O Acervo Da Companhia Editora Nacional UNIFESP

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O acervo da Companhia Editora

Nacional: negociação, organização e


potencial para a pesquisa histórica1

RESUMO
O texto apresenta, inicialmente, um breve histórico da implantação do
Jaime Rodrigues
Universidade Federal de São Paulo Centro de Memória e Pesquisa Histórica do Departamento de História
[email protected] da EFLCH/UNIFESP. Na sequência, fazemos uma pequena descrição da
trajetória da Companhia Editora Nacional desde sua fundação, nos anos
Marcia Eckert Miranda
Universidade Federal de São Paulo
1920, até as transformações ocorridas nos anos 1970 e 1980, quando
[email protected] das mudanças de proprietários. Por fim, apresentamos o processo de
transferência do rico acervo arquivístico da editora para a Universidade
Maria Rita de Almeida Toledo
Universidade Federal de São Paulo
Federal de São Paulo, envolvendo as formas jurídicas da cessão e as
[email protected] opções tomadas quanto ao início do processo de organização do conjunto.

Palavras-chave:
Centro de Memória e Pesquisa Histórica, Companhia Editora Nacional,
Acervo

1. O Centro de Memória e Pesquisa Histórica


Implantado em 2007, o curso de História da UNIFESP vem
fazendo esforços desde então e, especialmente, a partir de 2010, para
implementar o Centro de Memória e Pesquisa Histórica (CMPH). Em
poucas palavras, um órgão que agregue em seu acervo e disponibilize
ao público documentos de origens, tipologias e suportes diversos, tais
como originais em papel, duplicatas em formato eletrônico, objetos
tridimensionais, materiais iconográficos e bases de dados informatizadas.
Essa iniciativa coaduna-se com o projeto pedagógico do curso de
História da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas-UNIFESP,
que contém especificidades na formação acadêmica dos estudantes que

1 No decorrer dos trabalhos no Centro de Memória e Pesquisa História (doravante CMPH), o projeto do qual este texto
resulta contou com os seguintes bolsistas (entre 2012 e 2014): Danilo Capistrano, Fabricio Ferreira Barboza, Giorgia
Burattini Saad Medeiros da Silva, Karina Oliveira Morais dos Santos, Mikaelson Azevedo de Freitas e Patrícia Moraes
Sodré (IC-Fundação de Apoio à Unifesp em 2012); Bianca Mayumi Saijo, Daiane Cristina Mazzetto, Gabriela Costa de
Oliveira, Lilian Arantes Camilo Gomes, Lucas Alves de Araújo e Patrícia Moraes Sodré (IC-Fundação de Apoio à Unifesp
em 2013); Rodrigo Gomes de Souza dos Santos, Veronica Pivisan Reis e Bruno Atolini Marques (Monitoria 2012/2013);
Bruna de Souza Pitteri, Emerson Dylan Gomes Ribeiro e Mayra Vanessa Villca Troncozo (Monitoria 2013/2014); Bianca
Leticia de Almeida e Bianca Saijo (Monitoria 2014/2015); Atiele Santos e Bruna Prudêncio Teixeira (Iniciação à Ges-
tão, 2012-2013); Ricardo Monteiro Cavalcante (Iniciação à Gestão, 2013-2014); Jane de Oliveira Mizukami (Iniciação
à Gestão, 2014-2015); Amanda Carvalho (Estágio 2013-2014), Lucas Alves de Araújo (Estágio, 2014); e Thaís de Melo
(voluntária, 2012).

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tornam necessário dotá-lo de um órgão dessa natureza como pedra angular do ensino e da pesquisa,
envolvendo as dezenas de alunos que, todos os anos, aqui ingressam2.
Antes de mais nada, foi necessário decidir qual formato adotar e definir os parâmetros de seu
objetivo e funcionamento. Durante décadas, nos museus e arquivos públicos, poucas vezes as práticas
quotidianas foram consideradas históricas e, consequentemente, quase sempre foram excluídas desses
lugares. Pela natureza de seus objetivos, o Departamento de História da UNIFESP optou pela criação de
um Centro de Memória e Pesquisa Histórica, diferindo de um arquivo. Este último, em sua acepção mais
conhecida, popularizada e errônea, é um amontoado de papéis sujos, desorganizados e, principalmente,
antigos. Tecnicamente, os arquivos reúnem documentos cuja origem e tipologia são determinadas pela
instituição que os produziu, com critérios racionais ligados às práticas administrativas ou quotidianas de
quem os utiliza ou utilizou. Ao arquivista cabe respeitar esses critérios e interferir o menos possível na
organização, sem imputar-lhe critérios subjetivos3. Apenas a preservação, contudo, não justifica o custo
da manutenção de um arquivo ou de um acervo de qualquer natureza. Para fazer jus à sua existência, o
arquivo deve desenvolver mecanismos de informação: “A conservação, por si só, com tudo o que significa
de zelo e de guarda para o futuro, não tem sentido se não é dirigida ao uso e serviço dos demais”4.
Todavia, em caráter de emergência, a simples existência de depósitos de papéis desorganizados,
mas como evidente valor histórico, merece atenção. Mesmo que tecnicamente não se possa chamar
esses depósitos de “arquivos”, é preciso dar um passo adiante na transformação e organização desses
acervos, para a partir daí traçar metas de recuperação da informação. O CMPH pode desenvolver ações
de salvaguarda de documentos ou coleções que corram risco de desaparecimento, desenvolvendo, nesse
processo, ações de formação dos estudantes de História. Trata-se, portanto, de um órgão universitário
dedicado ao ensino, à pesquisa e à extensão.
A maioria dos arquivos está ligada a instituições públicas, como os arquivos governamentais, e
não são temáticos como os centros de memória e de documentação. Em termos funcionais, no entanto,
os centros de documentação acabaram por incorporar a nomenclatura e os procedimentos técnicos dos
arquivos.
A função primordial dos centros de memória e documentação, assim como dos arquivos, das
bibliotecas e dos museus, é reunir informações culturais, científicas, funcionais e jurídicas, conforme
a natureza do material que conservam. A memória que resguardam não é apenas institucional, mas
também e principalmente social. Isso significa que, nesses órgãos, a memória social não está separada
da realidade e neles “as experiências não podem ser dissociadas, coisificadas ou reduzidas à condição de
meros objetos de contemplação”5. Todas essas instituições têm outra função a cumprir: serem capazes
de servir à coletividade na busca de sua própria identidade através do tempo, em meio a rupturas e
permanências históricas. Para isso, a organização das informações é fundamental, considerando tanto o
funcionamento da estrutura interna da instituição (no caso do arquivo), como sua interação com o público
e o cidadão, o que é de importância fundamental para a sobrevivência de qualquer instituição dedicada à
memória e à História como conhecimento.

2 Para uma apresentação mais detalhada do curso, remeto a Maria Rita de Almeida Toledo e Wilma Peres Costa. “Formação docente, história, memória e educação patrimo-
nial: os desafios para a produção de novas práticas educativas”. In: Odair da Cruz Paiva e Elisabete Leal (orgs.). Patrimônio e História. Londrina: Unifil, 2014, pp. 13-26.
3 Antonia Heredia Herrera.”Arquivos, documentos e informação”. In: São Paulo (cidade). O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH/SMC,
1992, p. 114.
4 Idem, ibidem.
5 Olga Brites da Silva. “Memória, preservação e tradições populares”. In: São Paulo (cidade). O direito à memória, op. cit., p. 19.

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Nesse sentido, criamos um centro de memória entendido como organismo que não se confunde
com um museu, um arquivo ou uma biblioteca, mas que mescla elementos de todos eles. Nele, pretende-
se reunir documentos de diversas origens, recolhidos por meio de doações, compra ou duplicação de
acervos mediante o uso de diferentes tecnologias, tais como digitalização ou microfilmagem.
Acervos pessoais, empresariais, de movimentos sociais ou entidades particulares e coleções
de periódicos são alguns exemplos do que pode ser custodiados pelo CMPH. No meio profissional
dos historiadores, são comuns as notícias sobre a perda de acervos por descarte indiscriminado, por
deterioração natural ou simplesmente por descaso. A existência de um centro de memória bem equipado
e atuante no Departamento de Historia da UNIFESP permite não apenas intervir em situações como essas,
em que o salvamento se faz necessário, mas também possibilita a reunião dos materiais provenientes de
pesquisas do corpo docente e discente da Universidade, sua conservação e disponibilização a pesquisas
futuras a partir de novas abordagens.
Sendo assim, não concebemos o CMPH simplesmente como um acervo permanente, mas sim como
um sistema de recuperação das informações nele contidas, cujas funções primordiais são o arranjo, a
descrição dos documentos e a garantia de seu acesso público6.
A reunião e o acesso a materiais que permitam recuperar dados acerca do passado em um
centro de memória são de fundamental importância em um campus universitário voltado para as
Humanidades. Cabe frisar que, pela natureza do conhecimento produzido nessa área, o que se busca
nos documentos não são apenas e necessariamente dados que tenham ligação direta com quem os
produziu. Os pesquisadores podem utilizá-los em busca de vestígios, sinais ou pistas sobre determinadas
personalidades, para acompanhar a evolução de um determinado problema alçado à condição de objeto
de estudo ou formas de comportamento e atuação social de diferentes grupos ou indivíduos que deixaram
vestígios de suas experiências e atividades registrados nos documentos.
Por isso, os documentos históricos podem oferecer subsídios indispensáveis a variados campos de
pesquisa, mesmo depois de encerrada a função para a qual eles foram produzidos. Talvez o exemplo mais
simples seja o do jornal: ao anoitecer, o exemplar do dia perde sua função corrente e seu valor como
mercadoria. Todavia, para os profissionais afeitos às questões da memória, esse mesmo jornal assume
a condição de registro, fonte de pesquisa e objeto a ser conservado de forma permanente, de modo a
garantir o acesso aos interessados em informações acerca do tempo passado, longínquo ou imediato.
Tudo, evidentemente, passa pelo crivo da crítica e dos métodos da produção historiográfica.

2. A Companhia Editora Nacional e seu acervo


Caso os acervos não estejam organizados de forma adequada, não serão capazes de responder às
demandas dos consulentes. É este o momento em que nos encontramos. No caso do CMPH, o acervo
principal e mais volumoso é o da Companhia Editora Nacional (a partir daqui CEN), uma das maiores
casas editoriais brasileiras no século XX.
A editora foi fundada em 1925 por Octalles Marcondes Ferreira e José Bento Monteiro Lobato,

6 A denominação “acervo permanente” inspira-se na teoria das três idades do documento, desenvolvida no início dos anos 1970 e amplamente utilizada na arquivística. A
primeira idade é aquela onde se dá a circulação do documento/informação pelos canais decisórios (arquivo corrente); a segunda ocorre quando, uma vez cumprido o papel
decisório, o documento guarda ainda interesse como objeto de consulta (arquivo intermediário); na terceira idade, o documento assume valor cultural, que extrapola o
objetivo específico de sua criação, tanto para quem o criou como a pesquisa científica original, e seu destino é o arquivo permanente. Cf. Rose Marie Inojosa. “Comunicação
e arquivos: aspectos conceituais”. Cadernos Fundap, 4(8) (abr.1984), pp. 6-7.

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após a dissolução da Companhia Gráfica Editora Monteiro Lobato S/A. Da antiga empresa falida e da venda
de uma casa lotérica que possuía também em sociedade com Lobato, Octalles relançou-se no mercado
editorial, constituindo a CEN7. Era ele quem comandava a editora a partir de São Paulo, enquanto Lobato
cuidava da filial carioca e escrevia livros infantis até se mudar para os Estados Unidos em 1927, onde ocupou
o cargo de adido comercial brasileiro. Investidor na bolsa novaiorquina, Lobato quebrou com ela em 1929,
após o que ele vendeu suas ações da CEN para um irmão de Octalles e voltou ao Brasil no ano seguinte,
mantendo-se por meio dos trabalhos que fazia para a Nacional como escritor e tradutor8.
O primeiro livro editado pela nova casa foi a tradução de Meu cativeiro entre os selvagens
brasileiros, de Hans Staden, em 1927 na coleção Brasil Antigo, e adaptado no mesmo ano por Lobato
e reeditado sucessivas vezes (em 1932, 1934 e 1944) na coleção Biblioteca Pedagógica Brasileira com o
título Aventuras de Hans Staden. A CEN, nesses anos iniciais, dedicava-se exclusivamente à produção
de livros didáticos e de literatura, sem contar com gráfica própria. Os impressos educacionais sempre
estiveram entre as prioridades editoriais da empresa e garantiam uma fonte segura de lucro. Em meados
dos anos 1920, os títulos didáticos representavam 34,48% das obras publicadas pela editora, totalizando
cerca de sessenta mil exemplares, ao passo que os romances representavam 29,31% dos investimentos
editoriais e cinquenta e um mil exemplares produzidos9. Posteriormente, o catálogo seria diversificado,
concentrando-se em coleções nas áreas da saúde, jurídica, ciências humanas e exatas. Além das coleções
didáticas e dos romances, a editora publicava “coleções de cunho religioso ou com objetivo ético mais
moralizante, coleção voltada para o conhecimento do país e coleções voltadas para a formação dos
professores”10.
Se observarmos os catálogos de livros da CEN na década de 1930, notaremos que a editora optou
pela publicação de coleções, destacando-se a Biblioteca das Moças, a Biblioteca do Espírito Moderno,
a Biblioteca Pedagógica, a Atualidades Pedagógicas, a Iniciação Científica e a Brasiliana, coleção que
reeditava vários autores nacionais e estrangeiros e direcionava-se aos profissionais de ensino, alunos da
graduação e público em geral interessado na discussão de questões referentes ao Brasil.
Eliana Dutra refere-se à CEN como a editora que revolucionou o negócio de livros em uma conjuntura
na qual ainda não havia um mercado editorial consolidado. O investimento continha um grau de risco
considerável:

É fato atestado pelos estudiosos da história do livro e da leitura no Brasil que o


Brasil dos anos [19]20, não oferecia as melhores condições para a indústria do
livro: país de poucos leitores; oficinas tipográficas antiquadas e sem a tecnologia
suficiente para a edição de livros; baixo investimento no ramo das edições; alto
preço dos livros; circulação restrita; edições pouco atraentes, pouca publicidade.
Lobato e Octales vão fazer história alterando drasticamente essas condições que
imperavam então à época11.

7 Laurence Hallewell. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: T. A. Queiroz; Edusp, 1985, p. 268.
8 Idem, ibidem.
9 Ephraim de Figueiredo Beda. Octalles Marcondes Ferreira: formação e atuação do editor. Dissertação de Mestrado em Comunicação: Universidade de São Paulo, 1987, p. 221.
10 Orlando José de Almeida Filho. A estratégia da produção e circulação do projeto editorial das coleções de Theobaldo Miranda Santos: (1945-1971). Tese de Doutorado
em História da Educação: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2008, p. 33.
11 Eliana de Freitas Dutra. “Companhia Editora Nacional: tradição editorial e cultura nacional no Brasil dos anos 30”. In: Anais do I Seminário Brasileiro sobre Livro e História
Editorial. Disponível em http://www.livroehistoriaeditorial.pro.br/pdf/elianadutra.pdf. Acesso em 7 de novembro de 2014.

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Muitos dos avançados equipamentos gráficos da Monteiro Lobato S/A foram vendidos e
constituíram a São Paulo Editora, que passou a prestar serviços gráficos para a CEN. A Revista dos
Tribunais também se vincularia à CEN na impressão de livros e, em 1927, o proprietário do periódico
fundaria a Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, que se tornou a maior impressora de livros do país.
Nos anos 1930, as dificuldades mantinham-se em patamares elevados. O que parecia assegurar
a produção era o baixo custo da mão de obra e o aumento da demanda por livros didáticos, em um país
onde a precariedade do ensino público era nítida12. Em 1932, a CEN instituiu uma política de doações
a colégios particulares e públicos, que poderiam solicitar gratuitamente exemplares do catálogo para
análise, contando com uma possível adoção:

preocupada em assegurar o êxito da sua coleção, e os seus interesses comerciais


informa-os [aos mediadores de seu público] de uma resolução tomada no âmbito
da editora, pela qual a partir de janeiro de 1932, instituiria uma política de
donativos que constaria de: exemplares de obras didáticas para os alunos pobres,
de classes superiores ou primárias, num total de até 15% sobre o total de alunos
que tiverem adquirido livros editados pela Cia. Editora Nacional e devidamente
aprovados; ou obras de literatura infantil (até 5 por classe) para prêmio aos
alunos das classes primárias em que forem adotados os nossos livros13.

Essa política de doações teve continuidade até datas bastante posteriores e foi ampliada a leitores
e instituições diversas, que enviavam cartas com pedidos de doações a partir de inúmeros estados e
municípios do país. A maioria da correspondência desse tipo encontrada no acervo apresenta carimbo da
CEN, informando a data em que os exemplares foram remetidos. Quase todos os pedidos eram atendidos,
salvo as poucas vezes em que a editora respondeu alegando falta de verba para esse fim ou informando
que a obra se encontrava esgotada.
No mesmo ano de 1932, a CEN adquiriu a Civilização Brasileira e criou uma livraria, com lojas no
Rio de Janeiro e em Lisboa. Valendo-se do câmbio favorável, o livro brasileiro conquistava o mercado
português, mas as editoras portuguesas responderam barateando seus preços. Os livros brasileiros
perderam espaço em Portugal, levando à venda da Civilização Brasileira de Lisboa em 194414.
Uma das dificuldades enfrentadas pela CEN deu-se em 1943, quando alguns de seus principais
funcionários deixaram a empresa. Primeiramente, foram seis professores responsáveis pelo programa
de livros didáticos que saíram para fundar a Editora do Brasil, logo tornada uma importante editora de
didáticos e infantis. Mais tarde, foi a vez de Arthur Neves, importante auxiliar de Octalles, que fundou a
Brasiliense juntamente com Caio Prado Júnior. Ao criar a nova empresa, Neves levou Monteiro Lobato
consigo, embora os direitos de venda dos livros deste pertencessem legalmente à Nacional. Embora
a saída dos funcionários tenha trazido preocupações, o crescimento da CEN continuou até meados da
década de 1950, momento em que a empresa ainda ocupava o primeiro lugar entre as editoras brasileiras.
Em sua longa existência, a CEN enfrentou várias outras adversidades, como o preço do papel, a
oscilação das taxas alfandegárias, a falta de qualidade e custo do papel nacional, a concorrência com o

12 Laurence Hallewell, O livro no Brasil, op. cit., pp. 270-276.


13 Eliana de Freitas Dutra. “Companhia Editora Nacional”, op. cit., p. 8.
14 pp. 278-281.

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livro português, as dificuldades de penetração do livro brasileiro no exterior, as reformas ortográficas que
levavam à necessidade de reimpressões quando o estoque ainda se encontrava em patamares elevados e
a concorrência com outras casas editoriais.
Na década de 1960, a produção da editora mostrava-se estável, mas encarava a crescente
concorrência dos novos empreendimentos editoriais. Para acompanhar as transformações no mercado,
passou a publicar guias de professores e livros em formatos maiores, mais coloridos e com letras
maiores. As mudanças se deram nos livros didáticos e nas obras voltadas ao mercado universitário.
Octalles detinha quase a totalidade das ações da CEN e sempre esteve a frente dos negócios. Com
o seu falecimento, em 1973, a empresa foi dividida entre herdeiros sem experiência de administração e
gerenciamento editorial. O declínio da CEN foi rápido: em 1974, a carioca José Olympio fez um empréstimo
junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e comprou a editora paulista. Todavia, não
conseguiu honrar as dívidas e tanto a José Olympio como a CEN passaram ao controle do BNDE15. Em
1980, a CEN foi adquirida pelo Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas (daqui por diante IBEP), para
onde foi transferido todo o material editorial16, tendo em catálogo nomes como Florestan Fernandes,
Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Sergio Buarque de Hollanda, Cruz Costa, Celso Furtado, Oswald
de Andrade, Raymond Williams, Russel, Freud, Durkheim etc. Nos arquivos históricos da Nacional estão
muitas das memórias dos processos de constituição das estratégias adotadas pelos “intermediários
esquecidos da literatura” – os editores – para publicar e fazer circular a cultura livresca, nacional e
traduzida, que marcou o país até o final do século XX.

3. A transferência do acervo da CEN para o CMPH e sua descrição


Não pretendemos apresentar a história do acervo da CEN aqui por inteiro, mesmo porque esse é
um processo longo e que poderá ser um tema historiográfico a partir da reorganização que é o próprio
objeto do trabalho no CMPH. A trajetória que podemos alinhavar aqui se refere à negociação para a
transferência do acervo e ao tratamento técnico que foi realizado até o momento.
Desde 2011, por intermédio da Prof.ª Dra. Maria Rita de Almeida Toledo, tiveram início as
conversações entre o Departamento de História da EFLCH/UNIFESP e a direção do IBEP/Nacional a
respeito da transferência do arquivo editorial e dos livros editados pela CEN. Foi preciso chegar a uma
definição sobre o formato do instrumento legal (se comodato ou doação) e, uma vez definido isso, cuidar
dos termos jurídicos do contrato. Do mesmo modo, foi necessário definir qual parte do acervo seria
transferida (o arquivo e/ou a biblioteca), contornar a exigência de um seguro ou depósito caução para a
transferência do acervo bibliográfico e receber as duplicatas dos títulos editados (neste caso, em doação).
As negociações chegaram a termo em outubro de 2014, com a assinatura do contrato de comodato
envolvendo apenas o arquivo, enquanto aguarda-se uma solução financeira para a transferência do
acervo de livros.
Antes mesmo do estabelecimento do contrato, os trabalhos de catalogação tiveram início no IBEP.
Isso ocorreu em entre agosto e outubro de 2011, na sede do IBEP/Nacional e o processo teve continuidade
no CMPH do Departamento de História da EFLCH/UNIFESP. No IBEP/Nacional, realizou-se a catalogação
dos livros e, em 2012, com parte do acervo arquivístico da CEN tendo sido transferida para a UNIFESP, os

15 Laurence Hallewell, O livro no Brasil, op. cit., p. 306.


16 Idem, ibidem, pp. 305-307.

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trabalhos concentraram-se nos documentos.
Os campos da planilha que serve como catálogo da correspondência da CEN foram elaborados
pela Prof.ª Dra. Márcia Eckert Miranda. A planilha organiza-se da seguinte forma:

1. Espécie documental: “Divisão de gênero documental que reúne tipos documentais por seu
formato. São exemplos de espécies documentais ata, carta, decreto, disco, filme, folheto,
fotografia, memorando, ofício, planta, relatório”17.
2. Emissor:
- Nome: nome da pessoa que assina o documento.
- Cargo: Se houver (Gerente do Departamento Editorial; Professor)
- Instituição: Se houver (Departamento Editorial, Escola Epitácio Pessoa, Diretor do PNL). No caso
da instituição ser a CEN, indicar somente o setor (Departamento Financeiro, Direção, Gráfica, etc.).
3. Destinatário: A quem se destina a correspondência.
- Nome: nome da pessoa para o qual o documento é endereçado.
- Cargo: Se houver (Gerente do Departamento Editorial; Professor).
- Instituição: Se houver (Departamento Editorial, Escola Epitácio Pessoa, Diretor do PNL). No caso
da instituição ser a CEN, indicar somente o setor (Departamento Financeiro, Direção, Gráfica, etc.).
4. Ativa/Passiva: Se a correspondência foi enviada (Ativa) ou recebida (P) pela CEN. Deve-se indicar
apenas as iniciais maiúsculas: A ou P.
5. Ação: O tema do documento, assunto. Deve comportar um verbo no gerúndio: “informando o
despacho dos livros encomendados”, “informando a aprovação do livro encaminhado para a
avaliação editorial”.
6. Data tópica: Lugar onde foi datado: cidade, estado no caso do Brasil; cidade e país no caso de
países estrangeiros. Quando não houver: s.l.
7. Data cronológica: dia, mês e ano no formato: dd/mm/aaaa, ou seja, usar para dia e mês sempre
dois algarismos, logo, as unidades devem ser precedidas pelo número zero (01, 02, 03); os anos
devem ser escritos sempre com quatro algarismos. Quando não houver: s.d.
8. Páginas: número de páginas do documento (observar que é diferente de número de folhas).
9. Anexo/Observações: se houver.
10. Localização: onde se encontra o documento, na seguinte ordem: envelope-conjunto provisório.
Envelope: número do envelope; conjunto provisório: correspondência, internacional; etc.

O suporte da maioria dos documentos é papel, grande parte deles datilografada. Contudo, junto
a alguns documentos vem sendo encontrados rascunhos manuscritos. Parte das assinaturas é ilegível,
dificultando a identificação do emissor e ou destinatário. Embora a maioria dos papéis seja de gramatura
mais alta, há também muito papel de seda usado em cópias carbonadas que, por sua fragilidade,
são manuseados com extrema cautela para evitar danos. Alguns panfletos também estão junto às
correspondências e, geralmente, são material de divulgação de revistas associadas à CEN ou de gráficas
prestadoras de serviços para a editora.
Todos os assuntos da correspondência são relacionados à edição ou reedição de livros, novos

17 Ana Maria de Almeida Camargo e Heloísa Liberalli Bellotto. Dicionário de terminologia arquivística. São Paulo: AAB/Núcleo São Paulo; DEMA, 1996, p. 34.

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contratos ou fim de contratos, direitos autorais e outros temas relativos a questões técnicas, burocráticas,
de divulgação, vendas e adequação dos livros às reformas ortográficas e reformas educacionais que foram
implantadas no país. Em suma, essa correspondência indica os passos da produção editorial, desvelando
as relações nem sempre harmoniosa entre os autores e os departamentos pelos quais os originais
passavam até serem publicados. Bom exemplo é a carta enviada em 1977 por José Honório Rodrigues a
Mitsue Morissawa, da filial carioca da CEN, solicitando revisão da edição da obra Teoria da História do
Brasil e apontando problemas no posfácio e na bibliografia18. A questão continuaria no ano seguinte, com
o mesmo autor queixando-se a Eva Rossi por ter de revisar novamente o livro (suponho que a 5ª edição
da mesma obra alvo da reclamação anterior) pois o revisor modernizara – sem necessidade, segundo
Rodrigues – alguns termos e nomes, e ainda não fora providenciada a elaboração do índice remissivo19.
Até o momento, foram descritos documentos relativos a correspondência interna (1974-1978, 328
unidades), correspondência geral (1946-1980, 2155 unidades), correspondência com autores (1975-1976,
24 unidades) e correspondência internacional (1936-1986, 820 unidades). Estamos fazendo os primeiros
testes de digitalização do acervo já descrito, assim como continua em andamento a descrição do conjunto.
Exemplificamos o processo a partir da descrição da correspondência internacional. A maior parte
dos envelopes desse tipo de correspondência começa com um pedido da CEN para que uma editora
no exterior enviasse cópia de uma obra e de um pré-contrato de direitos sobre a tradução em língua
portuguesa. O conteúdo da correspondência internacional é variado, contendo letras de câmbios, folhetos
comerciais, almanaques com os lançamentos das editoras e cobranças diversas. Os envelopes contêm
várias peculiaridades, como por exemplo, os contatos da CEN com editoras estadunidenses durante a
Segunda Guerra Mundial, época em que as próprias companhias afirmavam a dificuldade de atender aos
pedidos pela inviabilidade do transporte. Temos ainda referências à crise do papel, à variação do câmbio e
à grande dificuldade burocrática para se efetuar transferências monetárias, pois era necessário chancelar
as letras de câmbio nos consulados brasileiros.
O processo de catalogação foi entremeado pela discussão de textos e acompanhamento da
produção da planilha. Em razão da greve discente deliberada em março de 2012, os trabalhos foram
alterados em função da impossibilidade de permanência no campus. O CMPH, bem como os outros
setores universitários da EFLCH, foi fechado temporariamente. Se algumas semanas antes os trabalhos
no CMPH já estavam sendo realizados custosamente, depois de 14 de junho de 2012 não houve alternativa
senão a interrupção até setembro do mesmo ano. Durante o período de suspensão dos trabalhos no
CMPH, os bolsistas dedicaram-se às leituras bibliográficas.
Não pudemos ainda ter uma dimensão exata do volume do arquivo editorial, em metros lineares,
o que será possível a partir da reunião do acervo. Os documentos da CEN já haviam passado por uma
organização prévia, sendo divididos em mais de 900 envelopes com número não sabido de documentos
por conjunto. A separação dos conteúdos indica a existência de correspondência passiva e ativa;
correspondência interna; correspondência internacional; correspondência de leitores; correspondência
com autores; dossiês de autores; contratos de edição e de tradução; livros de registro de distribuição das
obras; recortes de jornais, material de publicidade, catálogos e ilustrações originais acondicionadas em
mapoteca. Tudo isso compõe conjuntos provisórios.

18 Acervo CEN, Correspondência com autores, carta datada do Rio de Janeiro, 1 de agosto de 1977.
19 Acervo CEN, Correspondência com autores, carta datada do Rio de Janeiro, 24 de agosto de 1978.

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Ao longo do processo de catalogação, porém, os bolsistas notaram que nem sempre o conteúdo
do envelope correspondia à notação. O acervo carece, assim, de ordenação rígida, e optamos por
estabelecer um quadro de arranjo após o encerramento do processo de descrição, mantendo-se, por
ora, a organização existente no ato da chegada do conjunto ao CMPH. O processo iniciou-se pelo
reconhecimento, para posteriormente refletirmos sobre a lógica de organização arquivística que será
implantada futuramente.
A partir do início da descrição dos documentos, foi possível perceber a interação entre a dinâmica
editorial interna e as transformações culturais, educacionais, política e econômicas ocorridas no Brasil.
Sendo assim, essa correspondência constitui um rico manancial de informações que pode contribuir
significativamente com a bibliografia já existente sobre esse campo de pesquisa, ao indicar os caminhos
que levam da produção de originais à publicação, à distribuição e à leitura dos livros.

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