frente da
casa dele foilavado ontem e não hoje e, nesse caso, estari a sufi cien­
temente molhado na altura para produzir pegadas ao longo da rua.
Ora, se por hi pótese o vi sitante fos se o conde ou o médico que vi ­
vem nas casas do outro l ado da praça, teria, com certeza, de atra­
vessar toda essa zona para chegar até aqui . No entanto, essa ca­
minhada tornar-se-ia extremamente incóm oda para quem esti­
vesse descalço, poi s o terreno está, como verifiquei , cheio de silvas,
urtigas e cardos. A pessoa que atravessasse a praça ter-se-ia pi ­
cado e havia de deixar marcas da sua passagem. A não ser, é cla­
ro, que se tratasse, como você di sse, de um ser sobrenatural .
Boyle fitou demoradamente o rosto grave e i ndecifrável do seu
amigo e, por fim, perguntou:
- E acha que era mesmo?
- Há uma verdade que não devemos esquecer - advertiu o sa- 6 5
cerdote. - Por vezes há coisas que estão tão perto de nós que nem
sequer damos por elas. Como aquela hi stória do homem que ti nha
uma mosca dentro do olho no momento em que estava a espreitar
por um telescópio e declarou imediatamente que havia um dragão
enorme na lua. E, segundo ouvi di zer, se ouvirmos a reprodução
exacta da nossa própria voz, ela soa-nos como se pertencesse a um
estranho. Da mesma forma, se algo acontece mesmo à frente do
nosso nari z, por vezes nem damos por isso e se dermos achamos es­
tranhís simo. Ora, se essa coisa passar do primeiro plano para um
pouco mais longe, imaginamos l ogo que ela veio de um lugar remo­
to. Experimente sair outra vez para a rua. Quero mostrar-lhe co­
mo é que são as coisas se as observarmos de outro ângulo.
Enquanto desciam a escada continuou a fazer as suas observa­
ções, falando de uma maneira hesi tante, como se estivesse a pen­
sar em voz alta.
- O conde e a atmosfera asiática tiveram grande influência,
pois num caso como este tudo depende da preparação da mente .
Qualquer pessoa pode atingir uma condição tal , que u m tijolo que
lhe caia sobre a cabeça assume para ela a forma de um tijolo da
B abilónia, coberto de caracteres cuneiformes, que tenha caído dos
Jardins Suspensos, e nem sequer se dará ao trabalho de o obser­
var e ver que afinal é um tijolo vulgar, igual aos das paredes da sua
casa. Assim, nesta questão também . . .
- Mas o que é isto? - interrompeu Boyle, apontando para a en­
trada. - A porta está outra vez trancada.
Olhava espantado para a porta por onde tinha entrado momen­
tos antes e que agora se achava novamente trancada com as gran­
des barras de ferro ferrugento que, segundo ele, ti nham si do colo­
cadas tarde de mai s nessa mesma noite. Havia algo de sini stro e
de irónico nessas velhas trancas que se haviam fechado nas suas
costas e que agora os impedi am de sair.
- Ah, i sso! - apontou o padre Brown com um ar displicente.
- Fui eu próprio que as coloquei há bocado. Não ouviu o barulho?
- Não - respondeu Boyle muito espantado. - Não ouvi abso-
l utamente nada.
- Também me pareceu i sso. De facto, não havia razão para se
ouvir lá em cima o barulho das trancas a serem colocadas. Há aqui
um gancho que encaixa exactamente numa espé ci e de cavidade. O
único som é um pequeno clique, e esse só é ouvido por quem esti­
ver muito perto. A única coisa que faz mesmo barulho a pontos de
se ouvir no primeiro andar é i sto.
O padre Brown levantou a barra de ferro e soltou-a, deixando­
-a cair com grande estrondo.
- Ao destrancarmos a porta é que fazemos barulho - di s se o
sacerdote com ar grave -, mesmo que procuremos ter cui dado.
66 - Quer então di zer . . .
- O que eu quero di zer é que o barulho que ouviu lá em cima
ontem à noite não foi o de Jameson a trancar a porta, mas sim a
abri-la. E agora vamos até lá fora.
Quando já se encontravam na rua, por debaixo da varanda, o
padre retomou a sua anterior explicação num tom tão frio como se
estivesse a dar uma aula de química.
- Di zia eu há pouco que uma pessoa pode estar na disposição
de ver algo de uma forma muito di stante e não se aperceber de que
se trata de uma coisa muito próxima e talvez até muito semelhan­
te a si próprio. O que você vi u ao olhar lá de cima foi um ser estra­
nho e já pensou no que é que ele terá vi sto ao olhar para a varanda?
Boyle, de olhos postos na fachada da casa, não respondeu, e o
padre acrescentou :
- Com certeza achou extraordinário e m aravilhoso que um
árabe pudesse vir até aqui , à Inglaterra civilizada, com os seus pés
descalços, não é verdade? Não se lembrou de que também você na­
quele momento estava descalço.
Finalmente Boyle conseguiu encontrar palavras e as que pro­
feri u foram uma repeti ção do que já havia dito.
- Jameson abriu a porta - di sse mecanicamente.
- Sim - assentiu o sacerdote. - Jameson abriu a porta e sai u
para a rua com o s seus trajes nocturnos, tal com você, quando foi
à varanda. Além disso, ele serviu-se ainda de duas coisas que vo­
cê estava farto de conhecer: uma velha cortina azul, na qual se en­
rolou e um instrumento m usical vindo do Ori ente, que você tantas
vezes viu entre as curiosi dades pertencentes ao seu patrão. O res­
to não passou de uma questão de ambiente e de representação,
aliás uma representação impecável, poi s Jameson é, sem dúvida,
um grande artista do crime.
- Jameson ! - exclamou Boyle i ncrédulo. - Mas ele era um po­
bre diabo. Ninguém dava por ele.
- Precisamente por isso é que ele era um artista. Se conseguiu
representar o papel de um mágico ou de um trovador durante sei s
minutos, não acha que também era capaz de representar o papel
de empregado durante sei s semanas?
- Continuo sem saber muito bem qual seria o seu objectivo ­
confessou Boyle.
- O seu obj ectivo foi atingi do - replicou o padre Brown -, ou
quase. Já se apoderou dos peixes de ouro, é claro, e tinha ti do imen­
sas oportunidades de o conseguir. Mas se ele os tivesse simples­
mente roubado, toda a gente ia achar que havia muitas hipóteses
de ter sido ele. Ao criar um mágico misterioso vindo dos confins da
Terra, levou toda a gente a pensar na Arábia e na Í n dia, a ponto
de você próprio ter dificuldade em acreditar que a chave do proble­
ma estava afinal aqui tão perto. Achava-se demasiado perto para
ser vista. 67
- S e i sso for verdade, temos d e concordar que ele correu um
ri sco muito grande - observou Boyl e . - Devo confessar que real­
mente não ouvi o homem que estava na rua proferir uma única pa­
lavra, enquanto Jameson se lhe dirigia, por isso suponho que se
tratava de uma farsa. E creio que ele teve tempo suficiente para
sair de casa antes de eu conseguir despertar completamente e ir à
varanda.
- Todos os crimes dependem precisamente do facto de as pes­
soas não acordarem a tempo - observou o padre Brown . - E , dei ­
xe-me dizer-lhe, que muitos de nós acordamos tarde de m ai s . Co­
migo, por exemplo, aconteceu i sso, poi s j ul go que ele já se pôs a an­
dar pouco antes ou logo a seguir a terem-lhe tirado as impressões
digitai s .
- De qualquer modo acordou antes de qualquer outra pessoa
- observou Boyle -, ao passo que eu nunca iria acordar. Jameson
era uma pessoa tão correcta e que passava tão despercebi da que
nunca me iria lembrar del e.
-É preci samente dessas pessoas que é preciso desconfiar, da­
q uelas que esquecemos com facili dade - avisou o amigo -, são
preci samente elas que nos colocam em desvantagem. Mas eu tam­
bém não suspeitei dele até ao m omento em que você me di sse que
o tinha ouvi do a trancar a porta.
- De qualquer modo, devemos-lhe a si o desvendar de todo es­
te mistério.
- Devem-no a Mrs. Robinson - retorquiu o padre Brown sor­
rin do.
- A Mrs . Robinson? - i ndagou, perplexo, o secretário. - Re­
fere-se à governanta?
- Cuidado com as mulheres de quem nos esquecemos. E ste ho­
mem era um criminoso de alta categoria, poi s além de bom actor
era também um óptimo psicólogo. Um homem como o conde nun­
ca e scuta senão a sua própria voz ; no entanto, um homem como es­
te conseguia ouvir quando todos se tinham esquecido da sua pre­
sença e recolher o material necessário para construir a sua hi stó­
ria e fazer vibrar a nota exacta para nos despi star. No entanto, co­
meteu um erro grave em relação à psicologia de Mrs. Robi n son.
- Não estou a entender. Mas afinal que tem ela a ver com is­
to tudo?
- Jameson não contava que a porta estivesse trancada - de­
clarou o padre Brown. - Ele sabia que há m uitos homen s descui ­
dados, como você ou como o seu patrão, que passam a vida a di zer
que se deve fazer determinada coisa, sem no entanto tomarem me­
di das nes se senti do. No entanto, se di sser a uma mulher que há al­
go a fazer, há sempre o perigo de ela vir a fazê-lo quando m enos
se espera.

68
CAPÍTULO IV

O ACTOR E O ALffil

O director teatral Mr. Mun don Manderville percorria apressa­


damente os corredores que se escondiam por detrás do cenário, ou
melhor, por debaixo del e . O seu traje era elegante e festivo, talvez
até de mai s ; era festiva a flor que ostentava na botoeira, bem co­
mo o polimento das botas , mas não a expressão do rosto. Mander­
ville era um sujeito de elevada estatura, pescoço forte e cara de
poucos ami gos. Naquele momento parecia ainda mai s carrancudo
que habitualmente . Dominava-o, como era natural, um sem nú­
mero de problemas i nerentes a uma pessoa na sua posição, des de
as questões da maior importânci a aos assuntos mai s comezinhos,
uns recentes, outros antigos. Aborrecia-o atravessar as passagens
onde se encontravam armazenados os cenários das velhas panto­
minas, poi s fora com esse género popular de e spectácul o que ini ­
ciara com êxito a sua carreira profi s sional , e desde então sentira­
-se tentado a arri scar no drama clássico mai s sério, onde i nvesti -
ra bastante dinheiro. Assim, a vi são dos portõe s cor de safira do pa­
lácio do Barba Azul ou al guns fragm entos do bosque encantado da
história das Três Laranjas de Oiro, encostados à parede e abando­
nados à invasão das teias de aranha e aos ninhos de ratos, não lhe
proporcionou aquela sensação agradável de retorno à simplici da-
de que todos nós devemos experimentar quando deparamos com
um vislumbre desse mundo encantado da infância. Nem teve tem -
po de verter uma lágrima ali , onde gastara tanto dinheiro, nem se­
quer de sonhar com o Paraíso do Peter Pan, pois fora chamado com
urgência para resolver um problema prático, não do passado, mas
do presente . Tratava-se de um daqueles problemas que surgem
por vezes nesse estranho m undo dos bastidores ; desta fei ta era al-
go suficientemente importante para poder ser consi derado um ca-
so sério. Mi ss Maroni, a jovem e talentosa actri z de ascen dênci a
italiana, que aceitara representar um papel importante na peça
que iria ser estreada nessa noite, e cujo ensaio-geral deveria ter lu­
gar nessa mesma tarde, resolvera subitamente, e com certa violên- 6 9
cia, recusar levar a cabo a sua tarefa. Manderville ain da não esti­
vera com a irritante senhora e, pelo menos de momento, tal não pa­
recia ser possível, uma vez que ela se trancara no camarim, de on­
de se recusava a sair, desafiando toda a gente do outro lado da
porta fechada. Mr. Mundon Man derville era suficientemente bri­
tânico para explicar o sucedi do, murmurando que os estrangeiros
eram malucos. No entanto, o facto de ter a sorte de viver na úni­
ca ilha do planeta onde havia gente sã, consolou-o tanto como a re­
cordação da Florestra Encantada. Tudo i sto e mui tas outras coi sas
eram para ele motivo de preocupação e, no entanto, um observa­
dor que o conhecesse bem suspeitaria de que algo de m ais grave o
preocupava.
Se é possível um homem forte e saudável parecer macilento, di­
remos que era esse o aspecto de Mr. Mundon Manderville. Tinha
os olhos encovados e a boca torcida, como se estivesse permanen­
temente a tentar morder o bigode, aliás demasiado curto para con­
seguir fazê-lo. Podia tratar-se de um in divíduo que começara a to­
mar drogas, mas se i sso fosse verdade havia algo que sugeria uma
possível razão para o fazer - não sendo, pois, a droga a causa da
tragédia, mas sim a tragédia a causa da droga. Fosse qual fosse o
seu segredo, este parecia habitar aquela extremidade escura do
longo corredor onde ficava a entrada do seu pequeno escritório e,
à medi da que ia caminhando, lançava de vez em quando um olhar
nervoso para trás.
No entanto, negócios são negócios e lá prosseguiu em direcção
ao extremo oposto da passagem, onde a porta verde do camarim de
Miss Maroni desafiava o mundo e junto da qual um grupo de ac­
tores e outras pessoas envolvi das no assunto discutiam a questão
e punham até a hi pótese de forçar a entrada. Entre os presentes
via-se, pelo menos, um elemento suficientemente conheci do, cujo
retrato pendia de mm tas paredes e cujo autógrafo se encontrava
em inúmeros álbuns . Na verdade, embora Norman Knight estives­
se a representar o papel de herói num teatro consi derado um pou­
co provinciano e fora de moda, onde provavelmente era consi dera­
do o primeiro actor secundário, estava, sem dúvida, a caminho de
triunfos mais notáveis. Tratava-se de um i n divíduo bem parecido,
de queixo voluntarioso e cabelos louros e fartos, que lhe conferiam
um aspecto de Nero, o que não correspondia em nada aos seus ges­
tos impulsivos. O grupo incluía ainda Ralph Randall, que costu­
mava interpretar papéis de personagens mais i dosas e apresenta­
va um rosto bem humorado e coberto de base para di sfarçar a bar­
ba Via-se ainda o segundo actor secundário, Aubrey Vernon, um
jovem de cabelo preto encaracolado, de perfil judaico, que seguia
a tradição, ainda não totalmente desapareci da, de Charles Friend.
Para além dos já referidos, também ali se encontrava a assis-
70 tente da mulher de Mr. Mundon Manderville, uma mulher d e as-
pecto possante, cabelos ruivos e expressão i mpassível. Resta men­
cionar a presença casual da mulher de Manderville, uma senhora
di screta, de rosto páli do e paciente, o qual conservava uma sime­
tria clássica e uma certa severi dade, e que parecia ai n da mais pá­
lido devido ao tom claro dos olhos e aos cabelos muito loiros, me­
ticulosamente separados em dois bandós, e que lhe conferia o as­
pecto de uma M adona arcaica. Nem todos sabiam que ela fora ou­
trora uma famosa intérprete das peças de Ibsen e de dramas i nte­
lectuais. Todavia, o m ari do nunca se interessara por obras desse
género e naquele momento estava com certeza mai s preocupado
em tirar uma actri z estrangeira do interior de um camarim fecha­
do à chave, uma nova versão do conhecido truque de ilusionismo
da Dama Desaparecida.
- Ainda continua fechada? - perguntou ele, dirigindo-se à as­
sistente da esposa e não a esta última.
- Ainda não - informou a mulher, conheci da por Mrs. Sands,
falando num tom grave.
- Estamos a ficar um bocado preocupados - declarou o velho
Randall. - Ela parecia desvairada e receamos que tenha fei to al­
gum disparate .
- Rai os! - exclamou Manderville com a secura habi tual . ­
Precisamos de publici dade, mas não deste tipo. Há aqui alguém
que se dê bem com ela, alguém que a consiga convencer?
- Jarvi s acha que a única pessoa capaz de o fazer é o padre, que
aliás vive aqui perto - di sse Ran dall -, e, de facto, no caso de ela
tentar cometer algum acto desesperado, pensei que era melhor ele
estar aqui . Jarvis foi chamá-lo . . . Ah, aí vem ele.
Surgiram mais duas figuras na passagem subterrânea por
debaixo do palco: a primeira era Ashton Jarvis, um sujeito j ovial
que costumava representar o papel de vilão, m as que de momen­
to renunciara a essa vocação em favor do j ovem de cabelo encara­
col ado e nari z gran de . A outra figura, baixa e atarracada, toda ves­
tida de preto, era o padre Brown, da igreja mais próxima.
O sacerdote consi derou natural que o tivessem chamado para
intervir na conduta singular de um membro do seu rebanho, quer
se tratasse de uma ovelha negra, quer de um inocente cordeiro. No
entanto, a hipótese de suicídio não lhe pareceu acei tável .
- Deve haver um motivo forte que a levou a descontrolar-se ­
disse o padre . - Alguém sabe, por acaso, o que se terá passado?
- Provavelmente sentia-se insatisfeita com o seu papel - su­
geriu o actor mais velho.
- Estão sempre - resmungou Mr. Mundon Manderville. - E
eu a pensar que a minha mulher tomara as provi dências necessá­
rias nesse sentido!
- A única coisa que eu posso di zer - replicou Mrs . Mandervil-
le -, é que lhe atribuí o papel que me pareceu ser o melhor para 7 1
ela. Julgo que é isso que todas as jovens actrizes em princípio de
carreira gostam de representar, o papel da bela heroína que se ca­
sa com o herói dos seus sonhos sob uma chuva de flores e aplausos,
não é verdade? As mulheres da minha idade naturalmente têm de
se limitar aos papéis de respeitáveis matronas. Ora eu tive o cui­
dado de reservar isso para mim .
- De qualquer forma seria impensável alterar o s papéis numa
altura destas - comentou Randall.
- Nem pensar nisso - declarou Norman Knight com firmeza.
- Eu teria imensa dificuldade em fazê-lo e ... além disso é tarde de
mais.
O padre Brown afastara--se e encontrava-se agora a escutar
junto da porta.
- Ouve alguma coisa? - indagou o director, ansioso. E acres­
centou em voz mais baixa: - Acha que se suicidou?
- Parece-me que estou a ouvir qualquer coisa - retorquiu o
padre calmamente. - Pelo barulho, dá i deia de que está a partir
uma janela ou um espelho, provavelmente com os pés. Não, não
creio que haj a o perigo de se suici dar. Partir espelhos com os pés
é um prelúdio invulgar de suicídio. Se se tratasse de uma al emã
que se tivesse fechado aqui para pensar calmamente na metafísi­
ca e naweltschmerz1, seria o primeiro a aconselhar que se arrom­
basse a porta, mas estes italianos não morrem assim com tanta fa­
cilidade, nem têm tendência para se destruirem a si próprios num
acesso qe raiva. Se fosse outra pessoa, sim . . . talvez isso fosse pos­
sível ... E melhor tomarmos as precauções necessárias, no caso de
ela resolver sair daí de dentro num rom pante.
- Então acha que não devemos forçar a entrada? - perguntou
Manderville.
- Se quer que ela entre na peça é melhor não o tentar - repli­
cou o padre Brown. - Se o fizer ela vai deitar a casa abaixo com
barulho e recusará o papel que lhe atribuíram, mas se a deixarmos
sozinha provavelmente acabará por sair por uma questão de curio­
sidade . Se eu estivesse no seu lugar deixaria aqui apenas alguém
a tomar conta da porta e dar-lhe-ia cerca de uma ou duas horas.
- Neste caso - retorquiu Manderville -, só poderemos en­
saiar as partes em que ela não intervém. A minha mulher encarre­
gar-se-á do que for necessário para que p9ssam entrar já em cena.
Afinal o quarto acto é a parte principal. E melhor começarem já.
- Não é preciso usar o guarda-roupa para este ensaio-geral ­
anunciou a mulher de Manderville, dirigindo-se ao resto do
elenco.

72 1 Em alemão no original: tédio; desengano da vida. (N. da T.)


- Ó ptim o - di s se Knight. - Quem me dera que as roupas do
período infernal não fos sem tão complicadas.
- Que peça é? - perguntou o sacerdote com uma ponta de
curiosidade.
-Escola de Escândalos - respondeu Manderville. - A minha
mulher aprecia aquil o a que el a chama comédias clássicas . Quan­
to a mim, muito mai s clássicas que cómicas.
Nesse momento, o velho porteiro conheci do por Sam , o habitan­
te solitário do teatro durante as horas mortas, aproximou-se do di­
rector, a quem entregou um cartão de visita, informando-o de que
Lady Miriam Marden desejava falar-lhe. Afastou-se, mas o padre
Brown conti nuou a olhar durante alguns segundos na direcção da
mulher de Manderville e reparou que o seu rosto descorado exibi a
um sorri so. N o entanto, n ã o se tratava de u m a expres são de
alegria.
O padre Brown retirou-se na companhia do indivíduo que o fo­
ra chamar. Era seu ami go e uma pessoa dotada de grande poder de
persuasão, o que é vulgar acontecer em relação aos actores. Porém,
enquanto se afastava, ouviu Mrs. Manderville dar algumas instru­
ções a meia voz a Mrs . Sands, no senti do de ficar de guarda à porta.
- Mrs. Manderville parece ser uma pessoa inteligente - ob­
servou o padre . - No entanto, faz tanta que stão de se manter em
segundo pl ano.
- Noutros tempos foi uma mulher muito intelectual - retor­
quiu Jarvis, contri stado. - Há quem diga que foi uma pena ter-se
casado com um aldrabão como Manderville . Tem i deias muito ele­
vadas sobre o drama mas, é claro, nem sempre consegue que o seu
amo e senhor veja as coisas pelo mesmo prisma. Sabe que ele pre­
tendia que uma mulher daquela categoria representasse em es­
pectáculos de pantomina? Admitia que ela era um a grande actri z,
no entanto as pantominas davam mais dinheiro. Por aqui já pode
fazer uma i deia da m aneira de pensar e da sensibili dade deste ho­
mem. Mas ela nunca se queixou. Como m e confidenciou uma vez
«Os lamentos regressam a nós como um eco vindo dos confins do
mundo, enquanto o silêncio nos dá força.» Se esta mulher se tives­
se casado com alguém que entendesse as suas ideias, poderia ter
si do uma das grandes actri zes do nosso tempo. E claro que os bons
críticos continuam a sentir um grande apreço por ela. Mas o que
acontece é que foi com este que se casou.
E apontou para a figura corpulenta e vesti da de negro de Man­
derville que, de costas voltadas para eles, conversava com as se­
nhoras que o haviam chamado ao vestíbulo. Lady Miriam era um a
dama elegante, alta e de ar l ângui do, vestida de acordo com uma
moda recente que, tudo levava a crer, fora i nspirada na!i_m Úmias
do E gipto. O seu cabelo escuro apresentava um corte de linhas di ­
rei tas, como uma espécie de capacete, e os lábios, muito pintados, 7 3
conferiam-lhe uma permanente expressão de desdém. A sua com ­
panheira e r a u m a senhora muito viva, com um rosto fei o mas
atractivo, e cabelo salpicado de branco. Tratava-se de Mi ss The­
res a Talbot, sempre muito faladora, em contraste com a amiga que
parecia demasiado fatigada para dizer o que quer que fosse. No en­
tanto, precisamente no momento em que os dois homens iam a pas­
sar junto delas, Lady Miriam encontrou energia suficiente para
dizer:
-As peças costumam ser m ui to maçadoras, mas nunca vi um
ensaio-geral em que os actores envergassem as suas roupas nor­
mai s . Deve ter a sua graça. De facto, hoje em dia uma pessoa já es­
pera' ver tudo.
- E agora, Mr. Manderville - di sse Miss Talbot, dando-lhe
uma pancadinha no braço com animada persistência -, a única
coisa que tem a fazer é deixar-nos assi stir ao ensaio. Esta noite
não podemos vir, nem queremos . Agrada-nos a i deia de vermos es­
sa gente toda com as roupas trocadas.
- E claro que lhes posso ceder um camarote - apressou-se
Manderville a oferecer. - Queiram fazer o favor de vir por aqui ­
e, dizendo i sto, conduziu-as por outro corredor.
- Pergunto a mim mesmo se Manderville não gostará mai s
deste tipo de mulher - observou Jarvis com um ar meditativo.
- E tem alguma razão para pensar que Manderville prefere
realmente uma mulher assim? - perguntou o padre Brown.
Jarvis fi tou-{) por momentos antes de responder.
- Aquele homem é um mistéri o - observou. - Reconheço que
tem o aspecto mais normal deste mundo; no entanto, continuo a
consi derá-lo enigmático. Parece haver qualquer coisa a pesar-lhe
na consciênci a. Há uma sombra na sua vi da. Pergunto a mim pró­
prio se i sso estará apenas relacionado com aventuras extraconju­
gai s ou com a mulher. E, se estiver, então há algo entre eles que nos
escapa. Na verdade, sei mai s acerca disso que qualquer outra pes­
soa e, apesar de tudo, não me consi dero esclarecido. Para mim, con­
tinua a ser tudo um mi stério.
Olhou em volta para se certificar de que estavam sozinhos e
acrescentou, baixando a voz :
- A si não me importo de contar, poi s sei que é um poço sem fun­
do no que respeita aos segredos que lhe são confiados. Só lhe digo
que um destes dias sucedeu uma coisa que me deixou abismado e
que se tem repetido desde então. Como sabe, Manderville costuma
trabalhar naquele quartinho ao fundo do corredor, mesmo por
debaixo do palco. Ora bem, já me aconteceu por duas vezes passar
por lá quando todos pensavam que ele estaria sozinho e, mais ain­
da, quando eu próprio sabia que todas as mulheres que integram
a companhia se achavam ausentes ou ocupadas nos seus postos de
74 trabalho.
- Todas elas? - perguntou o padre Brown .
- Estava uma mulher com ele - decl arou Jarvi s quase num
murmúrio. - Há uma senhora que o visita constantemente e é al­
guém que nenhum de nós conhece. Nem sei como é que ela faz pa­
ra ali entrar, uma vez que não utiliza o corredor. No entanto, lem­
br()-me de ter visto uma vez um vulto encapuçado ao anoitecer, a
sair pel as traseiras do teatro. Parecia um fantasma! Mas isso não
é possível . Por outro lado, também não creio que se trate de uma
coi sa normal . Não me parece que seja um caso de amor; deve ser
antes uma questão de chantagem .
- E qual a razão que o leva a pensar i sso?
- Porque uma vez percebi que estavam a di scutir e depoi s ou-
vi uma m ulher dizendo o seguinte : «Eu sou a tua mulher.»
- Acusou-o então de bigami a - observou o padre, pensativo.
- Bom, a bigamia e a chantagem por vezes andam li gadas, é cla-
ro. Mas, por outro lado, ela podi a estar a fazer bluff. Provavelmen­
te é louca. Com esta gente de teatro nunca se sabe : encontra-se ca­
da maluco! Pode ser que tenha razão, m as eu não me arri scava a
tirar conclusões preci pitadas . . . E por falar em gente de teatro, o en­
saio não vai começar? E você não é uma das personagens?
..,.- Não entro nesta cena - esclareceu Jarvis a sorrir. - Eles só
vão ensaiar um acto, enquanto a sua amiga italiana não se deci de .
- A propósito da minha amiga italiana - observou o padre
Brown -, gostava de saber o que se passa com ela.
- Podemos ir lá ver, se qui ser - sugeriu Jarvi s . E desceram os
doi s de novo até ao corredor da cave, numa extremi dade do qual fi­
cava o escritório de Manderville e na outra a porta trancada do ca­
marim da signora Maroni . A porta parecia conti nuar fechada e
Mrs. Sands permanecia do l ado de fora, com um ar carrancudo e
tão imóvel como um ídolo esculpi do em madeira.
Ao fundo do corredor viram alguns actores a subir a escada que
conduzia ao pal co. Vernon e o velho Randall seguiam à frente do
grupo, num passo apressado, enquanto Mrs . Manderville cami­
nhava um pouco mais devagar, com a sua calma e di gni dade habi ­
tuai s. N orman Knight atrasou o passo para falar com ela e, por me­
ro acaso, algumas pal avras chegaram-lhes aos ouvi dos quando
iam a passar.
- Garant()-lhe que há uma mulher que costuma vi sitá-lo - di­
zia Knight, intempestivo.
- Shi u ! � fez ela com a sua voz de prata que, no entanto, tinha
algo de aço. - Não deve falar dele nesses termos. Não se esqueça
que se trata do meu mari do.
- Quem me dera conseguir esquecer-me disso - tornou Kni­
ght. E subiu as escadas apressadamente.
Mrs. Manderville seguiu-o, calma e pálida.
- Parece que há mais alguém a par do assunto - observou o 7 s
sacerdote -, mas duvi do que seja um assunto que nos diga res­
peito.
- Sim - resmungou Jarvis -, creio que toda a gente sabe do
caso mas ninguém consegue explicar o que se trata.
Prosseguiram até ao outro extremo do corredor, onde a mulher
se encontrava rigi damente de guarda à porta da italiana.
- Não, ainda não saiu de lá de dentro - informou a emprega­
da, taciturna -, mas também não está morta, porque de vez em
quando ouço barulho. Não faço i deia do que estará ela a preparar.
- E sabe dizer-me onde estará Mr. Manderville neste momen­
to, minha senhora? - indagou o padre Brown num súbito acesso
de gentileza.
- Sim - respondeu ela com prontidão. - Vi-o entrar no escri­
tório ao fun do do corredor há um minuto ou doi s , momentos antes
de o director de cena ter feito a chamada e de terem subido a cor­
tina. Ainda lá deve estar, uma vez que não o vi sair.
- Quer então di zer que não há outra porta de acesso ao escri­
tóri o - concluiu o sacerdote com uma certa indiferença. - Bom,
creio que o ensaio já está a decorrer.
- Sim - confirmou jarvis, após uma curta pausa. - Estou a
ouvir daqui as vozes lá em cima no palco. O velho Randall tem uma
voz explêndi da.
Ficaram ambos à escuta por momentos, até conseguirem ouvir
a voz do actor, cujo som tonitruante ecoava através do corredor,
vinda lá de cima do palco. Antes de retomarem o diálogo, os seus
ouvidos foram de súbi to assaltados por outro som . Era um barulho
pesado, vindo do outro l ado da porta fechada do escritório de Mun­
don Manderville.
O padre Brown desatou a correr como uma seta naquela direc­
ção e já estava às voltas com a m açaneta da porta quando fi nal­
mente Jarvis recuperou do choque e, com um estremeção, se pre"
parou para seguir o sacerdote .
- A porta está trancada por dentro - observou o padre, q\l_e
agora apresentava uma certa pali dez no rosto. - Estou tentado a
arrombá-la.
- Acha que o visitante desconheci do voltou a entrar lá dentro?
- perguntou Jarvis com um ar assustado. - O caso será grave?
- E dali a pouco acrescentou: - Talvez eu consiga abrir o trinco.
Ajoelhou-se e, pegan do num canivete com um acessório de aço
comprido e pontiagudo, manipulou-o durante uns instantes até a
porta se abrir. Uma das primeiras coisas em que repararam foi que
não havia ali outra porta nem janelas, vendo-se em cima da secre­
tária um grande candeeiro a ilumi nar o compartimento. Mas não
foi este o primeiro pormenor que lhes chamou a atenção, poi s an­
tes di sso viram que Manderville se encontrava deitado no chão,
· 6 com o rosto voltado para baixo, no meio do quarto, e que o sangue
lhe escorria do rosto, fonnando desenhos no chão que faziam lem­
brai: sinistras cobras escarlate a cintilar sob aquela luz artifici al .
E difícil di zer quanto tempo estiveram especados a olhar um
para o outro, até que, finalmente, Jarvi s deixou escapar uma ob­
servação, como se a tivesse retido até ali j untamente com o rol ego:
- Se a desconheci da conseguiu entrar também conseguiu fu­
gir da mesma maneira.
- Talvez estejamos a pensar de mais nessa tal desconheci da ­
replicou o padre B rown. - Há tantas coisas esquisitas neste tea­
tro que até acabamos por nos esquecer de algumas delas.
- A que coisas é que se refere? - i ndagou o outro.
- Há muitas. A outra porta, por exemplo.
� Mas está fechada à chave.
- De qualquer modo, esqueceu-se dela - lembrou o sacerdo- .
te. E, dali a pouco, observou, pensativo: - Aquela Mrs . Sands é
uma criatura tão carrancuda e mal humorada.
- Que quer di zer com isso? - indagou o outro, baixando o tom
de voz. - Acha que ela está a mentir e que a i tali ana afinal já saiu
do camarim?
- Não - replicou o padre calmamente. - Estava apenas a re­
ferir-me a uma fonna possível de avaliar a maneira de ser das pes­
soas.
- Não estará, por acaso, a insi nuar que foi Mrs. Sands a auto­
ra disto? - perguntou Jarvis alann ado.
- Limitei-me a apontar uma das hipóteses que existem de
analisar as pessoas, mas não me referia a Mrs. Sands.
Enquanto trocavam entre si estas palavras, o padre Brown
ajoelhou-se j unto do corpo e certificou-se de que ele já estava mor­
to. Ao lado do cadáver, embora não fosse imediatamente visível pa­
ra quem entras se no compartimento, via-se um punhal, do géne­
ro dos que se utili zam no teatro, como se tivesse caído da feri da ou
da mão do assassino. De acordo com Jarvi s, que i dentificou logo o
objecto, nada de importante conseguiriam dali deduzir, a não ser
que os peritos viessem a descobrir algumas impressões digitai s .
Tratava-se d e u m adereço d o teatro, que ali exi stia h á j á muito
tempo e que poderia ter sido usado por qualquer pessoa. Em segui­
da, o padre levantou-se e olhou em volta com ar grave.
- Temos de chamar a polícia e o médico, embora este já venha
tarde de mai s . . . a propósito, olhando em volta, não percebo como
consegui u a nossa amiga i taliana fazer i sto.
-A itali ana? Será possível? Pensei que ela tinha um alibi . São
doi s compartimentos separados, ambos fechados à chave, situados
em extremos opostos do corredor e ainda por cima com uma teste­
munha presente .
- Não, a única dificul dade que eu encontro é saber como é que
ela conseguiu chegar até esta extremidade do corredor, pois creio
que poderia sair do camarim. 77
- E porquê?
- Disse-lhe que me pareceu ouvi-la a partir vi dros , espelhos
ou j anelas, lembra-se? E, estupi damente, esqueci-me de uma coi­
sa importantíssima e que tinha obrigação de saber: ela é muito su­
persticiosa. Não creio que tivesse quebrado um espelho: estava,
sim, a partir o vidro da j anela. Isto fica numa cave, é um facto, mas
pode haver por aí uma clarabóia ou uma janela que vá dar a um pá­
tio. No entanto, não creio que haja qualquer coisa do género. - E
ficou a olhar para o tecto durante um bocado com um ar absorto.
De repente, pareceu voltar a si.
- Temos de ir depressa lá acima telefonar à polícia e avisar to­
da a gente. Vai ser bem doloroso . . . Meu :Qeus, está a ouvi-los no
palco a representar? O e nsaio prossegue. E afinal a isto que se cha­
ma uma ironia trágica.

Quando chegou o momento em que o teatro se transformou em


local de luto, todos os actores tiveram oportunidade de mostrar
muitas das reais virtudes da sua profi ssão. Comportaram-se com o
cavalheiros - cavalheiros d e primeira categoria. N e m todos gos­
tavam de Manderville, nem sequer confiavam nele. No entanto,
souberam exactamente o que di zer a seu respeito e mostraram não
só simpatia, como também delicadeza para com a viúva. Esta tor­
nara-se, num sentido novo e muito diferente, uma rainha da tra­
gédia, cuja palavra mai s insignificante era lei e, enquanto se mo­
via de um lado para o outro, desolada, iam-lhe apresentando as
suas mensagens de condolências.
- Sempre teve uma personalidade muito forte - declarou o ve ­
lpo Randall com voz rouca. - E é a mai s inteligente d e todos nós.
E claro que o pobre Manderville nunca esteve à altura dela, quer
no aspecto cultural quer noutros, mas esta mulher sempre desem­
penhou o seu papel de forma irrepreensível. Era quase patética a
maneira como ela muitas vezes expressava o seu desejo de levar
uma vi da mais i ntelectual. Mas Manderville . . . bom, nil nisi bo­
num, como se costuma di zer. - E o velhote afastou-se, abanando
a cabeça com uma expressão de tristeza.
- Nil nisi bonum, é uma verdade - concordou Jarvis. - Não
me parece que Randall tenha ouvido falar da história da visitan­
te mi steriosa. A propósito, não terá sido ela a autora do crime?
- Depende - retorquiu o padre -, do que você entende por vi­
sitante misteriosa.
- Não me refiro à italiana, é claro - apressou-se Jarvi s a
di zer. - Embora o senhor também tivesse razão acerca dela.
Quando entraram no camarim verificaram que a clarabóia estava
partida e o compartimento vazio. Mas tanto quanto a polícia con-
78 seguiu apurar, ela limitou-se a ir para casa da forma mais inofen-
siva possível . A outra a quem me refiro é a mulher que eu ouvi a
falar com ele , a que lhe disse que era mulher dele. Acha que ela se­
ria mesmo casada com el e?
-É possível - admitiu o padre Brown, olhando o vazio.
- Isso levar-nos-ia a pensar num móbi l : os ciúmes resultan-
tes do seu casamento posterior, poi s o corpo não apresenta quai s ­
quer sinai s de roubo. N ã o há, poi s , necessi dade d e suspeitarmos de
criados ladrões ou até de actores com falta de dinheiro. Mas é cla­
ro que certamente se apercebeu de um pormenor peculiar relati­
vamente a este caso!
- Apercebi-me de vários - retorquiu o padre Brown . - Mas
a qual deles é que s e refere concretam ente?
- O alibi colectivo - respondeu Jarvis, circunspecto. - Não é
frequente um grupo inteiro possuir um alibi público como aconte­
ceu neste caso: um alibi num palco iluminado em que todos se ob­
servavam mutuamente . E, além di sso, foi uma sorte aqui para os
nossos amigos o facto de Manderville ter cedi do um camarote
àquelas duas tontinhas da alta sociedade para assistirem ao en­
saio. Assim, ambas poderão testemunhar que o acto decorreu sem
qualquer incidente e com a presença em pal co de todos os actores.
Começaram a representar mui to antes de Manderville ter si do vis­
to a entrar para o escritório e assim continuaram até cerca de dez
minutos depois de termos descoberto o cadáver. E, por feliz coin­
ci dência, no momento em que ouvimos cair o corpo, todos os acto­
res se achavam no palco.
- Sim, de facto isso é muito importante e simplifica as coisas
- concordou o padre Brown . - Vamos l á ver quantas pessoas são
abarcadas pelo alibi . Temos Randall, que devia odiar Mandervil­
le, embora neste momento esteja a di sfarçar muito bem os seus
sentimentos . Mas e sse está fora de questão, pois ouvimos-lhe a voz
retumbante quando se encontrava no palco. Segue-se o nossojeu­
ne premier, Mr. Knight. Tenho bons motivos para crer que ele es­
tava apaixonado pel a m ulher de Manderville, sentimento esse
que, de resto, nem sequer dissimulava. Mas esse também não con­
ta, por se achar no palco na mesma altura. Quanto ao amável ju­
deu que dá pelo nome de Aubrey Vernon e a Mrs. Manderville, es­
tão igualmente postos de parte. O seu alibi colectivo, como di sse,
depende sobretudo de Lady Miriam e da sua amiga, Mi ss Talbot.
Tem a certeza de que são dignas de confiança?
- �e fere-se a Lady Mi riam? - perguntou Jarvis surpreendi ­
do. - E claro . . . e stá a pensar naquele aspecto de vamp, não é ver­
dade? Mas nem faz i deia da forma como se apresentam hoje em dia

1 E m francês no original: galã. (N.da T) 79


as senhoras das melhores faml1ias. E, além disso, tem algum mo­
tivo particular para duvidar do testemunho delas?
- Apenas o facto de que isto não nos l eva a nada. Não vê que
este alibi colectivo abrange praticamente a totali dade das pes­
soas? Esses quatro actores eram os únicos que estavam a traba­
lhar nessa altura no teatro. Quanto a criados, quase n ão os havi a,
à excepção, é claro, do velho Sam, que toma conta da entrada prin­
cipal e da m ulher que estava a vigiar a porta do camarim de Mi ss
�aroni . Além das pessoas que acabei de referir só restamos nós.
E evidente que podemos ser acusados do crime, sobretudo pelo fac­
to de termos si do nós a descobrir o corpo. Parece não haver mai s
ninguém susceptível de ser incriminado. Por acaso não foi xocê que
o matou quando eu e stava distraído, poi s não?
Jarvis levantou a cabeça com um ligeiro sobressalto e, por
momentos, arregalou os olhos de espanto, mas depois fez um gran­
de sorriso e abanou a cabeça.
- Você não foi - disse o padre Brown -, e vamos partir do
princípio de que eu também não. Ora, se excluírmos as pessoas que
se encontravam no palco, só nos restam a Signora, que se achava
encerrada no camarim, a sentinela que estava à porta e o velho
Sam . Ou está a pensa� ainda nas duas senhoras que assistiam ao
ensaio no camarote? E claro que podiam ter-se esgueirado de l á
s e m ninguém dar p o r isso.
- Não, estou a pensar na desconheci da que veio fazer uma vi­
sita a Manderville e lhe disse que era mulher dele.
- E talvez fosse - di sse o padre, e nesta altura houva uma in­
flexão na sua voz que levou o companheiro a debruçar-se mais so­
bre a mesa.
- Di ssemos há pouco que a primeira mulher talvez tenha ti do
ciúmes da segunda - lembrou ele, falando em voz mais baixa e
num tom ansioso.
- Não, talvez tivesse ciúmes da rapariga i taliana ou até de
Lady Miriam Marden, mas da outra mulher, não.
- E por que não?
- Porque não havia outra mulher - declarou o padre Brown.
- Mr. Manderville, quanto a mim, nada tinha de bígamo; era, pe-
lo contrário, um homem totalmente monógamo. A mulher, diga­
mos que até estava demasi ado ligada a ele ; de tal form a, que todos
supunham tratar-se de uma outra mulher. Mas não consi go ima­
ginar como é que ela podia estar com o marido quando foi morto,
poi s todos sabemos que se encontrava no palco naquele momento,
à vi sta de toda a gente, a representar um papel importante . . .
- Quer di zer que a desconheci da que o perseguia como u m fan­
tasma era afinal a Mrs . Manderville que todos conhecemos? - per­
guntou Jarvis, i ncrédulo. No e ntanto n ão obteve resposta, pois o
8O padre Brown olhava agora para o vazio, com um ar i nexpressivo,
quase i diota. Sempre assim fora: quando parecia m ai s i diota era
sinal de que estava a ser mai s inteligente.
De repente, pôs-se de pé, visi velmente perturbado.
- Mas é horrivel - disse. - Não sei mesmo se este não será o
pior caso de toda a minha vi da, mas seja como for não posso parar.
Não se importa de di zer a Mrs . Manderville que preci so de falar
com ela em particular?
- Com certeza. Mas que é que se passa?
- Tenho sido um autêntico pateta - confessou o padre Brown.
- Aliás é um lamento bem comum ne ste vale de lágrim as. Fui tão
estúpido que me esqueci por completo que a peça era Escola de Es­
cândalos.
Pôs-se a andar de um lado para o outro até que Jarvis reapa­
receu muito alarmado.
- Não consigo encontrá-la - declarou. - Ninguém sabe on­
de se terá meti do.
- Também não sabem onde está N orman Knight, poi s não? ­
indagou o sacerdote . - Bom, assim já não serei obrigado a fazer
a entrevista mais penosa da minha vi da. Só Deus sabe o medo que
tenho dessa mulher. Mas ela também estava com medo de mim .
Parecia demasi ado assustada com qualquer coisa que eu vi ou dis ­
se. Knight passava a vida a i nsi stir para q u e e l a fugi sse com el e e
agora que ela o fez, não consigo deixar de ter pena dele .
- Pena dele?
- Bom, não deve ser lá muito agradável fugir com uma assas-
sina mas, na verdade, ela é bem pior que i sso.
- 9 quê, então?
- E uma egoísta - respondeu o padre Brown. - Trata-se da-
quele tipo de pessoa capaz de olhar para o espelho antes,de olhar
pelajanela, o que consti tui a pior calamidade que exi ste . E evi den­
te que o espelho não lhe trouxe sorte, mas só porque não estava par­
ti do.
- Não percebo nada do que está a di zer - confessou J arvi s . ­
Toda a gente a consi derava uma pessoa com i deai s el evados, que
se movia numa esfera superior à nossa.
- Ela própria se via assim e sabia hipnotizar os outros para que
a encarassem dessa forma. Talvez eu não tenha convivi do com ela
o suficiente para me deixar influenciar. No entanto vi perfeita­
mente quem era cinco mi nutos depoi s de a ter conheci do.
- Não me diga! O comportamento dela para com a italiana foi
admirável .
- O seu comportamento era sempre admirável - retorquiu o
sacerdote. - Toda a gente aqui me falou das suas quali dades e da
sua subtil eza de espírito, ao que constava, muito superiores às do
mari do. Mas, quanto a mim, esses dotes que lhe eram atribuídos
resumiam-se, afinal, ao simples facto de ser uma senhora e ele não 8 1
ser um cavalheiro. No entanto, duvido que S. Pedro se contente
com esse teste para lhe permitir a entrada no céu.
- Quanto ao resto - prosseguiu o padre, com animação cres­
cente -, ao ouvi-la pronunciar as primeiras palavras, apercebi­
-me imediatamente de que não estava a ser sincera em relação à
pobre italiana, com aqueles ares de magnanimi dade frigida e,
mais tarde, tive a confirmação disso ao saber que a peça era Esco­
la de Escândalos.
- Está a ir depre ssa de mais para a minha cabeça - confessou
Jarvis, atrapalhado. - Que é que a peça tem a ver com isto?
- Bem, ela afirmou que tinha distribuído à rapariga o papel da
bela heroína, contentando-se com um papel secundário, o de uma
matrona m ai s velha. Ora, isso poderá aplicar-se a quase todas as
peças. No entanto, neste caso particular, deturpa os factos . Ela
queria di zer que dera à outra actriz o papel de Maria, que é, afinal,
uma personagem sem relevo al gum. E a matrona, segundo ela,
apagada e obscura, era certamente Lady Teazle, o único papel que
agradaria a uma actri z . Sendo a i taliana uma profissional de pri ­
meira categoria, a quem fora prometido um papel importante, ha­
vi a, de facto, uma de sculpa, ou pelo menos um motivo para a sua
fúria. De um modo geral, há sempre um motivo para as fúrias dos
i talianos. Os latinos guiam-se pela lógica e não se enfurecem sem
razão. Foi esse pormenor que me aj udou a compreender o si gnifi­
cado de uma tal magnanimi dade por parte de Mrs. Manderville. E
houve ainda outra coi sa. Você riu-se quando eu, a propósito do ar
de Mrs . Sands, afirmei que através do aspecto se podia avaliar a
maneira de ser das pessoas, embora não me estivesse a referir a
ela. E i sso é verdade. Se quiser conhecer uma senhora não se fie no
que vê com o ôlhar, poi s el a pode ser esperta de mais para si . Não
olhe para os homens que a rodeiam porque podem andar todos em­
bei çados por ela. Mas olhe para outra mulher que costume estar
per� da vi sada, sobretudo se se encontrar numa posição subalter­
na. E através desse espelho que verá o seu verdadeiro rosto e, nes­
te caso, o rosto que nos aparecia através de Mrs. Sands era muito
feio.
»E quanto às outras impressões, em que consistiam? Ouvi inú­
meros comentários acerca dos defeitos do pobre Manderville e to­
dos eles se referiam ao mesmo: o facto de não ser merecedor dela.
Ora, tenho a certeza de que essa opinião provinha indirectamen­
te da própria Mrs. Manderville. E o certo é que esses comentários
acabavam por traí-la. De acordo com aquilo que todos os homens
di ziam, tinha sido ela própria que confessara o sentimento de so­
lidão i ntelectual que a dominava. Você mesmo afirmou que ela
nunca se queixava e logo a seguir citou palavra,s dela ao referir a
forma como o seu silêncio lhe fortalecia a alma. E precisamente es-
82 se o toque exacto, o estilo i nconfundível . As pessoas que se lamen-
tam não passam de uns pobres diabos que nos i ncomodam . Com es­
sas não se preocupe . Mas as que se queixam de nunca se lamenta­
rem, essas são o diabo. O culto byroniano de satã não se baseava
precisamente nessa presunção de estoicismo? Ouvi todos esses co­
mentários, mas, sinceramente, não vi nada que pudesse constituir
motivo para os seus lamentos . Não constava que o marido bebes­
se, ou a tratasse mal, ou não lhe desse dinheiro, ou lhe fosse infiel,
até começarem a surgir rumores de que tinha encontros secretos,
que não passavam, afinal , do hábito melodramático que ela ti nha
de o importunar com as suas queixas, quan do ele se encontrava no
escritório. Se alguém qui sesse ver os factos ignorando a impre ssão
constante do martírio que ela pretendia transmitir, veri a que eles
apontavam n o sentido oposto. Manderville deixou de ganhar di ­
nheiro com as pantominas só para lhe agradar, e começou a ter ele­
vados prej uízos com o teatro cl ássico só para a satisfazer. Era ela
que arranjava os cenários e a mobília como queria. Se pretendia le­
var à cena uma peça de Sheri dan, conseguia-a; se desejava repre­
sentar o papel de Lady Teazle, o papel era del a; se lhe pas sasse pe­
la cabeça fazer um ensai 9 sem guarda-roupa a uma determinada
hora, o ensaio fazia-se. E de notar o facto curioso de ter insi sti do
nis so.
- Mas qual a finali dade de toda essa tirada? - i ndagou o ac­
tor que nunca tivera ocasião de ouvir o seu amigo sacerdote fazer
um di scurso tão longo. - Com essas considerações de carácter psi­
cológico acabou por se afastar muito do assunto em causa: o homi ­
cídio. Ela pode ter fugi do com Knight, pode-me ter aldrabado tam ­
bém a mim, mas não foi ela com certeza quem matou o mari do, poi s
sabemos perfeitamente que se manteve no palco durante todo o en­
saio. Pode ser uma malvada, no entanto não é bruxa.
- Bom, eu não me atreveria a afirmar tanto - disse o padre
Brown sorrindo. - Mas também não era necessário recorrer a um
acto de bruxaria. Neste m omento posso afirmar que ela o matou e
fê-lo de uma forma muito simples.
- Como é que pode estar tão certo di sso?
- Porque a peça era Escola de Escândalos e, em particular, por
causa desse acto - replicou o padre . - Gostaria ainda de lhe lem­
brar o que ainda há pouco tive ocasião de referir; o facto de ser ela
a dispor a mobília como m uito bem entendia. Não se esqueça tam ­
bém de que este palco foi construído e utili zado para pantominas,
pelo que devem ali existir uma série de portas falsas, al çapões e ou­
tros truques desse género. E quando me di z que as testemunhas
podem confirmar a presença de todos os actores no palco durante
o acto, gostaria de lhe lembrar que na cena principal de Escola de
Escândalos um dos principais actores permanece durante todo o
tempo no palco, mas não é visto pela assi stência. Tecnicam ente po-
de consi derar-se que está em palco, mas em termos práticos pode a 3
estar ausente . O biombo de Lady Teazle é o alibi d e Mrs . Man­
dervi11e.
Fez-se um silêncio e depoi s o actor perguntou admirado:
- Acha que ela se escapuli u através de um alçapão por detrás
do biombo, que conduzia directamente ao escritório de M ander­
vi11e?
- Pelo menos arranjou forma de se escapar e parece-me ter si­
do essa a m ai s provável - respondeu o padre -, poi s aproveitou
assim a oportunidade de estar num ensaio em que não era neces­
sário trocar de roupa, além de que foi ela própria que sugeriu isso.
Trata-se apenas de uma suposição; no entanto, e stou convencido
de que se fosse um ensaio com o guarda-roupa apropriado, teria si­
do bem mais dificil passar atr�vés do alçapão com a complicada im­
dumentária do século XVIII. E claro que se deparou com outras di­
fi culdades, mas essas seriam mais fáceis de resolver.
- Há uma coisa que eu não consigo entender - observou Jar­
vi s, apoiando a cabeça nas mãos e soltando uma espécie de grunhi­
do. - Não consigo convencer-me que uma criatura como ela, tão
encantadora e tão serena, tenha perdi do o equilíbrio mental des­
sa maneira, para já não referir o aspecto moraL Será que existia
algum motivo que a tivesse levado a proceder as sim? E staria ela
loucamente apaixonada por Knight?
- Oxal á fosse assim, poi s nesse caso sempre teria al guma des­
culpa. No entanto, lamento dizer que tenho as mi nhas dúvi das.
Ela queria ver-se livrE do mari do, que além de ser um velho pro­
vinciano e conservador, nem sequer tinha muito dinheiro para ela
poder seguir a carreira brilhante a que teria acesso como esposa de
um actor em rápida ascensão. Mas não desej ava actuar nesse sen­
ti do em Escola de Escândalos. Só fugiria com um homem em últi ­
ma i nstância. Não a dominava uma paixão, mas uma espécie de
respeitabilidade infernaL Passava o tempo a massacrar o mari do
em segredo, insistindo com ele para que lhe concedesse o divórcio
ou desaparecesse do seu caminho. E afinal Mandervi11e acabou por
pagar bem cara a sua recusa. E ainda há outra coisa. Você fal a mui ­
to desses i ntelectuai s, detentores de uma arte superior e protago­
nistas de um drama ainda mais fil osófico, mas repare no tipo de fi ­
losófia e m questão! Veja o comportamento que e l e s têm . Falam
muito do Desejo do Poder, do Direi to à Vida, do Direito à Experiên­
cia ... disparates sem sentido e, mai s que isso, di sparates que po­
dem trazer consequências deploráveis.
O padre Brown franziu o sobrolho, o que raramente acontecia,
e o seu olhar denotava ainda preocupação quando pôs o chapéu na
cabeça e s aiu, embrenhando--s e na escuri dão da noite.

84
CAPÍ TULO V

O DESAPARECIMENTO DE VAUDREY

Sir Arthur Vaudrey, de fato de Verão cinzento claro e exibindo


um chapéu branco sobre a cabeça grisalha, caminhou num passo
miú do pela estrada que seguia ao longo do rio, desde a mansão on­
de vivia até ao pequeno grupo de casas que eram praticamente de­
pendências da sua, entrou na al deol a e desapareceu por completo,
como se tivesse sido levado por fadas.
Tal desaparecimento parecia ain da mai s absoluto e súbito, em
virtude da familiaridade do cenário e da extraordinária simplici ­
dade das con di ções em que o facto ocorreu. O lugarejo nem sequer
podia ser consi derado uma aldeia. Com efeito, era pouco mai s que
uma ruela curiosamente isolada, no meio de vastos campos, um
simples conjunto de quatro ou cinco lojas ali nhadas, in dispensá­
veis aos habitantes l ocai s, ou seja, alguns agricultores e a faml1ia
que vivia na casa grande. Havia um talho à esquina, onde, segun­
do constava, Sir Arthur tinha si do visto pela última vez. Quem o
afirmava eram dois indivíduos ai nda jovens que viviam em casa
dele: Evan Smith, que exercia as funções de secretário, e John
Dalmon, noivo da jovem de quem Sir Arthur era tutor. A seguir ao
talho havia uma pequena loja que reunia um grande número de
funções, tal como acontece em mui tas al deias, onde uma velhinha
vendia goluseimas, bengalas, bolas de golfe , goma, novel os de lã e
papel de carta. Depois havia uma tabacaria onde os dois jovens se
encontravam quando avi staram o seu anfitrião pela última vez à
porta do talho, a seguir existia uma loja de modista mantida por
duas senhoras e ainda, a completar o bloco de construções, uma
modesta pastelaria que oferecia aos que por ali passavam grandes
copos de limonada. A única pousada razoável que exi stia nas re­
dondezas ficava um pouco mai s adiante, j unto da estrada princi­
pal . Entre a pousada e a povoação havia um cruzamento no qual
se encontravam um polícia e um funcionário de um clube automo­
bilístico local , tendo ambos afirmado que Sir'Arthur não passara
por ,ali .
As primeiras horas d e u m radioso di a de Verão, o velho senhor 8 5
partira pela estrada fora, segurando a bengala com uma das mãos
e agitando as luvas amarelas com a outra. Era um indivíduo todo
j anota e, apesar da i dade, _apresentava uma força e uma energia
dignas de espanto. O seu vigor físi co e a sua actividade eram real­
mente notáveis, podendo o cabelo branco confundir-se com um l oi ­
r o muito claro. O rosto be m escanhoado era agradável, e tinha u m
nari z aquilino parecido com o d o duque d e Wellington. No entan­
to, o pormenor mais importante dizia respeito aos olhos. Não se po­
diam condiderar apenas notáveis, metaforicamente falando, poi s
havia neles algo de proeminente e quase protuberante, o que cons­
tituía talvez a única desproporção da sua fi sionomia, mas os l ábios
eram firmes e sensívei s, como se tal se devesse a um acto de von­
tade. Era o dono de toda aquela região, o que incl uía o pequeno
aglomerado de habitações. Ora, num meio como esse, para além de
se conhecerem todos uns aos outros, toda a gente sabe onde cada
um se encontra em dado momento. O normal seria Sir Arthur di­
rigir-se até à al dei a para di zer o que lhe aprouve sse ao carnicei ­
r o ou a outra pessoa qualquer e depois regressar a casa, gastando
com tudo isso cerca de meia hora, tal como acontecera em relação
aos dois rapazes quando foram comprar cigarros. No entanto, ni n­
guém se cruzou com eles na estrada e a única pessoa que viram foi
o outro hóspede da casa, um tal Dr. Abbott, que estava sentado à
beira do rio, de costas volta das para o caminho, entretido a pescar.
Quando os três convi dados se reuniram à mesa do pequeno-al­
moço não se mostraram preocupados com a ausência de Sir Ar­
thur, mas à medida que o dia ia avançan do, sem que ele apareces­
se para as refeições, começaram, naturalmente, a ficar preocupa­
dos e Sybil Rye, a senhora da casa, parecia seriamente alarmada.
Efectuaram-se então expedições de pesquisa até à al deia, sem
contudo se descobrir qualquer pista e, quan do a noite desceu, o me­
do instalou-se na casa. Sybil m andara chamar o padre Brown que,
além de ser seu amigo, já lhe prestara aj uda anteriormente numa
dificul dade que tivera, tendo o sacerdote, dada a gravi dade da si ­
tuação, aceitado permanecer na casa para investigar o assunto.
Quando o novo dia amanheceu sem que houvessem notícias do
desaparecido, o padre Brown levantou-se cedo e resolveu i niciar
as suas investigações. Podia observar-se o seu vulto negro e atar­
racado a caminhar no jardim, ao longo do rio, enquanto esquadri­
nhava o cenário com um olhar míope e e spantado.
De súbito, apercebeu-se da presença de um outro vulto que ca­
minhava sem descanso ao longo da margem e saudou-o. Tratava­
-se, com efeito, de Evan Smith, o secretário de Sir Arthur.
Evan Smith era um jovem alto de cabelo loiro e expressão
apreensiva, o que era justificável naquele momento de angústia.
No entanto, era esse ar preocupado que normalmente exibia, mes-
86 m o noutras ocasiões. Talvez esta sua faceta se tornasse mais no-
tada devido ao seu porte atlético, à espécie de juba leonina e ao bi­
gode que costumam acompanhar, pelo menos nos romances, a ati ­
tude franca e jovial do <�ovem inglês>> . E, no seu caso, havia ainda
umas olheiras profundas e um ar perturbado, que em contraste
com a figura alta e convencional e o cabelo l oiro, caracteristicos das
personagens de romance, lhe conferia algo de sini stro. O padre
Brown sorriu-lhe amavelmente e depoi s observou, num tom
grave : .
- E um assunto preocupante.
- Sobretudo para Miss Rye - acrescentou o jovem, apreensi -
vo. - E não sei por que razão hei-de di ssimular que o facto me to­
ca bem de perto, embora ela esteja noiva de Dalmon . Também se
sente chocado, suponho?
O padre, no entanto, não pareceu muito chocado. Já era habi­
tual nele mostrar-se inexpressivo e limi tou-se a responder:
- Naturalmente todos nós compreendemos a ansie dade dela.
Julgo que você nada sabe do caso nem faz i deia do que se terá pas­
sado . . . ?
- Não tenho propriamente novi dades, pelo menos do exterior.
Quanto à minha opinião . . . - E Evan Smith calou-se .
- Gostaria muito de ouvir as suas opi niões - insi stiu o padre,
franzindo os olhos.
- Sim, tem razão - di sse o outro, por fim. - Creio que é me­
lhor abrir-me com alguém . E o senhor parece ser a pes soa mai s in­
dicada.
- Sabe alguma coisa sobre o que aconteceu a Sir Arthur? - in­
dagou o sacerdote num tom calmo, como se se tratasse do assun­
to mais natural deste mundo.
- Sim - respondeu o secretário. - Julgo saber o que lhe acon­
teceu .
- Está uma bela manhã - proferiu uma voz branda, mesmo
atrás deles . - Uma manhã tão linda para um encontro tão triste .
Desta vez o secretário deu um salto como se o tivessem alveja-
do a tiro, enquanto a sombra do Dr. Abbott se lhe atravessava no
caminho. O médico ainda se encontrava de roupão - um sumptuo-
so roupão oriental com flores e dragões estampados, que fazia lem­
brar um canteiro de flores. Trazia os chi nelos calçados, razão por
que conseguira aproximar-se deles sem ser ouvi do. Seri a a última
pessoa de quem se esperaria uma aproxim ação tão suave e silen­
ci osa, visto tratar-se de um homem alto e corpul ento. Tinha um
rosto muito bronzeado, com uma expressão benevolente, emol du­
rado por patilhas gri salhas, um tanto fora de moda, e uma barba
pontiaguda e abundante, tal como os caracói s longos e prateados
da sua venerável cabeça. Os olhos semicerrados conferiam-lhe um
ar ensonado e, de facto, era muito cedo para um homem de i dade
avançada como ele se encontrar já levantado. No entanto, o seu as- 8 7
pecto era ao mesmo tempo robusto e de pele curtida, fazendo lem­
brar um velho agricultor ou um marinheiro habituado a suportar
as intempéries. Era o único antigo colega contemporâneo de Sir
Arthur que se encontrava entre os membros do grupo reunido na­
quela �ltura na mansão.
- E verdadeiramente extraorqi nário - observou ele, abanan­
do a cabeça. - Aquelas casinhas parecem de boneca, sempre de
portas abertas, à frente e nas traseiras, aparentemente sem haver
ali sítio para se esconder uma pessoa, no caso de o terem querido
fazer, o que eu duvido. Dalmon e eu examinámo-las todas ontem
e interrogámos os habitantes. As mulheres têm um ar inofensivo
e parecem i ncapazes de fazer mal a uma mosca. Quanto aos ho­
mens, estão ausentes a maior parte do tempo, a trabalhar nos cam­
pos, à excepção do carniceiro. E não podia ter aconteci do nada no
caminho que segue à beira do rio, pois passei ali o dia pescar. Vol ­
tou-se para Smith e desta vez o seu olhar não parecia ensonado,
mas malicioso.
-Julgo que você e Dalmon poderão testemunhar que me viram
sentado à beira do rio quando foram à povoação e voltaram .
- Claro - respondeu Smith secamente, mostrando-se contra­
ri ado com uma tão l onga i nterrupção.
- A única coi sa que não me sai da cabeça - prosseguiu o Dr.
Abbott com lenti dão, m as as suas palavras foram, por sua vez, in­
terrompidas. Uma fi gura, simultaneamente ágil e vigorosa atra­
vessou apressadamente o relvado, por entre os canteiros,
dirigindo-se para junto deles. Era Jonh Dalmon, e trazia um papel
na mão. Vinha vestido impecavelmente, a sua tez era morena e o
rosto quadrangular, de traços napoleónicos, e tinha uma expres­
são muito triste - os seus olhos eram tão tristes que pareciam
mortiços . Tinha aspecto de ser ainda jovem, mas o cabelo preto
tornara-se prematuramente grisalho nas têmporas.
- Acabo de receber este telegrama da polícia - anunci ou. -
Contactei-a a noite passada e dizem que vão mandar para cá um
homem imediatamente . Sabe--me di zer com quem mai s deverei
contactar, Dr. Abbott? Familiares, pessoas amigas, etc.
- O sobrinho, Vernon Vaudrey, é claro - respondeu o velho­
te. - Se quiser vir comigo, dar-lhe--ei a morada dele e ... quero
também revelar-lhe uma coi sa especial acerca desse rapaz.
O Dr. Ahbott e Dalmon afastaram-se na direcção da casa e,
quando já iam a uma certa di stância, o padre Brown, como se en­
tretanto não tivesse havido qualquer interrupção, li mi tou-se a di­
zer:
- Estava então a contar-me . . .
- Admiro a sua calma - observou o secretário. - Deve ser d o
hábito d e escutar as confissões . Sinto-me como se me fosse confes-
11 8 sar. Provavelmente, muita gente iria sentir-se desencorajada a fa-
zer confidências depoi s da chegada imtempestiva daquele velho
paquiderme rastejante como uma cobra. Mas acho que o melhor é
ir direito ao assunto, embora não se trate propriamente da minha
confissão, mas sim da de outra pessoa. - Calou-se por instantes,
enquanto cofiava o bigode, e acrescentou bruscamente : - Penso
que Sir Arthur se pôs a andar e j ulgo saber porquê.
Fez-se novo silêncio e depoi s recomeçou novam ente a falar:
- Estou numa posi ção muito ingrata e a maior parte das pes­
soas dirão que estou a proceder mal . Vou apresentar-me na pele
de uma cobra, de um canalha, mas estou ciente de que é esse o meu
dever.
- Só você o poderá determinar - observou o sacerdote. - De
que se trata?
- Vejo-me na ingrata situação de ter de falar contra um rival,
e para mais de um rival bem sucedi do - declarou o jovem com
amargura. - No entanto, não sei que outra coi sa poderei eu fazer.
Perguntou-me há pouco qual a explicação para o desaparecimen­
to de Vaudrey. Estou absolutamente convencido de que a explica­
ção reside na pessoa de Dalmon .
- Quer di zer q u e Dalmon matou Sir Arthur? - perguntou o
padre Brown sem pestanejar.
- Não ! - protestou Smith, de uma forma intempestiva. -
Nem pensar! Fez outras coi sas, mas matá-lo, isso não. Dalmon
possui o melhor dos alibi s: o testemunho de um homem que o de­
testa. Posso j urar em qualquer tribunal que ele ontem não moles­
tou o velhote. Dalmon e eu passámos o di a j untos, pelo menos es­
sa parte do dia, e garanto-lhe que ele se limi tou a comprar cigar­
ros na aldeia e enquanto aqui esteve levou o tempo a fumá-los e a
ler na biblioteca. Penso que é um criminoso, mas não matou Vau­
drey. Posso mesmo acrescentar que ele não o matou precisamen­
te porque é um criminoso.
- Ah sim? E que é que isso quer di zer? - indagou o padre.
- Quer di zer que ele é um criminoso que comete outro crime,
o que só acontece se Vaudrey continuar vi vo.
- Compreendo - observou o sacerdote .
- Conheço muito bem Sybil Rye, cujo carácter desempenha um
papel muito importante em toda esta hi stória. E um carácter ex­
celente nos doi s senti dos, i sto é, possui pobres qualidades e uma
consti tuição particularmente delicada. E uma dessas pessoas ter­
rivelmente conscienci osas e ao mesmo tempo sem defesas, consti­
tuídas pelo hábito .e pelo senso comum que muitas das criaturas co-
mo ela possuem ; E uma rapariga de uma sensibili dade doentia e,
ao mesmo tempo, bastante altruísta. A hi stória da sua vida é mui-
to curiosa: foi abandonada praticamente sem dinheiro, como uma
enjei tada, e Sir Arthur levou-a para casa e tratou-a com consi de­
ração, para espanto de muita gente, poi s, sem menosprezar o ve- 8 9
lhote, tal atitude não estava muito de acordo com ele . Mas quando
ia fazer 1 7 anos, veio a saber a chocante explicação - o seu tutor
pediu-a em casamento. E agora chegamos à parte mai s curiosa da
história. De uma form a ou de outra, Sybil ouviu contar a alguém
- desconfio que foi ao velho Abbott - que Sir Aubrey Vaudrey, du­
rante os anos fogosos da j uventude, cometera um crime ou, pelo
menos, prej udicara alguém, o que lhe causara então grandes pro­
blemas . Não sei do que se tratou, mas isso constituia um grande
pesadelo para a rapariga, sobretudo numa i dade tão sentimental,
o que a levou a consi derá-lo um monstro ou, pelo menos, um
homem destituído das qualidades que ela desejaria num m ari do.
O que ela fez e ntão é típico da sua maneira de ser. Com um terror
imenso e uma grande dose de coragem contou-lhe a verdade com
os lábios a tremer. Admitiu que a sua repul sa poderia ser mórbi­
da e confessou esse sentimento como se de uma secreta loucura se
tratasse . Ora, para seu alívio e surpresa, Sir Arthur aceitou tudo
com calma e não voltou a abordar o assunto, tendo o reconhecimen­
to por parte dela da genrosi dade do seu tutor aumentado ainda
mai s, graças ao que a seguir lhe vou contar. Um dia, a vi da solitá­
ria de Sybil veio a sofrer a influência de um homem não menos so­
litário, que vivia acampado numa das ilhotas do rio e aí vivia co­
mo um ermitão. Sou l evado a crer que o mistério que o envolvia era
um atractivo para ela, embora eu o consi dere um homem já de si
bastante atraente. Trata-se, na verdade, de um cavalheiro muito
arguto, embora melancólico, o que contribuiu, julgo eu, para con­
duzir ao romance . Refiro-me, como deve calcular, a Dalmon e ain­
da hoje não estou bem certo até que ponto ela o aceitou realmen­
te, mas a situação chegou, pelo menos, à fase de ele conseguir licen­
ça para se avistar com o tutor. Imagino a angústia e o terror com
que ela aguardou essa entrevista, sem saber como é que o anterior
pretendente aceitaria a presença de um rival. Ora, também neste
caso concluiu, mais uma vez, que cometera uma inj ustiça, pois Sir
Arthur recebeu o jovem de forma hospitaleira e pareceu encanta­
do com os proj ectos do j ovem casal. Passaram a ir à caça e à pes­
ca juntos e não tardaram a tornar-se bons amigos até ao dia em
que Sybil voltou a sofrer novo choque, quando Dalmon deixou esca­
par uma frase ao acaso, no meio da conversa: «não mudou mui to em
trinta anos>>, e a verdade acerca dessa estranha e antiga intimi da­
de entre eles irrompeu dentro do seu espírito. Aquele primeiro con­
tacto entre ambos e a form a como Sir Arthur recebera Dalmon não
haviam passado afinal de uma farsa: era óbvio que os dois já se co­
nheciam antes. Fora e s se o motivo da vinda do jovem para aque­
las paragens, rodeado de segredo. E aí estava a razão pela qual o
homem mais velho se mostrara tão disposto a aceitar o casamen­
to. Não sei o que pensa di sto, reverendo . . .
9o - Mas eu sei o q u e você pensa - disse o padre Brown, sorrin-
do -, e parece-me perfeitamente lógico. Temos Vaudrey com uma
hi stória feia no seu passado: um misterioso desconhecido aparece
um dia, no intuito de conseguir extorquir-lhe qualquer coisa. Por
outras palavras, pensa que Dalmon é um chantagi sta.
- Penso - admitiu o outro -, por muito que i sso me custe .
O padre Brown ficou a pensar por momentos e acabou por de­
clarar:
- Penso que é altura de ir ter uma conversa com o Dr. Abbott.
Quando voltou a sair de casa, uma hora ou duas depois, embo­
ra tivesse estado a conversar com o médico, não foi na companhia
dele que apareceu, mas sim na de Sybil Rye, uma jovem páli da, de
cabelo arruivado e um perfil de contornos delicados, quase trému­
los. Ao vê-la era fácil compreender a história do secretário acerca
da sua candura. Lembrava Lady Godiva e algumas hi stórias de
virgens mártires - só as pessoas tímidas podem ser tão sinceras
de forma a conseguirem estar em paz com a sua consciência. Smith
foi ao encontro deles e deixaram-se ficar por alguns momentos no
relvado, a conversar. O dia, que se mantivera radioso desde o ama­
nhecer, começava agora a toldar-se e no céu surgiam nuvens
ameaçadoras, mas o padre Brown trazia consigo o seu guarda chu­
va e, além disso, com a roupa que vestia vi nha preparado para en­
frentar a intempérie . No entanto, talvez não passasse de um efei ­
to inconsci ente de uma ati tu de e não existisse o perigo de uma tem­
pestade, pelo menos material .
- O que mai s detesto - dizia Sybil, falando em voz baixa - são
os comentários que começam a surgir: as suspeitas ém relação a to­
da a gente. John e Evan poderão responder um pelo outro, penso
eu, mas o Dr. Abbott fez uma cena horrivel com o carniceiro, que,
ao sentir-se acusado, desatou por seu lado a lançar acusações so­
bre o médico.
Evan Smith mostrava-se muito i ncomodado e acabou por con­
seguir dizer:
- Ouça, Sybil , embora eu nada saiba e stou convenci do de que
nada disso se justifica. Tudo i sto é extremamente desagradável,
mas não cremos que tenha havido . . . viol ê ncia.
- Quer di zer que já têm alguma teoria sobre o caso? - inda­
gou a rapariga, de olhos fitos no sacerdote.
- Ouvi uma teoria que me parece bastante convincente - ex­
plicou o padre Brown.
O sacerdote ficou a olhar para o rio com um ar sonhador, en­
quanto Smith e Sybil falavam em voz baixa. Em seguida, o sacer­
dote caminhou ao longo da margem e embrenhou-se num peque-
no bosque de árvores de troncos finos, numa zona em que o terre-
no descia em declive até ao rio. O sol forte i ncidi a sobre o fino véu
das pequenas folhas ondulantes transformando-as em verdes lín­
guas de fogo e todos os pássaros cantavam, como se as árvores dis- 9 1
pusessem de um coro de vozes. Dali a um minuto ou dois, Evan
Smith ouviu chamar pelo seu próprio nome do meio do arvoredo.
Encaminhou-se rapidamente nessa direcção e deparou-se com o
padre Brown que, entretanto, já vinha ao seu encontro e se lhe di­
rigi u em voz baixa:
- Não deixe a senhora vir para este lado. Não seria possível
afastá-la daqui? Peça-lhe que vá telefonar ou arranje outra des­
culi>_a qualquer e depoi s venha aqui ter.
Evan Smith voltou as costas com um ar preocupado e aproxi­
mou-se da rapariga. No entanto, ela não era daquelas pessoas que
mostram relutância em fazer pequenos favores aos outros e, por is­
so, não tardou a desaparecer dentro de casa. Entretanto Smith
preparou-se para ir ao encontro do padre Brown que voltara a em­
brenhar-se no bosque. Mesmo por detrás do arvoredo havia uma
ligeira cova onde a relva cedera até ao nível da areia, à beira do rio.
O padre Brown encontrava-se junto desta depressão e olhava pa­
ra baixo mas, por casualidade ou intencionalmente, tinha o chapéu
na mão apesar da intensi dade do Sol .
- O melhor é vir ver i sto com os seus próprios olhos para poder
servir de testemunha. Mas prepare-se para o que o e spera.
- Preparar-me para quê? - perguntou Smith.
- Para observar a coisa mai s horrível que eu já vi em toda a mi-
nha vida - respondeu o padre Brown .
Evan Smith deu um passo na direcção da margem e foi com di­
ficuldade que conseguiu reprimir um grito de pavor.
Sir Arthur Vaudrey olhava os dois observadores com os dentes
arreganhados. Tinha o rosto voltado para cima, de tal modo que po­
deria tê-lo pisado se não estivesse de sobreaviso. Tinha a cabeça
i nclinada para trás com o cabelo de um branco amarelado voltado
para ele, de tal modo que lhe via a cara na posição invertida. Tudo
i sto conferia ao quadro uma nota de pesadelo, como se um homem
fosse a caminhar com a cabeça posta ao contrário. Que estaria ele
a fazer? Seria possível que Vaudrey se encontrasse realmente ali,
de gatas, escondido entre a vegetação, a espreitá-los naquela es­
tranha postura? O resto do corpo parecia curvado e torcido, como
se o tivessem estropiado ou deformado. N o entanto, olhando mai s
d e perto, via-se q u e eram apenas os membros encolhidos, s e m vi­
da. Teria enlouquecido? Quanto mais Smith olhava, mais rígi da
lhe parecia a posição.
- Daí não pode ver - observou o padre Brown -, mas corta­
ram-lhe o pescoço.
- Acredito que i sto seja a coisa mais horrível que viu em toda
a sua vi da - observou o secretário, estremecendo. - Creio que é
por estar a ver a cara de cima para baixo. Durante dez anos tive
ocasião de observar e ste rosto todos os dias ao pequeno-almoço e ao
j antar e sempre me pareceu agradável e simpático. Agora, visto ao
92 contrário, lembra a expressão de um demónio.
- Dá impressão de que se está a rir - observou o padre Brown
- o que talvez não constitua o aspecto menos importante do enig-
ma. Não é vulgar as pessoas estarem a rir enquanto lhes cortam
a garganta, nem mesmo nos casos em que são elas próprias a fazê­
-lo. Esse sorri so, as sociado aos olhos salientes, basta para explicar
o efeito da expressão. Mas, de facto, é bem verdade que as coisas
parecem diferentes quando as vemos de pernas para o ar. Mui tas
vezes os pintores invertem a posi ção dos seus desenhos a fim de ve­
rificar a sua perfeição. Se, por acaso, for difícil inverter os objectos,
como por exemplo no caso de Matterhorn, fazem o pino ou, pelo me­
nos, observam a obra espreitando por entre as pernas.
O padre, que di zia i sto com ar irreverente, para tentar descon­
trair o outro, concluiu, falando agora num tom m ais sério:
- Percebo perfeitamente como se deve sentir alterado com tu­
do i sto. Infeli zmente houve outras coisas que também ficaram al ­
teradas.
- Que quer dizer?
- E que assim a nossa teoria deixa de fazer sentido - replicou
o outro. E começou a descer o declive em direcção à pequena faixa
de areia junto à água.
- Talvez se suicidasse - sugeriu Smith. - Afinal de contas
era essa a melhor forma que ele tinha de escapar e coinci de perfei ­
tamente com a nossa teoria. Procurou um l ugar sossegado e esco­
lheu este para se suici dar.
- El e não veio para aqui - observou o padre Brown. - Pel o
menos enquanto estava vivo, e mui to menos por terra. Não foi mor­
to aqui, pois não há vestígios de sangue em quanti dades que o jus­
tifique. O Sol j á secou o cabelo e as roupas, mas ainda se vêem doi s
sulcos na areia com água. Neste ponto, a maré que vem do mar faz
um remoinho que arrastou o corpo para a m argem. No entanto, o
cadáver deve ter sido trazido pela corrente, provavelmente desde
a al deia até aqui, uma vez que o rio passa mesmo por detrás da fi­
la de casas e lojas. O pobre do Vaudrey morreu algures na aldei a
e não acredito que se tenha suici dado. No e ntanto, o problema que
se me põe é o de saber quem é que o poderia ter morto.
Começou a fazer desenhos toscos na areia com a ponta do guar­
da-chuva e prosseguiu :
- Vej amos a locali zação das lojas na al dei a. Em primeiro l u ­
gar temos o talho, e é claro q u e o carniceiro seria o protagoni sta
ideal, com o seu enorme facalhão, mas você viu Vaudrey sair de lá
e não estou a imaginar o carniceiro a dizer-lhe do outro lado do bal ­
cão: «Bom di a. Dá-me licença que lhe corte as goelas? Obrigado! E
que mai s deseja?» E também não me parece qu e Sir Arthur fosse
homem para se deixar ali ficar a ouvir aquilo, com um sorriso nos
lábios. Era um sujeito cheio de força e com um temperamento vio­
lento. Ora, quem mais poderia ter sido, al ém do carniceiro? A se- 9 3
guir fica uma loja, cuja dona é uma velhota, depoi s é a tabacaria,
cujo proprietário é um homem, mas bastante tími do, segundo me
di sseram. Há ainda a loja de roupas gerida por duas solteironas e,
finalmente, temos a pastelaria pertencente a um sujeito que se en­
contra hospitalizado, tendo ficado a m ulher a substituí-lo. Traba­
lham aí dois ou três garotos da al deia que costumam fazer recados,
mas que na altura se encontravam ausente s . Esta loja é a última
da rua e a seguir não há mai s nada, a não ser a estalagem, que fi­
ca depois da encruzilhada onde costuma estar o polícia.
Fez um furo no chão com a ponta do guarda-chuva para indi ­
car o polícia e depois deixou-se ficar a contemplar o rio. Dali a pou­
co fez um gesto com a mão e, num movimento apressado, aj oelhou­
-se junto ao cadáver ..
- Ah! - exclamou, endireitando-se e respirando fundo. - A
tabacaria! M as por que é que eu não me lembrei disso antes?
- Mas que é que se passa? - i ndagou Smith, um tanto exas­
perado, ao ver o padre Brown a revirar os olhos e a murmurar a
meia voz, tendo pronunciado a palavra «tabacaria>> como se fosse
um vocábulo mal dito.
- Reparou, por acaso, num aspecto curioso do rosto? - per­
guntou o sacerdote .
- Curioso? Santo Deus! - observou Evan. - Se é ao corte no
pescoço q ú e se refere . . .
- Eu falei n o rosto - insi stiu o sacerdote. - Além disso, não
viu, com certeza, que ele se feriu na mão e tem uma ligadura a pro­
tegê-la.
- Oh, mas isso não tem nada a ver com o assunto - explicou
o outro de imediato. - Foi um aci dente, cortou-se num tinteiro
que estava partido quando estávamos a trabalhar juntos.
- Mas de qualquer forma tem a ver com este assunto - insis­
tiu o padre .
Seguiu-se um prolongado silêncio, enquanto o padre Brown
caminhava, pensativo, pelo areal, arrastando o guarda-chuva e
murmurando a palavra <<tabacaria>> repeti das vezes, a ponto de o
seu amigo sentir arrepios de medo só de ouvi-lo. De repente, levan­
tou o guarda-chuva e apontou para um barracão destinado a guar­
dar barcos .
- Aquel e é o barco da casa? - in dagou. - Gostava que me
transportasse pelo rio acima. Quero dar uma vi sta de olhos às tra­
seiras das casas e não há tempo a perder. Pode ser que entretan­
to mais alguém venha a descobrir o corpo, mas temos de arriscar.
Smith apressou-se a empurrar o barco para a água, e lá segui­
ram os, doi s rumo à p9voação.
- E verdade, consegui que Abbott me contasse a tal história do
passado de Vaudrey. Trata-se de um episódi o curioso passado com
94 um oficial egípcio que o insultou, afirmando que qualquer muçul-
mano que se prezas se devia evitar os porcos e os ingleses, mas que
dos dois preferiam os primeiros. Segundo parece a questão voltou
à baila al gun s anos depois, numa ocasião em que o tal egípcio veio
a Inglaterra e Vaudrey, com o seu temperamento irascível, arras­
tou o homem para uma pocilga que havia na quinta e atirou com
ele lá para dentro, partindo-lhe um braço e uma perna e deixan­
dG-Q ali ficar até ao dia seguinte . Houve grande falatório em tor­
no desta questão, como seria de esperar, mas mui ta gente admitiu
que ele agira sob a influência de um acesso de patrioti smo descul ­
pável. De qualquer modo não me parece que isto fosse motivo pa­
ra um homem se ter submeti do a chantagem durante tantos anos.
- Então acha que essa hi stória não tem nada a ver com o que
agora se passou !? - i nquiriu Evan.
- Pelo contrário, ne ste momento estou convencido de que tem
muito a ver com aquilo que eu penso que se passou .
Naquele momento i a m a deslizar a o l ongo d o muro baixo q u e
limitava as pequenas faixas de terra cultivada, situadas nas tra­
seiras das casas . O padre Brown contou-as cui dadosamente,
apontando com o guarda-chuva e quando chegaram à terceira, vol ­
tou a pronunciar a mesma palavra:
- A tabacaria! Por acaso a tabacaria ... ? Não, acho que me vou
deixar guiar pela i ntuição até ter a certeza. Mas agora vou-lhe di ­
zer o que me pareceu esquisito em relação ao rosto de Sir Arthur.
- E que foi? - perguntou Smith, imobili zando os remos por
instantes.
- Ele tinha muito cui dado com a sua apresentação - observou
o sacerdote -, mas no entanto só tinha metade da cara barbeada
. . . Não se importa de parar aqui? Podíamos prender o barco a es­
te poste .
Dali a pouco já tinham galgado o muro e subiam pelo carreiro
íngreme da pequena horta, com os seus canteiros regulares onde
cresciam legumes e fl ores.
- Vê? O homem da tabacaria cultiva batatas - observou o pa­
dre Brown. - E tem muitas sacas delas. Esta gente da al deia não
perdeu os hábitos camponeses e continuam a ter duas ou três ocu­
pações ao mesmo tempo. E os donos das tabacarias da província
muitas vezes exercem uma outra profissão de que eu não me tinha
lembrado até ao momento em que vi o queixo de Vaudrey. A maior
parte das ve zes chamamos tabacaria a um estabelecimento que é
também barbeari a. Como se tinha ferido na mão, não podia fazer
a barba e por i sso veio aqui . Isso sugere-lhe alguma coi sa?
- Sem dúvida, mas a si deve sugerir m uito mai s - observou
Smith .
- Não lhe sugere, por exemplo, a única situação em que um su­
jeito forte e com um temperamento irrascível poderia estar a sor-
rir no momento em que lhe cortam as goelas? 95
Nesse m omento transpuseram uma p as sagem escura nas tra­
seiras da casa e entraram na sala que ficava no fundo da loja, ape­
nas iluminada pel a luz fraca que vinha do outro compartimento e
se reflectia num velho espelho partido. Contudo, havia luz sufi­
ciente para se poder ver os utensílios indispensáveis numa barbea­
ria e o rosto pálido e aterrori zado de um barbeiro.
Os olhos do padre Brown percorreram a sala, que parecia ter
si do limpa recentemente, até se imobili z arem num recanto poei­
rento atrás da porta, onde se via pendurado um chapéu branco,
bem conhecido de todos os habitantes daquela aldeola. Contudo,
apesar do aspecto respeitável que sempre apresentara na rua,
constituía agora um pormenor insignificante , daqueles que pas­
sam comple tamente despercebi dos a quem se preocupa,
sobretudo, em lavar o chão e em fazer desaparecer os tapetes man­
chados .
- Creio que Sir Arthur Vaudrey esteve aqui ontem a fazer a
barba - observou o padre Brown.
Para o barbeiro, um sujeito de óculos, baixote e careca, chama­
do Wicks, a súbita entrada daqueles dois i n divíduos pela porta das
traseiras era como que uma aparição de duas almas penadas que
se tivessem erguido de súbito das suas tumbas. No entanto, não
tardou a perceber que havia outros motivos para se preocupar,
bem mais importantes, aliás, que um simples acesso de supersti ­
ção. Encolheu-se num canto da sala mergulhada na penumbra e
tudo nele pareceu diminuir de tamanho, à excepção dos seus ócu­
l os de duende.
- Diga-me uma coi sa - pediu o sacerdote . - Tinha algum
motivo especial para o odiar?
O homem murmurou qualquer coisa lá do canto, que Smith não
conseguiu perceber, mas Brown acenou com a cabeça.
- Eu sei que tinh a - declarou. - Detestava-{) e é por i sso mes­
mo que e u sei não ter si do você o autor do assassinato. Vai então
contar-nos como as coi sas se passaram ou conto eu.
Fez-se silêncio, apenas quebrado pelo tiquetaque do relógio da
cozinha, e dali a pouco o sacerdote prosseguiu:
- O que aconteceu foi o seguinte: Mr. Dalmon entrou na sua
l oj a e pedi u uns cigarros que estavam na vitrina. Você saiu para a
rua por breves instantes para se certificar do artigo que o cliente
pretendia, como tantas vezes acontece com os lojistas . Nesse mo­
mento ele apercebeu-se da navalha que você pousara na sala das
traseiras e viu a cabeça branca de Sir Arthur apoiada no encosto
da cadeira de barbeiro. Bastou-lhe apenas um breve lapso de tem ­
po para pegar na navalha, degolá-lo e voltar rapidamente para
j unto do balcão. A vítima nem sequer se deve ter alarmado ao ver
a mão a segurar na navalha. Morreu a sorrir dos seus próprios pen-
96 samentos . E que pensamentos! Quanto a Dalmon, creio que tam-
bém não entrou em pârrico. Fez aquilo com tanta rapi dez e sereni­
dade que Mr. Smith, aqui presente, juraria em tribunal que não se
tinham separado um só momento. No entanto, houve alguém que
ficou bastante alarmado e tinha razão para tal ; foi você. Tinha es­
tado precisamente a di scutir com Sir Arthur, o seu senhorio, por
causa de uns atrasos no pagamento da renda e quando voltou pa­
ra dentro deparou-se-lhe o seu irrimigo assassinado com a sua pró­
pria navalha. Não é de admirar que se mostrasse preo'cupado em
tentar ilibar-se e preferisse fazer desaparecer os vestígios do cri ­
me. Assim, apressou-se a lavar o chão e atirou o corpo ao rio du­
rante a noite, depoi s de o ter meti do num saco de batatas mal
atado. A sua sorte foi haver um horário de encerramento da sua
barbearia, poi s assim teve tempo suficiente para limpar tudo.
Lembrou-se de todos os pormenores, excepto do chapéu . . . Mas não
se preocupe, pois eu esquecerei tudo, incluindo o próprio chapéu .
E, dizendo isto, atravessou calmamente a loja e saiu para a rua,
segui do pelo estupefacto Smith e deixando o barbeiro atordoado de
espanto.
- Como vê - declarou o padre Brown, dirigind�se ao compa­
nheiro -, tratou-se de um daqueles casos em que o móbil é dema­
siado inconsi stente para condenar uma pessoa, sendo, por outro
lado, suficientemente forte para a ilibar. Um sujeito nervoso como
este, seria a última pessoa capaz de matar um homem vigoroso co­
mo Vaudrey, por causa de uma questão rel ati va a dinheiro. Mas se­
ria a primeira a temer que o acusassem de o ter fei to . . . Havia de
facto, uma diferença enorme no móbil de quem matou Sir Arthur.
- Em seguida voltou a mergulhar em profunda reflexão, de olhos
fitos no vazio.
- Mas isso é horrível - murmurou Evan Smith . - Há uma ho­
ra atrás não hesitei em acusar Dalmon de fazer chantagem e, con­
tudo, não consigo deixar de ficar abalado ao saber que foi ele o au­
tor do crime.
O padre parecia continuar imerso numa espécie de transe. Por
fim, os seus lábios moveram-se e, como se fosse mais uma prece
que uma imprecação, proferiu:
- Que vingança horrível , meu Deus!
O amigo fez-lhe uma pergunta, mas ele prosseguiu, como se es­
tivesse a falar sozinho:
- Que ódios terríveis! Que vingança de um verm e mortal pa­
ra com outro! Será que conseguiremos algum dia penetrar no errig­
mático coração humano onde se alberga!fl imaginações tão abomi­
náveis? Que Deus nos livre do orgulho. E-me impossível conceber
uma imagem de ódio e de vingança como esta.
- De facto, não consigo imaginar por que terá ele morto Vau­
drey. Se Dalmon era um chantagista pareceria mais natural que
fosse Vaudrey a matá-lo . Como di z, reverendo, a degolação foi hor-
rível, mas . . . 97
O padre Brown estremeceu e piscou os olhos como se tivesse
acabado de despertar.
- Ah, isso! Não estou a pensar na degolação. Não me estava a
referir ao homicídio na barbearia quando . . . quando falei de vin ­
gança horrível . Estava a pensar numa história ainda pior, embo­
ra este acto tivesse si do repugnante. Todavia era m uito mai s com­
preensível ; qualquer pessoa o podia ter feito. De facto, tratou-se de
um caso que pode ser considerado de legítima defesa.
- O quê ? - exclamou smith, incrédulo. - Um homem aproxi­
ma-se sorrateiramente de outro e corta-lhe o pescoço, enquanto
ele está calmamente sentado numa cadeira de barbeiro e chama a
isto legítima defesa?
- Eu não disse que se tratava de um acto justificável de legí­
tima defesa - replicou o outro. - O que eu quero di zer é que mui­
ta gente o teria feito para se defender de uma calamidade terrível . . .
que era i gualmente u m crime terrível . Era preci samente a esse ou­
tro crime que eu me estava a referir. Para começar responderei à
questão que ainda há pouco me apresentou: por que haveria o
chantagista de ser o assassino. Ora bem, existem mui tas confusões
e erros convencionai s a esse respeito - fez uma pausa, como se es­
tivesse a ordenar as i deias após recente transe de horror e prosse­
guiu no tom de voz habitual : - Temos doi s homens, um mai s ve­
lho que o outro, que discutem um projecto matrimonial , acabando
por chegar a um acordo. No entanto, a origem da sua i ntimidade
é antiga e dissimulada. Um é rico e o outro pobre e logo você é le­
vado a pensar em chantagem. Até aí tudo bem , pelo menos nesse
sentido. Onde você se engana é ao tentar imaginar o papel de ca­
da um deles. Partiu do princípio que o homem pobre exercia chan­
tagem sobre o rico. De facto, passava-se o contrário: o homem ri­
co é que exercia chantagem sobre o pobre.
- Mas essa história parece um disparate - objectou o secre­
tário.
-É bem pior que isso, embora não seja assim tão invulgar ­
replicou o sacerdote. - Grande parte da política actual consiste
numa chantagem exercida pelos ricos sobre as outras pessoas. A
i deia que você faz de disparate assenta em duas ilusões, ambas di s­
paratadas . Uma é a de imaginar que os homens ricos não preten­
dem ser ain da mais ricos e a outra é a de ach�.r que uma pessoa só
pode ser vítima de chantagem por dinheiro. E a segunda que está
aqui em causa. Sir Arthur Vaudrey não agia por avareza, mas p or
vingança. E planeou a vingança mais hedionda que se pode ima­
ginar.
- Mas por que razão é que ele planeava vingar-se de Jonh Dal ­
mon? - inquiriu Smith.
- Não era de Dalmon que ele pretendia vingar-se - corrigiu
-
98 o sacerdote, com um ar grave.
Fez-se silêncio, e quando Brown retomou a palavra parecia ter
enveredado por um assunto completamente diferente .
- Quando encontrámos o corpo lembra-se, com certeza, de ter
dito que o rosto dele, vi sto de cima para baixo, parecia a cara de um
patife. Já lhe ocorreu que o assassino também viu aquele rosto na­
quela posição quando entrou na barbearia?
- Mas tudo isso é uma fantasia perfeitamente mórbida - re ­
plicou Smith. - Eu estava habituad o a ver aquela cara n a posição
normal.
- Provavelmente nunca o viu na posição normal - aventou o
padre Brown. - Já tive ocasião de lhe dizer que os pintores costu­
mam voltar as suas obras ao contrário para verificarem se estão na
posição correcta. Talvez você se tivesse habituado àquele rosto de
patife ao longo das refeições que tomavam juntos .
- Mas onde raio é que pretende chegar? - indagou Smith, im­
paciente.
:- Estou a falar por metáforas - explicou o padre, taciturno.
- E claro que Sir Arthur não era um patife, mas um homem que
possuía um carácter, formado com base num determinado tempe­
ramento, que poderia ter si do orientado para o bem . Mas aqueles
olhos esbugalhados e cheios de desconfi ança, aquela boca de lábios
apertados tê-lo-iam esclareci do se você não estivesse tão habitua­
do a eles. Como sabe, há corpos físicos em que as feri das não saram .
Sir Arthur possuía uma mente desse género. Agia como se lhe fal ­
tasse a protecção da pele; possuía u m sentido d e vigilância febril ,
fruto d a vaidade, e o s seus olhos estavam permanentemente
abertos numa insónia de egoísmo. A sensibili dade não tem de ser
forçosamente de natureza egoísta. Sybil Rye, por exemplo, tem a
mesma pele sensível e, no entanto, consegue ser uma espéci e de
santa. Vaudrey, pelo contrário, convertera tudo i s so em orgulho
venenoso; um orgulho que nem sequer era seguro nem compensa­
dor. Qualquer arranhão na superfície do seu ego infectava. E é a{
precisamente que resi de a explicação dessa velha história, quan­
do ele atirou o homem para a pocilga. Se o tivesse feito imediata­
mente após ter si do insultado, era desculpável, podendo tal ati tu­
de atribuir-se a um acesso de mau génio. Mas como na altura não
di spunha de uma pocilga, conservou na memória durante anos
aquele insul to, até conseguir apanhar o outro sujeito oriental nas
imediações de uma pocilga e então exerceu aquilo que considera­
va uma vingança artística adequada . . . Santo Deus! E se ele gosta­
va de vinganças adequadas e artísticas!
Smith olhou para o padre Brown com uma expressão curiosa.
- Não me diga que está a pensar nessa história da pocilga ­
observou.
- Não. Estava a pensar numa outra - dominou o tremor na
voz e continuou: - Ao pensarmos neste caso, em que ele teve a pa- 9 9
ciência de engendrar um plano fantástico para que a vingança se
adequasse ao crime, devemos consi derar uma outra questão. Ha­
veria mai s alguém que tivesse i nsul tado Vaudrey ou agido de for­
ma que ele pudesse tomar como um i n sulto mortal? Sim. Uma
mulher.
Evan fez um ar horrori zado, enquanto o ouvia atentamente.
- Uma rapariga, pouco mai s que uma criança, recusou-se a
casar com ele por outrora ele ter agi do como um criminoso. De fac­
to, chegara até a estar preso durante um certo espaço de tempo por
ultrage ao egípcio. E foi então que aquele l ouco deci diu, no fundo
do seu demoníaco íntimo: <<Ela há-de casar-se com um criminoso.»
Seguiram o caminho que conduzia à mansão e durante algum
tempo permaneceram em silêncio, antes que o sacerdote retomas­
se a explicação.
- V audrey estava e m posição d e exercer chantagem sobre Dal ­
mon, que cometera um homicídio há uns anos atrás. Provavelmen­
te estava a par de diversos delitos praticados pelos seus rebeldes
companheiros de juventude . Talvez se tratasse até de um crime
com algumas atenuantes. Dalmon parece ser um homem que co­
nhece o remorso, mesmo em relação ao homicídio de Vaudrey. No
entanto encontrava-se nas mãos dele e, no meio, achava-se a ra­
pariga que, desse modo, foi apanhada numa armadilha, ficando as­
sim envolvida num compromisso estabeleci do entre eles. O preten­
dente tentaria a sua sorte ; quanto ao outro, Sir Arthur, cabia-lhe
encorajar a ligação. Mas o próprio Dal mon não sabia, nem nin­
guém a não ser o próprio, o que estava, de facto, na mente do velho.
»Alguns dias depoi s, Dalmon fez uma descoberta assustadora.
Afi nal obedecera contra vontade, não passando de um simples ins­
trumento que depoi s de usado seri a deitado fora. Encontrou uns
apontamentos de Vaudrey na bibli oteca que, embora disfarçados,
referiam os preparativos para o denunciar à polícia. Compreendeu
a trama e ficou tão abismado como eu próprio quando me aperce­
bi da história. Logo após o casamento, o noivo seria preso e enfor­
cado. A exigente dama, que rej eitara um homem por este ter esta­
do preso, passari a a ter um mari do morto no pabbulo. Era isto que
Sir Arthur Vaudrey consi derava um desfecho artístico para a his­
tória.
Evan Smith, pálido de morte, permaneceu silencioso e um pou­
co mais l onge viram surgir a figura imponente do Dr. Abbott, com
o seu chapéu de aba larga, cami nhando ao encontro deles. Apesar
da di stância notava-se nele uma certa agitação. No entanto, ain­
da estavam ambos muito perturbados com o seu apocalipse parti ­
cular.
- Como di z o reverendo, odiar é um sentimento odioso - ob­
servou Evan por fim. - Mas há uma coisa que me traz um certo alí­
vio. Toda a aversão que sentia por Dalmon se desvaneceu. Agora
100 já percebo por que razão o consi derou um duplo assassino.
Foi em profundo silêncio que percorreram o resto do caminho
até se encontrarem com o médico, que agi tava as m ãos enluvadas
num gesto de desespero, enquanto a longa barba era fustigada pe­
lo vento .
- Tenho notícias horríveis - declarou. - Foi encontrado o
corpo de Arthur. Parece ter morrido aqui mesmo, no seu jardim .
- Santo Deus! - exclamou o padre Brown quase mecanica­
mente . - Que horror!
- Mas há mai s - gritou o médico, quase sem fõlego. - Jonh
Dalmon saiu para ir ter com Vemon Vaudrey, o sobrinho de Ar­
thur, mas este diz não saber nada dele. Tudo l eva a crer que desa­
pareceu sem deixar rasto.
- Mas que estranho - observou o padre Brown.

101
CAPÍTULO VI

O PIOR CRIME DO MUNDO

O padre Brown vagueava por uma galeria de pintura com uma


expressão que sugeria não ter i do ali para admirar as telas expos­
tas . Com efeito, não era i sso que el e pretendia, embora gostasse
bastante de pintura. Não é que houve sse algo de imoral ou de im­
próprio nas obras pictóricas altamente modernas que ali figura­
vam . Poderia dar-se o caso de possuir um temperamento excitá­
vel que o levasse a sentir-se incomodado perante um conjunto de
espirais interrompi das, cones inverti dos e cilindros cortados com
que a arte do futuro i nspirava ou ameaçava a humani dade . Mas a
verdade é que o padre Brown andava à procura de uma jovem sua
amiga que marcara aquele local de encontro, algo incongruente,
por ter uma i nclinação pelo futurismo. A jovem amiga era também
um dos poucos parentes que Brown tinha. O seu nome era Eliza­
beth Fane, Betty para os amigos, filha de uma irmã do sacerdote,
que casara com um membro de uma faml1ia di stinta, mas de fra­
cos recursos. Como esse senhor di stinto e pobre morrera, o padre
Brown exercia agora o cargo de tutor da rapariga, acumulando as­
sim as funções de padre, tio e protector. Naquele momento, circu­
lava por entre as pessoas, de olhos franzi dos, sem conseguir des­
cortinar os cabelos castanhos e o rosto simpático da sobrinha. En­
tretanto, ia vendo algumas pessoas suas conheci das e outras que
nunca vira, i ncluindo aquelas que, por uma questão de gosto pes­
soal , não tinha grande vontade de conhecer.
Entre os que o padre desconhecia e que, no entanto, lhe desper­
tavam o i nteresse, contava-se um rapaz ágil e vivo, vestido com
elegância e com aspecto de estrangeiro, talvez devi do à barbicha
pontiaguda como a dos antigos espanhóis e ao cabelo escuro corta­
do tão rente que m ais pareci a um barrete preto colado à cabeça.
Das pessoas em que o padre não estava particularmente interes­
sado em conhecer havia uma senhora, de aspecto imponente, ves­
ti da de escarlate e com uma abundante cabeleira l oira comprida e
1 02 solta. Ti nha um rosto largo de um tom pál i do e doentio, e quando
olhava para alguém exercia o fascínio de um basiliscd. Trazia a re­
boque um sujei to baixo, de rosto largo, barba espessa e olhos semi ­
cerrados. A sua expressão era viva e benevolente, embora pareces­
se apenas parcialmente acordado. No entanto, o seu pescoço tau­
rino, vi sto de trás, apresentava um aspecto de certo modo brutal.
O padre Brown fi tou a senhora e sentiu que a chegada da sobri­
nha constituiria um agradável contraste. Não obstante, continuou
a olhá-la até chegar ao ponto de experimentar a sensação de q_ue
a chegada, fosse de quem fosse, seria um agradável contraste. Foi
então que, com um certo alívio e algum sobressalto, como se al­
guém o tivesse vindo despertar, se voltou ao ouvir pronunciar o seu
nome, deparando-se com um rosto seu conhecido.
Tratava-se de um advogado de nome Granby, que o olhava com
uma expressão perspicaz e simpática e cujo cabelo apresentava zo­
nas grisalhas, que podiam ser manchas de uma peruca empoada,
de tal modo se revelavam desajustadas em relação à energia juve­
nil que se desprendi a do i ndíviduo. Era um daqueles funcionários
da City que passam a vi da a entrar e a sair dos seus gabi netes co­
mo garotos da escola. Mas agora, na galeria de arte, não podia com ­
portar--se dessa maneira, embora parecesse estar cheio de vonta­
de de o fazer, tal era a forma agitada como voltava a cabeça de um
lado para o outro, à procura de caras conhecidas.
- Não sabia que você era apreciador da Nova Arte - observou
o padre Brown a sorrir.
- O mesmo direi em relação ao reverendo - retorquiu o outro.
- Vim apenas para me encontrar com uma pessoa.
- Desejo-lhe boa sorte - respondeu o padre . - Pois também
estou aqui pela mesma razão.
- Disse-me que viria de passagem ao Continente - resmun­
gou o solicitador -, e que o poderia encontrar neste excêntrico lu­
gar. - Calou-se por momentos, e de repente prosseguiu: - Como
sei que é capaz de guardar um segredo, vou contar-lhe uma coisa.
Conhece Sir John Musgrave?
- Não - respondeu o sacerdote -, mas não me passaria pe­
la cabeça que ele pudesse ser considerado um segredo, embora di­
gam que vive escondi do num castelo. Não é sobre ele que contam
aquelas histórias todas? Di zem que habita numa torre, com grade�
de ferro e ponte l evadiça, recusando-se a sair da Idade Média. E
seu cliente?
- Não - replicou Granby. - O filho dele, o capitão Musgra­
ve, é que veio ter connosco. Mas o velho representa um papel im­
portante no caso e eu não o conheço. O problema é esse. Como já di s-

1 Lagarto fabuloso a que se atribuía o poder de matar com o olhar.


(N.da T.) 1 03
se, trata-se de um assunto confidencial ; no entanto, sei que posso
confiar em si .
E, di zendo i sso, conduziu o amigo para uma zona mai s i solada
da galeria, onde se viam representações de diversos objectos reais
e que se encontrava relativamente despovoada.
- E sse tal jovem Musgrave - conti nuou -, quer obter de nós
um empréstimo de um a quantia elevada sobre um post obit do pai
em Northumberland. O velhote já ultrapassou há muito os 70 anos
e provavelmente irá morrer em breve, i sto quanto ao obit. Mas em
relação ao post, como será? Que irá aconteçer ao seu dinheiro, aos
castelos, às pontes levadiças e a tudo i sso? E, sem dúvi da, uma pro­
priedade muito antiga e valiosa, mas, por estranho que pareça, não
figura no testamento. Compreende, poi s, a nossa situação. Agora
a questão é saber, como dizia Dickens: será que o velhote é uma
pessoa afável?
- Se o for em relação ao filho, também será em relação a vocês
- observou o padre Brown . - De facto, l amento não poder ajudar.
Não conheço Sir John Musgrave e, segundo creio, haverá hoje em
dia pouca gente que o conheça. No entanto, parece-me que vocês
têm todo o direito de obter um esclarecimento sobre e sse assunto
antes de concederem o empréstimo a esse cavalheiro. Ele é do gé­
nero que a fami1ia costuma ,deserdar?
- Não tenho a certe za. E um sujeito muito popular, brilhante
e uma figura conheci da na sociedade, mas passa muito tempo no
estrangeiro, e tem trabalhado como jornali sta.
- Bom , mas i sso não é um crime. Pelo menos, nem sempre é ­
observou o padre Brown.
- Que disparate! Sabe muito bem o que eu quero di zer . . . tra­
ta-se de um tipo com uma vida um bocado incerta. Já foi jornalis­
ta, leitor, actor e outras coi sas mais. Preciso de saber bem com o
que podemos contar ... Olhe aí está ele .
E o advogado, q u e até ali se movera d e um lado para o outro na
zona menos concorrida da galeria, voltou-se de repente e preci pi­
tou-se para a outra sala, em direcção ao jovem alto e bem vesti do,
de cabelo curto, barbicha e com aspecto de estrangeiro.
Afastaram-se os dois enquanto conversavam e o padre Brown
seguiu-os durante um bocado com os olhos míopes . No entanto, foi
obrigado a desviar o olhar e a voltar a cabeça, devido à chegada ofe­
gante e impetuosa da sua sobrinha Betty, que para surpresa dele
o arrastou para a parte mais calma da galeria, obrigando-o a sen­
tar-se num banco que lhe pareceu uma ilha naquele m ar de chãq.
- Tenho uma coi sa para lhe di zer - declarou a rapariga. - E
uma coisa tão disparatada que mais ni nguém irá compreender.
- Estou a ficar assustado. Tem a ver com aquilo de que a tua
mãe me falou vagamente? Compromis sos de casamento e essas
I 04 coi sas?
- El a quer que eu fi que oficialmente noiva do capitão Mus­
grave.
- Não sabi a - disse o sacerdote, fazendo um ar resignado ­
mas pelo que vej o, o capitão Musgrave parece estar muito na m o­
da.
-É claro que nós não temos dinheiro e seria falso dizer que is­
so não faz diferença.
- Tu queres casar com ele? - indagou o padre, fi tando--a atra­
vés dos olhos semicerrados.
Betty baixou a cabeça e foi em voz muito baixa que lhe respon­
deu :
- Estava convenci da d e que queria. Pelo menos e r a e s s a a mi-
nha ideia, m as acabo de sofrer um choque.
- Então conta-me l á o que se pas sa.
- Quvi-o rir - respondeu ela.
- E um excelente dote social - observou o tio.
-O tio não está a perceber - replicou a jovem. - Não era uma
manifestação social, o problema é esse.
Calou-se por m omentos e depois prosseguiu :
- Cheguei aqui bastante cedo e vi--o sentado n o m e i o d a gale­
ria, que na altura estava praticamente vazia. Ele não fazia ideia
que estives se alguém por perto, muito menos eu. Vi-o ali sentado
sozinho a rir-se às gargalhadas .
- Bom, não admira - observou o sacerdote. - Não sou pro­
priamente um crítico de arte, mas o aspecto geral destes quadros,
se os tomarmos como um todo . . .
- Oh, não está a compreender - tornou ela, quase zangada.
- Não foi nada disso. Ele não estava a olhar para as pinturas. Ti -
nha o s olhos postos n o tecto, mas parecia que estava a olhar para
dentro e riu-se de uma maneira tão estranha, que o s anb'll e gelou­
-se-me nas veias .
O padre entretanto levantara-se e caminhava pela sal a com as
mãos atrás das costas.
- Não te deves precipitar - começou ele . - Há doi s tipos de
homens ... mas agora não é altura para falarmos porque ele vem ali .
O capitão Musgrave aproximava-se com uma expressão sorri ­
dente . Granby, o advogado, caminhava atrás dele, apresentando
agora um ar aliviado e sati sfeito.
- Tenho de retirar tudo o que disse acerca do capitão - decl a-
rou ele ,ao padre Brown, qu ándo ambos se encaminhavam para a
saída. E um sujeito bastante sensível e percebeu perfeitamente o
problema. Foi ele próprio a sugerir que me deslocasse ao Norte a
fim de falar com o pai . Assim, poderei ouvir da boca do próprio o que
pensa acerca da herança. Parece-me que ele não poderia ter feito
mai s que i sto, não acha? E está tão desejoso de ver o assunto resol­
vido, que se ofereceu para me levar no seu carro até Musgrave 1 05
Moss. É esse o nome da propriedade . Combinámos então ir juntos
e ficou decidido que partiríamos amanhã de manhã.
Enquanto conversavam, Betty e o capitão transpunham a por­
ta da sala principal da galeria, ficando assim emoldurados como
um quadro, que algumas pessoas mais sentimentais talvez prefe­
rissem às imagens representando cones e cilindros. Além de ou­
tras afini dades que porventura houvesse entre eles, eram ambos
muito atraentes e o advogado preparava-se para fazer um comen­
tário a esse respeito, quando bruscamente o conjunto se desfez.
O capitão Musgrave olhara para a sala, deparando aí com algo
que lhe alterou por completo a expressão risonha e triunfante que
antes exibia. O padre Brown, por seu turno, olhou em volta, como
l evado por um impulso premonitório, reparando imediatamente
no rosto quase lívido da mulher vesti da de escarlate, sob a impo­
nente j uba loira. Mantinha sempre a cabeça um pouco i ncli nada
para a frente, como um toiro antes de i nvestir e a expressão da sua
face macilenta era tão opressiva e hipnótica que o homenzinho de
barba hirsuta que a acompanhava quase passava despercebi do.
Musgrave avançou até ao meio da sala em direcção a ela, como
um boneco primorosamente vestido a quem tivessem dado corda.
Disse-lhe algumas palavras que mai s ninguém ouviu. Ela não res­
pondeu, mas afastaram-se juntos ao longo da galeria como se tra­
vassem uma discussão, enquanto o sujeitinho de pescoço muscu­
lado e barba espessa fechava o cortejo, qual grotesco pagem do rei ­
no dos duendes.
- Meu Deus! - resmungou o padre Brown, franzindo o sobro-
lho. - Mas quem será esta m ulher? .
- Das minhas relações é que ela não é, feli zmente - apressou-
-se a decl arar o advogado num tom irreverente . - Tenho a impres-
são de que um namorico com ela poderia levar a um final trágico.
- Mas não me parece que aquele esteja a namoriscá-la - ata­
lhou o padre.
Enquanto dizia isto, o grupo em questão, chegando ao fundo da
sala, desfez-se e o capitão apressou-se a vir ter com eles.
- Peço imensa desculpa - disse, procurando fal ar com natu­
ralidade, embora fosse visível a mu dança de cor do seu rosto. - La­
mento mujto, Mr. Granby, mas afinal é-me impossível ir consigo
amanhã. E claro que pode servir-se à mesma do meu automóveL
Esteja à vontade, poi s não irei precisar dele. Tenho de ficar em
Londres durante uns dias. Se quiser, l eve um amigo para lhe faz er
companhia.
- Aqui o meu amigo, o padre Brown ... - ia a dizer o advogado.
- Já que o capitão é tão amável - atalhou o padre Brown num
tom grave -, posso di zer-lhe que estou de certo m odo interessa­
do nas investigações de Mr. Granby e convinha-me, por esse mo-
1 06 tivo, acompanhá-lo na viagem.
E foi assim que um elegante automóvel, conduzi do por um não
menos elegante motorista, rumou no dia segui nte em direcção ao
norte, através da região pantanosa do Yorkshire, transportando os
dois estranhos passageiros - um padre, que mai s parecia uma
trouxa de roupa preta e um advogado que estava mai s habituado
a andar sobre os seus próprios pés que sobre quatro rodas, que ain­
da por cima não lhe pertenciam .
Fi zeram uma agradável pausa na viagem num dos grandes va­
les de West Ri ding. Depois de terem jantado e dormido numa con­
fortável estalagem da zona partiram no outro dia de manhã cedo,
tomando a estrada que seguia ao longo da costa, até chegarem a
uma região à beira-mar, de dunas e de prados, no coração da qual
ficava o velho castelo de fronteira que se conservava como monu­
mento único no género, embora pouco conheci do, a lembrar as ve­
lhas guerras de fronteira. Fi nalmente conseguiram descobri-lo
depois de terem percorrido um cami nho junto a um braço de mar,
que entrava pela costa e se transformava numa espécie de canal ,
indo dar a o fosso do castelo. Tratava-se realmente de u m castelo
a sério, construído segundo o pl ano adoptado pelos Normandos,
que os haviam deixado por toda a parte, desde a Galileia aos mon­
tes Grampi anos. Possuía, com efei to, uma grade na porta e uma
ponte levadiça, facto que de modo nenhum passou despercebido
aos vi sitantes, devi do a um incidente que lhes atrasou a entrada
no recinto.
Avançaram com dificul dade por entre a erva alta e as silvas até
à borda do fosso, que se estendia como uma faixa negra, coberto de
folhas mortas e espuma, como se fosse uma superfície de ébano
com embutidos dourados. Cerca de um ou doi s metros para al ém
dessa faixa negra, erguia-se a outra margem verdejante e as enor­
mes colunas de pedra da entrada do castel o. No entanto, devia ser
tão raro haver contactos entre aquel a praça forte e o exterior, que
quando o impaciente Granby gritou para os vul tos imprecisos que
se viam por detrás das grades, a anunciar a chegada dos visitan­
tes, foi com grande dificuldade que conseguiram accionar o enfer­
rujado mecanismo da ponte . Finalmente começou a funcionar, des­
cendo sobre eles como um a torre gigantesca a desabar, mas entre­
tanto imobilizou-se a meio do percurso, num ângulo ameaçador.
Granby, ansi oso, agitava-se na margem do fosso e acabou por di­
zer ao companheiro:
- Detesto estes impasses! Se calhar dá menos trabalho saltar.
E, com a impetuosi dade que lhe era característica, saltou mes­
mo, indo aterrar com segurança do outro lado. As pernas curtas do
sacerdote não estavam habituadas a saltar, no entanto o seu tem­
peramento adaptava-se melhor que o da maioria das pessoas a
cair na água lamacenta, embora a prontidão com que o companhei-
ro lhe acu diu evi tasse consequências mai s desastrosas. Quan do 1 0 7
estava a ser içado para terra firme, deteve-se a observar atenta­
- mente, com a cabeça inclinada, um ponto determinado do declive
coberto de relva.
- Está i ntere ssado em botânica? - indagou Granby, irritado.
- Olhe que não h á tempo para essas fantasias. Primeiro tentou ir
explorar as maravilhas das profundezas marinhas e agora prepa­
ra-se para coleccionar plantas raras. Ande lá, cobertos de lam a ou
não temos de nos apresentar ao baronete.
Quando entraram no castelo foram recebidos cerimoniosamen­
te por um velho criado, o único que conseguiram vislumbrar e, de­
pois de terem anunciado ao que vinham, foram conduzi dos a uma
sala revestida de pai néis de carvalho e com janel as gradeadas de
um estilo muito antigo. Das paredes escuras pendiam diversas ar­
mas de diferentes épocas, e ao l a do da ampla lareira via-se uma
armadura completa do século XIV em posição de senti nela. Numa
outra sala de grandes dimensões podiam ver-se através da porta
entreaberta as cores sombri as das filas de retratos de família.
- Si nto--me como se tivesse entrado num romance e não numa
casa - observou o advogado. - Não fazia ideia de que alguém pu­
desse ter conservado desta m aneira os Mistérios de Udolfo.
- Realmente este velho fi dalgo alimenta a sua paixão pelo pas­
sado histórico de uma forma consi stente - observou o padre
Brown. - E tudo i sto é verdadeiro, não há aqui imitações . Vê-se
que isto não foi arranjado por uma pessoa para quem os povos me­
dievai s viveram todos ao mesmo tempo. Há quem reconstitua ar­
maduras com bocados de diferentes épocas. Esta, no entanto, pro­
tegia o corpo de um homem e fazia-o com bastante eficiência. Vê,
trata-se do género mais recente de armadura articulada.
- E stou a ver que ele é daqueles anfitriões que demoram a apa­
recer, se é que chega a fazê-lo - resmungou Granby. - Está a fa­
zer-nos esperar muito tempo.
- Num sítio destes é natural que tudo decorra com mais len­
tidão - lembrou o sacerdote . - Acho que já é muito amável da par­
te dele aceitar receber dois estranhos que aparecem assim, de re­
pente, para lhe porem questões de carácter pessoal .
E, é claro, quando o dono da casa apareceu não tiveram qual ­
quer razão de queixa e m relação à forma como aquele o s recebeu.
Pelo contrário, aperceberam-se de algo genuíno nas tradi ções de
educação e comportamento, que o haviam levado a conservar a sua
digni dade, apesar da soli dão em que vivia e após longos anos pas­
sados num ambiente rústico e tri ste. O baronete não pareceu sur­
preendido nem incomodado com os vi sitantes, e embora suspeitas­
sem de que há muito tempo não éntrava um estranho no castelo,
comportou-se com o se tivesse acabado de estar com duques e du­
quesas . Não mostrou retraimento nem impaciência quan do eles
1 08 afloraram o assunto que ali os levara e, após uma breve reflexão
sobre o caso, acabou por compreender a curiosi dade dos vi sitantes,
o que aliás consi derou justificável, atendendo às circunstâncias .
Era um sujei to de i dade, magro, com ar de homem astuto, de so­
brancelhas negras e queixo comprido e embora o cabelo cuidado­
samente encaracolado não fosse natural, tivera o cui dado e a sen­
satez de escolher uma peruca grisalha, própria para a sua idade.
- No que di z respeito à questão que tem directamente a ver
consigo, a resposta é muito simples. De facto, posso garantir-lhe
que faço tenção de legar tudo o que me pertence ao meu filho, tal
como o meu pai fez comigo. E não haverá nada, mas absolutamen­
te nada, repito, que me leve a mudar de i deias.
- Sinto-me muito grato pela informação - observou o advo­
gado. - Mas a sua amabilidade encoraja-me a fazer referência ao
modo veemente como apresenta a sua deci são. Não me atrevo se­
quer a sugerir que o seu filho viesse a praticar qualquer acto que
pusesse em causa a sua habilitação à herança. No entanto ele
podia . . .
- Claro q u e podia, i sso é óbvio - declarou Sir John Musgra­
ve num tom seco. - Queiram ter a amabili dade de me acompa­
nhar.
Conduziu--os à galeria, que já tinham vi sto de relance, e dete­
ve-se diante de uma das séri es de retratos .
- Este é S i r Roger Musgrave - declarou, indicando a figura
de um individuo de rosto comprido e negra cabeleira postiça. - Foi
um dos homens mai s i nfames e mentirosos da terrível época de
Guilherme de Orange, capaz de trair dois reis e de assassinar duas
esposas. Aquele é o pai de Sir Robert, um cavaleiro digno e hones­
to. Esse é o filho, Sir Jones, um dos mais nobres mártires jacobi­
tas e um dos primeiros indivíduos que se preocupou em indemni ­
zar a Igreja e os pobres . Será assim tão importante o facto de a Ca­
sa Musgrave, com o seu poder, a sua honra e a sua autoridade, ter
passado de um homem digno para outro homem digno, havendo no
meio um patife? E duardo I governou bem a Inglaterra, E duardo III
cobriu-a de glória e entre eles encontramos o infame e imbecil
Eduardo II, que adulava Gaveston e fugiu de B ruce. Acredite, Mr.
Granby, que a grande za de uma casa ii ustre, assim como a sua his­
tória, não se limita a esses indivíduos aci dentai s que a fazem con­
tinuar, embora não a honrem . A nossa herança tem si do transmi­
tida de pais para filhos e assim continuará. Podem ficar certos e as­
segurar a meu filho que não deixarei o meu dinheiro a um lar de
gatos abandonados. Os Musgrave continuarão a ser fiéis aos seus
até ao fim dos tempos .
- Sim - murmurou o padre Brown . - Compreendo a sua po­
sição.
- E pode crer que ficamos muito sati sfei tos por podermos
transmitir essa boa nova ao seu filho - declarou o advogado. 1 09
- Podem transmitir-lhe essa certe z a - tornou o fi dalgo fazen­
do um ar circunspecto. - Receberá , sem dúvi da, o castelo, o títu­
lo, as terras e o dinheiro. Há apenas um pequeno pormenor de ca­
rácter pessoal a acrescentar a esta decisão. Seja em que circuns­
tâncias for, não voltarei a falar-lhe enquanto viver.
O advogado manteve a sua atitude respeitosa, embora agora
arregalasse os olhos de espanto.
- Mas . . . mas que é que ele . . .
- Sou um cavalheiro e o depositário de u m a grande herança -
declarou Musgrave . - Meu filho cometeu um acto tão infame que
deixou de ser ... não direi apenas um cavalheiro, mas um ser huma­
no. Cometeu o pior crime do mundo. Lembra-se do que Douglas
disse quando Marmion, o seu hóspede, lhe quis apertar a mão?
- Sim - respondeu o padre Brown .
- «Os meus castelos pertencem apenas ao meu rei, desde a ter-
ra às fun dações . A mão de Douglas é propriedade sua» - di zendo
i sto, Musgrave encaminhou-se para a outra sala, acompanhado
pelos doi s visitantes, que se mostravam um pouco confusos.
- Espero que tomem alguma coisa - ofereceu ele, sem alterar
o tom de voz. - Se não quiserem seguir viagem hoje, terei muito
gosto em oferecer-lhes hospe dagem no castelo.
- Ficamos-lhe imensamente gratos, Sir John, mas acho pre­
ferível partirmos já hoje - retorquiu o padre .
- Vou então providenciar para que baixem a ponte - anun­
ciou o fi dalgo e, dali a pouco, ouviu-se por todo o castelo o ranger
da pesada e obsoleta engrenagem. Embora ferrugenta, desta vez
conseguiu funcionar e os dois vi sitantes não tardaram a regressar
de novo à margem verdejante, d <ffado exterior do fosso.
Granby foi subitamente acometi do de um estremecimento.
- Mas que raio é que o filho terá feito? - inquiriu.
O sacerdote não respondeu, mas quando entraram de novo no
carro e prosseguiram viagem até Graystones, a aldeia mais próxi­
ma, onde pararam na estal agem das Sete Estrelas, foi com algu­
ma surpresa que o advogado se apercebeu da intenção do padre de
ficar por ali e não ir mais longe . Por outras palavras, decidira per­
manecer nas imediações do castelo.
- Não estou disposto a deixar as coisas neste_ pé - declarou.
- Vou dizer ao motorista que pode seguir viagem e você, é cla-
ro, poderá ir com ele. A sua questão e stá resolvi da, uma vez que só
pretendi a saber se a sua firma podia ou não emprestar dinheiro ao
jovem Musgrave. Mas o que me trouxe aqui continua sem respos­
ta ... ainda não sei se ele é ou não o marido indicado para a minha
sobrinha Elizabeth. Preciso de descobrir se ele cometeu realmen·
te um delito muito grave ou se aquilo não será apenas fruto do de·
lírio de um lunático.
110 - Mas se é isso que pretende saber, por que razão é que não fa· j
la directamente como capitão, em vez de ficar aqui neste buraco on­
de ele provavelmente nunca virá? - i ndagou o advogado.
- E de que serviria eu falar com ele, não me dirá? Não fazia
sentido nenhum abordá-lo na rua, sem mais nem menos, e pergun­
tar-lhe . . . «Desculpe lá, mas por acaso cometeu algum crime abo­
minável?» Se ele foi capaz de o ter feito, também seria homem pa­
ra o negar. Além di sso, nem sabemos afinal do que se trata. Não,
só existe uma pessoa que sabe e pode revelar o seu segredo, no meio
de um possível acesso de excentricidade . O melhor será manter­
-me por perto.
E, com efeito, o padre Brown manteve-se perto do excêntrico
baronete, chegando a encontrar-se com ele por mais de uma vez,
dando ambos mostras de uma grande cordiali dade. O baronete,
apesar da i dade, era um homem vigoroso e grande apreciador de
caminhadas, podendo ser visto com frequência na al deia e nos
campos circundantes . No dia ime diatamente a seguir à chegada,
o padre Brown, quando ia a sair da estalagem, que dava para a pra­
ça onde se realizava o mercado, viu passar o inconfundfvel vulto
negro em direcção aos Correios. Trajava de preto e o seu rosto, vi s ­
to assim à luz do Sol , atraía mai s a atenção. Com a s u a cabeleira
prateada, as sobrancelhas negras e espessas e o queixo alongado,
fazia lembrar Henry Irving ou qualquer outro de sses actores famo­
sos. Apesar do cabelo grisalho, o porte e o rosto sugeriam força e a
bengala que agarrava na mão parecia mai s um cajado ou uma ar­
ma, que propriamente um objecto de apoio. Sau dou o padre e diri­
giu-se-lhe com o mesmo ar destemi do com que no dia anterior
apresentara as suas importantes revelações.
- Se ainda estiver i nteressado no meu filho - declarou, num
tom de géli da i ndiferença -, vai ter dificul dade em encontrá-lo.
Devo di zer, aqui entre nós, que ele fugiu do país .
- Não me diga - observou o sacerdote, mostrando-se estupe­
facto com a notícia.
- Umas pessoas de quem nunca ouvira falar, e que dão pelo no­
me de Grunov, têm insisti do junto de mim para que lhes revele o
paradeiro do meu filho - declarou Sir John. - Vim agora mandar­
-lhes um telegrama, dizendo-lhes que poderão contactar com ele
através da posta restante de Riga. Tentei fazê-lo ontem, mas che­
guei cinco minutos atrasado e encontrei o Correio j á fechado. Vai
ficar muito tempo por cá? Espero que volte a dar-me o prazer da
sua visita.
Quando o padre contou ao advogado a breve conversa que tra­
vara com Musgrave, aquele mostrou-se confuso e interessado.
- Por que razão é que o capitão se terá posto a andar? Quem
serão esses fulanos que andam atrás dele? Mas quem diabo serão
esses Grunov? •,

- Se quer que lhe diga, quanto à primeira pergunta, não sei - 1 1 1


respondeu o sacerdote. - Provavelmente o seu odioso crime veio
a saber-se . Segundo, se calhar essas pessoas têm andado a exer­
cer chantagem sobre ele. Em relação à sua terceira dúvida, julgo
que sou capaz de lhe dar uma resposta. Aquela mulher horrorosa
de cabeleira loira, que estava na galeria de arte chama-se Mada­
me Grunov e o sujeitinho consta que é o marido.
No dia seguinte, o padre Brown regressou do seu passeio com
um ar cansado, largando o guarda-chuva preto como um peregri­
no faz com a trouxa, depois de uma longa caminhada. Parecia de­
primido, mas no entanto isso era frequente acontecer durante as
suas i11vestigações criminais.
-E muito chocante, mas eu devia ter adivinhado - observou.
- Eu devia ter adivinhado logo que entrei e vi aquela coisa à
minha frente.
- Quando viu o quê? - indagou Granby impaciente.
- Quando vi que só havia uma armadura na sala.
Fez-se um grande silêncio, durante o qual o advogado fitou o
amigo com um ar muito espantado. Até que o sacerdote prosse­
guiu:
- No outro dia di zia eu à minha sobrinha que há dois tipos de
homens capazes de se rirem quando estão sozinhos. Os que estão
a contar uma piada a Deus ou ao Diabo. Mas, seja como for, tan­
to um como outro, ambos têm vi da interior. Ora bem, existe aque­
le tipo de homem que conta ao Diabo o motivo do riso, sendo-lhe
indiferente que os outros não achem piada ou não possam sequer
conhecer a razão por que ri . Basta-lhe a piada em si, desde que se­
j a suficientemente sinistra e maligna.
- Mas que é que quer di zer com isso? - perguntou Granby. ­
De quem está a falar? Qual deles? Quem é essa criatura que con­
tou uma piada sinistra a sua Satânica Majestade?
-Aí é que está a graça - respondeu o sacerdote fitando-o com
um ar grave.
Fez-se novo silêncio, desta vez, porém, incómodo e opressivo,
parecendo querer instalar-se entre el es como o crepúsculo que ia
lentamente dando lugar à escuridão. O sacerdote retomou então a
palavra, sem levantar a voz, enquanto apoiava os cotovelos sobre
a mesa.
- Tenho procurado observar a farm1ia Musgrave - declarou.
- Pelo que me foi dado ver, são todos eles fortes e com tendência
para a longevidade, por i sso dá-me i deia de que você irá ter de es­
perar bastante tempo pelo seu dinheiro.
- Estamos preparados para situações dessas - retorquiu o so­
licitador. - De qualquer modo isto não vai demorar indefinida­
mente: o velhote já tem quase 80 anos, embora ainda esteja cheio
de força e as pessoas aqui digam que é eterno.
112 O padre Brown ergueu-se da cadeira, com um daqueles seus
movimentos súbitos, embora raros, mantendo, contu do, as mãos
apoiadas na mesa, enquanto fitava intensamente o seu compa­
nheiro.
- É i sso mE;smo! - exclamou, excit?-do, embora sem elevar o
tom de voz . - E esse o único problema. E aí que resi de a princi pal
dificul dade. Como é que ele pode morrer? Como é que ele há-de po­
der morrer?
- Que quer dizer com i sso?
- O que eu quero di zer - respondeu a voz do sacerdote no meio
da penumbra em que se achava envolvida a sala -, é que já des­
cobri o crime que James Musgrave cometeu .
A voz do padre soou de tal forma q u e Granby n ã o foi capaz d e
dominar u m calafrio, acabando por murmurar u m a última per­
gunta.
- De facto, cometeu o pior crime do mundo - observou o pa­
dre Brown . - Pelo menos, assim tem si do consi derado por muitos
povos e civili zações ao longo da Hi stória. Desde os tempos mai s re­
motos que tem sido punido nas tribos e nas al deias com os castigos
mais severos. Enfim, já sei que crime comete u o j ovem M usgrave
e por que razão o fez .
- E afinal qual foi e s s e crime? - perguntou o advogado.
- Matou o próprio pai .
Desta vez foi o advogado que deu um sal to na cadeira.
- Mas o pai está no castelo - replicou com voz esganiçada.
- O pai encontra-se no fun do do fosso - emendou o padre
-, e eu fui um estúpido em não ter percebido i sso quan do senti que
havia algo naquela armadura que me i ntrigava. Lembra-se do as­
pecto da sala? Reparou na forma cuidadosa como tudo aquilo esta­
va arranjado e decorado? Havia dois pares de achas de armas cru­
zadas de cada um dos lados da lareira, bem como doi s escudos re­
dondos, e quanto a armaduras, só havia uma. É-me difícil acre di­
tar que uma pessoa, tendo arranjado a sala com uma preocupação
tão exagerada de simetria, se tivesse esquecido da segunda arma­
dura. Quase de certeza que ela deveria ter existi do primitivamen­
te . Que lhe teria então aconteci do?
Fez uma curta pausa e prosseguiu:
- Se pensarmos bem, trata-se de um excelente plano para co­
meter um homicídio, ficando assim resolvido o habitual problema
do destino a dar ao corpo. Com efeito, poderia ser escondi do ali den­
tro durante umas horas ou até uns dias, sem que os criados dessem
por isso. Depoi s , o assassino não tinha mai s que arrastá-lo pela ca­
lada da noite e atirar com ele ao fosso, sem ter de atravessar a pon­
te . E mai s ain da! Depois de imerso na água e stagnada, não tarda­
ria a decompor-se, restando apenas um simples esqueleto dentro
de uma armadura do século XIV, o que não seria de espantar no fos-
so de um velho castelo de fronteira. Não seria muito provável que 1 1 3
alguém se lembrasse de ir procurar ali algum a coi sa, mas se tal
acontecesse encontraria apenas isso. E, na verdade, obtive uma
confirmação do que acabo de afirmar. Foi quando você insi nuou
que eu estava a observar uma planta rara e, de facto, tratava-se
de uma planta, em muitos senti dos, se me permite o gracejo. O que
me chamara a atenção tinham si do as m arcas de dois pés, tão fun­
das que logo depreendi tratar-se ou de uma pessoa mui to pesada
ou de alguém que carregava um grande fardo. Além di sso, há ou­
tra moral a extrair do pequeno incidente de que fui vitima quan­
do dei aquele sal to gracioso.
- Já tenho a cabeça tonta de pensar, mas começo a perceber
qualquer coisa de todo este pesadelo. Que é isso agora do seu sal­
to gracioso?
- Hoje de manhã, nos Correios, confirmei o que o baronete me
tinha dito ontem acerca de se ter ali deslocado há doi s dias, já de­
poi s da hora do encerramento, i sto é, no momento preciso em que
nós chegámos ao castelo. Não percebe qual o alcance di sto? Si gni­
fica que no momento em que o fomos vi si tar ele não estava efecti ­
vamente em casa, só voltou muito depoi s. Foi por essa razão que
tivemos de esperar tanto tempo por ele. Ora, quando descobri is­
so, compreendi toda esta história.
- Yá, continue - pediu Granby, impaciente .
- E evi dente que um homem com 80 anos é capaz de caminhar
- continuou o padre Brown . - Consegue até fazer gran d es cami -
nhadas por esses campos fora. No entanto, não tem pernas para
saltar. Se o tentasse, revelar-se-ia um saltador ai nda menos gra­
cioso que eu. Ora, se o baronete regressou ao castelo quando nós já
ali estávamos à sua espera, teve de entrar, assim como nós entrá­
mos, saltando por cima do fosso, uma vez que a ponte levadiça só
pôde ser accionada mai s tarde. Desconfio até que foi ele próprio
que avariou o mecanismo de propósito para atrasar a entrada de
vi sitantes i ndesejáveis, a julgar pela rapi dez com que foi repara­
da. Mas i sso agora não interessa. Quando imaginei aquela fi gura
vestida de negro e de cabelo branco a dar um sal to por cima do fos ­
s o , percebi imediatamente q u e s e tratava de u m jovem disfarçado
de velho. E aí tem a chave do mistério.
- Quer então di zer que aquele simpático rapaz matou o pai, es­
condeu o cadáver dentro da armadura, atirando com ela para den­
tro do fosso, para depois se di sfarçar?
- Acontece que eram ambos muito parecidos. Aliás, teve
ocasião de observar, através de retratos de família, a forte seme­
lhança que exi ste entre todos eles. Referiu o facto de ele se ter dis­
farçado. Ora, a maneira como as pessoas se arranj am é, de certo
modo, um disfarce . O velho di sfarçava-se, usando uma peruca e o
rapaz, uma barba de corte i nvulgar, pouco usual entre nós. Depoi s
114 de escanhoado e de colocar a peruca do pai ficou exactamente igual
a ele, bastando-lhe apenas dar uns retoques com um pouco de ma­
quilhagem. Já está agora a perceber por que razão é que ele se mos­
trou tão solícito ao emprestar-lhe o carro. Com efeito, o que el e
queria era vir de comboio nessa mesma noite. Desse modo anteci­
pou-se a nós, cometeu o crime, teve tempo para se disfarçar, e
quando chegámos estava pronto para tratar do negócio.
- Sim - fe z Granby, pensativo -, para tratar do negócio !
Acha então q u e s e tivesse si do o pai dele a tratar do as sunto, teria
conduzi do o negócio de outra maneira.
- Ter-lhe-ia dito, com certeza, que o filho nunca havi a de ver
um tostão - respon deu o padre Brown. - E ste estratagema, por
muito estranho que lhe pareça, era, de facto, a única forma que ele
tinha de evitar i sso. O plano de James Musgrave sati sfazia vários
desígnios ao mesmo tem po. Andava a ser vítima de chantagem por
parte daquel es russos, não sei por que motivo; desconfio que talvez
se trate de algum caso de traição que cometeu durante a guerra.
Graças a este golpe conseguiu escapar-lhes, induzindo-os em er­
ro e levando-os , provavel mente, a irem para Riga à sua procura.
Mas o pormenor m ais sofi sticado de todos foi a teoria que ele
próprio enunciou, reconhecendo o filho como herdeiro, mas negan­
do-lhe o estatuto de ser humano. Como vê, ao mesmo tempo que
garantia o post obit, fornecia uma resposta àquilo que em breve se
tornaria na maior dificuldade de todas.
- Quanto a mim, vejo várias dificuldades - observou Granby._
- A qual delas se refere?
- Se o filho nem sequer ia ser deserdado, era estranho que os
doi s nunc� se encontrassem. A teoria de um repúdio de ordem pes­
soal seria uma possível resposta para esse facto. Sendo assim, só
restava uma dificuldade, como eu dizia, que neste momento mui­
to deve preocupar o nosso homem . Como morrerá o velho?
- Eu sei como ele devia morrer - observou Granby.
O padre fez uma expressão divertida e prosseguiu, com um ar
um tanto absorto:
- E além do mai s há ai nda outra coi sa. Havia algo nesta his­
tória que lhe agradava de uma forma muito especial . . . digamos, no
aspecto teórico. Deu-lhe um prazer enorme afirmar, na pele de
uma personagem, que ele próprio cometera o cljme na pele de ou­
tra ... quan do i sso realmente tinha aconteci do. E isto que eu consi ­
dero uma ironia infernal , uma ironia partilhada com o Diabo. Quer
que lhe conte uma coi s a muito semelhante àquilo a que chamam
um paradoxo? Por vezes, mesmo nas profundezas do Inferno, é
uma alegria poder contar a verdade. E, sobretudo, poder contá-la
de forma que ninguém perceba. Era por i sso que ele gostava tan ­
to de se fazer passar por outra pessoa, descrevendo-se em segui ­
da a si próprio com as cores mai s negras . . . no fundo, como el e era.
Foi por essa razão que a minha sobrinha o ouviu a rir sozinho na
galeria de arte. 115
Granby estremeceu como se acabasse subitamente de desper­
tar par,a a realidade .
- E verdade, a sua sobrinha! - exclamou . - A mãe não que­
ri a que ela casasse com Musgrave? Devi a sentir-se atrafda pela
sua fortuna e posição.
- Exactamente - concordou o padre Brown num tom brusco.
- A mãe era a favor de um casamento seguro.

116
CAP Í TULO VII

A LUA VERMELHA DE MERU

Todos estavam de acordo em como o bazar de Mallowood Ab­


bey, (por amável cedência de Lady Mounteagle) obtivera um tre­
mendo êxito: havia jogos infanti s, baloiços e outras atracções que
as pessoas muito apreciavam ; refiro-me ainda à Cari dade, que era
o principal objectivo dessas activi dades, se é que qualquer das pes­
soas presentes poderia dizer em que consi stia.
Contudo, só nos interessam aqui algumas dessas pessoas; es­
pecialmente três delas , uma dama e dois cavalheiros, que passa­
ram no meio de d�as das principai s barracas ou pavilhões, di scu­
tindo em voz alta. A direita deles, ficava a tenda do Mestre da Mon­
tanha, o mundialmente famoso adivinho que actuava por meio de
bolas de cristal e quiromancia; era uma tenda sumptuosa, cor de
púrpura, coberta de desenhos a preto e dourado, representando as
silhuetas de deuses asiáticos a acenarem, quai s polvos, com os
seus numerosos braços. Talvez pretendessem simbolizar a pronti­
dão com que eles prestavam o seu amo1io divi no; ou então queriam
di zer que o ideal de um piedoso quiromante seria ter o maior nú­
mero de mãos possível. Do lado oposto ficava a tenda, esta mai s di s­
creta, do Frenologista Phroso, decorada com um gosto mais auste­
ro, com desenhos das cabeças de Sócrates e de Shakespeare, as
quais, pelos vi stos, apresentavam bastantes bossas. Esses dese­
nhos, porém, eram a preto e branco, acompanhados de números e
anotações, como convinha à rígida dignidade de uma ciência pura­
mente racionalista. A tenda cor de púrpura tinha uma abertura se­
melhante a uma caverna escura e lá dentro tudo era silêncio. Pe­
lo contrário, o Frenologista Phroso, um sujeito magro, esquálido,
queimado do Sol, com um incrível bigode negro e atrevido e suíças
da mesma cor, encontrava-se j unto à porta do seu templo, a gritar
a plenos pulmões. Não se dirigia a ninguém em particular, expli­
cando que a cabeça de qualquer dos vi sitantes poderia revelar-se,
depoi s de examinada, muito semelhante, em matéria de bossas, à
de Shakespeare. De facto, no momento em que Lady Mounteagle 1 1 7
passava por entre as tendas, o atento frenologista prontificou-se,
com vénias exuberantes, a apalpar as suas bossas cranianas.
A dama recusou com uma delicade za que se parecia m ui to com
a má educação. Mas devemos dar-lhe o desconto, uma vez que,
nesse momento, estava no meio de uma discussão. Também
devemos desculpá-la pois, de qualquer modo, estaria sempre des­
culpada pelo facto de ser Lady Mounteagle. O certo é que não se
tratava de uma pessoa anónima sob nenhum aspecto: era de uma
beleza páli da, com uns olhos profundos, negros e ávi dos e um sor­
ri so um tanto cruel . O seu vestuário era excêntrico para a época,
poi s passava-se antes de a Grande Guerra nos ter deixado a actual
preferência pelas recordações antigas. De facto, o vesti do dela
apresentava certas semelhanças com a tenda cor de púrpura; era
de estilo semi--<>riental , coberto de embl emas exóticos e esotéricos.
De resto ninguém ignorava que os Mounteagles eram loucos, o que
e quivalia a dizer que, tanto ela como o marido se interessavam pe­
l as crenças e culturas orientai s.
A excentricidade da dama formava um enorme contraste com
o convencionalismo dos dois cavalheiros. Estes vinham vestidos e
abotoados de cima abaixo segundo o gosto rígido dessa época remo­
ta, desde as pontas das luvas até aos relu zentes chapéus altos. No
entanto, mesmo entre eles havia uma certa diferença: James
Hardcastle consegui a mostrar-se ao mesmo tempo correcto e
distinto, ao passo que Tommy Hunter era apenas um cavalheiro
correcto e vulgar. Hardcastle era um político com uma carreira
prometedora e, quando em sociedade, revelava interesse por tudo
menos pela política. Poderão responder-me cepticamente que
qualquer político é, por definição, um político com uma carreira
prometedora. Diga-se, porém, em abono da verdade, que el e se exi­
bia por vezes como um político bastante activo. Contudo, naquele
bazar, não havia nenhuma tenda em que pudesse exibir as suas ac­
tivi dades.
- Quanto a mim - daclarou, colocando o monóculo, que era a
única coi sa que brilhava no seu rosto duro e vulgar -, penso que
devemos esgotar todas as hipóteses de hipnotismo antes de falar­
mos de magia. Exi stem, sem dúvi da, notáveis poderes psicológicos
mesmo entre povos aparentemente atrasados. Houve casos mara­
vilhosos levados a efeito por faquires.
- Você quer di zer aldrabões' ? - perguntou o outro com fingi­
da inocência.
- Tommy, você está a ser parvo - observou a senhora. - Por­
que é discute coisas que não entende? Lembra-me um garoto a

1 Na versão inglesa verifica-se um trocadilho entre as palavras


118 fakir, mágico, e faker, aldrabão . (N.da T.)
berrar que sabe como se excuta determinado passe de magia. Es­
se cepticismo de adol escente j á não se usa. Quanto ao hipnotismo,
duvido que consiga consi derá-lo como . . .
Nesta al tura parece que Lady Mounteagle avistara al guém
que lhe i nteressava; tratava-se de um sujeito baixote que se acha­
va de pé, junto a uma barraca onde as crianças atiravam arcos pro­
curando acertar em obj ectos decorativos de péssimo gosto. A dama
correu para ele, excl amando:
- Padre Brown! Andava à sua procura. Queria perguntar-lhe
uma coisa. Acredita em adivinhações?
A pessoa a quem ela se dirigia olhou um pouco atrapalhada pa­
ra o arco que tinha na mão e respondeu por fim :
- Não sei em que sentido a senhora usa a palavra «acredita» .
Claro que se for tudo uma aldrabice . . .
- Oh, m a s o Me stre d a Montanha não t e m nada d e aldrabão
- exclamou ela. - Ele não é um adivinho nem um mágico vulgar.
Para ele, é uma grande honra vir ler as sinas às minhas reuniões;
no seu país, ele é um grande chefe religioso, um Profeta, um Vi den ­
te . Mesmo as suas profecias não são vulgares adivinhações. Ele re­
vela-nos grandes verdades espirituais em relação a nós próprios
e aos nossos i deais.
- Não duvi do - tornou o padre Brown . - É quanto a isso que
eu levanto as minhas objecções. Eu ia dizer, preci samente que a
coi sa não tem importânci a quando é tudo uma aldrabice'. Quan do
é tudo tão fal so como a maior parte das coi sas que há nos bazares.
De certo modo não passa de uma intrujice. Mas quando tom a foros
de religião e pretende revelar verdades espiri tuais, então devemos
fugir disso como da peste.
- Mas o que o senhor di z é uma espécie de paradoxo - obser­
vou Hardcastle a sorrir.
- Não sei bem o que sej a um paradoxo - murmurou o padre,
pensativo. - A mim a coisa afigura-se-me evi dente . Suponho que
não viria mal para ni nguém se uma pessoa vesti da como um espião
viesse declarar que tinha contado toda a espécie de mentiras aos
alemães. Porém, se um sujeito for negociar a verdade com os al e­
mães, aí ... Bom, eu penso se um adivinho irá negociar uma verda­
de como essa . . .
- O senhor acha, realmente . . .
- Sim - respondeu o outro. - Acho que ele está a negociar
com o i nimigo .
Tommy Hunter deu u m a gargalhada.
- Bem, se o padre Brown acha que os m ágicos são bons desde
que sejam al drabões, com certeza considera este profeta mulato
um verdadeiro santo .
- Este m e u primo Tom é incorrigível - declarou Lady Moun­
teagle. - Anda sempre a querer desmascarar os mestres, como ele 1 1 9
lhes chama. Só veio aqui, de corrida, quando soube que o S enhor
da Montanha cá estava. Acho que seria capaz de pretender des­
mascarar Buda e Moisés.
- Pensei que precisavas de alguém que te defendesse - res­
pondeu o jovem com um sorriso a iluminar-lhe a cara redonda. -
Por isso vim por aí abaixo. N ão me agrada ver esse macaco negro
nas vizinhanças.
- Lá estás tu ! - �xclamou Lady Mounteagl e . - Aqui há anos,
quando eu estava na ln dia, todos tínhamos essa espéci e de precon­
ceito contra as pessoas de raça negra. Mas agora que conheço al­
guma coisa acerca dos seus maravilhosos poderes espirituai s, te­
nho satisfação em di zer que m u dei de i deias.
- Os nossos preconceitos têm raízes opostas - declarou o pa­
dre Brown . - A senhora desculpa o facto de ele ser negro porque
é um brâmane ; eu desculpo-lhe ser brâmane porque é negro. Fran­
camente, não me interesso pessoalmente pelos poderes espiri­
tuais. O que não compreendo é que haja alguém que seja contra um
homem pela simples razão de ele ser da cor do cobre, do café, da cer­
veja ou dessas belas plantas aquáticas do Norte. Mas a verdade -
acrescentou, olhando fixamente a dama - é que eu tenho uma
predilecção por tudo quanto é de cor . . .
- Ora vamos! - exclamou Lady Mounteagle num tom triun­
fante. - Bem me parecia que o senhor estava a brincar!
- Bem - di sse, ofendi do, o rapaz da cara redonda. - Quan­
do alguém fal a a sério, a senhora di z que é cepticismo de adol e scen­
te . Mas quando começa essa consulta da bola de cri stal?
- Logo que os senhores quiserem - respondeu ela. - Na rea­
lidade , não vamos consultar a bola da cristal . Trata-se antes de
quiromancia; se calhar para vocês tudo isso são disparates .
- Acho q u e exi ste u m a via média entre o bom senso e o dispa­
rate - observou Hardcastle sorrindo. - Há explicações que são
naturais e nada têm de disparatadas; e no entanto os resultados
são surpreendentes. Vocês querem sujeitar-se à experiência? Por
mim confesso que morro de curiosidade .
- Oh, eu cá não tenho pachorra para essas tolices! - resmun­
gou o céptico, cujo rosto gorducho se tornara vermelho com o calor
do seu desdém e increduli dade . - Deixo-vos a perder tempo com
o vosso mulato charlatão. Por mim, prefiro ir atirar aos cocos .
O frenologista, que continuava ali por perto, aproveitou a oca­
sião:
- São cabeças, meu caro senhor - declarou. - Os crânios hu­
manos apresentam um contorno muito mais subtil que os cocos.
Nenhum coco se pode comparar com o nosso mai s . . .
Hardcastle penetrara já na entrada escura d a tenda cor
púrpura e l á dentro ouvia-se um surdo murmúrio de vozes.
120 Enquanto i sso, Tom Hunter voltava-se para dar ao frenologista
uma resposta impaciente em que demonstrava um lamentável
desdém pela diferença existente entre as ciências naturais e sobre­
naturai s, e a dama preparava-se para pros seguir a conversa com
o padre. Mas nisto interrompeu-se, surpreendi da.
James Hardcastle voltara a sair da tenda e , no seu rosto gra­
ve onde brilhava o monóculo, a surpresa era ainda mais visível .
- El e não está lá dentro - declarou bruscamente o político. ­
O negro velhote que, pelos vistos, é o ajudante, resmungou qual ­
quer coi sa a explicar q u e o Mestre tinha preferido ir embora e não
revelar os segredos sagrados a troco de dinheiro.
Lady Mounteagle voltou-se triunfante para os companheiros,
exclamando:
- Eu bem dizia que ele era de um nível muito superior a tudo
o que você s i maginavam ! Ele detesta estar no meio da turba. Pre­
feri u regressar à sua solidão.
- Peço desculpa - murmurou gravemente o padre Brown. ­
Devo ter sido injusto para com ele. Sabem para onde foi?
- Julgo saber - respondeu a dona da casa i gualmente séria.
- Quando ele quer estar só, costuma retirar-se para os claustros,
ao fundo da ala e squerda, a seguir ao escritório e ao museu parti ­
cular do meu mari do. Talvez não saibam que esta casa foi outro­
ra um convento.
- Ouvi qualquer coi sa a esse respei to - respondeu o padre,
sorri ndo.
- Se qui serem vam os até lá - propôs vivamente a dama. -
Acho que deviam gostar de ver a colecção do meu m ari do; ou, pe­
lo meno�, a Lua Vermelha. Já ouviram falar na Lua Vermelha de
Meru? E um rubi, sim .
- Eu gostaria imenso d e ver a colecção - declarou calmamen­
te Hardcastle. - Incluindo o Mestre da Montanha, se é que o pro­
feta também está em exposição no museu.
E todos se dirigiram para o atalho que conduzia à casa.
- De qualquer m odo - resmungou Tom, desconfiado -, sem­
pre gostava de saber o que veio cá fazer esse escuro animal , se não
foi para nos ler a si na.
Enquanto se afastava, o persistente Phroso correu mai s uma
vez em sua perseguição, quase a puxar-lhe pelas abas do casaco.
- A bossa - começou ele.
- Qual bossa? . . . - retorquiu o rapaz. - A bossa é um galo. E
a mim dá-me galo ver o Mounteagle. - Com i sto, girou nos calca­
nhares para se ver livre do homem de ciência.
A caminho do claustro, os vi si tantes tinham de atravessar i>
comprido salão que Lord Mounteagle transformara no seu notável
museu particular de amuletos e mascote s asiáticas . Pela porta
aberta ao fundo da pare de em frente avistavam-se os arcos góti-
cos através dos quai s brilhava a luz do dia, formando um espaço 1 2 1
quadrado em volta do pátio coberto, onde os frades outrora passea­
vam . Ali, tinham de passar em frente de uma figura que, à primei­
ra vi sta, se revelava mais estranha que o fantasma de um monge.
Tratava-se de um cavalheiro i doso, vestido de branco da cabe­
ça aos pés e com um turbante verde-claro. No entanto, a sua pele
era branca e rosada como a de um inglês e ostent?va os bigodes se­
dosos e brancos de um simpático coronel das Indias. Era Lord
Mounteagl e , que assumira os seus gostos orientai s de um modo
mais soturno, ou, pelo menos, mais sério que a sua mulher. Não
conseguia falar de outras coisas senão da religião e da filosofia
orientais e chegara ao ponto de achar necessário vestir-se como
um eremita do Oriente . Sempre que mostrava com prazer os seus
tesouros, dava a impressão que os apreciava mui to mais em fun­
ção das verdades que se dizia significarem que pelo seu valor co­
mo colecção e menos ainda pelo seu valor monetário. Até mesmo
quando apresentava o enorme rubi , provavelmente a única coi sa
de grande valor que havia no museu, em termos financeiros, pare­
cia muito mais interessado no seu nome que no seu tamanho e, me­
nos ainda, no seu preço.
Os vi sitantes contemplaram todos aquela enorme pedra rubra,
que parecia brilhar como um a fogueira através de uma cortina de
sangue . Entretanto, Lord Mounteagle fazia-a rebolar na palma da
mão sem olhar para ela, de olhos fi tos no tecto, enquanto ia des­
fiando uma longa hi stória acerca do carácter l endário do Monte
Meru e no lugar que ele ocupava na mitologia gnóstica, como se de
de forças primitivas e ignoradas .
A certa altura da palestra acerca do Demiurgo dos Gnósticos
(sem esquecer a sua relação com o conceito paralelo de Mani ­
queus), o próprio Mr. Hardcastle, com todo o seu tacto, achou que
era tempo de criar uma diversão e pediu licença para observar a pe­
dra. Uma vez que a tarde ia avançada e a sala comprida com a sua
única porta começava a ficar escura, saiu para o claustro, a fim de
examinar melhor o rubi . Foi então que todos repararam pela pri­
meira vez na presença um pouco assustadora e silenciosa do Mes­
tre da Montanha.
O claustro ficava no mesmo plano da sala; no entanto, a fila de
arcadas do claustro que formavam o quadrado estavam ligadas en­
tre si por um muro baixo, que chegava à cintura e transformava os
arcos em j anelas, cada qual com um largo parapeito de pedra. Esta
alteração provinha sem dúvida de l onga data. No entanto, havia
outras mai s recentes que demonstravam bem as i deias estranhas
de Lord e de Lady Mounteagl e . Entre os pilares pendiam cortinas
transparentes, ou antes, véus, formados por contas ou caniços fi ­
nos, de u m estilo continental o u setentrional . Também nestas se
podiam distinguir os desenhos e as cores dos dragões e ídolos asiá-
122 ticos, e m contraste com a m ol dura cinzenta dos arcos góticos dos
quai s pendiam. Isto, porém, apesar de diminuir ainda mai s a es­
cassa luz do recinto, representava a menor das incongruênci as
que, nos vi sitantes, iam provocando reacções diversas.
No espaço livre que rodeava os claustros corria um caminho cir­
cular pavimentado de pedras de tons claros, rodeadas por uma cer­
cadura de esmalte verde a imitar rei va. No centro deste espaço, er­
guia-se um a fonte ou lago mai s elevado, de cor verde-escura, no
qual flutuavam nenúfares e nadavam peixes dourados ; lá no alto,
recortada na luz que se esbatia, encontrava-se uma enorme ima­
gem verde. Estava de costas, com o rosto totalmente invisível, nu­
ma posição curvada, de modo que a estátua parecia não ter cabe­
ça. No entanto, apesar da penumbra que ali reinava, alguns dos
presentes pu deram aperceber-se de que não se tratava de uma es­
tátua cristã.
A poucos metros de di stância, no atalho circular, em frente do
enorme deus verde, encontrava-se o homem chamado o Mestre da
Montanha. As suas feições delicadas e pontiagu das pareciam mol ­
dadas por algum hábil escul tor numa máscara de cobre. Forman­
do contraste com elas, a barba de um cinzento-escuro reflectia um
tom azulado, a começar num estreito tufo sobre o queixo para de­
poi s se abrir em l eque como a cauda de um pássaro. O homem usa­
va uma túnica azul pavão e na cabeça calva ostentava um turban­
te de um feiti o estranho que nenhum dos presentes jamais vira.
Lembrava mai s o género egípcio que o indiano. Mantinha-se de pé,
de olhar fixo. Os seus olhos estavam muito abertos, como os de um
peixe, tão imóveis que l embravam os olhos de uma múmia pinta­
dos num sarcófago. No entanto, apesar de ser bastante estranha
a figura do Mestre da Montanha, não era para ela que se dirigiam
os olhares de al guns dos circunstantes, i ncluin do o padre Brown :
continuavam a fitar o enorme ídolo verde-escuro, para o qual o
Mestre olhava também .
- Que coi sa esquisita para se colocar no meio de um antigo
claustro de convento! - m urmurou Hardcastl e de sobrolho fran­
zido.
- Não me digas que estás a ficar parvo - exclamou Lady
Mounteagle. - Foi preci samente essa a nossa i deia; juntar as
grandes religiões do Oriente e do Oci dente; B u da e Jesus Cristo.
Compreendes, sem dúvida, que todas as religiões, no fundo, são
iguais .
- Se assim é - observou suavemente o padre �rown -, pare- .
ce desnecessário ir-se buscar uma ao coração da Asia.
- Lady Mounteagle quer di zer que elas representam diversos
aspectos ou facetas da mesma coi sa, tal como se observa nesta pe­
dra - começou Hardcastle. E, começando a i nteressar-se pelo as­
sunto, pousou o enorme rubi no parapeito de pedra por debaixo de
um dos arcos góticos . - Isto não significa que se possam mi sturar 1 2 3
esses aspectos no m esmo estilo artístico. Podemos juntar a Cris­
tandade com o Islão, m as nunca o Gótico com o Sarraceno, para não
falarmos do verdadeiro estilo Hindu . . .
Enquanto falava, o Mestre d a Montanha pareceu voltar a s i , co­
mo quem regressa do estado cataléptico. Deu gravemente uma vol ­
ta de quarto de círculo e foi colocar-se fora da fila das arcadas, de
costas para o grupo e a olhar para a parte de trás do ídolo. Torna­
va-se evidente que andava a dar a volta ao claustro, por etapas, co­
mo o ponteiro de um relógio, fazendo pausas, de quando em quan­
do, para contemplação.
- Qual é a religião dele? - quis saber Hardcastle com um le­
ve tom de impaciência.
- Ele afirma que a sua religião é mai s antiga que o Bramani s­
mo e mais pura que o Budismo - explicou reverentemente Lord
Mounteagle.
- Oh ! - exclamou Hardcastle, continuando a observá-lo atra­
vés do monóculo, de mãos enfiadas nos bol sos.
- Diz-se - prosseguiu o dono da casa na sua voz suave e di­
dáctica - que esta divindade que eles chamam Deus se encontra
escul pi da numa estátua colossal na caverna do Monte Meru . . .
Nesta altura, a serenidade professoral d e sua senhoria foi que­
brada por uma voz que soava atrás das suas costas . Provinha da
escuridão do museu donde tinham saído havia pouco para entra­
rem no claustro. Ao escutá-la, os doi s j ovens voltaram-se, a prin­
cípio incrédulos, depois furiosos, acabando por desatar a rir:
- Espero não vir incomodar - di zia a voz sedutora e delicada
do professor Phroso, o i ncansável paladino da verdade -, mas lem­
brei-me de que algum de vós poderia querer dedicar alguns minu­
tos a esta ciência tão despre zada das B os sas, que . . .
- Ouça lá! - exclamou o im petuoso Tommy Hunter. - Eu cá
não tenho bossas, mas garanto que quem vai ficar com algumas
bossas é o senhor, se . . .
Hardcastle empurrou-{) suavemente para a porta por onde ele
acabava de entrar e o grupo voltou a sua atenção para o compar­
timento interior.
Foi nesse momento que se deu o inci dente . O primeiro a mover­
-se foi , ainda desta vez, o impetuoso Tommy e agora com mai s êxi­
to. Antes que alguém desse por i sso, no m omento em que Hardcas­
tle se recordava, com um sobressalto, de ter deixado o rubi pousa­
do no muro, já Tommy se precipitava com a agilidade de um gato,
curvando a cabeça e os ombros para o intervalo entre duas colunas,
a gritar com uma voz que ressoava por todo o claustro:
- Apanhei-{)!
Nesse mesmo instante, quando todos se voltavam e antes de
ouvirem aquele brado, tiveram tempo de ver o que estava aconte-
1 24 cendo: Num dos ângulos das arcadas surgira, para logo desapare-
cer, uma mão morena, ou antes, cor de bronze, da cor do ouro ve­
lho, tal como já haviam observado antes. A mão agira com a rapi­
dez de uma cobra ou da compri da língua de um papa-formigas . Fo­
ra essa mão que arrebatara a jóia. O parapeito do muro estava
vazio.
- Agarrei-o! - berrava Tommy Hunter - Mas ele debate-se
com força. Corram a cercá-lo pela frente . Ele não pode ter-se des­
feito dela!
Os outros obedeceram, uns correndo pelo claustro adiante, ou­
tros saltando o muro baixo. Como resul tado disto, não tardou que
um pequeno grupo, composto por Hardcastle, Lord Mounteagle, o
padre Brown e até o inevitável Mr. Phroso das bossas, rodeasse o
cativo. Este, que era o Mestre da Montanha, estava a ser violenta­
mente sacudido por Hunter que o segurava pelo colari nho de um
modo muito pouco respei toso para a digni dade do Profeta.
- Ele aqui está! - decl arou Hunter, largando-o com um sus­
piro. - Agora revi stem-no. A pedra deve aí estar!
Três quartos de hora mai s tarde, Hunter e Hardcastle, com os
chapéus, as gravatas, as luvas, os sapatos e os polaini tos em míse­
ro estado, em virtude das suas recentes activi dades, achavam-se
frente a frente no claustro.
- Então? - perguntava Hardcastle em voz baixa. - Tens al ­
guma i deia acerca deste mi stério?
- C'os diabos - replicou Hunter -, não podemos chamar a is­
to um misténo . Todos nós o vimos agarrar na pedra, caramba!
- Sim, mas nenhum de nós o viu largá-la - replicou o outro.
- E o mistério é o segui nte : onde é que ele a meteu, já que a não
conseguimos encontrar?
- Tem de estar algures - tornou Hunter. - Viste bem na fon­
te e j unto a esse mal dito deus?
- Não fui ao ponto de dissecar os peixes - repli cou Hardcas­
tle, erguendo o monóculo para olhar o companheiro. - Estás a pen­
sar no anel de Policrates?
Mas, ao que parece, a observação daquele rosto redondo atra­
vés do monóculo convenceu o observador de que o companheiro es­
tava muito longe de pensar em lendas gregas, pois este respondeu
subitamente:
- Não o tem consigo, concordo, a não ser que o tenha engolido.
- Queres então dissecar também o Profeta? - perguntou o ou-
tro sorrindo. - Mas aí vem o nosso anfitrião.
- Isto é uma tragédia - exclamou Lord Mounteagl_e a torcer
os bigodes brancos com os de dos trémulos de nervoso. - E uma tra­
gédia sabermos que temos um ladrão em casa, mas pior ainda tra­
tando-se do Profeta. No entanto, confesso que não percebo pata­
vina do que ele está a dizer. Gostava que vocês viessem cá dentro
e me dissessem o que pensam. 1 25
Lá foram todos, ficando Hunter para trás a falar com o padre
Brown que andava por ali a passear no cl austro.
- O senhor deve ter muita força - observou o padre em tom
de gracejo. - Segurou-o só com u m a mão; e ele pareci a bastante
vigoroso, a debater-se, mesmo depois de agarrado como um desses
deuses i n dianos.
Deram ambos uma ou duas vol tas ao clau stro, sempre a conver­
sar, e depoi s entraram também para a sala onde o Mestre da Mon­
tanha se encontrava sentado num banco, na situação de pri sionei ­
ro, mas com a pose de um rei .
Tal como observara Lord Mounteagle, o ar dele e o seu tom ao
falar eram difícei s de compreender. Falava com um ar sereno de
quem possuí uma força oculta. Parecia diverti do com as sugestões
dos presentes quanto ao lugar onde poderia encon trar-se a pedra
preci osa. E também não revelava qualquer ressentimento. Era co­
mo se estivesse a rir muito à socapa dos esforços que todos faziam
para encontrar o rasto de uma coisa de que toda a gente o tinha vi s­
to a apoderar-se.
- Vocês começam a apren der alguma coisa - di sse ele com in­
sol ente amabilidade - acerca das lei s do tempo e do espaço, dos
quais a vossa ciênci a mai s recente está atrasada mil anos em re­
l ação à nossa reli gião mai s antiga. Vocês nem sequer sabem o que
significa esconder uma coi sa. N á, meus pobres amigos. Vocês igno­
ram m esmo o que si gnifica ver uma coi sa, senão vê-la-iam tão cla­
ramente como eu a estou a ver . . .
- Quer o senhor dizer com isso que ela está aqui? - pergun­
tou secamente Hardcastl e.
- Aqui é uma palavra que também tem muitos si gnificados ­
replicou o místico . - Porém , eu não disse que el a estava aqui , ape­
nas di sse que a vi a .
Seguiu-se u m silêncio irritado e o homem prosseguiu n u m tom
sonolento:
- Se vocês se mantivessem num sil êncio total e rigoroso ach am
que conseguiriam ouvir um grito vi ndo do outro l ado do mun do? O
grito de um adorador dos deuses, perdi do nas montanhas onde se
encontra a imagem original , que é el a própria, uma espéci e de
montanha. Di z-se que até os judeus e os muçul manos seriam ca­
pazes de adorar essa imagem porque ela não foi feita pela mão do
homem . Escutem : ouvem o grito com que ela ergue a cabeça e olha,
do alto do seu pedestal de pe dra, muda há tantos anos, aquela lua
vermelha e irada que é o olho da m on tanha?
- O senhor quer realmente insinuar - excl amou Lord Moun­
teagle um pouco abalado -, que era capaz de a fazer passar daqui
para o Monte Meru? Eu sempre acreditei que o senhor possuía
enormes poderes espirituai s, mas . . .
- Tal vez - retorquiu o Mestre - eu tenha poderes maiores
126 que aquele s que o senhor j am ai s imagi nou .
Hardcastl e ergueu-se com impaciência e começou a passear
pel a sal a, de mãos nos bol sos.
- Eu nunca acre di tei tanto coin o o senhor, mas admito que cer­
tos poderes consigam ... Santo Deus . . .
A sua voz áspera e sonora cal ou-se a meio d a frase e o monó­
culo cai u-lhe do olho. Todos se voltaram na mesma direcção e nos
rostos dos outros estampou-se i gual surpre sa.
A Lua Verm elha de Meru encontrava-se sobre o muro de pe­
dra, no lugar exacto onde tinha si do vi sto pela última vez. Dir-se­
-ia uma faúlha trazida pelo vento, ou a pétala de uma rosa verme­
lha; mas achava-se no lugar exacto onde Hardcastle im prudente ­
mente a pousara.
Desta vez, Hardcas tl e não fez menção de lhe pegar. No entan­
to, a sua atitude era digna de nota: voltou-se lentamente e come­
çou a passear de novo pela sal a, agora, porém, com movimentos
mai s deci di dos, quando até ali apenas denotavam i nqui etação . De­
teve-se por fim em frente do Mestre que conti nuava sentado e cur­
vou-se com um sorriso de certo modo sardónico, dizendo:
- Mestre, todos nós lhe devemos pedir desculpa. E o que é mais
im portante, o senhor deu-nos hoje uma lição. Acredi te que nos deu
uma lição, mas também nos pregou uma partida. Lembrar-me-ei
sempre do extraordi nário poder que o senhor realmente possui e
da maneira delicada como faz uso dele. Lady Mounteagl e - pros ­
seguiu, voltand<r-se para ela -, peço que me perdoe ter-me di ri ­
git:o ao Mestre em pri meiro lugar, mas a si eu já ti nha dado esta
expli cação. Pode dizer-se que eu explicara tu do antes de aconte­
cer . Eu disse que a m aior parte destas coi sas pode ser i nterpreta­
da através de uma certa espécie de hipnoti smo. Muitos acredi tam
que é esta a explicação para todas aquelas hi stórias in dianas acer­
ca da árvore das man gas e do rapaz que trepa por uma corda que
se el eva no ar. Nada disso acontece na reali dade; os espectadores
é que estão hi pnoti zados e julgam que aconteceu. Assim estáva­
mos nós todos, hipnoti zados, ao imaginarmos que ti nha havi do
roubo. Aquela mão que apareceu no parapeito de pedra e que ar­
rebatou a pedra preciosa foi uma ilusão momentânea, apenas um
sonho. Acontece que, tendo visto a pedra desaparecer, nunca mai s
a procurámos onde a tínhamos vi sto antes. Vasculhámos o lago e
voltámos do avesso todas as folhas dos nenúfares. Quase chegá­
mos a dar um vomitório aos peixes dourados . Mas a verdade é qMe
o rubi nunca saíra do mesmo sítio.
Di zendo isto, Hardcastle fi tava os olhos opalescentes e a boca
barbuda e sorri dente do Mestre, cujo sorriso se acentuara
levemente. Essa expressão levou os outros a descontraírem-se sol ­
tando um suspiro de alívi o.
- Isto foi a nossa sal vação - murmurou Lord Mounteagl e
ai nda um pouco nervoso. - Não há a menor dúvida de que tu do se 1 2 7
passou tal como você acaba de di zer. Foi um i ncidente lamentável
e não sei como pedir desculpas . . .
- Não guardo ressentimento - declarou o Mestre da Monta­
nha sempre a sorrir. - Isto em nada me atingiu.
Enquanto os outros continuavam a manifestar o seu regozijo,
sendo Hardcastle o herói da festa, o frenologista das suíças regres­
sou à sua estranha barraca. Ao voltar-se, teve a surpresa de ver
atrás de si o padre Brown.
- Desej a que apalpe as suas bossas? - inquiriu o perito no
seu tom levemente sarcástico.
- Não me parece que o senhor tenha ainda vontade de apalpar
- retorquiu o padre com bonomia. - Você é detective, não é?
- Sou. Lady Mounteagle contratou-me para vigiar o Mestre,
porque, apesar de todo aquele mistici smo, ela não é tola. Assim,
mal ele saiu da tenda, fui logo atrás, fazendo-me passar por cha­
to ou maníaco. Se alguém tivesse vindo à minha tenda eu não te­
ria outro remédio senão ir estudar na Enciclopédia o que lá diz
acerca de «Bossas>> .
- O senhor fez bem o seu papel d e chato que persegue as pes­
soas nos bazares.
- Que caso estranho este, não foi? - observou o fal so frenolo-
gista. - Que coisa esquisita a pedra ter estado sempre ali !
- Muito estranho - repetiu o padre .
Qualquer coisa no seu tom de voz fe z que o outro olhasse:
- Oiça lá! - exclamou - Que é que lhe deu? Por que está com
esse ar? Não acredita que a pedra tivesse estado lá sempre?
O padre Brown pi scou os olhos como se tive sse recebi do uma bo­
fetada. Depois proferiu lentamente, com hesitação:
- Não . . . o caso é que ... não posso . . . não consigo acredi tar.
- Bem, o senhor não é daqueles que são capazes de di zer isso
sem uma razão - observou o outro, desconfiado. - Por que j ulga
e ntão que o rubi não esteve sempre lá?
- Porque fui eu que o voltei a pôr lá - confessou o padre
Brown.
O homem ficou pregado ao chão, como se tivesse os cabelos em
pé . Abriu a boca, mas não conseguiu falar.
- Ou melhor - prosseguiu o padre -, eu é que convenci o la­
drão a deixar que eu a pusesse lá. Disse-lhe que tinha adivinha­
do tudo e mostrei-lhe que ainda era tempo de se arrepen der. Não
tenho escrúpulos de lhe di zer i sto como confi dência entre profi s sio­
nais. Além disso, não me parece que os Mounteagles apresentem
queixa, uma vez que conseguiram reaver o objecto furtado e ten­
do em conta quem foi o ladrão.
- Refere-se ao Mestre . . . ? - inquiriu o fal so Phroso.
- Não - informou o padre Brown -, não foi o Mestre que rou-
128 bou .
- Mas então não percebo - objectou o outro. - Ninguém es­
tava do outro lado do muro senão o Mestre; e a mão, não há dúvi­
da, vinha de lá . . .
- A mão veio lá de fora, mas o ladrão estava cá dentro - ex­
plicou o padre Brown .
- Parece que estamos outra vez a cair na conversa dos místi­
cos. Escute lá. Eu sou um homem prático. O que me i nteressa sa­
ber é se agora está tudo bem em relação à pedra . . .
- Antes d e saber da exi stência d o rubi já e u sabia q u e estava
tudo mal - declarou o padre .
E depoi s de uma pausa começou num tom pensativo:
- Logo que os vi a discutir, junto das tendas, percebi que algu­
ma coisa não estava certa. Há quem diga que as teori as não in­
teressam e que a lógica e a filosofia não são coisas práticas. Não
acredite nisso. A Razão vem de Deus, e quando as coi sas estão fo­
ra da razão por algum motivo é . Vej amos ne ste caso quais eram as
teorias. Hardcastle m ostrava-se superior e afirmava que tudo era
possível; mas sem pre através do hipnotismo e da vi dência, nom es
estes com que se desi gnam habitualmente os enigmas filosóficos
dessa espéci e . Hunter, pelo contrário, achava essas coisas uma
pura aldrabice e queria desmascarar tudo. De acordo com o teste ­
munho d e Lady Mounteagle, e l e não só costumava desmascarar
adivinhos como tinha vi ndo aqui especialmente para desmascarar
este . Era raro ele vir cá. Não se dava bem com Lord Mounteagle a
quem pedia constantemente dinheiro emprestado porque era um
esbanjador; mas quando soube que o Mestre estava cá, veio logo.
Muito bem . Ora, apesar di sto, quem se di spôs a consul tar o bruxo
foi Hardcastle e Hunter recusou-se . Declarou que não perdia tem­
po com tais disparates ; i sto, depois de haver passado parte da vi ­
da a provar que aquilo eram patranhas . Parece que não faz senti ­
do. Ele pensava que, neste caso, se tratava de consultar a bola de
cristal , mas descobriu que era através da leitura da m ão.
- Quer di zer que isso foi uma desculpa? - perguntou o outro,
intrigado.
- Assim pensei , de ínicio, mas sei agora que não foi uma des­
cul pa, mas sim uma razão. Ele ficou desorientado quando soube
que se tratava de ler na palma da mão porque . . .
- Porquê? - perguntou o outro com impaciência.
- Porque não queria descalçar a luva - explicou o padre
Brown.
- Descal çar a luva? - repetiu o outro.
- Se o fizes se - prosseguiu suavemente o padre, - veríamos
todos que tinha a mão pintada de castanho claro ... oh, sim , ele veio
especialmente por saber que estava cá o Mestre. E vinha prepa­
rado.
- Quer o senhor dizer que foi a mão de Hunter - exclamou Ph-
roso - que vimos sair da arcada? Mas ele estava junto de nós . . . 1 29
- Vá experimentar lá no sítio e verá se não é possível - di s­
se o padre . - Hunter deu um salto e debruçou-se para fora; num
abrir e fechar de olhos conseguiu descalçar a l uva, arregaçar a
manga e dar a volta ao pilar com o braço; ao mesmo tempo, deitou
a outra m ão ao indiano e gritou que apanhara o ladrão. Nesse mo­
mento, observei que ele o agarrava só com uma das mãos, quando
qualquer pessoa de juizo utilizaria as duas. Com a outra estava ele
a meter o rubi no bolso das calças!
Seguiu-se uma l onga pausa até que o ex-frenologista m urmu­
rou lentamente:
- Bem, isto é espantoso. Mas há uma coisa que continua a in­
trigar-me. Para já, nada explica a estranha atitude do velho má­
gico. Se ele está totalmente inocente, por que raio não o di sse l ogo?
Por que é que não se mostrou indignado quando o acusaram e lhe
passaram revista? Por que é que continuou a sorrir daquel a manei­
ra, dando a entender com o seu ar astuto que consegue fazer coi ­
sas incríveis e maravilhosas?
- Ah - exclamou o padre Brown, agora numa voz m ais agu­
da -, aí é que bate o ponto: aí está tudo o que as pessoas não en­
tendem nem querem entender! As religiões são todas iguais, afir­
ma Lady Mounteagl e . Mas serão, caramba? Garanto-lhe que al­
gumas são de tal modo diferentes que o melhor adepto de um a
crença pode ser um malandrim, ao passo que o pior de outra delas
pode até ser um sujeito sensível . Eu di sse que não gostava do po­
der espiritual , porque a expressão acentua a palavra «poder>>. Não
quero di zer que o Mestre seja capaz de roubar um rubi porque pro­
vavelmente não é esse o caso. Até porque vale a pena achar que não
vale a pena. Decerto que não se sente especialmente tentado pelas
jóias; o que o tenta, isso sim , é conqui star a fama de fazer milagres,
fama esta que lhe não pertence, tal como o rubi . Foi nessa espécie
de tentação que ele caiu hoje, nessa espécie de roubo. Ele qui s que
acreditássemos no seu maravilhoso poder mental , que é capaz de
fazer que um objecto material se desloque através do espaço. M ui­
to embora não o tenha conseguido, fe z que acreditassem nisso. O
caso da propriedade privada não lhe ocorreu como a coi sa mai s im­
portante. A questão não se pôs, para ele, da seguinte forma: «Se­
rei eu capaz de roubar o rubi?>> Mas sim desta outra: «Serei eu ca­
paz de fazer desaparecer esta pedra e fazê-la aparecer num a mon­
tanha distante?» A quell} pertencia a pedra foi coi sa que para ele
não tinha importância. E a isto que me refiro quando falo nas di ­
ferenças que existem entre as religiões. O homem sente-se muito
orgulhoso por possuir aquilo a que chama poderes espirituai s . Mas
o que ele designa por espirituais não corresponde ao que nós cha­
mamos morai s. Significa ante s mentai s: o poder da mente sobre a
matéria; o mágico a controlar os elementos . Ora nós não somos is-
13 o so. Mesmo quando somos piores. Nós, que, pelo menos, somos fi -
lhos de pais cristãos, que crescemos debaixo daquel as arcadas me­
dievais, m uito embora as tenhamos adornado com todos os demó­
nios da Ásia, temos ambições e conceitos opostos. Estaríamos to­
dos ansiosos que ninguém suspeitasse que tinha sido um de nós a
roubar a pedra. Ele estava de facto desejoso de que todos julgassem
que tinha sido ele, muito embora não fosse. Estava a roubar a fa­
ma de ladrão. Ao passo que todos nós repelíamos a tal i deia de cri ­
me como se se tratasse de uma serpente, ele atraia-a a si como um
encantador de serpentes . Porém, ne ste país as serpentes não são
consideradas animai s de estimação. As tradições do Cristi ani smo
revelam-se imediatamente num caso destes. Vej a só Lorde Moun­
teagle, por exemplo! Por muito oriental e esotérico que se preten­
da mostrar, com o seu turbante e a sua túnica, rodeado de mensa­
gen s de Mahatmas, quando lhe roubam de sua casa uma pe dra
preciosa e os amigos são todos suspeitos, não tardamos a ver nele
um vulgar cavalheiro inglês todo atrapalhado. O autor da proe za
também não desejaria que soubéssemos que tinha sido ele, porque
é um cavalheiro inglês. E, além disso, há outra coi sa muito mai s
importante: é u m larápio cristão. E espero be m que seja u m lará­
pio arrependi do.
- Portanto, no seu entender - di sse, rin do, o companheiro ­
, o larápio cristão e o criminoso pagão representam dois conceitos
opostos . O primeiro lamentava ter cometi do o delito, o segundo la­
mentava não o ter cometi do.
- Não devemos ser severos para qualquer del es - declarou o
padre Brown . - Outros cavalheiros ingleses também roubaram
antes e beneficiaram de protecção legal ; o Oci dente tem as suas
maneiras de proteger a ladroeira com sofismas . Afinal de contas,
este rubi não foi a única pedra preciosa do mundo a mudar de do­
no. O mesmo tem sucedi do a outras gemas, algumas e sculpi das co­
mo camafeus e colori das como as flores .
O outro olhou para o padre com ar intrigado e este explicou,
apontando com o dedo para o contorno gótico da velha abadia:
- Esta enorme pedra esculpi da também foi roubada.

131
CAPÍTULO VIII

O INCONSOLÁVEL MARQUÊS DE MARNE

O clarão de um relâmpago iluminou subitamente os bosques


escuros, revelando toda a folhagem até à m ai s pequenina folha en­
rolada, como se cada pormenor fosse bordado ou esculpido em pra­
ta maciça. O mesmo estranho efeito de 1 uz que parecia registar mi ­
lhões de pormenores num só i nstante, iluminou tudo, desde o ele­
gante serviço de loiça do piquenique, espalhado no chão, debaixo
daquela árvore frondosa, até aos brancos confi ns da estrada sinuo­
sa ao fundo da qual estava estacionado um carro branco. Lá longe,
a triste mansão com as suas quatro torres, à semelhança de um
castelo que, na penumbra da tarde e à distância, não passava de
um amontoado de paredes que se confundiam com as nuvens, foi
como se brotasse do chão e se erguesse com todos os seus telhados
pontiagudos e as suas janelas desertas. E , pelo menos neste sen­
ti do, a luz desempenhava o papel de uma revelação. Porque, para
algumas das pessoas reunidas debaixo da árvore, aquele castelo
era, na verdade, uma coisa quase esquecida que iria surgir de no­
vo no cenário das suas vidas.
A luz do relâmpago envolveu também, por um instante, no
mesmo esplendor prateado uma figura humana que se achava tão
imóvel como qualquer das torres. Tratava-se de um homem alto,
de pé sobre uma elevação do terreno, acima dos outros circunstan­
tes, na sua maioria sentados na relva ou curvados a recolher a ca­
nastra e as loiças. Envergava um casaco curto, fechado por um col­
chete, e uma corrente de prata, que brilhou como uma estrela ao
reflectir o relâmpago. Havia qualquer coisa de metálico na sua fi­
gura imóvel, reforçada pelo facto de o seu cabelo cortado rente ser
daquele amarelo brilhante a que se pode realmente chamar cor de
ouro. A sua figura parecia m ais jovem que o rosto. Este era belo,
no seu tipo aquilino. Porém, observado com uma luz forte, parecia
um pouco enrugado e gasto, efeito talvez da caracteri zação cons­
tante, uma vez que Hugo Romaine era o actor mais famoso da sua
época. Naquele i nstante de iluminação, os caracóis dourados, a
132 máscara d e marfim e o enfeite de prata fizeram brilhar aquela fi -
gura como se se tratasse de um cavaleiro com armadura. No ins­
tante seguinte, voltou a ser uma silhueta escura ou mesmo negra
sobre o pano cinzento e triste do crepúsculo chuvoso.
Havia, porém, qual quer coi sa na sua imobili dade que o distin­
guia do grupo de pessoas que se e ncontravam a seus pés. Todas
aquelas figuras tinham feito o m e smo movimento involuntário sob
o i nesperado choque da luz; é que, embora o céu estivesse carrega­
do, era aquele o primeiro :relâmpago da trovoada. A única senho­
ra presente, cuj o j eito de ostentar graciosamente a cabeleira bran­
ca a revelava como sendo americana, fechou com naturalidade os
olhos, soltando u.m pequeno gri to. O marido, o general Outram, in­
glês, oficial das lndias, emperti gado e careca, com umas suíças e
um bigode preto à moda antiga, limi tou-se a erguer os olhos num
gesto vivo e voltou à sua tarefa de arrumar as coisas. Um jovem de
nome Mallow, mui to alto e tímido, com uns olhos castanhos e ca­
ni nos, deixou cair uma chávena e pediu desculpas, muito atrapa­
lhado. Um terceiro homem , bem vestido e com uma cabeça enérgi ­
ca como a de um fox terrier, com uma cabeleira grisalha penteada
para trás, era nem mai s nem m enos que o grande proprietário e
edi tor de jornais, Sir John Cockspur; praguejava abundantemen­
te, mas nunca no i dioma ou com o sotaque i nglês, poi s nascera em
Toronto. Entretanto, o sujeito alto de capa curta continuava lite­
ralmente imóvel como uma estátua no crepúsculo; o seu rosto de
águia sob o clarão desl umbrante lembrava o busto de um impera­
dor romano, pois nem sequer pestanejava.
Logo a seguir, na abóbada escura rebentou o trovão e a estátua
pareceu voltar à vi da. Virou a cabeça e disse, por cima do ombro,
num tom indiferente :
- Cerca de mi nuto e meio entre a luz e o ruído, mas creio que
se vai aproximar. Uma árvore não é decerto o melhor abrigo quan­
do trovej a, mas em breve vai ser-nos preciosa como guarda-chu­
va. Vem aí um dilúvio.
O jovem olhou para a senhora com uma certa ansiedade e m ur­
murou :
- Não poderíamos abri gar-nos noutro sítio? Parece que há ali
uma casa.
- Há ali uma casa - observou o general, carrancudo -, mas
não o que se poderá consi derar um hotel hospitaleiro.
- E estranho - respondeu tristemente a mulher, - sermos
apanhados por uma trovoada l ogo aqui , onde a única casa que ve­
mos é precisamente aquel a . . .
Qualquer coisa no tom e m q u e el a fal ara impressionou o rapaz
que era sensívwel e compreensivo. Porém , o homem de Toronto não
deu por nada.
- Que é que tem a casa? - i n quiriu. - Parece que está em ruí­
nas. 133
- Aquela casa - infonnou secamente o general - pertence ao
marquês do Marne.
--; Ena! - exclamou Sir John Cockspur - Já ouvi falar nessa
ave. E um tipo esqui si to. No ano passado fi gurou como tema de pri ­
meira página de mistérios do Comet: «0 fi dalgo que ninguém
conhece .»
- Sim, também j á ouvi falar deles - murmurou o jovem Mar­
l ow em voz baixa. - Contam-se histórias incríveis acerca do mo­
tivo de ele se esconder desta maneira. Uns di zem que usa uma
máscara porque é leproso. Mas alguém me afirmou como certo que
existe uma mal dição na família: uma criança teria nasci do com
uma deformi dade horrível e eles têm-na escondida num quarto es­
curo.
- O marquês do Mame tem três cabeças - declarou Romaine
com um ar m uito grave . - De três em três séculos a árvore genea­
lógica deles é adornada com um nobre que nasce com três cabeças.
Nenhum ser humano se atreve a aproximar-se daquela casa mal­
di ta a não ser um cortejo de chapeleiros que ali vai em silêncio for­
necer uma reserva anormal de chapéus . Mas acontece, meus caros
amigos - e aqui a voz de Romaine assumiu um daqueles tons pro­
fundos e terríveis que causavam calafrios no teatro -, que esses
chapéus têm uma forma humana.
A dama americana olhou para ele de sobrolho fran zido como se
aquele tom teatral a tivesse impressionado mesmo contra sua von­
tade.
- Não aprecio as suas brincadeiras de mau gosto - declarou
- e preferia que não gracejasse com este assunto.
- Oiço e obedeço - replicou o actor -, mas será que eu, tal co-
mo a Brigada Ligeira, não tenho sequer licença para perguntar
porquê?
- A razão disso - começou el a - é que esse sujeito não é de
modo algum o fi dalgo que ninguém conhece. Eu conheço--o ou, pe­
l o menos, conheci-o há trinta anos, quando todos éramos novos e
ele estava como adi do na nossa Embaixada em Washington. Nes­
se tempo, não usava máscara, isto é, nunca a usou na minha fren­
te. Nem era leproso, embora fosse já um soli tário. Também só ti­
nha uma cabeça e um só coração, e esse estava destroçado.
- Um caso de amores infelizes, claro - di sse Cockspur. - Gos­
taria de saber esse caso para o Comet.
- Penso que isso significa da sua parte um cumprimento pa­
ra nós, mulheres. Acha que o coração dos homens só pode ser des­
troçado por uma mulher. Mas exi stem outras espécies de amor e
de desgosto. Nunca leu ln Memorian ? Nunca leu a hi stória de Da­
vi d e de Jónatas? O que acabou com o pobre do Mame foi a morte
de um innão; na realidade, eram só primos direitos, mas tinham
1 34 si do criados juntos e eram muito unidos, mais que alguns irmãos
de verdade. James M air, que era o nome do marquês quando eu o
conheci, era o mai s velho dos dois, mas era ele o devoto, ao passo
que o outro estava no lugar do deus. E, na opinião do primo, Mau­
rice Mair era de facto maravilhoso. James não era nada parvo; de­
sempenhava mesmo muito bem o seu lugar político, mas parece
que Maurice fazia isso mesmo e muito m ais. Era um artista bri­
lhante, actor e músico e tudo o mais . James também era muito bem
parecido, alto, forte, enérgico, com um nariz direi to; embora eu
ache que ele devia parecer estranho à gente nova, com aquela bar­
ba separada em duas suíças à moda vitoriana. Maurice, pelo con­
trário, usava a cara rapada e, pelos retratos que me mostraram,
devia ser mesmo boni to, embora lembrasse m ais um tenor de ópe ­
r a q u e u m cavaleiro. James passava a vi da a perguntar-me s e eu
não achava o primo uma maravilha, capaz de apaixonar qual quer
mulher, etc. Isto a ponto de se tomar enfadonho, até que tudo deu
em tragédia. A vida dele estava centrada naquela i dolatria, até
que um dia o ídolo caiu e quebrou-se com o uma boneca de loiça.
Apanhou um resfri ado na praia e pronto!
- E foi depois di sso - perguntou o rapaz -, que ele se fechou
em casa?
_ - A princípio foi para o estrangeiro - respondeu ela. - Para
a Asia e para as ilhas Canibais . . . sabe-se lá por onde andou. Estes
golpes profundos afectam as pessoas de diferentes maneiras. A es­
te, levou-o a cortar com tudo, até com a tradição e, tanto quanto
possível, com as recordações. Não admitia qualquer referência a
essa ligação com o passado. Nem um retrato, nem nem uma histó­
ria, nem sequer uma associação de i deias. Não conseguiu aguen­
tar a cerimónia de um grande funeral público. Só queria desa­
parecer. Esteve ausente dez anos . Ouvi uns boatos de que el e re­
começara a viver um pouco no fim do eXI1io; mas quando voltou à
sua casa, retirou-se com pletamente de tudo. Fechou-se numa me­
lancolia religiosa que é praticamente loucura.
- Di z-se que foram os padres que tomaram con�a dele - res­
mungou o velho general . - Sei que ofereceu milhares de libras pa­
ra a fundação de um mosteiro e que el e próprio vive como um mon­
ge, ou melhor, um ermita. Não sei que bem eles julgam que possa
vir daí.. .
- Supe rstições estúpidas - rosnou Cockspur. - E ssas coi sas
deviam ser denunciadas. Aí está um homem que podi a ser útil ao
Império e ao mundo e e sses vampiros sugam-no até aos ossos .
Aposto que foram eles, com as suas manias anti-naturais, que
nem sequer o deixaram casar . . .
- Não, ele nunca s e casou - informou a dama. - De facto,
quando o conheci estava noivo, mas penso que não era i sso que
mais o interessava e desistiu de se casar, como de tudo o resto . . . Tal
como Hamlet e Ofélia, perdeu o gosto pel o amor porque perdeu o 1 3 5
gosto pela vi da. Eu conheci a rapariga. De facto ainda me dou com
ela. Aqui para nós, era Viola Grayson, a filha do velho almirante .
Também ela nunca se casou.
-É i nfame ! É infernal ! - saltou de lá Sir John. - Não se tra­
ta apenas de uma tragédia, mas sim de um crime . Tenho deveres
para com o público e faço tenção de denunciar essse estúpi do caso . . .
Francamente, n o século XX. . .
Quase sufocava com a violência d o protesto. Depoi s d e u m si­
lêncio, o velho militar declarou:
- Bem, não me gabo de saber grande coi sa acerca destes as­
suntos, mas penso que esses senhores deviam estudar um texto
que di z assim : «Deixemos os mortos enterrarem os seus mortos.»
- Só que, infeli zmente, parece que é i �so mesmo que se passa
- murmurou, suspirando, a mulher. - E como a história arre-
piante de um morto a enterrar outro morto ano após ano, sem nun­
ca acabar.
- A trovoada passou - observou Romaine com um sorri so
enigmático. - Afinal a senhora j á não tem de visitar aquela casa
i nóspita.
Ela estremeceu :
- Oh, não voltarei lá nunca mai s !
Mallow olhou p ar a ela, espantado:
- Porquê? Já tentou lá entrar? - excl amou .
- Sim. Uma vez - declarou ela com um leve tom de desafio.
- Mas não vale a pena falar nisso. Já não chove e é melhor irmos
andando até ao carro.
Quando seguiam em proci s são, com Mallow e o general a fechar
o cortejo, este di sse de repente, baixando a voz:
- Não quero que esse malandrete do Cockspur nos ouça, mas
uma vez que você perguntou, sempre lhe digo. Há uma coisa que
não posso perdoar ao Marne, m as penso que foram os frades que
lhe deram a volta à cabeça. A minha m ulher, que era a melhor ami ­
ga que ele tinha quan do estava na América, foi, de facto, um dia lá
a casa. Ele andava a passear n o j ardim. Trazia os olhos fixos no
chão como os frades e andava todo tapado com um capuz negro, ri­
dículo como um fato de carnaval . Ela tinha-lhe m an dado entregar
o seu cartão de vi sita e estava ali no jardim à espera dele. O sujei­
to passou por el a sem uma palavra, sem sequer a olhar, como se ela
fosse uma estátua de pedra. Não parecia um ser humano: era com o
um autómato medonho. Ela bem pode afirmar q u e e l e e s tá morto.
- Isso é muito estranho - murmurou vagamente o rapaz. ­
Não é nada . . . nada do que eu esperava.
O jovem Mr. Mallow, no fim daquele tristonho piquenique foi ,
muito preocupado, procurar u m amigo. Não conhecia nenhum fra­
de, mas apenas um padre e estava ansioso por o pôr ao facto das cu-
13 6 riosas revelações que lhe haviam si do feitas naquela tarde . Ti nha
muito empenho em ser esclareci do acerca das cruéis superstições
que pairavam sobre a casa de Marne, sem elhantes às negras nu­
vens de trovoada que haviam ensombrado o passei o. Depoi s de o
procurar de um lado para o outro, acabou por locali zá-lo em casa
de outro amigo, também católi co, que tinha uma família numero­
sa. Ao entrar de rompante foi encontrar o padre Brown sentado no
chão, com o seu ar mai s sério, a tentar enfiar na cabeça de um ur­
so de peluche um chapéu todo florido que pertencia a uma boneca.
Mallow ficou um pouco atrapalhado, mas estava demasiado obce­
cado pelo seu problema para adi ar a conversa. Senti a-se abal ado
devido a um processo que há tempos trazia no seu subconsci ente .
Referiu, pois, ime diatamente toda a históri a que ouvira da boca da
mulher do general e ai nda os comentários deste e do proprietári o
d o jornal .
O padre Brown, que nunca tratava de saber se as suas atitudes
eram ou não ridículas nem se importava com i sso, conti nuou sen­
tado no chão, o que, em virtude da sua grande cabeça e pernas cur­
tas, o fazia parecer-se com um bebé entretido com os seus brinque­
dos . Porém, nos seus olhos grandes e cinzentos surgira uma ex­
pressão que mui tas vezes se tem observado ao longo de dezanove
séculos nos olhos de mui tos homens. Só que, em geral, esses ho­
mens não estão sentados no chão, mas em mesas conciliares, em
cadeiras de capítulo, em tronos de bispos ou cardeai s; um olhar di s­
tante, preocupado, cheio de humil dade de quem se sente investi­
do de um cargo dem asiado grande para o ser humano. Um olhar
que, em certa medi da, se observa nos marinheiros e naquel es que,
através de muitas tempestades, continuam a governar a barca de
S. Pedro.
- Foi muito simpático da sua parte ter vi ndo contar-me isto
- disse ele . - Fico-lhe muitíssimo grato, poque tem os de tomar
provi dências a esse respeito. Se se tratasse apenas de pessoas co­
mo você e o general, seria apenas um caso particular; mas se Sir
John Cockspur vai transformar i sso num escân dalo, nos jornai s . . .
be m , ele é d e Toronto e pertence a uma seita protestante ferrenha,
não nos podemos esquecer di sso.
- Mas que me di z o senhor acerca deste caso? - inquiriu an­
siosamente Mallow.
- O que eu digo, para começar, é que, tal como você mo descre­
veu, o caso me parece inverosímil . Suponhamos, é uma hi pótese,
que nós somos todos vampiros terríveis que destruímos toda a fe­
lici dade humana. Suponhamos que eu sou um desses vampiros. -
Coçou o nari z com o urso de peluche, reparou na estranheza do
gesto e pousou o brinquedo no chão. - Suponhamos que destruí-
mos todos os laços humanos e familiares. Por que é que havíamos
de ir amordaçar um homem num antigo laço de faml1ia quando ele
estava precisamente a dar si nai s de começar a libertar-se del e? 1 3 7
Não é lógico acusarem-nos de esmagar tais afectos e, ao mesmo
tempo, de alimentarmos essa paixão doentia. Não admito que ha­
j a qualquer religioso maníaco capaz de encorajar semelhante ob­
sessão, ou que exista uma religi ão qualquer que assuma tal atitu­
de sem oferecer um mínimo de esperança. - E, depois de uma pau­
sa, acrescentou : - Tenho de ir fal ar com esse general !
- A m ulher dele é que me contou a história - di sse Mallow.
- Sim - tornou o padre -, mas eu estou mai s i nteressado em
saber aquilo que o m ari do não lhe contou que aquilo que ela lhe
disse.
- Acha então que ele sabe mai s que a senhora?
- Penso que ele sabe mais que o que ela diz - respondeu o pa-
dre Brown. - Você repetiu uma frase em que ele di z perdoar tu­
do menos ele ter sido m alcriado para a mulher. Então que haveria
mais para perdoar?
O padre Brown já se ti nha l evantado. Sacudiu as roupas i n ­
formes e olhou para o rapaz com os seus olhos penetrantes e i nqui ­
ri dores. A seguir voltou-se e, pegando no guarda-chuva igualmen­
te informe e no grande chapéu velho foi-se embora, rua abaixo.
Percorreu praças e aveni das até ir parar j unto a uma vivenda
de estilo antigo, no West End. Aí, perguntou à criada se poderia fa­
lar com o general Outram . Após uma curta troca de palavras foi in­
troduzido num escritório onde se viam :rp. ais mapas e globos que li­
vros . Deparou com o antigo mil itar das ln dias sentado a fumar um
charuto comprido e fino enquanto se entretinha a espetar alfine­
tes num mapa.
- Desculpe a i nvasão - começou o padre -, tanto mais que
não posso deixar de encarar i sto como um atrevimento. Queria fa­
lar-lhe de um assunto particular, mas só com a condição de ele fi ­
car entre nós . Infeli zmente, há quem o queira tornar público. Meu
General, j ulgo que o senhor conhece Sir John Cockspur . . .
O matagal dos bigodes e das suíças negras servia para ocultar
a parte inferior do rosto do general . Tornava-se difícil ver quando
ele sorri a. O s seus olhos, porém, pi scaram de malícia quando res­
pondeu:
- Toda a gente o conhece . Por mim não o conheco lá muito bem.
- Ora o senhor bem sabe que tudo aquilo que ele sabe, toda a
gente o fica a saber, desde que ele ache por bem publicá-lo - re­
torquiu, sorri n do, o padre Brown. - Fiquei a saber através do meu
amigo Mallow, que, pelos vi stos, o senhor também conhece, que Sir
John tenciona publicar uma série de artigos fortemente anti-cle­
ricais baseados no que poderemos chamar o Mistério Marne . «Fra­
des Enlouquecem Marquês>>, etc . . .
- Se assim é - retorquiu o general -, não vejo por que razão
o senhor me vem falar nisso. Devo dizer-lhe que sou Protestante
138 convicto.
- Aprecio muito os protestantes convictos - tornou o padre
Brown . - Vim ter com o senhor porque tenho a certeza de que ou­
tro tanto não fará Sir John Cockspur.
Os olhos castanhos do general piscaram de novo, mas ele nada
acrescentou .
- Meu General - começou o padre Brown -, suporthamos que
Cockspur ou outro da sua laia começava por aí a espalhar calúnias
contra o nosso país e os seus valores . Suponhamos que ele afirma­
va que o seu regimento recuara na batalha, ou que os seus coman­
dantes estavam a sol do do inimigo. O senhor seria capaz de ficar
qui eto e não revelar factos que desfizessem tai s mentiras? Não iria
procurar revelar a verdade, doesse a quem doesse? Ora bem, eu te­
nho o meu regimento e pertenço a um exército que está a ser de­
sacreditado por aquilo que consi dero uma história falsa. Alguém
me pode censurar por querer tirar o caso a limpo?
O general ficou calado e o padre pr_o sseguiu:
- Ouvi a história que contaram ontem a Mallow, ónde se di z
que Mame fi cou destroçado com a morte de um irmão muito que­
ri do. Estou certo de que aí deve haver mai s q ualquer coi sa e vim
perguntar-lhe se sabe o que é .
- Não - respondeu o general -, não lhe posso di zer mais
nada.
- Meu General - tornou o padre com um sorri so -, se fosse
eu a dar essa resposta o senhor chamava-m e j esuíta . . .
O outro riu ruidosamente e depoi s tornou, num tom mai s
hostil :
- Poi s então respondo que não quero diz er. E agora?
- E agora - respondeu suavemente o padre -, serei eu que
terei de di zer mai s qualquer coisa.
Os olhos castanhos do outro continuavam a fitá-lo, mas já sem
o brilho malicioso.
- O senhor obriga-me a afirmar, mais cruamente que se fos­
se o senhor a fazê-lo, porquerazão se torna evi dente que há qual ­
quer coi sa estranha em toda essa história. E stou plenamente con­
venci do de que o marquês tem outras razões para a sua tristeza e
afastamento, além do facto de ter perdi do o i rm ão. Duvido que os
padres tenham alguma coisa a ver com isso; ignoro mesmo se ele
se converteu ou se apenas tenta confortar a sua consciência prati­
cando a cari dade ; porém, estou certo de que ele é outra coisa mai s
que um irmão i nconsolável . Já que insi ste, dir-lhe-ei uma ou duas
coisas que me l evaram a pensar assim .
»Primeiro disse que James Mair estava para se casar mas
que se desi nteressou do casamento após a m orte de Maurice Mair.
Ora por que motivo é que um cavalheiro re spei tável quebra o seu
compromisso simplesmente porque ficou deprimi do após a morte
de uma terceira pessoa? Seria mai s provável que se casasse em 1 3 9
busca de consolação; de qualquer modo, porém, por uma questão
de decência, devia ter levado por diante a sua promessa.
O general mordia o bigode e os seus olhos escuros tinham toma­
do uma expressão atenta ou até m enos ansiosa, mas não respon­
deu .
- Segundo ponto - prosseguiu o padre, d e olhos fixos na me­
sa. - James Mair perguntava constantemente à sua amiga se não
achava o irmão fascinante, capaz de suscitar a admiração de
qualquer mulher. Não sei se alguma vez teria ocorrido a essa ami­
ga que a pergunta poderia ter outro si gnificado.
O general pôs-se de pé e começou a passear de um lado para o
outro, ou m elhor, a bater com os pés no chão.
- Oh, diabo levem tudo i sto - exclamou, mas sem qualquer
tom de animosi dade.
- O terceiro ponto - conti nuou o padre Brown -, é a manei ­
ra estranha de James Mair manifestar o seu conceito de luto: des­
truindo todas as recordações, escondendo todos os retratos, etc .
Admito que i sso, por vezes, aconteça e pode significar desgosto
afectivo, mas também pode significar outra coi sa.
- Diabos o levem! - exclamou o outro. - Por quanto tempo
vai o senhor continuar com isso?
- O quarto e o quinto pontos são bem conclusivos - tornou o
padre calmamente -, sobretudo se os consi derarmos em conjun­
to. Primeiro, Maurice Mair não me parece ter tido um enterro es­
pecial , atendendo a que era o filho mai s novo de uma família ilus­
tre . Deve ter si do enterrado à pressa, talvez mesmo secretamen­
te. E o último ponto é que James Mair desapareceu logo para o es­
trangeiro. Fugiu, de facto, para os confi ns da Terra. E assim ­
prosseguiu ele, sempre com a mesma voz suave - quando os se­
nhores procuram denegrir a mi nha religião com o objectivo de em­
polar o perfeito amor entre doi s irmãos, quer-me parecer. . .
- Cale-se ! - gritou Outram num tom de voz que mais pare­
cia um tiro de pistola . - Vou contar-lhe algumas coisas senão o se­
nhor ainda vai pensar o pior. Para já, deixe que lhe diga uma coi­
sa. Foi um combate leal !
- Ah! - exclamou o padre Brown como quem exala um l ongo
suspiro.
- Foi um duel o - prosseguiu o outro. - Provavelmente o úl­
timo duelo que se travou em Inglaterra, já lá vão bastantes anos.
- Foi melhor as si m - murmurou o padre Brown . - Graças a
Deus! Foi muito melhor!
- Melhor que todas essas coi sas horrendas que o senhor já es­
tava a imaginar, não? - resmungou o general. - Poi s bem, pode
torcer o nariz em face deste puro e perfei to afecto, mas ele era bem
verdadeiro. James Mair era realmente muito dedicado a este seu
1 4O primo direito que fora criado junto dele com o um irmão. Os irmãos
mai s velhos dedicam-se assim, mui tas vezes, a outro m ais novo,
sobretudo quando este é uma espécie de fenómeno. Porém, James
Mair era o tipo de pessoa simples em que o próprio ódio não é, por
assim di zer, egoísta. Quero referir que mesmo quando a sua ternu­
ra se transforma em raiva, mesmo assim é obj ectiva, fica alheia ao
objecto dela; permanece i nconsciente . Ora o pobre Maurice Mair
era preci samente o tipo oposto. Tinha um fei tio mui to mai s alegre
e popular; porém, os seus êxitos faziam-no viver num a sala de es­
pelhos . Era ele sempre o primeiro em toda a espécie de desportos
e actividades artísticas. Ganhava quase sempre e aceitava alegre­
mente o triunfo. Mas se, por acaso, perdia, vi nha logo à superfície
o seu aspecto menos amável . Ficava um pouco i nvejoso. Não é ne­
cessário expli car até que ponto el e tinha ciúmes do noivado do pri­
mo. A sua eterna vai dade não podia deixar de interferir. Devo di ­
zer que uma das coi sas em que James Mair o ultrapassava era, sem
dúvi da, no tiro ao alvo com pistola e foi esse o fim da tragé dia.
- O senhor quer di zer o princípi o - replicou o padre. - A tra­
gédia do sobrevivente . Logo pensei que não eram precisos os mon­
ges vampiros para o tornar infeli z . . .
- No meu entender ele não tinha motivos para se sentir tão
desgraçado - afirmou o general. - Como já disse, foi uma tragé­
dia horrível , mas leal . E o James foi muito provocado.
- Como é que o senhor sabe tudo isso? - i nquiriu o padre.
- Sei porque assi sti - respondeu Outram, carrancudo. - Fui
testemunha de James Mair e vi Maurice cair morto em cima da
areia, mesmo à minha frente .
- Gostaria que o senhor me falasse mais deste caso - pedi u
o padre Brown com ar pensativo. - Quem foi a testemunha de
Maurice Mair?
- O acompanhante dele era uma pessoa mui to mai s di stinta
que eu - respondeu o general com um ar sombrio. - Era o Hugo
Romaine. O grande actor, compreende? Maurice adorava repre­
sentar e ligara-se de ami zade com Romaine, que era então um j o­
vem já prometedor mas ainda longe do triunfo. Pagava-lhe as
aventuras em troca de lições de representação vi sto ser esse um
dos seus passatempos favoritos. Penso que Romai ne e stava, nes­
sa altura, na total dependência do amigo; se bem que hoje se tenha
tornado mai s rico que qualquer aristocrata. Por isso, não podemos
inferir, do facto de se haver prestado a servir de testemunha, qual
seria a sua opi nião acerca do duelo. O duelo era à maneira ingle­
sa: cada um deles só levava uma testemunha . Eu quis que, ao me­
nos, estivesse presente um médico, mas Maurice recusou com a
maior arrogância, alegando que «quanto menos pessoas tivessem
conhecimento da coisa, melhor» e que, caso fosse necessário, podía­
mos pedir auXI1io rapi damente. «Há um médico na al deia que fica
a menos de meia milha de distância>>, declarou ele . «Eu conheço-o. 1 4 1
Tem o cavalo mai s veloz que há por estas redondezas. Podemos tra­
zê-lo aqui num i nstante, mas não vale a pena chamá-lo senão
quando for preciso.>>
»Ora, todos nós sabíamos que era ele quem corria mai s ri sco,
uma vez que a pi stola não era o seu forte. Por isso, quando recusou
ajuda, ninguém se atreveu a insi stir. O duelo travou-se numa área
plana coberta de areia, na costa leste da Escócia. A vi sta e o baru­
lho ficavam interceptados, em relação às al deias mais próximas,
por uma longa cadei a de colinas cobertas de erva rala, hoje, prova­
velmente, terrenos de golfe, embora nesse tempo, em Inglaterra,
ainda ninguém soubesse o que isso era. Havia um vale profundo e
sinuoso entre as colinas e foi através dele que chegámos ao areal .
Parece que ainda agora estou a ver a cena: primeiro uma faixa de
areia amarela e a seguir outra mai s estreita, de um vermelho es­
curo; uma cor que parecia já um longo rasto de sangue.
»A coisa precipitou-se com incrível rapidez, como se um ciclo­
ne se tivesse abati do sobre o areal . Logo ao primeiro tiro Maurice
girou como um pião e caiu de borco. E, por estranho que pareça, eu,
que tinha estado preocupado com ele até àquele momento, mal o
vi morto, poi s toda a minha pena se transferiu para o homem que
o matara. E assim continuei a sentir até hoj e . Eu sabia que aque­
la grande ami zade do meu amigo havia de voltar à tona e que, mui­
to embora todos achassem que tivera mil desculpas para fazer o
que fi zera, ele é que nunca mai s se perdoaria a si próprio. Por is­
so, aquilo que ainda hoje tenho presente diante dos meus olhos, a
imagem que me ficou gravada na memóri a a ponto de nunca mai s
conseguir esquecê-la, não é a da catástrofe, do clarão, do fumo e do
corpo a cair por terra. Isso desapareceu como o som que nos acor­
da. O que eu vi então e que verei sempre é o pobre do James a cor­
rer para aquele que era ao mesmo tempo seu amigo e seu adversá­
rio ; a suá barba escura que parecia preta em contraste com a pa­
lidez do rosto, o recorte das suas fei ções contra o pano de fundo do
mar; os gestos frenéticos com que me dizia para ir chamar o médi­
co à al deia que ficava por detrás das colinas. Tinha deixado cair a
pi stola pelo caminho e levava uma luva na mão. Os dedos desta,
flutuando ao vento, acentuavam ainda mai s os seus gestos grotes­
cos a pedir ajuda. E esta a cena que me ficou na retina e também
ali não havia mai s nada para ver, além da paisagem, das areias,
do mar e do corpo morto e imóvel como uma estátua. E a figura ne­
gra da testemunha dele, imóvel também e sini stra, a recortar-se
no horizonte.
- Romaine ficou imóvel? - quis saber o padre . - Pensei que
ele deitasse a correr ainda mai s depressa para junto do corpo.
- Talvez o fizesse quando me afastei - replicou o general . ­
Este foi o quadro que eu vi de relance, porque no i nstante seguin-
1 42 te corri em direcção às colinas e fi quei fora do alcance da vi sta de-
les. Ora bem, o pobre do Mauri ce escolhera bem o médico; este, em­
bora já não chegasse a tempo de fazer nada, veio mai s depressa do
que eu poderia supôr. Aquele mé dico de aldeia era um homem no­
tável: ruivo, irrascível, capaz de uma grande rapi dez de acção e for­
te presença de espírito. Mal o vi saltar para cima do cavalo, aí foi
ele a correr para o local da tragé di a, deixando-me ficar para trás.
Num instante, tive noção da sua forte personali dade e l amentei
que não tivesse sido chamado antes de o duel o começar, porque , n o
meu íntimo, estava convencido, n ã o sei porquê, d e q u e e l e teria po­
di do evitá-l o. Dadas as circunstâncias, resolveu a situação com
grande despacho; antes de eu ter conseguido percorrer a pé o ca­
minho de regresso que ele fi zera a cavalo, j á o seu espírito práti co
.
e impetuoso solucionara tudo: o cadáver fora provi soriamente en­
terrado nas dunas e o infeli z criminoso aconselhado a fazer a úni­
ca coi sa possível : fugir dali para fora para salvar a pele. Foi andan­
do ao longo da costa até chegar a um porto donde conseguiu sair do
país. O resto j á o senhor sabe ; o pobre do James ficou-se pel o es­
trangeiro durante mui tos anos . Mai s tarde, quando tudo já esta­
va abafado ou esqueci do, regressou ao seu I úgubre castelo e herdou
automaticamente o títul o. Depoi s daquele di a, nunca mais o vi. No
entanto, sei o que está escrito em letras de fogo no mai s íntimo do
seu cérebro.
- Fiquei a perceber - observou o padre Brown - que os se­
nhores fi zeram alguns esforços para o vi sitar?
-A minha mulher não desi ste - explicou o general . - Ela re­
cusa-se a admitir que um tal crime destrua para sempre um ho­
mem e eu confesso-me inclinado a partilhar a sua opinião. Aqui há
oitenta anos, i sto seria consi derado perfeitamente normal . Na rea­
li dade é um caso de homicídio, mas não de assassinato. A minha
mulher é muito amiga da infeli z criatura que foi a caus a da tragé­
dia. Tem a certe za de que se Jam es consenti sse em voltar a ver Vio­
la Grayson e esta lhe afirmasse que as velhas questões estavam es­
quecidas, ele recuperaria a razão. A minha mulher convocou para
amanhã uma reunião dos velhos amigos de ambos. Ela é muito per­
si stente .
O padre Brown entretinha-se a brincar com os alfinetes que se
encontravam j unto do mapa do general e parecia escutar, um pou­
co distrai damente, o que o outro dizia. O seu cérebro era daquele
tipo que vê as coi sas em imagens; e a imagem que até a mente pro­
saica do militar vira revestida de cores emocionantes, tornava-se
ainda mais impressionante e sinistra ao ser evocada pelo pensa­
mento místico do padre . Via a vasti dão desolada da areia, com os
mesmos tons do Acel dama, o corpo morto no chão, o assassino a cor­
rer, todo inclinado para a frente, fazendo com a luva, gestos de lou­
co remorso. A sua imaginação, porém, voltava sempre àquele pon-
to que não conseguia encaixar em qualquer cena do género: a tes- 1 4 3
temunha do homem assassinado, imóvel e misteriosa, qual está­
tua negra n a beira do mar. Para outros, i sto poderia parecer um
pormenor sem importância; no entanto para ele continuava a re­
presentar um ponto vivo de interrogação. Por que é que Romaine
não deitara logo a correr? Era a reacção mai s natural da parte de
uma testemunha, uma questão de humani dade, tanto mais tra­
tando-se de um amigo. Ainda que se tratasse de uma fraude ou de
outro motivo obscuro, ainda por desvendar, dir-se-ia que ele de­
via ao menos ter corrido para salvar. as aparênci as . De qualquer
modo era natural que a testemunha se tives se posto em movimen­
to depois de tudo consumado e antes de a segunda testemunha ter
desaparecido para lá das colinas .
- J!i ga-me, esse tal Romaine move-se m uito lentamente?
- E curioso que o senhor me faça essa pergunta - respondeu
Outram, lançando-lhe uma olhadela súbita. - Não, a verdade é
que ele até se mexe muito depressa. Mas tem piada que ainda es­
ta tarde o vi exactamente na mesma posição, durante a trovoada.
E stava de pé, envergando aquela capa com fi velas de prata e a mão
na cinta, precisamente como eu o tinha vi sto naquela maldita tar­
de, no areal .
Todos nós ficámos ofuscados pelo relâmpago, mas ele nem pes­
tanejou . E , mesmo depois de escurecer, continuou imóvel .
- Creio que já lá não deve estar, poi s não? - inquiriu o padre.
- Isto é, penso que se deve ter i do embora.
- Poi s, moveu-se rapidamente quando soou o trovão - repli -
cou o outro. - Devia ter ficado à espera dele, porque nos di sse exac­
tamente o intervalo . . . que foi que aconteceu?
- Nada, piquei-me com um dos seus alfinetes - explicou o pa­
dre Brown . - Espero não lho ter estragado. - No entanto, os olhos
dele haviam pestanejado e a boca fechara-se subitamente.
- Sente-se mal? - perguntou o dono da casa, fitando-o.
- Não - respondeu o padre. - Só que não sou tão estóico co-
mo o seu amigo Romaine. Não consigo deixar de pestanejar quan­
do vejo uma luz.
Voltou-se para pegar no guarda-chuva e no chapéu, mas já
perto da porta deu mostras de se ter lembrado de qualquer coisa
e voltou atrás. Veio até junto de Outram, olhou--o bem de frente
com o ar desolado de um peixe fora de água e fez menção de lhe se­
gurar no colete. Depois murmurou:
- Meu General . Pelo amor de Deus faça que a sua mulher e es­
sa outra amiga dela não i nsistam em voltar a ver Marne . Que nin­
guém acorde o leão que dorme, senão teremos todas as feras do In­
ferno à solta. . .
O general ficou s ó e voltou a ocupar-se dos seus mapas com
uma expres são intrigada no fun do dos olhos.
1 44 Mais intrigados ainda iam ficando sucessivamente os simpáti-
cos membros da conspiração chefiada pela mulher do general, os
quai s se haviam reuni do para tomarem de assalto o castelo do mi­
santropo. A primeira surpre sa que tiveram foi causada pela ausên­
cia i nesperada de um dos intervenientes da velha tragé di a. Ao en­
contrarem-se num hotel pacato que ficava perto do castelo, nin ­
guém sabia dar notícias de Hugo Romaine até que um telegrama
de um certo advogado os vei o i nformar de que o actor deixara ines­
peradamente o país . A segunda surpresa, ao bombardearem o cas­
tel o com pedi dos de uma entrevista urgente, foi a fi gura que sai u
de uma das arcadas sombrias para os vir acolher em nome do no­
bre proprietário. Uma fi gura que nenhum deles consegui a relacio­
nar com aquelas soturnas aveni das e aquelas formali dades quase
feu dais. Não se tratava de um imponente mordomo, de um cri â do
elegante ou de um vi stoso porteiro. Quem saiu da porta caverno­
sa do castelo foi a fi gura modesta e atarracada do padre Brown.
- Oi çam lá! - declarou este com seus modos simples, um pou­
co enfadado. - Eu tinha dito que era melhor não virem incomodá­
-lo. Ele sabe o que faz e vocês vão assim provocar a infelici dade de
muita gente . . .
Lady Outram, q u e vinha acompanhada d e outra senhora, alta,
discretamente vestida e ai nda muito interessante, provavelmen­
te a tal Miss Grayson, olhou o padre com frio desdém .
- Não me diga, padre ! - retorquiu ela. - Isto é um caso mui ­
to especial e não percebo o que o senhor tenha a ver com ele.
- Os padres querem sempre meter o nari z nos casos especiai s
- resmungou Sir John Cockspur. - Não sabe a minha amiga que
el es são como os ratos que vivem no forro das casas, procurando
sempre introduzir-se nos nossos próprios quartos? Veja só como
conseguiram tomar posse do pobre Marne!
Sir John estava um pouco irritado porque os seus aristocráti­
cos amigos tinham-no convenci do a desistir de uma reportagem
sensacional em troca do privilégio de tomar parte num caso secre­
to da alta sociedade . Não lhe passava pel a cabeça perguntar a si
próprio se não seria ele m esmo um desses ratos que vivem no for­
ro das casas a espiar.
- Oh, está bem ! - exclamou o padre Brown num tom impa­
ci ente que era fruto da ansiedade. - Já falei com o marquês e com
o único padre com quem ele está relacionado; as suas preferênci as
clericais têm sido m uito exageradas . Garanto--vos que ele sabe
muito bem o que está a fazer e suplico--vos que o deixem em paz.
- Acha que o devemos deixar a apodrecer em vi da? - excl a­
mou Lady Outram numa voz um pouco trémula. - Tudo só porque
ele teve a i nfelici dade de matar um homem em duelo há mais de
um quarto de século? É a isso que o senhor chama cari qade cristã?
- Sim - respondeu obstinadamente o padre . - E a isso que
eu chamo cari dade cristã. 1 45
-É essa a caridade cristã que podem9s esperar destes padres
- exclamou amargamente Cockspur. - E essa a ideia que eles fa-
zem de perdoar a um sujeito o seu momento de loucura: empare­
dá-lo vivo e matá-lo à fome com jejuns, penitências e representa­
ções das fogueiras do Inferno . E tudo porque uma bala acertou
num alvo errado.
- De verdade, padre Brown - observou o general Outram
-, o senhor acha que ele merece i sso? Acha isso cristão?
- Não há dúvida de que o verdadeiro espírito cristão - mur-
murou suavemente a mulher - é aquele que compreende tudo e
tudo perdoa. Aquele que sabe recordar . . . e esquecer.
- Padre Brown - interveio o jovem Mallow com vivacidade
-,geralmente costumo concordar com tudo o que o senhor di z ;
mas, diabos me levem s e o percebo agora. U m tiro disparado num
duelo, a que se seguiu um arrependimento profundo, não é um cri­
me assim tão grande ... !
- Confesso que tenho uma opinião m uito mais séria acerca do
delito que ele cometeu - respondeu severamente o padre Brown .
- Então que Deus amoleça o seu coração! - murmurou a des­
conheci da, falando pela primeira vez . - E u cá vou falar com o meu
velho amigo!
Nesse momento, como se a voz dela acordasse um fantasma,
qualquer coi sa se moveu dentro da velha mansão e no alto da es­
cadaria de pedra surgiu um vulto. Vinha vesti do de negro mas os
seus cabelos embranquecidos e a palidez de mármore das feições
faziam-no parecer a ruína de uma estátua.
Viola Grayson começara a subir calmamente a escadaria, en­
quanto Outram murmurava por debaixo do espesso bigode negro:
- Certamente que ele não vai repeli-la como fez à minha mu­
lher . . .
O padre Brown parecia finalmente resignado com a situação.
Ergueu os olhos para o general e comentou:
- Tratemos de lhe perdoar o melhor que pudermos. Ao pobre
Marne bem lhe basta a sua consciência. Pelo menos ele nunca re­
peliu a sua m ulher.
- Que quer dizer com i sso?
- Ele nunca a viu ! - tornou o Padre Brown.
Enquanto falavam, a senhora continuava a subir as e scadas
até que chegou junto do marquês de Marne. Este começou a mexer
os lábios, mas antes que pudesse falar aconteceu outra coisa. Um
grito estridente correu pelas abóbadas, despertando os ecos daque­
las velhas muralhas. Pelo tom de angústia com que saiu dos lábios
da mulher bem poderia ter sido um simples grito, mas ela articu­
lara distintamente uma palavra:
- Maurice!
14 6 - Que é isso, querida? - exclamou Outram, começando a su-
bir os primeiros degraus. A outra vacilava, como se fosse cair do al ­
to da escadaria. Depoi s , voltou-se e começou a descer, curvada, en­
colhida e toda a tremer. Ao mesmo tempo murmurava:
- Oh, meu Deus! . . . não é James . . . ele é Maurice!
- Acho m elhor, Lady Outram - aconselhou o padre grave-
mente -, que a senhora vá ter com a sua amiga.
Então caiu sobre eles o som de uma voz que foi como uma pe­
drada vinda do alto da escadaria; uma voz que parecia sair do tú­
mulo. Uma voz rouca e pouco natural, como a voz daqueles que há
muito vivem em silêncio numa ilha deserta, sozinhos com as aves
selvagen s . E ra a voz do marquês de Marne, que dis se apenas:
- Esperem ! - depois prosseguiu: - Padre Brown, antes que
os seus amigos se retirem autorizo-o a dizer-lhes aquilo que eu já
lhe di sse a si . Aconteça o que acontecer, não me ocul tarei por mai s
tempo.
-Tem razão - respondeu o padre. - Isso só abona a seu fa­
vor!
- Pois é - começou o padre Brown dali a pouco, em resposta
à curiosi dade do grupo. - Ele deu-me licença para fal ar. No en­
tanto, não vou explicar o caso tal como ele m o contou, mas sim co­
mo eu o descobri sozinho. Ora bem, percebi logo de i nício que es­
sa tal influência nefasta da parte dos monges era tudo um di spa­
rate inventado. A minha gente pode, em certos casos, aconselhar
as pessoas a irem regularmente a um convento, mas nunca a en­
cerrarem-se num castel o medieval . Da mesma forma que não or­
denam a ninguém que se vista de frade se não for frade . No entan­
to, pensei que ele poderia ter as suas razões para se esconder de­
baixo de um capuz ou até de uma máscara. Ouvi falar del e como de
um irmão inconsolável e também de um assassino; porém, suspei­
tava vagamente de que as razões que tinha para se ocultar esta­
vam mais relacionadas com a pessoa que era que com aquilo que
fi zera.
- Depoi s, ouvi a descrição exacta do duelo que me fe z o Gene­
ral ; e aquilo que m ais m e deu que pensar foi a figura de Mr. Romai ­
ne em segundo plano. E impressionou-me sobretudo por ele se
manter no segundo plano. O General ao sair do local do duelo tinha
visto um homem morto estendido na areia enquanto o amigo des­
te se mantinha imóvel , a curta distância, qual estátua de pedra!
Depoi s ouvi di zer outra coisa; assim sucedera quando ficara à es­
pera que o trovão se seguisse ao relâmpago. Naquel e dia remoto,
Hugo Romaine ficara à espera qua acontecesse alguma coi sa.
- Mas já acontecera - observou o general . - De que podia ele
estar à espera?
- Do duelo - explicou o pade Brown .
- Mas eu disse-lhe que tinha visto o duelo! - gritou o general .
- E eu garanto-lhe que o senhor não viu o duelo - tornou o pa-
dre. 147
- O senhor está louco? - exclamou o outro. - Ou pensa que
sou cego?
- Tinham-no cegado . . . para que o senhor não visse - prosse­
guiu o padre . - Porque o senhor é um homem bom e Deus teve mi ­
sericórdia da sua inocência e afastou o seu rosto dessa luta desi­
gual. Pôs uma muralha de areias e silêncio entre o senhor e o que
realmente aconteceu nesse horrível areal, abandonado ao espíri­
to enraivecido de Judas ou de Caim.
- Conte-nos o que aconteceu ! - suplicou a senhora com im­
paciência.
- Contarei tudo tal como eu o descobri - continuou o padre .
- O que vim a saber depoi s foi que Romaine, o actor, andara a ini-
ciar Maurice Mair na arte e nos truques da representação teatral .
Tive um amigo que queria ser actor, que me fez um interessante
relato das primeiras semanas da sua apren di zagem. E sta consis­
ti a sobretudo na arte de cair no chão; de tombar de uma vez como
se estivesse morto.
- Deus nos acuda! - gemeu o general, agarrando-se aos bra­
ços da s:adeira como se quisesse erguer-se.
- Amen! - respondeu o padre Brown. - O senhor referiu-me
que tudo sucedera muito rapi damente; de facto, Maurice caiu an­
tes de a bala partir e ficou perfei tamente imóvel , à espera, enquan­
to o seu malvado professor e amigo esperava também, em segun­
do plano.
- Também nós estamos à espera - exclamou Cockspur -, e
por mim já não aguento mais!
- James Mair, já então tomado de remorsos, correu para o cor­
po caído por terra e curvou-se para o levantar. Deitara fora a pis­
tola como um objecto sujo; Maurice, porém, conservava ainda na
mão a sua pi stola que continuava carregada e, enquanto o outro se
curvava sobre ele, ergueu-se, apoiado no cotovelo esquerdo e di s­
parou à queima-roupa. Sabia que não era grande atirador, mas,
naquele caso, difícil seria não acertar no coração.
Os circunstantes tinham-se levantado e rodeavam o narrador
com os rostos pálidos de espanto:
- Tem a certeza do que está a di zer? - inquiriu por fim Sir
John com voz rouca.
- Tenho a certeza absoluta - retorquiu o padre Brown. - E
posto isto deixo Maurice Mair, o actual marquês de Marne, ao
cuidado da vossa caridade cristã. Vocês falaram mui to hoje dessa
cari dade. A mim pareceu-me que lhe atribuíam um lugar dema­
siado importante. Mas ainda bem para os pobres pecadores, como
este agora, que vocês se enganem assim acerca do que é a mi seri­
córdia e se mostrem dispostos a reconciliarem-se com toda a hu-
mani dade. '
48 - Com mil raios! - explodiu o general. - Então o senhor jul-
ga que me vou reconcihar com um bandi do destes? Pois juro que
não mexeria uma palha para o livrar do Inferno. Eu di sse que era
capaz de compreender um duelo decente, mas um assassinato à
traição . . .
- Merecia ser linchado - gritou Cock spur numa grande exci ­
tação. - Devia ser queimado vivo, como fazem aos negros nos Es­
tados Uni dos. E se por acaso existe um lugar onde as pessoas fi ­
quem a arder para sempre, seria muito b e m feito q u e e l e . . .
- Cá por mim até teria nojo d e lhe tocar - declarou Mallow.
- Ora aí está - disse secamente o Padre Brown - a grande
diferença entre a cari dade humana e a cari dade cri stã . Devem per­
doar-me por eu não me ter sentido esmagado pelo vosso desprezo
desta manhã em relação à minha falta de caridade cristã, e com os
sermões que me fi zeram sobre o perdão que devemos dar aos pe­
cadores . Porque a mim afigura-se-me que vocês só perdoam aque­
les pecados que não consi deram pecados. Perdoam aos criminosos
quando eles cometem delitos que vocês não consi deram crimes
mas sim convenções. Por i sso, toleram um duelo convencional ou
um divórcio convencional . Perdoam quando não há nada a per­
doar.
- Mas, c'os diabos, o senhor quer que sejamos capazes de per-
doar uma acção vil como esta?
- Vocês não, mas nós temos de perdoar.
De súbi to, pôs-se de pé e olhou à sua volta:
- Nós não tocamos em pessoas como esta senão com a nossa
bênção - declarou ele. - Temos de di zer aquela palavra que as
salve do Inferno. Só nós ficámos para as livrar do desespero quan­
do a vossa caridade humana as abandona. Continuem no vosso ca­
minho de rosas a perdoar os vossos pecados de estimação, a mos­
trarem-se generosos para com os vossos crimes de sociedade, que
nós ficamos no escuro, quais vampiros da noite, a consolar os que
realmente precisam de ser consolados ; aqueles que fazem coisas
realmente imperdoáveis, coi sas que nem o mundo nem eles pró­
prios perdoam e que só um padre tem o poder de perdoar. Deixem­
-nos aqueles que cometem os verdadeiros crimes, os mai s mesqui­
nhos e revoltantes; revoltantes como o de S . Pedro antes do galo
cantar; e, no entanto, a manhã chegou ! . . .
- A m anhã - repetiu Mallow, intrigado. - Isso quer di zer a
esperança . . . há esperança, para ele ?
- Sim - replicou o padre. - Deixe que lhe faça uma pergun-
ta. Vocês todos são pessoas muito importantes e seguras; não se­
riam capazes, di zem a vocês próprios, de cair tão baixo. Mas di ­
gam-me uma coisa: se algum de vós houve sse caído, teria a cora­
gem , um dia mai s tarde, sendo velho, rico, bem instalado na vi da,
de contar a sua hi stória, levado pela sua própria consciência ou
aconselhado por um confessor? Vocês consi deram-se incapazes de 1 4 9
cometer um crime tão baixo. Mas tendo-o cometi do, seriam capa­
zes de o confessar?
Os outros pegaram nos seus pertences e saíram do hotel, cala­
dos, em grupos de dois ou três. Quanto ao padre Brown, também
em silêncio voltou para o melancólico castelo do marquês de
Marne.

50
O SEGREDO DE FLAMBEAU

. . . aquela espécie de assassínios nos quais eu desempenhei o


papel do criminoso - declarava o Padre Brown, enquanto pousa­
va o seu copo de vi nho. Uma série de rubras imagens de crime aca­
bavam, de passar diante dos seu s olhos naquel e momento.
- E certo - prosseguiu após uma pausa - que outros tinham
desempenhado esse papel antes de mim e assim me haviam forne­
ci do a experiência. Eu era uma espécie de actor suplente ; sempre
a postos para desempenhar o papel do assassino. E tive sempre a
preocupação de estudar a preceito o meu papel . O que pretendo di­
zer é que, sempre que eu tentava imaginar o estado de espírito com
que fora cometi do certo acto chegava a conclusão de que eu próprio
o poderia ter cometido em determinadas condições. E ent.'io, é cla­
ro, percebia logo quem fora o seu autor; de um modo geral, nunca
se tratava da pessoa de quem se desconfiava.
- Por exemplo, parece evi dente que fora o poeta revolucioná-
rio quem assassinara o juiz que odiava os revolucionários verme­
lhos. Mas i sso não era razão para que o revolucionário vermelho o
m atasse. Não era, de facto, se nos metermos na pele de um poeta
revolucionário. Ora, eu empenhei-me seriamente em me tornar
um poeta revolucionário. Refir�rme a essa espécie de anarquista,
pessimista e amante da revolta, não como reforma, mas como for-
m a de destruição. Tentei varrer da minha mente certos elementos,
como seja o senso comum, são e construtivo, que tive a felici dade
de herdar ou de aprender. Fechei todas as clarabóias que me tra­
ziam a boa luz do Paraíso e imaginei a minha mente iluminada
apenas por uma luz vermelha vi nda de baixo; um fogo capaz de ra­
char os rochedos e de cavar abismos de baixo para cima. Mas nem
quando esta visão atingia o seu auge, eu conseguia perceber como
é que um visionário deste tipo seria capaz de cortar a sua carrei-
ra matando apenas um político; um só entre milhõe s de velhos i dio-
tas convencionais, como ele os classificava. Nunca ele faria uma
coi sa dessas, por mai s violentas que fossem as suas canções de re­
volta. Nunca o faria porque escrevia precisamente canções de vio­
lência. Um homem que consegue exprimir-se através de canções 1 5 1
não preci sa de se exprimir através do suicídio. Um poema, para el e,
é um acontecimento e vai querer que estes se repitam . Pensei en­
tão noutra espécie de malvado; aquele que não pretende destruir
o mundo, mas que depende inteiramente desse mundo. Pensei que,
sem a graça de Deus, eu poderia ser um tipo para quem o mundo
fosse apenas um clarão ofuscante de lâmpadas el éctricas fora do
qual só existe e scuridão. O homem mundano, que de facto só vive
para este mundo e não acredita que haj a outro, para quem os êxi­
tos mundanos e os prazeres representam tudo o que ele pode ex­
trair do nada, esse homem será capaz de tudo se um dia se vir em
perigo de perder todo esse mundo e ficar de m ãos vazias. Não se­
rá o revolucionário, mas sim o homem respeitável quem cometerá
qual quer crime . . . para salvar a sua respeitabilidade . Pensemos
que revelação isso representaria para um homem , tal como este fa­
moso advogado; a revelação de um crime que a alta socie dade ain­
da repudia: a traição patriótica. Se eu estivesse no lugar dele e não
possuísse outra bagage-g1 para além da sua filosofia, só Deus sabe
o que poderia ter feito. E preci samente neste s casos que o meu p e ­
queno exercício religioso s e torna tão efi caz.
- Pode haver quam diga que ele é um tanto mórbi do - obser­
vou Grandison num tom ambíguo.
- Também há quem consi dere coisas mórbidas a humil dade e
a caridade cristãs - retorquiu gravemente o padre Brown. - O
nosso amigo poeta deve ser um desses. Mas não discuto esses as­
suntos. Estou apenas a satisfazer a sua curiosi dade em relação à
maneira como eu trabalho. Alguns dos seus compatriotas deram­
-me a honra de me perguntar como é que consegui evitar alguns
erros judiciários. Pois bem, o senhor pode então respon der-lhes
que o consegui através de processos mórbidos ... O que não quero
que imaginem é que o fi z por artes mágicas!
Chace continuou a fitar o padre com uma expre ssão preocupa­
da; era demasiado inteligente para não perceber a i deia del e ; mas
apetecia-lhe dizer que a sua mente era demasiado esclarecida pa­
ra a acei tar como boa. Tinha a sensação de estar a conversar com
um homem que era simultaneamente uma centena de assassinos.
Havia algo de anormal naquela figura minúscula, como um anão,
e ncolhida junto à lareira; assustava--<> pensar que aquela cabeça
re donda albergava um monte de estranhos raciocínios e de i magi­
nárias injustiças . Era como se o abismo de escuri dão que ficava por
detrás dele fosse constituído por uma multi dão de fi guras negras
e gigantescas, os fantasmas dos grandes criminosos, dominados
pelo círculo mágico do clarão do l ume, mas prontos a fazer em pe­
daços o seu mestre.
- Bem, tenho de confessar que acho i sso mórbido - respondeu
francamente. - E desconfio que não é menos mórbido que as ar-
1 52 tes mágicas. Mas mórbido ou não, tenho de admitir que deve ser
uma experi ênci a interessante . - E acrescentou, após reflectir um
momento : - Mas não me parece que o senhor pudesse dar um bom
crimi noso. O que daria, sem dúvi da, era um romancista sensa­
cional.
- Eu só lido com factos verídicos - decl arou o padre Brown .
- Se bem que, por vezes, se torne mai s difícil imaginar as coi sas
reai s que as fictícias.
- Sobretudo - tornou o outro -, quando se trata dos grandes
crimes do mundo.
- Não são os grandes crimes, mas sim os mais pequenos, que
se tornam difíceis de imaginar - replicou o padre.
- Não sei o que o senhor quer dizer com isso . . . - observou
Chace.
- Quero dizer que os crimes vulgares são roubos de jóias, co­
mo o caso do colar de esmeral das, ou o do rubi de Meru, ou o dos pei ­
xes dourados. A dificul dade, nesses casos, é termos d e tornar a nos­
sa mentalidade mesquinha. O s grandes vigaristas, senhores das
grandes i deias, não cometem esses crimes tão evi dentes. Eu tinha
a certeza de que não fora o Profeta quem roubara o rubi ; nem o con­
de o autor do furto dos peixes dourados, se bem que um tipo como
Bankes fosse muito bem capaz de tirar as esmeral das . Para esse s,
uma pedra preciosa não passa de um bocado de vi dro: e eles con­
seguem ver através do vi dro. Ao passo que as pessoas mesquinhas,
terra-a-terra, vêem nelas o seu valor mercantil . Para esses temos
de ter uma mentali dad� mesquinha, que é uma coisa terrivelmen­
te difícil de conseguir. E o mesmo que pretender focar um objecto
minúscul o com uma m áquina fotográfica oscilante . Mas há certas
coisas que aju dam e até conseguem projectar alguma luz sobre o
mi stério. Por exemplo: aquele sujeito que está sempre a vociferar
contra os fal sos mágicos, ou charlatães de qualquer espécie, que os
quer ,desmascarar, esse sujeito tem sempre uma mentalidade po­
bre . E o tipo de pessoa que <<lê nas entrelinhas>> e que só vê menti ­
ras. Conf�sso q u e i s s o deve ser, por vezes, u m a tarefa muito tra­
balhosa. E, ao mesmo tempo, um prazer muito mesquinho. Quan­
do percebi o que significava possuir uma mentalidade mesquinha,
soube logo onde procurá-la: no homem que pretendia desmascarar
o Profeta. Fora ele quem subtraíra o rubi . E aquele outro que e s­
carnecia das fantasi as míticas da irmã fora o autor do roubo das
esmeral das . As pessoas deste género estão sempre de olho nas
jóias. Não conseguem nunca, ao contrário dos grandes charlatães,
chegar ao ponto de desprezar as j óias. Estes criminosos, senhores
de mentali dades mesquinhas, são sempre tipos convencionai s .
Tornam-se criminosos por puro convencionalismo.
- No entanto, levamos muito tempo a ver as coisas com esta
crueza. Representa um tremen do esforço de imaginação tornar­
mo-nos assim tão convencionais, aspirarmos com tanta avi dez à 1 5 3
posse de um obj ecto mesquinho. Mas consegue-se . . . Consegue-se
uma aproximação. Comecemos por imaginar uma criança gulosa:
a maneira como ela consegue roubar um doce numa loja. Imagine­
mos que somos nós que desejamos um certo doce ... Depois, temos
de subtrair a poesia da criança e eliminar a aura que envolve pa­
ra ela a pastelaria. Imaginemos que conhecemos bem o valor do do­
ce no mercado mundiaL. Temos de encolher a nossa m entali dade
até ao tamanho de uma objectiva fotográfica . . . Vemos primeiro o
contorno, depois com mais niti dez e, pronto, aí está!
O padre Brown falava como um homem que houvesse captura­
do uma visão celestial.
Grandison Chace continuava a fitá-lo com um ar de fascinação
e curiosidade . Temos de confessar que a certa altura a isto se veio
j untar uma expressão de alarme. Era como se o choque causado pe­
l a primeira confidência do padre vibrasse ainda nele à semelhan­
ça do que sucede quando o trovão faz estremecer uma casa. Lá por
dentro ia di zendo consigo que a sua má impressão fora apenas uma
loucura passageira. O padre não podia ser nunca o monstro, o as­
sassino que ele entrevira por um rápido instante . Mas, por outro
lado, não haveria algo de esquisito naquele homem que falava com
tanta calm a na hipótese de ser ele próprio criminoso?
- Não lhe parece - exclamou de repente - que essa i deia que
o senhor defende, de nos colocarmos na pele do criminoso, nos po­
de levar a uma excessiva tolerância em relação ao crime?
O padre Brown sentou-se e começou a fal ar mai s pausada­
mente :
- Tenho a certeza d e que produz precisamente o efeito contrá­
rio. Vem resolver todo o problema do tempo e do pecado. Produz no
homem o remorso anteci pado.
Seguiu-se um silêncio; o americano pôs-se a fixar o tecto, bas­
tante inclinado, que cobria metade do recinto; o dono da casa fita­
va o lume sem fazer um movimento; então, a voz do padre fez-se
ouvir num tom impessoal , como se viesse de um lugar mais fundo:
- Há duas maneiras de renunciar ao demónio - começou ele.
- Essa diferença constitui talvez o abismo mais profundo que
existe presentemente na religião. Uma delas consiste em sentir
horror por ele porque está muito longe de nós; a outra é sentir o
mesmo horror porque sentimos que ele está tão perto. E não há vi­
cio ou virtude que se encontrem assim tão divididas como essas
duas virtudes.
Os outros não responderam e o padre prosseguiu no mesmo
tom solene, como se as suas palavras fossem chumbo derretido.
- Vocês podem consi derar que um crime é horrível porque
nunca seriam capazes de o .cometer. Eu penso que ele é horrível
porque eu o poderia também cometer. Vocês pensam nele como
1 54 uma coisa distante, por exemplo, uma erupção do Vesúvio; mas i s-
so para vós seria menos perigoso que um fogo na vossa casa. Se o
criminoso aparecesse subitamente dentro desta sala . . .
- Se aparecesse nesta sala um criminoso - observou Chace a
sorrir -, acho que o senhor seria capaz de mostrar demasiada be­
nevol ência para com ele . Sem dúvida começaria por lhe dizer que
o senhor era também um criminoso em potência e que achava per­
feitamente natural que ele ti vesse i do ao bol so do pai ou cortado as
goelas da mãe . Francamente, não acho i sso nada prático. Penso
que p resul tado seria que nenhum criminoso jamai s se regeneras­
se . E fácil teorizar e evocar casos hi potéticos; mas todos nós sabe­
mos que tudo i sso não passam de palavras no ar. Para nós, que aqui
estamos reuni dos nesta casa confortável de Mr. Duroc, consci en­
tes da nossa responsabilidade, e sta conversa acerca de ladrões, de
criminosos e dos mistérios das suas almas, causa-nos apenas um
calafrio teatral. Porém, aqueles que têm de lidar de perto com e s ­
s e s ladrões e criminosos s ã o obrigados a proce der d e modo diferen­
te . E stamos aqui mui to descansados, a aquecer-nos à lareira; sa­
bemos que a casa não está a arder. E sabemos também que não te­
mos nenhum crimi noso dentro desta sala . . .
Nesta altura Mr. Duroc, o dono d a casa, a quem fora feita alu ­
são ergueu-se lentamente do s e u lugar junto à lareira e a sua som ­
bra gigantesca parecia cobrir tudo e escurecer até a própria noite
lá fora.
- Temos um criminoso nesta sala! - declarou el e . - Sou eu
esse criminoso. Eu sou Flambeau, aquele a quem a polícia dos dois
hemisférios continua a procurar.
O americano ficou parado a olhar para ele com os olhos fixos e
brilhantes como pedras; parecia incapaz de se mover ou de falar.
- Não existe nada de místico, de metafórico ou de fal so naqui ­
lo que afirmo - declarou Flambeau . - Durante vi nte anos roubei
com estas duas mãos, fugi da polícia com este s doi s pés. Concor­
dam sem dúvida em como as minhas activi dades eram práticas .
Também concordam em como os meus juízes e perseguidores ti ­
nham de tratar.de perto com o crime . Pensam que eu não sei tudo
acerca da maneira como eles o faziam? Ouvi todos os sermões acer­
ca da boa conduta e fartei-me de ver os olhares severos das pessoas
respeitávei s; apanhei reprimendas num estilo distante e superior
em que perguntavam como era possível alguém cair tão baixo, que
nenhuma pessoa decente poderia conceber semelhante deprava­
ção. Como podem imaginar, tudo i s so apenas me fazia rir. Mas só
este meu amigo conseguiu explicar-me por que é que eu roubava.
E, a partir daí, nunca mais roubei.
O padre Brown fez um gesto de súplica e Grandi�on Chace exa­
lou um suspiro que mai s parecia um assobio.
- Eu disse-lhe a pura verdade - prosseguiu Flambeau -, e
agora está na sua mão entregar-me à polícia. 1 55
Seguiu-se um m omento de profundo sil êncio, durante o qual
era possível ouvir-se o ri so distante dos filhos de Flambeau no an­
dar de cima daquela casa escura e, l á fora, no crepúsculo, o grunhir
dos grandes porcos cinzentos . Depois, esse silêncio foi interrompi ­
do por uma voz clara e vibrante, com um toque de indignação, que
poderia surpreender aqueles que não conhecem a sensibili dade do
espírito americano e ignoram que, a de speito dos aparentes con­
trastes, ele por ve zes se aproxima bastante do espírito cavalhei­
resco dos espanhói s .
- Monsieur D uroc - di zia a voz num tom empolado -, somos
amigos há bastante tempo e eu ficaria desolado se o senhor me jul­
gasse capaz de lhe .fazer uma parti da destas, no momento em que
estava a usufruir da sua hospitali dade e do convívio da sua famí­
lia, só porque o senhor resolveu desvendar, por iniciativa própria,
um pouco da sua biografia. E ainda por cima o senhor :!e-lo simpl es­
mente em defesa do seu amigo . . . não, meu caro, não concebo que
um sujeito faça uma traição dessas em tais circunstâncias ; i sso
equivaleria a ser um vil informador e a vender os amigos a troco
de dinheiro. Ora, num caso destes . . . Será possível imaginar um
homem transformado num tal Judas.
- Eu posso tentar - declarou o padre Brown.
Livros publicados nesta colecção :

I - O Caso da Moldura de Ouro, Peter 35 - Bennett-3 - Quatro Assassínios,


Chambers Elliot Lewis
2 - Uma Rapariga Simpática e Sosse­ 36 - O Cadáver sem Mãos, P. D. James
gada, Philip Daniels 37 - O Caso da Herdeira Desaparecida,
3 - Tragédia no Tribunal, Cyril Hare Frank Gruber
4 - Bennett- 1 - O Caso dos Corpos 3 8 - O Cão dos Baskervilles, Sir Arthur
Decapitados, Elliot Lewis Conan Doyle
5 - O Crime da Praia do Paraíso, Car­ 39 - O Mistério dos Gémeos Siameses,
ter Brown Ellery Queen
6 - Um Caso para a Médium, Evelyn 40 - A Porta das Sete Chaves, Edgar
Harris Wallace
7 - Chandler, William Denbow 4 1 - A Ilha dos Trinta Caixões, Maurice
8 - Logro, Liza Cody Leblanc
9 - A Rapariga de Tânger, Frank Gold 42 - Assassín io Premeditado, Ellery
10 - Bennett-2 - A Estranha Morte de Queen
Uma A ctriz, Elliot Lewis 43 - Os Últimos Casos de Sherlock Hol­
l i - O Divertimento de l)onovan, Car­ mes, Sir Arthur Conan Doyle
ter Brown 44 - O Doente da Cabina C, Mignon G .
1 2 - O Mistério dos Cartões de Despedi­ Eberhart
da, Ellery Queen 45 - Segredo Fatal, Ruth RendeU
1 3 - O Motivo do Crime, Margaret Yor- 46 - O Sinal dos Quatro, Sir Arthur Co­
·
ke nan Doyle
14 - A Mulher de Hong-Kong, Frank 47 - O Suave Rosto do Mal, Margaret
Gold Yorke
1 5 - A Vingança de Raven, Donald 48 - Horizontais Dois, Verticais Um,
MacKenzie Ruth Rendell
1 6 - O Enigma de Sally .!upp, P . D. Ja­ 49 - O Padre Negro, Edgar Wallace
mes 50 - Morte nas Rufnas, Ruth Rendell
1 7 - Contra todos os Riscos, José Gio­ 5 1 - Dia Escaldante, Ed McBain
vanni 52 - O Rapaz que Seguiu Ripley, Patri-
1 8 - O Mistério do Cabo Espanhol, El­ cia Highsmith
lery Queen 53 - Apartamento 2, Edgar Wallace
19 - A Chave A zul, Kathalym Krause 54 - O Pequeno César, W . R . Bumett
20 - O Talentoso Mr. Ripley, Patricia 55 - À Procura de Uma Vftima, Ross
Highsmith Macdonald
21 - A Dama de Singapura, Frank Gold 56 - Cara o u Coroa, Ellery Queen
22 - Mortalha para Uma Enfermeira, P . 57 - Na Boca do Lobo, Edgar Wallace
D . James 58 - O Touro Etrusco, Frank Gruber
23 - Elenco para a Morte, Margaret 59 - Memórias de Sherlock Holmes, Sir
Yorke Arthur Conan Doyle
24 - Férias com a Morte, Ellery Queen 60 - O Senhor da Charneca, Ruth Ren­
25 - Simples A ssassínio, C . S. Forester dell
26 - O Juiz Sou Eu, Mickey Spillane 6 1 - Um Olhar de Despedida, Ross
27 - O Último Salto, Ngaio Marsh Macdonald
28 - Irei Cuspir- Vos nos Túmulos, Boris 62 - As A venturas de Sher/ock Holmes,
Vian Sir Arthur Conan Doyle
29 - Longa é a Noite, Frank Gold 63 - O Ferrão da Morte, Ruth Rendell
30 - Castigo A diado, C. S. Forester 64 - Que Caminho Para a Morte, Ellery
31 - Uma Estranha ProfiSSão para Uma Queen
Mulher, P. D. James 65 - A Mente Perversa de Mr. .!. G.
32 - Um Estudo em Escarlate, Sir Ar­ Reeder, Edgar Wallace
thur Conan Doyle 66 - Vaidade Fatal, Ruth Rendell
33 - Morte Inesperada, Carter Brown 67 - Túnel de Sombras, Ross Macdo­
34 - Receita Diabólica, Ellery Queen nald
68 - O Regresso de Sherlock Holmes, Sir 77 - A Mulher de Branco - I, Wilkie
Arthur Conan Doyle Collins
69 - Engano Astucioso, Ruth Rendell 78 - A Mulher de Branco - II, Wilkie
70 - A Última A ventura de Sherlock Collins
Holmes, Sir Arthur Conan Doyle 79 - Um Estranho, June Thomson
7 1 - O Jogo da Navalha, Ruth Rendell 80 - Um Enigma para Peregrinos, Pa­
72 - O Mistério da Arma Desaparecida, trick Quentin
Ellery Queen 81 - Uns Mentem, Outros Mo"em,
73 - Encontro na Morgue, Ross Macdo­ Ruth Rendell
nald 82 - A Incredua/idade do Padre Brown,
74 - À Procura de Um Crime, Frank G. K. Chesterton
Gruber 83 - A Liga da Estufa Fria, Thomas
75 - A Costa Maldita, Ross Macdonal Boyle
76 - O Mistério das Impressões Digitais, 84 - O Segredo do Padre Bro wn, G. K.
Ellery Queen Chesterton

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