Pao, Poesia e Leitura Na Infancia Cyntia Girotto

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Pão, poesia e leitura na infância: o poder dos

livros na humanização das crianças


Bread, poetry and reading in childhood: the power of
books in the humanization of children
Cyntia Graziella Guizelim Simões GIROTTO 1

Resumo Abstract
Trata-se de texto base de uma apresentação oral This is the base text of an oral presentation at a
em mesa redonda intitulada “Um olhar estético round table entitled “An aesthetic and poetic
e poético para as produções de leitura (literária) look at reading (literary) and writing
e escrita na/para Infância”, durante o productions in/for Childhood”, during the
Congresso SemiEdu - 2022: (Trans)Ver a vida SemiEdu Congress - 2022: (Trans)See life
pelas lentes de uma educação científica, through lenses of a scientific, sensitive, ethical,
sensível, ética, estética e artística, da aesthetic and artistic education, from the
Universidade Federal de Mato Grosso Federal University of Mato Grosso, (UFMT),
(UFMT), Campus Cuiabá-MT. Nele são Campus Cuiabá-MT. It discusses issues related
discutidas questões relacionadas à leitura to literary reading and writing in childhood
literária e escrita na infância e humanização das and the humanization of children. Thus,
crianças. Dessa forma, discute-se linguagem, language, reading, writing, children's literature
leitura, escrita, literatura infantil e os contextos and the contexts of human acts related to such
dos atos humanos a tais concepções related concepts are discussed. The debate
relacionados. O debate tematiza a conjugação focuses on the conjugation between the words
entre as palavras eleitas para expressar o título: chosen to express the title: bread as real and
pão como nutrição real e simbólica, leitura, symbolic nutrition, reading, childhood, books,
infâncias, livros, crianças e humanização. children and humanization.

Palavras-chave: Educação. Infância. Leitura. Keywords: Education. Infancy. Reading.


Literatura Infantil. Humanização. Children's literature. Humanization.

1
Livre-docente em Leitura e Escrita pela Universidade Estadual Paulista (2016). Pós-doutorado
em Leitura e Literatura Infantil pela Universidade de Passo Fundo (2015). Doutora em
Educação pela Unesp (1999). Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos
(1995). Pedagoga pela Faculdade de Filosofia e Ciências - Unesp - Marília (1992). Professora da
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), Câmpus de Marília. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/9600062169250020. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-0620-4613.
E-mail: [email protected]

ISSN 2238-2097 Revista de Educação Pública, v. 32, p. 353-371, jan./dez. 2023 DOI: https://doi.org/10.29286/rep.v32ijan/dez.15828
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É uma honra e alegria estar neste evento tão brilhante, tanto quanto
enriquecedor para todos nós do lado de cá e para as muitas mentes pensantes
que não vemos daqui desta tela de um computador, no entanto, que
imaginamos, a nós, estarem conectadas entre vozes, sensibilidades e
pensamentos.
Começo, assim a minha fala, por uma pequena historieta de grande
valor.
Havia um merceeiro que com a sua esposa estava sempre a contar
todo lucro da venda de suas mercadorias. Possuía toda a casa e era conhecido
como sovina... Com seu porão desocupado, deixa nele se instalar um
estudante, daqueles genuínos que gostam de ler e estudar. Também junto
deles vivia um duende, a trabalhar em troca de pão. Certa noite, o estudante
foi comprar pão, queijo e manteiga, e indignou-se. O merceeiro foi
embrulhando cada uma das mercadorias por ele escolhida com folhas
arrancadas de um livro. O jovem assustado com a situação criada,
questiona aquele comerciante, que lhe responde tratar-se apenas de um
velho livro, que para nada mais prestava. O estudante inconformado, lê nas
folhas arrancadas trechos de bela poesia. “Por favor, pare com isso. Eu
compro o seu livro feito para empacotar” – ao que o merceeiro indaga: “Por
acaso você tem dinheiro o bastante para isso?” O rapaz deixa, então, as
mercadorias e paga pelo livro, já muito rasgado e destruído. Por sua vez, o
Duende curioso e incrédulo com o que acabara de ver, ele que comia
manteiga e queijo apenas uma vez por ano – só no Natal, seguiu o estudante
e foi correndo espreitar pelo buraco da fechadura: “Abandonar o alimento
apetitoso por um livro? Trocar, assim, sem pestanejar? Isso, não é possível!”
– Pensava ele” E, então, pôde ver: quando o jovem se sentou recostado
sobre a velha cadeira de balanço e abriu o livro, houve uma explosão de luz,
havia tanta claridade dentro do porão, de uma energia inigualável, nunca
antes vista! Muitas cenas foram surgindo e rodavam como num carrossel.
Cada personagem era, na verdade, uma estrela brilhante. Ouvia-se ora um
canto celestial, ora uma música extraordinariamente bela; sentia-se o cheiro
de estonteantes flores; a sabedoria dos sábios, os sabores dos banquetes reais,
a tristeza das mães, a saudade dos viajores, o amor dos enamorados, a
felicidade das crianças... Ah!!! Tudo pura magnificência; nunca tinha
pensado o duende, muito menos visto e sentido algo parecido. Passou,
então, todas as noites, pé ante pé, a descer cuidadosamente as escadas da
casa até o porão. O bisbilhoteiro se fartava todos os dias, aliás, todas as noites
com as ficções, as narrativas poetizadas, as histórias memoráveis de todas as

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épocas, de todos os tempos. Um dia, um grande incêndio surge. Toda a rua


fica iluminada pelas chamas. Todos procuram salvar o mais importante. A
mulher do merceeiro guardou os brincos de ouro, que ganhara do marido.
O merceeiro correu a buscar os papéis de crédito e as promissórias de muitos
devedores. E o duende? Ah, o Duende....já no telhado, pensava: ‘O melhor
tesouro da casa está a salvo’. O estudante, ao chegar em casa, olhou em meio
a fumaça lá no alto do telhado uma criatura agarrada a algo que ainda não
divisava. Ao chegar mais perto, viu o duende agarrado ao seu livro de poesias
e, assim, tudo compreendeu. O duendezinho, percebendo e tentando
compreender aquele olhar, disse em meio a resmungos: “Sabe, eu sempre
achei que o pão era a única coisa a me alimentar na vida, mas agora...agora,
eu já não sei”. E foi, o duende, perfeitamente humano!
Esta é uma síntese, parte incompleta de uma adaptação livre do
“Duende em casa do merceeiro”.
O nome de Andersen surgiu aos meus olhos de criança pela primeira
vez na capa de um pequeno livro com ilustrações brilhantes, em que a
profundidade, a complexidade e a agudeza do escritor dinamarquês tinham
perdido – muito provavelmente por um caminho de sucessivas
simplificações – a sua riqueza. Mesmo assim, fui conhecendo ‘O patinho
feio’, ‘A pequena vendedora de fósforos’, ‘Soldadinho de chumbo’, ‘A
pequena sereia’, ‘Polegarzinha’, ‘A roupa nova do imperador’ e mais adiante
já quase adulta ‘A princesa e a ervilha’, ‘Os cisnes selvagens’, ‘A Rainha das
Neves’... e tantos outros contos e narrativas que, parecia, nem precisávamos
ler, porque aqueles que nos precederam leram por nós.
Andersen, considerado o primeiro autor a se dedicar fielmente ao
universo das crianças, nome que hoje condecora os melhores da literatura
infantil e juvenil pelo prêmio IBBY (International Board on Books for
Young People) 2- era filho de um jovem sapateiro e uma lavadeira, ambos
analfabetos. Todos residiam em um pequeno quarto, onde o pai estimulava
as fantasias e o dom criativo do filho, a quem narrava as mais variadas
histórias, criando condições para que o garoto Hans aprendesse a ler.
Chegou até mesmo a lhe presentear com um teatro de marionetes por ele
construindo, com o qual o garoto pôde desenvolver seu conhecimento
teatral, mergulhando inclusive no universo de Shakespeare. Quanto amor

2
O Prêmio Hans Christian Andersen é considerado o Nobel da literatura, sendo o prêmio de
literatura infato-juvenil mais importante. Nomes de escritores brasileiros como Lygia Bojunga e Ana
Maria Machado já foram contemplados com esse prêmio. Roger Mello foi o primeiro ilustrador
brasileiro a ganhar o prêmio.

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paterno, quanta amorosidade familiar, que faz tanta diferença na vida das
crianças, das mais abastadas às mais miseráveis.
Quando tinha apenas onze anos de idade, foi obrigado a deixar os
estudos, embora já demonstrasse sua inclinação para a literatura e o teatro,
seu pai amado morrerá. Posteriormente voltou a estudar e até a frequentar
a universidade com os apadrinhamentos felizes que teve pela vida. Sua
produção inicial era destinada a adultos, mas foi com os contos infantis que
ganhou notoriedade. Talvez, justamente, por serem tão críveis suas
histórias. As dificuldades todas por ele atravessadas na infância lhe deram a
oportunidade de ter uma clara percepção das barreiras sociais e da marcante
diferença entre as várias esferas socioeconômicas vigentes em sua época na
Dinamarca. Esta visão inspiraria, posteriormente, grande parte de suas
narrativas infantis e adultas.
Assim, em suas narrativas o autor procurava transmitir modelos
comportamentais que a estrutura social de sua época talvez pudesse
absorver. Também procurava refletir em seus contos os conflitos instaurados
entre os que detêm o poder e os que a eles são submetidos. Hans acreditava
profundamente que a igualdade de direitos deveria reger o mundo e a
relação entre os homens. O menino Andersen prosseguiu na criação de seus
contos para crianças até 1872, ano de seu falecimento, publicando 156
histórias, permeadas pelo humor típico dos habitantes do norte da Europa
e uma divertida bondade, sem falar na fina ironia presente também em suas
narrativas.
Diante dessa grandiosidade, hoje vejo o quão inadequadas e até
ofensivas eram aquelas adaptações de Andersen da minha meninice, porém
não impediram que o olhar e interesse de uma menina do sítio, deslumbrada
com a biblioteca da tia da cidade, se fixasse, como o de tantos meninos e
meninas de minha época, em um elemento essencial da obra do autor, talvez
o único aspecto ainda vivo, ante a todas as simplificações a que se viu
submetida. Faço referência à exclusão, à expulsão de que padecem suas
personagens e a tremenda necessidade de inclusão, que os habita.
Sem dúvida, muitos são os personagens do escritor em absoluta
solidão, abandonados, sofridos, todavia são os mesmos, cujo anseio
representa um querer ardente: entrar na “festa do mundo”, no “grande
banquete da vida” ainda que muita gente sequer pense em reparti-lo
(Bakhtin, 2010). Fartar-se do banquete das máximas elaborações humanas
parece ainda ser, mesmo quando falamos tanto em direitos humanos,
bonança para poucos.

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Há, outrossim, forte identificação de muitos de nós e de nossas


crianças com os excluídos de Andersen: singulares vivendo entre estranhos,
diferentes em um mundo de iguais, invisíveis em territórios naturalizantes
e desumanos. Coadjuvantes alheios ao protagonismo das narrativas vívidas,
pois como nos diz Bertold Brechet: ‘Para quem tem uma boa posição social,
falar de comida é coisa baixa. É compreensível: eles já comeram’.
Muitos estão sozinhos sobre o coração da terra, tal qual cisnes em
uma comunidade de patos, seres míticos em um mundo nada humano,
pobres de toda pobreza em nações gélidas e mesquinhas…ou surgem como
‘ETs’ entre terráqueos... seus homens, mulheres, animais e crianças são
arrancados de seus lugares, jogados às intempéries, expulsos de hipotéticos
paraísos, de supostos e concretos privilégios. O que dizer, por exemplo, dos
movimentos migratórios no mundo?
O tema das migrações apareceu com força para mim, notadamente,
pela literatura. A condição de parecerista do (infelizmente extinto) PNBE
(Programa Nacional Biblioteca na Escola) levou-me a conhecer uma obra
fenomenal que fala das migrações de todos os tempos e espaços. ‘A chegada’
de Shaun Tan da Editora SM, um livro primoroso, que como materialidade
se assemelha a um álbum de família, é uma novela gráfica, portanto, é obra
constituída apenas de imagens, em que os quadros – à semelhança de
histórias em quadrinhos, tecem uma narrativa que o leitor precisa verbalizar.
Sem palavras, mas da mesma forma que uma narrativa verbal, se assenhora
do conceito “a melhor literatura” e mergulha o leitor em uma experiência
estética legítima, o livro possibilita uma participação pessoal e emotiva que
se expande para a percepção do coletivo, da sociedade e da condição
humana.
Trata-se de uma obra que foge aos temas comerciais pensados para
crianças e jovens, a ser abraçada por leitores de todas as idades. Narra o
percurso migratório do protagonista, um homem que vive as clássicas
adversidades experimentadas por um imigrante, antecedidas pela tensão que
determina o abandono da terra de origem em busca de uma vida possível
em terras estrangeiras.
Deixando assim, esposa e filha, em sua cidade natal para tentar a
vida em um país estrangeiro, após longa travessia, chega a uma terra
estranha, onde as pessoas falam uma língua indecifrável, comem alimentos
exóticos e convivem com objetos flutuantes e animais quase que bizarros _
todos denotativos na poética das cores e formas em tom sépia, amareladiço,
com ar memorialístico, dos estranhamentos de culturas. Repleto de

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símbolos arquetípicos, como a cauda do dragão que aparece fortuitamente


no caminho do protagonista, o livro ressalta aspectos comuns e particulares
às histórias de muitos estrangeiros em países distantes, expulsos de seus
países pelos mais diversos motivos: guerra, violência, crise econômica e/ou
política, perseguições étnicas, trabalho escravo, etc.
Naquele período, carregava, também, a condição de migrante, eu
estava em Portugal, entre a tríade Lisboa-Porto-Braga, em um intercâmbio
de estudos, pesquisas, participação em evento científico sobre Literatura
Infantil, a fim de afinar contatos para futuro pós-doutoramento. Quando
desembarquei em terras portuguesas, me descobri brasileira, sul-americana-
latina, e fui entendendo que o propalado sonho europeu e neoliberal não
era, exatamente, acolhedor. Pura ilusão. Entendi que as fronteiras existem,
as concretas e as simbólicas, e que o desejo colonizador ainda tem ecos.
Mesmo assim, a minha travessia foi cheia de privilégios, em especial, pelo
marco regulatório que me permitia circular naquele território: a condição
de professora-pesquisadora como estudante.
Mas a maior marca veio depois. Convido-os a refletir sobre este fato:
Um menino. Três anos, ficamos sabendo depois. Ele ficou famoso,
realmente muito conhecido. Posso apostar que você lembra o seu nome,
mas eu nem preciso contar ainda, basta dizer o que lhe aconteceu: o ano era
2015, a crise era humanitária e o menino morreu. Um pequeno cadáver
estendido às margens da praia, foi a imagem que ganhou o mundo – sim,
naquele dia de setembro fatídico, ganhamos a macabra recompensa de como
vimos produzindo (algumas) vidas. Foi intenso. Virou símbolo. Estátua.
‘Estátua símbolo’ da crise humanitária, da crise migratória, do drama dos
refugiados.
Naquele ano de 2015 fomos arrastados por Aylan. Eu o conheci pelo
jornal como “Garoto sírio se torna o rosto do drama dos refugiados”, em
uma reportagem que contava que sua família se lançou ao mar “para se
agarrar a uma chance de vida, mesmo que em destino desconhecido e numa
travessia repleta de riscos”. Era mais um caso de morte em busca de chances
de vida, mais um caso de fuga em busca de um lugar para ficar. Aylan deu
nome e imagem à crise humanitária, que é migratória e é dos refugiados,
aqueles que fazem a fuga duas ou mais vezes, são ‘re-fugiados’. A foto do
menino morto na praia comoveu e fez questionar a forma como o tema das
migrações e do refúgio vem sendo produzido. Provocou abandonar uma
cômoda neutralidade: portanto, me comoveu, me fez questionar, me fez
pensar, me colocou em estado crítico-reflexivo. Não porque esta história

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conte de mim ou dele: ela conta de nós e isso envolve, inclusive, todos vocês.
Também não foi porque Aylan seja uma exceção, um caso raro. Ele poderia
ter sido só mais um. Mas não foi. Aylan aconteceu.
Aylan Kurdi, esse é o nome dele. Aylan nasceu na Síria e tentava
chegar à Grécia, quando morreu na Turquia, depois do bote em que estava
com toda a sua família afundar. As ondas do mar em que perdeu a vida o
levaram até a praia. De lá, o nome de Aylan ganhou o mundo. Nunca se
sabe, exatamente, o que faz um nome ganhar o mundo...sorte, acaso,
tragédia? A verdade é que Aylan foi menino branco e sua imagem fez
estremecer uma suposta paz humanitária. Suposta. Paz. De alguns. Alguns,
porque, acreditemos, a paz não é coisa de todo o lugar e nem de toda a
gente.
Os rastros da vida e da morte do menino, pelo menos aqueles que
chegaram até nós pelas notícias veiculadas pelos jornais, pelas emissoras de
televisão e pela internet, contam de pequenos e grandes choques com o
poder. Neste caso, não foram rastros distribuídos ao acaso, ao contrário,
foram calculados e distribuídos na medida que interessavam, não a alguém,
mas aos fluxos e às forças que vêm produzindo as migrações internacionais
como sinônimo de crise humanitária, dentro da qual Aylan nasceu, migrou
e morreu. Ao mesmo tempo, a história do menino foi contada como apelo
à abertura e ao fechamento de fronteiras, porque os efeitos do encontro com
o poder, apesar de todo o controle, de todas as medidas e de todos os
cálculos, não são determináveis. Talvez, se ele tivesse sido engolido pelo
mar, como outras crianças e outros adultos, jamais o conheceríamos, mas
quando o seu corpo na praia virou foto, notícia é tema de debates
internacionais, ele pôde aparecer.
E segue aparecendo, também, pelos encontros com poder: às vezes,
como nova notícia, se transforma em comoção, indignação e protesto,
outras vezes, como pesquisa, e pode até virar literatura. Nesses espaços de
encontro (com o poder) o menino reexiste e resiste, por seus rastros: “todas
essas vidas destinadas a passar por baixo de qualquer discurso e a desaparecer
sem nunca terem sido faladas só puderam deixar rastros [...] a partir do
momento de seu contato instantâneo com o poder” (Foucault, 2003, p.
206).
E como é impossível reencontrar e contar a vida do menino, uma
vez que só conhecemos partes de sua morte, reinvento-a nos encontros que
o encontro com ele provocou. Nosso duendizinho também é um
expropriado de seus direitos, convivendo com cultura distinta da sua, é

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quase um migrante-refugiado lutando pela sobrevivência, debatendo-se


com o seu trabalho-pão.
Na literatura infantil temos belíssimos livros que nos convidam a
uma reflexão profunda sobre tal problemática. ‘Migrantes’ da Editora
Solisluna, por exemplo, é um outro desses, como ‘A Chegada’, seu título
um dos poucos enunciados escritos do livro que agora, diante de vocês,
quero me reportar, apontando um caminho para a leitura. Mas é somente
pela sequência das imagens que conseguimos penetrar fundo no universo
dos personagens, viajando com eles através das páginas e sentindo a
intensidade da narrativa criada pela premiada autora Issa Watanabe.
A obra narra a jornada de migração de um grupo de animais
antropomorfizados (remetendo a ideia de representação de homens,
mulheres, velhos e crianças que aparentam diferentes nacionalidades, tem
grande força imagética). Apresenta também um testemunho impactante de
todo sofrimento daqueles que deixaram uma vida de angústias e incertezas
para trás, em busca da esperança de dias melhores. Migrantes é, pois, um
livro silencioso e um poema ilustrado. Nele, realmente a coragem e a
esperança são a jangada; em que a empatia e o amor são a salvação.
São histórias como essas das obras ‘Migrante’, “A Chegada” que se
enlaçam à crise humanitária que se refere às migrações (hoje, de quase 280
milhões de pessoas, sendo 60 milhões delas, crianças), isto é, que acontecem
de 2010 para cá, cujo encontro para mim foi possível tanto pela literatura
infantil, quanto pelas crianças e infâncias; e, desse modo, vou procurando
tecer com elas modos de pensar a humanização na/com/para a infância
partir da poeticidade dos livros neste nosso diálogo aqui no congresso. Tal
qual Andersen, os autores contemporâneos de tais obras também
denunciam e (re)anunciam as expropriações sofridas pelas pessoas
provenientes das esferas econômicas mais baixas. A literatura é assim: traz
encontros alegres e tristes, mas concomitantemente, incomoda e faz pensar.
A que lugares nos levam nossos privilégios? A que condição nos leva
como, por exemplo, professores? A que lugares da infância, já ocupados, a
que lugares não nos deixam ir como professores, mediadores de leitura em
prol da humanização das infâncias? Podemos nos perguntar junto com
Paulo Freire, Lev Vygotisky, Mikhail Bakhtin... Quais são meus atos
responsivos e responsáveis diante deste mundo de tantas mazelas e crises?
E ainda podemos nos perguntar: Quem são as crianças com as quais
trabalhamos? De que infâncias falamos? Que preço pagamos? Pagamos um
preço muito alto para diminuir nosso contato com a dor dos demais;

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acreditamos, muitas vezes, que é melhor não pensar, não saber. Ilusão de
insensibilidade? De (auto)anestesia? Imaginamos que ficarmos alheios
poderia nos proteger e, sobretudo, poderia proteger as crianças, a infância,
nossos filhos. Puro engano. Valho-me da Literatura sempre, da poética não
só dos enunciados escritos, mas dos signos visuais, da poética das cores e das
formas para perscrutar as ilusões.
Se a literatura nos permite entrar no coração do outro, então, evitá-
la nos ajuda a viver anestesiados. A anestesia na leitura se constrói por um
caminho de formas fixas, estereótipos que impedem penetrar a superfície
dos textos e da vida. Desde este ponto de vista, a indiferença pode nos
acompanhar mesmo lendo. Lembremos o poeta pantaneiro, orgulho deste
Mato Grosso potente, que sempre esteve no mundo assinando todos os seus
atos esteticamente éticos a favor do humano, e indescritivelmente a favor
dos criançamentos dirigidos às infâncias.
E, no caso, da progressão da nossa conversa, encontrei-as – as
crianças migrantes – primeiro na literatura. Na literatura infantil. Foi assim
o meu encontro com Azzi, a protagonista do livro ‘Um outro país para Azzi’
da Editora Pulo do Gato: uma menina que viu sua vida ser mudada pela
guerra. Azzi fugiu com os seus pais – fazia frio naquela noite, por sorte a avó
lembrou de a vestir com o casaco. Um trecho da travessia foi de carro, e um
bem maior em bote que cruzou o mar. Azzi escondeu com ela alguns feijões
trazidos de casa, e eles foram muito importantes para que o lugar de destino
se tornasse casa também, afinal: “Vida nova, feijões novos”! (Garland, 2012,
p. 38).
Mas foi em Cuiabá, pela oportunidade concedida pelos membros
do GEPLOLEI (Grupo de Pesquisa "Linguagem Oral, Leitura e escrita na
Infância”), que tive pela primeira vez contato direto com crianças em busca
de novos lares-casa, crianças migrantes cheias de feijões, quase mágicos, nos
bolsos: as venezuelanas, para as quais prometi escrever, e assim o fiz quando
cheguei à Marília (SP), a partir de uma das visitas às escolas cuiabanas, antes
do período pandêmico, instituições às quais fiz questão de conhecer _ como
sempre procuro fazer em minhas andanças pelos diferentes brasis. Foram
belas aulas de passeio na perspectiva do tateamento freinetiano. Nomes
como Maikel, Argenis, Haziel, Kevin, Joseth, Juana, Gladis, Maritza ainda
ecoam em minha mente como o sorriso largo de cada uma delas.
Foi o encontro com Azzi e muito mais com Maikel, Argenis, Haziel,
Kevin, Joseth, Juana, Gladis, Maritza que tornou possível repensar em
Aylan e nas crianças migrantes de novo e de outros modos. Um encontro

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alegre agora. Aliás, é com/por encontros alegres que sempre falo e escrevo,
na utopia, no devir.
Nas leituras do círculo Bakhtianiano passei a olhar com cuidado
para a potência dos encontros. Os corpos (que podem ser diversos:
humanos, não humanos, institucionais, linguísticos...) compõem relações
em que são afetados mutuamente no movimento do humanismo da
alteridade. Um encontro não é o choque entre dois outros, dois corpos
diferentes, entre corpos afetantes, é uma troca em que saem sempre outros
pelas afecções que refletem ou os afetos que absorvem quando se
chocam/trocam. Não são instantâneos, os efeitos se dão no movimento, na
potência de agir que o encontro produz. Nos encontros, sempre ao acaso,
certos corpos feito palavras, que convêm com os nossos, nos dão alegria:
trocas em um encontro alegre, um bom encontro, é aquele que aumenta a
nossa potência de falar, agir, sentir; enquanto um encontro triste, um mau
encontro, é aquele que decompõe e diminui a nossa potência de ação, nos
coíbe, interdita, silencia. Palavras não podem ser ditas. Um encontro não
implica em uma questão de soma, um encontro compõe. O encontro é
composição de muitas palavras, de muitas vozes: “quando um corpo
encontra outro corpo, uma ideia outra ideia, tanto acontece que as duas
relações se compõem para formar um todo mais potente" (Deleuze, 2002,
p. 25). O que dizer do encontro do nosso duendezinho com o jovem
estudante? Do duende com o comerciante? Do duende com o livro? Do
duende com a poesia?
Para encontrar as crianças e as infâncias migrantes, num primeiro
momento recorri ao encontro entre Aylan e Azzi, um menino real e uma
menina ‘realpersonagem’ literário. Você pode estar se perguntando se Azzy
existe. Sim! Existe. Só não existe o que não traça, não tece, nem cria, no
dizer barrosseano do poeta pantaneiro. Azzi existe. Resiste. Reinventa.
Quando o pai apresenta a nova casa, um pequeno sobrado com quintal, ela
olha para as possibilidades que acompanham os novos começos: “Tem
espaço para eu pular corda com a Lucy! – disse Azzi, e pensou: Meu novo
lar nunca vai ser igual ao antigo, mas está ficando cada vez melhor”
(GARLAND, 2012, p. 34). É assim, a arte existe para que seja possível
suportar a vida, ficar cada vez melhor. Como gostaria de ofertar e mediar
Literatura de infância às crianças venezuelanas... Ahhhh... se em Cuiabá
estivesse, criaria condições para estes encontros felizes. Gostaria de vê-las em
descoberta, contenteza e puro maravilhamento, tal qual nosso duendezinho,
nutrindo-se de livros em muita poesia!

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Pois, afinal, estão em busca de livros-pão, livros-morada.


Um local de acolhida é igualmente encontrado: os
livros lidos são moradas emprestadas onde é possível
se sentir protegido e sonhar com outros futuros,
elaborar uma distância, mudar de ponto de vista. Para
além do caráter envolvente, protetor, habitável, da
leitura, uma transformação das emoções e dos
sentimentos, uma elaboração simbólica da
experiência vivida tornam-se,em certas condições,
possíveis (Pettit, 2009, p. 284).

Ao ler ficções, tornam-se palpáveis as infinitas possibilidades que


existem em qualquer situação humana e somos colocados frente ao desafio
de escapar da asfixia dos estereótipos, de romper o lugar comum para se
deixar entrar nesses seres inventados na complexidade da vida. Quando isso
ocorre, estamos ante um livro que nos perturba (temas fraturantes?
Andruetto e Marina Colassanti, dizem que não, que a literatura por si só
tem que ser assim) e nos serve como casa, como um livro para gente
morar...um livro, enfim, verdadeiro como a vida.
É mesmo tudo quanto buscam, um livro-casa, sem saber que
buscam, quando estão alheias a este direito! Como, mas como gostaria que
todas as crianças expropriadas de seus direitos de meninice pudessem, como
qualquer outra criança, ter acesso a enunciados escritos e signos visuais que
pudessem fazê-las refletir e sentirem-se encorajadas a viver plenamente suas
infâncias, sendo simplesmente crianças ‘perfeitamente humanas’.
Sem saber, mas fruto do testemunho do ato de ler do jovem
estudante, foi criado no nosso duendezinho uma necessidade
humanizadora, componente fundamental vinculado ao campo das emoções
e que fez por isso surgir o sentido da atividade da leitura literária (Leontiev,
1978), o motivo inclusive que o levou a eleger o seu objeto a ser salvo,
dentre tantos outros possíveis: o livro.
Pois, então, precisaríamos permitir às nossas crianças tais
oportunidades de criarem em si motivos pessoais que as levem a agir na
esfera das vivências literárias. Todavia, para isso somos nós, professores, o
modelo de leitor experiente, que verdadeiramente pode ser o diferencial.
Assim como o jovem estudante teríamos que nos dar em oportunidade de
ter uma rotina diária de ler livros, desfrutando e saboreando de suas poéticas
inenarráveis, somente sentida pelos genuínos leitores literários, aqueles que
ampliam suas fronteiras psíquico-emocionais, inclusive para aceitar as

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múltiplas diferenças, sem ser ao outro indiferente. Nós fazemos leitores é no


alargamento de nosso repertório de livros lidos que compõem nossas
histórias de leituras e de formação leitora, donde reside a base para uma
mediação literária inclusiva, para todos, indistintamente. Somos, por isso,
aqueles criadores de necessidades humanizadoras.
As crianças reais e ‘reais personagens’ literárias de nossos livros são
estas que se sentem em meio a um dilema, tal qual como o duendizinho de
nossa história: de qual pão nutrir-se? Estão sozinhas sobre o coração da terra,
como já disse e volto a repetir, são como cisnes em uma comunidade de
patos, seres míticos em um mundo nada humano, pobres de toda pobreza
alheias a necessidades que não ousam sequer pensar existir… longe de
concretos ‘privilégios’, que deveriam ser direitos garantidos, inclusive o de
alfabetizar-se, de alegrar-se, de leiturizar-se, de literatizar-se, de humanizar-
se.
A potência da palavra literária nos disse Maria Tereza Andruetto,
renomada escritora argentina, no ano passado, em atividade junto ao nosso
grupo de pesquisa PROLEAO (Processos de leitura e escrita: apropriação e
objetivação), reside e muito, na possibilidade de nos inquietar, de nos
conduzir às zonas inesperadas de nós mesmos. Ela é arte, todos nós
concordamos. E porque arte literária, quer seja por enunciados escritos ou
visuais dialógicos – distanciada da voz utilitária, monológica e tirana, mas
pautada em discurso emancipador (Perroti, 1986) – pode salvar vidas!
Pode trazer para a vida muitas de nossas crianças, levando-as a
ocupar cada vez mais lugares inesperados, impensados, mas urgentes e
necessários em patamares novos de acesso às bonitezas mais sofisticadas da
cultura produzida pelos homens. Pode trazer vida literária e humanização:
a um só tempo ensinar o ato de ler por meio do objeto livro de infância,
contribuindo para o pleno desenvolvimento das qualidades especificamente
humanas (Vygotsky, 1995).
Já aprendemos com as várias tiragens dos folhetins virtuais do
NAHUM (Núcleo de Alfabetização Humanizadora), que ao escrevermos,
falarmos, produzirmos nossas palavras, o fazemos para sermos
compreendidos; já bem aprendemos também que ler é entrar num jogo de
negociação de sentidos com os enunciados alheios, que ler é entrar na vida
e na língua. Lembremos da menina ‘real personagem’ literária Azzi!
Ninguém no fundo lê sozinho, lemos com uma comunidade de
vozes que nos habitam, de palavras outras que vivem em nós, porque é no
humanismo da alteridade que forjamos a nossa capacidade de ler. É no jogo

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das negociações; no uso da palavra; na conexão com minhas experiências


vindas do mundo da vida com as palavras literárias; na mobilização de
muitas estratégias de leitura, de inferências, predições, visualizações,
sumarizações; no questionamento para valer dos textos; por meio de meu
projeto de leitura levado a cabo, diante da necessidade de ler criada, dos
sentidos atribuídos... é que lemos a nós mesmos, ao outro, ao mundo, a
vida! Enfim, diante de tudo isso e não exatamente nesta ordem, vamos
construindo nossas histórias de leituras na assunção de nossa história leitora.
E, se ficarmos em Histórias narradas em uma linguagem amável e
inócua em oposição ao literário, ainda assim podemos ser indiferentes... E
daí me pergunto: como professores promotores de leitura, o que indicamos,
o que ofertamos? Como mediamos?
A escrita, quando é verdadeira, se alimenta da experiência e da coincidência
vital de quem escreve; disse-nos também Maria Teresa Andruetto. Somente
dessa forma, pode fazer crescer nela mesma e em quem lê, a percepção que
a une aos outros para que os outros se tornem visíveis, deixem de ser o que
se deixou para trás, deixem de ser invisíveis. Saldemos a todos os Maikel,
Argenis, Haziel, Kevin; a todas as Joseth, Juana, Gladis, Maritza, agora
espero já crianças cuiabanas, senão no papel oficial, ao menos na acolhida
literária.
Não são suficientes as palavras bonitas nem a frase cuidada, nem a
trama a ponto de transmitir a riqueza de uma subjetividade e quem escreve
sabe – ou deveria saber – nos disse, ainda Andruetto, que a linguagem
opressora pode ter sua melodia enganosa. Quem escreve compreende (e seu
leitor o compreenderá, mais cedo ou mais tarde) que o que se parece com
verdades irrefutáveis são construções sociais, vantajosas para uns e
prejudiciais para outros e que essas construções podem ser colocadas em
discussão.
Toda criança, todo jovem, precisa de uma comunidade que o
reconheça, precisa sentir que essa experiência à que pode reconhecer pela
leitura (a de um ser humano em outro contexto, em outras condições de
vida) poderia ter sido a sua experiência e condições pelas quais poderiam ter
sido premiados ou castigados.
Que preço paga a arte quando se separa da sociedade de que faz
parte, a sociedade cujas misérias e riquezas a alimentam? ‘As histórias que
escrevo são sempre uma extensão de mim mesmo, saem de minha vida’, os
vários exemplos dados por Andruetto nos falam disso...Na obra, ‘A Menina,
o coração e a casa’, por exemplo, conta-nos sobre sua amiga bibliotecária.

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Algumas vezes mais encoberta que outras, a vida de qualquer escritor


pulsa por debaixo de suas obras. Toda obra de Shaun Tan, por exemplo, é
amiga do exótico e da poesia. Temas densos, experiências emocionais,
enfoques políticos e sociais estão presentes nas obras desse artista – como fez
com A chegada. Não por acaso. Shaun Tan pesquisou durante quatro anos
para produzir essa obra – leu biografias, analisou fotos, postais, filmes;
entrevistou imigrantes, como o próprio pai que lhe deu a vida catorze anos
depois de deixar a Malásia, emigrando para a Austrália.
Com ela, a literatura, inclusive, podemos arriscar a dizer que ‘pensar
em um homem é como salvá-lo’, como relembrou Andruetto conosco, por
meio de um dos poemas inspiradores de Rodolfo Juarroz. Sua casa não é
lugar da casa apenas, do que víamos pela tela, não era somente sala de livros
de POEMAS, há segundo ela outros livros e outros lugares de escrita como
nutrição em toda a casa. A sua casa é a sua salvação. É literalmente feita de
livros e neles ela habita!
Podemos focar na construção de mundos, artifícios cuja leitura ou
escuta (sim quando fazemos proferição, quando lemos para o outro,
também) interrompem nossas vidas e nos obrigam a perceber outras vidas.
A quem se escreve por palavras ou imagens, produz reação a palavra
compromisso, uma palavra que, no que diz respeito à literatura, pode
emancipar! Toda palavra pode. É uma doação... eu disse na apresentação a
ela, quando esteve no grupo: Maria Teresa Andruetto é um presente. Sua
obra ‘Clara’ é um deleite sem igual.
Mas, o que quer dizer comprometer-se, em literatura? Quando uma
escrita é comprometida? Toda obra é a aventura de uma consciência
dialogando com o mundo, com outra consciência... em busca de uma
verdade pessoal, não dogmática. Na disfuncionalidade, na opacidade e no
empobrecimento, um escritor tem algo a nos dizer sobre uma sociedade, um
tempo, uma geografia, uma cultura – palavras dela, Andruetto,
novamente. ‘A arte não tem sentido se não considerar que se dirige a uma
sociedade de que seu discurso se alimenta’. Da discussão da obra ‘Psicologia
da arte’ com Vygotsky, e das de Lukács também saímos com esta impressão.
Tudo isso nos lembra que uma obra não se faz somente com palavras
e, sem dúvida, a obra de Andersen, com quem começamos a nossa conversa
de hoje, não é feita somente de palavras. Alimentado por seu complexo de
feiura, pela pobreza de sua infância, o alcoolismo de sua mãe, as múltiplas
carências e a tremenda necessidade que teve de ser reconhecido; alimentado
– digo – por essa soma de virtudes e mesquinhezes que o habitaram, como

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a cada homem ou mulher da face da Terra, seus contos refletem um ponto


muito alto de exclusão, em narrativas que, quase um século e meio depois
de sua morte, não deixamos de ler, e cujo nome faz jus ao prêmio que recebe
o seu nome, como já comentamos.
Andersen dedicou a sua mãe – à extrema pobreza de sua mãe –, por
exemplo, o conto sobre a pequena vendedora de fósforos que na última
noite do ano, na cidade coberta de neve, acendeu um a um os fósforos que
não conseguiu vender. Como sua mãe foi também uma invisível nesta
sociedade de desiguais, e como ‘não servia para nada’, foi se alimentando no
alcoolismo em que ele a viu se acabar para aplacar o frio.
Hoje sabemos que Andersen é um grande escritor, porque ao olhar
para si mesmo, conseguiu ver além de sua condição até descobrir algo que
em seu tempo ainda não havia sido expresso ou cuja expressão ainda não
havia encontrado sua forma estética.
Necessários são os livros, especialmente necessário o acesso à arte e
à literatura como direito inalienável, extensivo a todos os nossos
semelhantes, no esforço e na convicção – de acordo com Antonio Candido
–, de os incluir no mesmo catálogo de bens que reivindicamos para nós
mesmos. Direito de entrega a um universo fabulado, cujo alimento é
indispensável para nossa psique, porque assim como não é possível ter
equilíbrio emocional sem a fantasia, talvez não exista equilíbrio social sem a
literatura.
A leitura e a escrita enriquecem nossa subjetividade porque nos
coloca de frente com nós mesmos, no diálogo... nos incitam a dizer a nossa
palavra, o nosso projeto de dizer... a fazer perguntas, nos ajudam a pensar e
a sentir, nos colocam em xeque, nos permitem aceder-reconhecer a outras
experiências, tentar compreender outras subjetividades (a nos
sensibilizarmos com a dor alheia), palavra provocadora do encontro
genuíno com a ética e a estética. A exploração de uma verdade estética
pessoal é o que a arte nos oferece, por isso a literatura não é o lugar das
certezas, mas o território da dúvida e não há nada mais libertário e
revolucionário que a possibilidade de duvidar, de nos enfrentar a nós
mesmos para colocar nossas certezas em xeque.
Compreender outras pessoas e outros povos foi o que tentou a
criadora da Biblioteca de Munique, a extraordinária Lepman, a qual criou
ponte de livros e de crianças que refletem sobre sua experiência. Foi pioneira
em programas de leitura e inspirou e impulsionou pessoas do mundo todo.
E por quê? Lepman soube, cedo, que ler o outro ajuda a entendê-lo, E para

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isso é preciso escutar. A guerra, a violência, as indiferenças fruto do


individualismo a fez ver isso com toda força. Politicamente ativa,
consciente de seus privilégios e de suas diferenças, e da obrigação de emigrar
de muitos povos e pessoas, a raiz da intolerância de outros, Lepman não
cansou de seu propósito de levar às crianças alemãs os livros de diversos
lugares do mundo muita diversidade, de modo que, ao entrar em contato
com elas pudessem estar mais bem preparadas para a paz, a convivência e a
compreensão. Ela entendeu que quem lê a experiência de outro poderia,
talvez, compreendê-lo e que, nesse caso, não poderá declarar-lhe a guerra;
que se esse outro se torna mais humano, não poderemos tão facilmente fazê-
lo desaparecer; colocados pela literatura no lugar do outro, escritores e
leitores podemos descobrir as semelhanças que existem entre esse outro e
nós mesmos.
Mas, Andruetto não nos falaria de escrever, de ler sobre outros, mas
mais precisamente de escrever desde o outro, na alteridade, e igualmente de
ler na alteridade! Tentando entrar em seu ponto de vista, porque toda a
‘minha vida depende do outro’, de sua percepção de mundo, de seu coração.
Escrever e ler, portanto, desde um outro diferente de nós (e visto em
profundidade, todo outro é diferente e único) é em primeiro lugar nos
atrever a pensar como ele, a estar, por um momento, em sua pele.
O caminho que propõe a literatura é um caminho de conhecimento
desse outro. E nós professores precisamos oferecer a elas, às crianças a poesia
da leitura e a leitura em poesias. E a colheita que obteremos na leitura
(LITERÁRIA) consistirá em sair da indiferença porque, ao final de um
livro, para quem escreve e quem lê, ficam as dúvidas com a complexidade
de razões, interesses, virtudes e defeitos de um outro diferente de si,
compreendendo que já não seria tão simples desentender-se de sua
existência.
Com ela, inclusive, podemos arriscar a dizer que ‘pensar em um
homem é como salvá-lo’, como relembrou Andruetto conosco, por meio de
um dos poemas inspiradores de Rodolfo Juarroz. Sua casa não é lugar da
casa apenas, do que víamos pela tela não era somente sala de livros de
poemas, há segundo ela outros livros e outros lugares de escrita como
nutrição em toda a casa. A sua casa é a sua salvação. É literalmente feita de
livros e neles ela habita!
Gostaria de lembrar que uma parte importante de nossa experiência
leitora provém da incompreensão, não compreendemos tudo o que vamos
lendo e então isso mesmo, tentar compreender, provoca o esforço de

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transitar da leitura de um livro a outro; é assim como temos viajado, os


leitores, de um livro a outro, desde os distantes dias da infância até os dias
de hoje. Então um bom livro é, talvez, um livro que nos propõe essa
dificuldade. Isso é relevante porque muitos livros editados hoje para crianças
e jovens estão escritos em uma linguagem e tratam de assuntos
extremamente simplificados, de acordo com a linha oficial, o congelado, o
previsível, evitando e evitando-nos de pensar.
Assim, a literatura nos oferece seu mistério, porque permitindo-nos
entrar em um outro diverso, incluindo-nos em seu mundo e deixando se
incluir no nosso, nos abre novas experiências de contato com o sofrimento,
com o assombro, a dor, a alegria, o regozijo ou a maldade, ao mesmo tempo
em que nos oferece a cura desses sentimentos. Uma vez que as palavras
passam pelo corpo e pela alma de quem escreve palavras ou imagens como
nos dizem tantos outros, tais enunciados podem pertencer já ao leitor, que
mergulhando no mundo das palavras literárias, como que numa corrente
interna que vai desde a subjetividade de quem escreve a de quem lê _ numa
linguagem precisa, de transparência suficiente , capaz de conduzir o leitor
presumido até o mundo que se narra, numa opacidade indispensável como
para que se abrir a múltiplos sentidos.
Vamos assim, percebendo que a literatura é generosa demais para
nós, e profundamente democrática porque nos permite ingressar em seu
universo a partir de nossa particularidade, e possibilita a cada um de nós
encontrar um caminho próprio entre suas palavras e imagens. Um escritor,
procurando uma forma inteligível e altamente condensada para as imagens
que persegue, despindo-se a si mesmo, põe a nu aspectos inimagináveis da
condição humana. Leva-nos a pensar, ao menos por um momento, de outra
maneira. Coloca-nos diante do desafio de tentar compreender uma situação
que vai para além de nós, nos propõe identificar-nos, inclusive, com o que
repudiamos, para nos obrigar a olhar a partir de outros ângulos, tirando as
macias almofadas de nossas sagradas convicções. E se as coisas fossem de
outro jeito? Como seria nossa vida se fosse possível viver como esse outro?
Só assim é possível perfurar a superfície de tantas versões superficiais da vida
(e não podemos nos contentar com elas) como nos chegam através de mil
modos de penetração.
Bem, e se toda palavra literária é, assim, tem algo a nos dizer sobre
uma sociedade, um tempo, uma geografia, uma cultura, como também já
nos ensinaram os integrantes do círculo de Bakhtin, toda obra será a
aventura de uma consciência dialogando com o mundo, com outras

ISSN 2238-2097 Revista de Educação Pública, v. 32, p. 353-371, jan./dez. 2023 DOI: https://doi.org/10.29286/rep.v32ijan/dez.15828
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consciências, com a consciência do leitor em busca de uma ‘verdade’ pessoal,


mas não dogmática. Literatura não é de modo algum o lugar das certezas,
mas o território da dúvida e não há nada mais libertário e revolucionário
que a possibilidade de duvidar!
Enfim...nós leitores (professores, adultos ou crianças) vamos à ficção
para expandir os limites de nossa existência, porque necessitamos conhecer
outras vidas e outros mundos, já que as ficções são construções de mundo,
instalação de outro tempo e de outro espaço, nesse tempo e nesse espaço em
que vivemos. Por isso ensinar a ler por meio da literatura, da experiência
literária é vital!!!! Essencial, como diz o nosso mestre Dagoberto Buim Arena
“ensinar o ato humano de ler como tudo o que vem junto dele... tudo!”
A literatura infantil faz parte de um grande sistema de controle
quando na escola a didatizamos em demasia, mas ao assumir o lugar de
enunciar os não ditos, o obscuro e a não-verdade, ela também ultrapassa
limites, desloca códigos e arranjos, abre caminhos para a transgressão e a
humanização. A literatura não se alia a estruturas fixas do signo – ao repetir,
ela também transgride. Faz como Manoel, que transgride e inventa ao
desinventar: Desinventar objetos [...] Dar ao pente funções de não pentear.
Até que ele fique à disposição para ser uma begônia [...] usar algumas
palavras que ainda não tenham idioma. Repetir, repetir — até ficar diferente
(Barros, 2010, p. 300).
Contudo, talvez precisemos fazer destes versos nosso lema: repetir,
repetir, para transformar(-se). Dizer, dizer, para recriar(-se). Desdizer,
desdizer, para reinventar(-se). Infantizar, infantizar, para criancizar(-se).
Ler, ler para livrar(-se). Leiturizar, leiturizar, para literatizar(-se). Poetizar,
poetizar, para humanizar(-se).
Gratidão a todos vocês e à literatura infantil. A ela e a todos seus
escritores e ilustradores, e ‘reais personagens’, sem o que não seria possível
nos tornarmos verdadeiramente humanos!

ISSN 2238-2097 Revista de Educação Pública, v. 32, p. 353-371, jan./dez. 2023 DOI: https://doi.org/10.29286/rep.v32ijan/dez.15828
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Referências

BARROS, M. de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.


BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. 8. ed.SP: Editora Hucitec, 2010.
DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia Prática. Trad. Daniel Lins e Fabien
Pascal Lins. São Paulo: Escuta, 2002.
FOUCALT, M. A vida dos homens infames. In: FOUCAULT, MICHEL.
Ditos e Escritos IV. Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2003. pp. 203-222.
GARLAND, Sarah. Um outro país para Azzi. Trad. Érico Assis. São Paulo:
Editora Pulo do Gato, 2012.
LEONTIEV, A.N. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros
Horizonte, 1978.
PERROTI, E. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone,
1986.
PETIT, M. A arte de ler, ou como resistir à adversidade. São Paulo, Editora
34, 2009.
VYGOTSKY, L. S. Obras escogidas (Tomo III). Madrid, Visor, 1995.

Recebimento em: 30/06/2023.


Aceite: 05/08/2023.

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