O Que Se Ensina e o Que Se Aprende em História
O Que Se Ensina e o Que Se Aprende em História
O Que Se Ensina e o Que Se Aprende em História
O que se
ensina
e o que se
aprende
em História
A historiografia didática em debate
VOLUME 1
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Copyright do texto © 2022
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Aprender com a Idade Média:
residualidades e histórias menores
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Os estudos medievais se têm constituído em um campo fértil de
pesquisas sobre a Europa Ocidental, mas também sobre o Islã e, recen-
temente, sobre a África. Entretanto, o que Macedo (2009) chama de me-
dievalística2 parece ter pouco ou nenhum impacto na história medieval
ensinada. Os estudos sobre a antropologia histórica, que teve como um
de seus importantes investigadores o historiador Jacques Le Goff e rece-
beu significativa adesão de medievalistas brasileiros, também são estra-
nhos à sala de aula da escola básica. Estudos já de longa data3 sobre o me-
dievo no ensino escolar têm demonstrado que publicações didáticas em
geral4 têm repetido o esquema de uma Idade Média de dez séculos que se
inicia com as migrações germânicas (alguns ainda utilizam a expressão
invasões bárbaras), passa pelo período de auge do feudalismo e, depois,
termina com a crise do século XIV, constituindo uma História genera-
lizada e totalizante, sem dar espaço às especificidades temporais e regio-
nais para as quais a medievalística vem chamando a atenção. Trata-se de
um passado que é um conjunto de experiências frias que não despertam
qualquer posicionamento ético ou estético para as gerações do presente.
Diante dessa situação, penso que é importante problematizar as possi-
bilidades de um estudo da Idade Média que abandone a História qua-
dripartite e o modelo generalizante e totalizante, construído com base
em uma temporalidade evolucionista e linear. A partir desse movimen-
to, é possível inserir acontecimentos da vida medieval que não guardem
qualquer relação necessária com esse modelo narrativo que se constituiu
2 Medievalística diz respeito à produção intelectual sobre história medieval realizada por um conjunto de
pesquisadores especializados. Macedo difere esse conceito do que chama de medievalidade, que constitui
uma série de referências do imaginário atual sobre a Idade Média, via de regra estereotipadas, muito comuns
no cinema, nos jogos, na música ou nos games. (MACEDO, 2009).
3 Os estudos sobre Idade Média nos livros didáticos hoje têm alguns trabalhos já bastante divulgados. Re-
firo-me especificamente ao ensaio decorrente de um projeto de pesquisa coordenado por este autor, “Pos-
síveis Passado: representações da Idade Média no ensino de História”, publicado em 2008. Depois, outros
artigos e dissertações abordaram adequadamente o tema.
⁴ O ensaio “A invenção do Medievo: narrativas sobre a Idade Média nos livros didáticos de História”, pu-
blicado em 2017, analisa livros didáticos de História e aponta a constituição desse modelo de narrativa
sobre o medievo, baseada na ideia de uma História total e de uma lógica generalizante. (PEREIRA, 2017,
p. 169-184).
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historicamente para olhar o passado medieval nos livros didáticos e no
ensino de História. Nesse sentido, procuro abordar o medievo em publi-
cações didáticas a partir do que chamarei de distância e diferença, que
se desdobra na afirmação das residualidades e das histórias menores, as
quais demonstrem um desvio em relação à ideia de uma temporalidade
universal, unívoca, sucessiva e linear.
A ideia de história menor foi um conceito criado para pensar prá-
ticas e temáticas em ensino de História que deixam de estar submetidas
a esse modelo do tempo cronológico e aos esquemas explicativos tota-
lizantes, que criam abstrações destacadas das realidades e das vidas dos
envolvidos na aprendizagem. As histórias menores são fragmentares e
acontecimentais. O conceito foi criado a partir de um roubo que faço de
uma leitura do belo livro de Deleuze e Guattari (1977), Kafka: por uma
literatura menor. Também devo mencionar a ideia de uma educação me-
nor, construída por Silvio Gallo (2002). Uma história menor tem caráter
subversivo, mas não é menor em relação a um maior que lhe seria re-
ferência. Ao contrário, ela não tem referência, sobrevoa uma superfície
acontecimental e, por isso, não se estabiliza, apenas lança problemas para
a imaginação, rompe com as definições cristalizadas e naturalizadas, nos
fazendo lembrar que a História é das pessoas, dos corpos, das vidas. Nada
disso é estável ou definitivo e, assim, a história menor ousa cruzar os flu-
xos e, generosamente, se deixa levar pela passagem e pelas intensidades.
Por isso, ela faz gritar os silêncios, faz aparecer os invisíveis, torna experi-
ência e narrativa a vida das pessoas comuns (PEREIRA, 2018).
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escolas brasileiras. Tal distanciamento tornaria dispensável o ensino
desse conteúdo, criando uma espécie de objeção em relação aos estu-
dos medievais nas salas de aula da escola básica. A mesma lógica tem
servido para suspender qualquer potencial ético e político da história
medieval que permita problematizar o presente e pensar as expectati-
vas de futuro. Isso, de certo modo, explica o funcionamento da maio-
ria das publicações didáticas que têm grande dificuldade de problema-
tizar ética e politicamente a história e o presente por meio do estudo
do medievo. Tal concepção se fortaleceu com as discussões sobre a
primeira versão da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), na
qual a Idade Média não figurou como conteúdo dos currículos obri-
gatórios e nacionais. A propósito dessa questão, foi escrito um artigo
intitulado “A Idade Média nos currículos escolares: as controvérsias
nos debates sobre a BNCC” (PEREIRA; TEIXEIRA, 2016), com o ob-
jetivo problematizar o papel que os estudos medievais poderiam ter
na escola básica do Brasil.
Neste ensaio, argumento que a diferença temporal pode ser
compreendida como um dos elementos-chaves para a aprendizagem
histórica sem, contudo, abandonar a necessidade de criar vínculos en-
tre a História ensinada e a realidade dos alunos, mostrando que tal
concepção não é universal nem necessária para que se possa aprender
com o passado. Logo, a distância não pode ser razão para a exclusão
de determinado conteúdo do currículo. No caso específico da Idade
Média, as distâncias podem permitir, ao contrário do que se possa
imaginar, modos singulares de se ter experiências com o passado, no
sentido de produzir forças para problematizar o presente e constituir
possibilidades de futuros. Essas distâncias criam espaço para o reco-
nhecimento de residualidades, efeitos e durações que se estendem des-
de a Idade Média até os nossos dias − exemplo clássico da poesia de
cordel no Nordeste brasileiro (PEREIRA, 2014) − e inserem modos de
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olhar para o presente que se deslocam na busca de uma Idade Média
imaginada que intensamente tem povoado, por exemplo, o universo
das culturas juvenis – filmes, jogos e músicas.
Proponho-me a roubar o conceito de residualidade, amplamen-
te utilizado pelo campo da literatura (sobretudo no âmbito dos estudos
medievais), a fim de pensar como a noção de resíduo aproxima a Idade
Média do cotidiano e da vida dos jovens estudantes das escolas brasilei-
ras. Suponho que o estudo dos resíduos medievais que se pode encontrar
em diversos campos da vida social, na cultura, nos costumes, nos gestos
e, inclusive, na política e na filosofia permite observar forças que se reno-
vam e se rearranjam, produzindo modos de vida e formas de existência
desde o medievo até os tempos atuais. Conforme Martins (2015, p. 35),
a residualidade “é um processo de polimento, de recriação, reaproveita-
mento do resíduo, que por ser matéria viva, eivada de possibilidades, dá à
cristalização um caráter de infinitude”. Os estudos sobre o amor cortês e
a cortesania medieval, por meio da literatura trovadoresca ou mesmo dos
romances de cavalaria, podem, por exemplo, ser pontos de partida para
repensar os clássicos conteúdos do campo da história medieval que têm
figurado nos currículos escolares. Dentre outra série de práticas culturais
medievais, os ideais de cavalaria e de cortesania podem construir con-
teúdos curriculares que, a partir dos resíduos daí identificados, possam
expandir o próprio conceito de Idade Média (do ponto de vista temporal
e espacial), pensar o potencial ético da aprendizagem com o medievo,
bem como as relações dos estudos medievais com o tempo. Desse modo,
o marcador de “atrasado” para as culturas medievais se desconstitui e de-
monstra ser possível olhar para a Idade Média como um emaranhado de
temporalidades, construídas a partir da problematização que fazemos e
dos acontecimentos que experimentamos.
Também argumento que o estudo do medievo possui um duplo
papel: revelar e operar com a alteridade e pensar o potencial ético e
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político de se estudar realidades diferentes cultural e temporalmente.
Logo, a potência do estudo da Idade Média não estaria somente em sua
possível familiaridade com o presente das escolas brasileiras ou com as
residualidades que se pode ver na atualidade, mas com a diferença em
relação ao presente, quer dizer, com o estranhamento que os modos de
vida medievais podem produzir nos estudantes. O estranhamento (PE-
REIRA; MARQUES, 2014), além de marcar a alteridade, permitindo
que os jovens olhem para si mesmos ao olharem para o outro, abre um
campo de experiências ainda não catalogadas que se autoafirmam em
sua incomunicabilidade e incomensurabilidade – irredutíveis, portan-
to, aos conceitos do presente. A irredutibilidade da diferença é o que,
do ponto de vista ético, abre espaço para uma experiência do impensa-
do, possibilitando futuros que não seriam desdobramentos do presente,
mas criações decorrentes dessa experiência do diferente.
A discussão do problema do tempo se dará a partir da noção de
acontecimento, de história do corpo e de uma história menor (PEREI-
RA, 2017), com a perspectiva de valorizar o potencial ético e estético do
ensino de Idade Média. Desse modo, o recorte dos temas e a sua pro-
blematização se tornarão elementos centrais da criação de novos parâ-
metros para o aparecimento do medievo nas salas de aula da escola bá-
sica no Brasil. Nesse sentido, ainda que a própria ideia de Idade Média
considere a temporalidade eurocêntrica, proponho-me a problematizar
a possibilidade desses outros olhares a partir das residualidades e da di-
ferença, que podem permitir repensar o modo de ensinar esse conteúdo
e reformular temáticas e formas expressivas que possam compor novas
relações com esse passado – pensar esse passado como fortemente mar-
cado pelo que dele se disse e se construiu historicamente. Na leitura de
Amalvi, por exemplo, a Idade Média é “uma fabricação, uma constru-
ção, um mito” (2002, p. 537).5
⁵ “A Idade Média não existe. Este período de quase mil anos, que se estende da conquista da Gália por Clóvis
até o fim da Guerra dos Cem Anos, é uma fabricação, uma construção, um mito, quer dizer, um conjunto de
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NOTAS SOBRE O TEMPO: O LUGAR DA
IDADE MÉDIA NA HISTÓRIA QUADRIPARTITE
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lucionista de tempo e, sobretudo, não descobriu um modo de se deslo-
car de uma história total e esquemática, que suprime as diferenças e as
singularidades de um período histórico de, ao menos, 10 séculos. Penso
que problematizar as concepções temporais eurocêntricas pode ser bas-
tante interessante para estudar a própria história da Idade Média ociden-
tal (logo, europeia). Ao elaborar a crítica à temporalidade quadripartite e
evolucionista, pode-se abrir, inclusive, as duras estruturas generalizantes
criadas para apresentar o medievo aos jovens, a fim de deixar fluir uma
série incrível e interminável de experiências humanas que certamente
guardam um papel significativo para pensar o contemporâneo.
Meu argumento principal é que uma aula sobre história medie-
val pode, muito bem, estar mais relacionada ao futuro do que ao passa-
do. O estudo da Idade Média, portanto, remete ao futuro. Se o tempo
não é em si o que dele se diz, podemos pensá-lo de outro modo – ao
invés do contínuo, o descontínuo; ao invés da linha, a dobra; ao invés da
evolução, o fragmento; ao invés da sucessão, o labirinto. Deleuze pen-
sou o tempo como um movimento turbilhonar. Em Diferença e Repeti-
ção (2006), o tempo não é a temporalidade, uma vez que, em si, não há
qualidade humana instituída. A consequência dessa noção é muito im-
portante porque ela nos indica que tudo o que dissemos até hoje sobre
o tempo e todos os marcadores temporais (moderno, medieval, evoluí-
do…) são qualidades humanas instituídas no tempo. Ora, um modo de
livrar-se dessas qualidades é justamente pensar o tempo de outra forma,
sem elas, abrindo a possibilidade de criar outros territórios, mudando a
maneira de organizar e narrar a experiência.
Uma vez liberado o tempo das representações cristalizadas que
dele fizemos e de uma certa “tirania do presente”, temos uma abertura
para, como diz Pelbart (2000) a propósito do pensamento de Deleuze,
“as mais excêntricas aventuras”. Isso significa que, se podemos pensar
o tempo em si, as projeções que fazemos dele não são universais; se
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assim se tornaram, foi em razão de uma política que estabeleceu os
modos através dos quais deveríamos organizar o tempo. Tratou-se de
uma delicada produção que se deu, em nosso caso, nos processos de
colonização europeia na América. A supressão das apreensões par-
ticulares do tempo realizadas por outros povos foi uma maneira de
impor temporalizações muito particulares, como a ideia de evolução e
os marcadores como moderno e medieval. Para o estudo e o ensino da
Idade Média, a consequência foi a criação da ideia de que o medievo é
um período menos evoluído em relação ao moderno e ao contempo-
râneo. Não foi por pouco tempo que a ideia de uma Idade das Trevas
povoou o imaginário das nossas sociedades sobre o medievo e, hoje,
ainda que muitos livros didáticos, ao iniciar o estudo do período, se
preocupem em problematizar esse imaginário, de modo geral ainda
persiste um olhar evolucionista que torna a Idade Média identificada
com o atraso intelectual, o domínio unívoco da Igreja Católica e o mo-
nolitismo da concepção da sociedade de ordens. Além disso, uma ideia
constituída desde o marxismo, particularmente por Perry Anderson,
de que entre grandes períodos históricos há sempre um momento de
transição, tornou, por exemplo, a chamada Alta Idade Média (séculos
V ao X) apenas um momento de grande desorganização que represen-
tava a transição entre o mundo antigo e o mundo feudal. Ao mesmo
tempo, a chamada Baixa Idade Média, com o conhecido renascimento
urbano e comercial, se tornou apenas a transição para a modernidade.
Essa leitura sobre a Idade Média foi vital para a consolidação de uma
temporalização evolucionista e para a cristalização do moderno como
o momento de nascimento da razão e da crítica.
Assim, a problematização da temporalidade evolucionista é
uma estratégia para abrir o ensino do medievo para a medievalística,
para uma série de trabalhos de medievalistas brasileiros e estrangeiros
que têm pensado com base em outras perspectivas teóricas e metodo-
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lógicas que não se sustentam nem na História total e esquemática, nem
num estudo do medievo que tem como referência a modernidade. Uma
consequência dessa problematização é também, por exemplo, inserir
estudos sobre a África que estejam desligados de uma relação necessária
com os europeus, a fim de olhar para esse continente sem imputar-lhe
os dogmas e os modos narrativos típicos de uma escrita da História
linear e evolucionista.
Olhar para a Idade Média sem o peso da ideia de evolução e
progresso nos permite acessar esse passado de outro modo e pen-
sá-lo em sua potência para problematizar o presente e se abrir ao
futuro. Uma vez que o tempo não é linha, mas “emaranhado”; não
é sucessão, mas “coexistência”; não é ordem, mas “variação infini-
ta” (PELBART, 2014), uma série de consequências se introduzem
na discussão sobre o papel da Idade Média nos currículos escolares
da escola básica.
A primeira é abandonar, de vez, a ideia de que a Idade Média é
a “infância das nações”, a porta de entrada para a modernidade e para
a consolidação do Estado nacional – noção muito cara, que colocou a
Europa e seus Estados nacionais como o ponto a partir do qual todo
e qualquer povo e suas organizações políticas e sociais são avaliados.
Com isso, a noção de uma Idade das Trevas, já muitas vezes contestada,
também perde o efeito, e a Idade Média pode ser contemplada e estuda-
da em sua “singularidade original” (PEREIRA, 2009).
A segunda consequência é pensar as residualidades medievais
nos currículos escolares. Olhar para os resíduos exige pensar o tempo
como uma “massa” que permite um diálogo e uma comunicação entre
diferentes temporalidades. Isso quer dizer que, de uma só vez, é possí-
vel olhar para as singularidades medievais e ver, igualmente, residua-
lidades, relações, comparações, implicações e muita aprendizagem na
relação entre o medievo e outros tempos.
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A terceira consequência diz respeito ao trabalho da diferença
e do estranhamento. Se não há uma linha evolutiva, o passado não é
mais o presente antigo menos desenvolvido, mas um fragmento de
tempo que permite aprendizagem. Trata-se de olhar para a filosofia, a
arte, a arquitetura, os movimentos sociais de camponeses, a poesia, as
universidades, as heresias, as mulheres, os imaginários etc. como ex-
periências de um passado que nem é exemplo, nem é frio, mas é uma
virtualidade que se acumula na forma de experiências que apresentam
problemáticas singulares, criando uma relação de aprendizagem com
o presente, ensejando elementos de crítica à atualidade em favor da
criação de novos futuros.
Criar “histórias menores” a partir do encontro com as here-
sias, as mulheres, a África e os camponeses exigem que a narrativa
não se submeta aos chamados contextos que abordam, por exem-
plo, as mulheres no interior − e relativo a elas − de uma história
dos homens, de um esqueleto narrativo que deixa para as mulhe-
res os famosos boxes. Aliás, no que se refere aos livros didáticos, é
exatamente assim que essas histórias menores aparecem. Os boxes
são estratégias muito comuns em publicações didáticas. Eles servem
para que se possa inserir uma temática ou uma definição que corre
paralelamente à narrativa principal. Assim, por exemplo, tem-se a
descrição dos períodos da história da Idade Média e, ao lado, verifi-
cam-se boxes que apresentam mulheres que realizaram práticas im-
portantes no campo da cultura ou da política. Enquanto a narrativa
principal se constitui sem fissuras, sujeitos ou corpos e como uma
descrição fria e objetiva, são os boxes que alimentam o livro com ma-
nifestações desviantes. Mas estas estão, visivelmente, numa situação
de dependência do texto principal e seu sentido maior.
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TEMPO TURBILHONAR:
RESIDUALIDADES E DIFERENÇA
⁷ Nietzsche se refere aos “antropomorfismos estéticos” (Nietzsche, 2001, §109), formas que doam ao mundo
algo que não é dele, uma vez que o mundo é Caos.
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Média imaginada8, muito comum nos tempos atuais em games, lite-
ratura fantástica, cinema ou música, possa ser pensado como resíduo.
Pensar uma Idade Média, hoje, na forma de resíduo ou reminiscência,
implica um movimento delicado de fazer uma espécie de descoloni-
zação da medievalística em relação ao moderno pensamento europeu.
Não se trata mais de demarcar o medievo e circunscrevê-lo nos dez
séculos que a tradição lhe reservou (séculos V ao XV).
Não foi por acaso que Le Goff criou o conceito de uma Longa
Idade Média9, por exemplo. Se abandonamos essa periodização tradi-
cional e reservamos o direito a um tempo “dialógico”, podemos pensar
que elementos do imaginário, das culturas e das práticas sociais medie-
vais tenham se mantido na forma de resíduo em diversos espaços e em
diversos tempos, transformados e ressignificados com funções específi-
cas e até diferentes daquelas que tinham na Idade Média. Então, falar de
resíduo não quer dizer falar em permanência, mas de uma modalidade
outra que implica uma torção no tempo, de modo que uma temporali-
dade, uma qualidade da vida, dos sentimentos, do imaginário medieval,
se comunica com outras temporalidades, se insinuando nos modos de
vida, nas práticas sociais de outros tempos, no caso, do presente.
Macedo demonstra a tese da residualidade através do exem-
plo de um castelo construído por um sertanejo chamado José Antô-
nio Barreto, em 1984, no agreste do Rio Grande do Norte. MACEDO
(2011, p. 18) conta que o que remonta à Idade Média não é a constru-
ção do castelo, mas o elemento imaginário que caracteriza um modo
de “sentir e pensar” medieval, “no mais puro sentido, pois evoca um
⁸ A Idade Média imaginada consiste em uma abordagem contemporânea do medievo, que se nutre “da fan-
tasia e da aventura. Trata-se da Idade Média do cinema, das séries televisivas, das músicas e dos jogos. Nela
não se apresentam preconceitos, mas se reforça a ideia de uma Idade Média que é puro “faz-de-conta”, que
pouco tem a ver com a pesquisa histórica” (CHEPP; MAIS; PEREIRA, 2015, p. 949).
⁹ A ideia de uma longa Idade Média foi pensada por Jacques Le Goff, autor do livro Uma longa Idade Mé-
dia (2008), na esteira das problematizações realizadas sobre as temporalidades históricas por historiadores,
desde Marc Bloch, concebendo as periodizações históricas como construções do presente. É assim que Le
Goff pensa uma longa Idade Média que se estende até o século XIX. Podemos pensar que as residualidades
medievais ultrapassam os limites desse próprio século XIX (LE GOFF, 2008).
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tempo em que as imbricações entre sagrado e profano eram maiores
e muitíssimo mais profundas, provocando sensações e atitudes di-
ferentes das nossas, cativas da razão cartesiana”. Pois José Antônio
construiu aquela edificação por uma inspiração divina, uma vez que
foi a Virgem Maria quem lhe teria dado a missão, ainda menino. Esse
traço do sentir e do pensar medieval presente nas práticas de Zé dos
Montes (José Antônio Barreto) mostrou que ele estava “intoxicado
pelo sagrado”, e o mais importante disso tudo é que, naquele espaço,
naquele tempo e na subjetividade de Zé dos Montes havia uma “Idade
Média viva e pulsante” (MACEDO, 2011, p. 18), sem compromisso
com os padrões de temporalidades que se nos fizeram acreditar que
eram o próprio tempo. Nada de cronologia, nada de sucessão, nada de
linearidade: a Idade Média ali, viva na forma de um resíduo.
A residualidade é um passado vivo, “pulsante”, que ousa ultra-
passar as barreiras das narrativas que estabelecem limites muito defi-
nitivos para o que é do passado, do presente e do futuro. A compreen-
são do tempo como “massa” ou como “rizoma” (DELEUZE, 1997) dá
a pensar outras relações, quem sabe até inusitadas, entre as dimensões
temporais que conhecemos. Essas próprias dimensões são colocadas
em xeque. Desse modo, o resíduo medieval não é uma permanência,
mas uma peça que nos prega o tempo, nos jogando para um abismo
onde as definições do que é presente, passado ou futuro não passam de
definições, nomes e conceitos criados para fazer frear o devir. Logo, o
resíduo remete ao tempo que apresenta comunicações, diálogos, atra-
vessamentos e, principalmente, coexistências.
É assim que Soares e Pontes, estudiosos da Teoria da Residualida-
de, afirmam que nada é novo em uma cultura − não existe uma tempora-
lidade pura −, “toda cultura contém resíduos de outras anteriores” (2013,
p. 48). Na área dos estudos literários medievais, a Teoria da Residualidade
constitui-se em um campo de estudos que “busca apontar e explicar as
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remanescências do modo de pensar de um determinado agrupamento
social de um período de tempo específico em outro tempo diverso, tendo
como base principal a Literatura” (SOARES; PONTES, 2013, p. 48). A
ideia de um passado vivo se manifesta nessa teoria na medida em que,
segundo os autores, “as literaturas mantêm entre si, numa incessante re-
tomada de elementos de outros tempos e espaços que permanecem vivos
no processo cultural – os resíduos” (SOARES; PONTES, 2013, p. 48). Po-
de-se observar remanescências da Ibéria Medieval em Marília de Dirceu,
de Tomás Antônio Gonzaga, estudadas por Soares e Pontes; o estudo dos
exempla da literatura de cordel, resíduos dos exemplas medievais, como
estudou Mello (2016); e em uma série de outros trabalhos.
Até aqui, tenho procurado atestar a importância da residualidade
nos estudos medievais e, sobretudo, no ensino desse conteúdo. Para tan-
to, tenho apresentado uma problematização da História quadripartite e
das formas de temporalização tipicamente coloniais, indo na direção de
uma teorização do tempo que parte da filosofia da diferença. O trabalho
com a residualidade em sala de aula, sem qualquer dúvida, é um meio de
acessar o medievo a partir de questões do nosso próprio tempo, o que
pode permitir modos muitos importantes de olhar para a Idade Média
e para o próprio presente. Entretanto, a partir daqui, ainda em diálogo
com a perspectiva da filosofia da diferença, passo a justificar e a afirmar
que a existência do medievo nos currículos escolares guarda semelhança
com outro elemento da vida e da aprendizagem histórica, que diz respeito
não às residualidades, mas a uma espécie de alteridade. Trata-se de um
encontro com um medievo que se constitui de múltiplos acontecimentos
que compõem um mosaico turbilhonar e, por definição, não ordenado,
permitindo encontros imprevisíveis que possibilitam aprendizagens inu-
sitadas. Não se trata de voltar ao medievo para “cultivar-se”, para obter
um acúmulo de erudição histórica (ainda que isso não seja algo, de modo
algum, desprezível), mas para ter encontros − como dizia Deleuze (1996)
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−, estando “à espreita” e à espera de novos acontecimentos. Significa
abandonar uma necessidade que o presente impõe de lembrar, utilizar,
cultivar e fazer o passado se tornar o elemento de uma utilidade que, vez
por outra, pode torná-lo nada mais do que uma projeção do próprio pre-
sente. Isso ocorre, via de regra, quando reduzimos o passado apenas aos
interesses do presente, fazendo deste a chave para criar narrativas sobre o
passado. Tal concepção não é nada estranha ao ensino de História, uma
vez que, desde os áureos anos 80 e a revitalização do ensino de História
crítico, temos vivido sob a urgência de pensar o passado submetido às
respostas que precisamos achar para os problemas do presente. Penso
que, ao contrário do que se possa supor, o potencial ético e político do
medievo se mantém pulsante, mesmo quando procuramos aprender so-
bre a Idade Média sem querer fazer dela a projeção do nosso presente e,
ainda mais, quando seu estudo se dá sem qualquer relevância ou utilidade
aparente, como se um estudo de um passado pudesse ser apenas um estu-
do sobre um passado, uma espécie de aprender por aprender, mergulhado
em uma passividade e um certo abandono de identidade que acaba por
limitar a aprendizagem.
Ora, o artigo de Oliveira (1999) mostra como o medievo foi
apreendido pelos pensadores dos séculos XVIII e XIX, afirmando que
as narrativas criadas sobre a Idade Média variaram em diferentes perí-
odos históricos. Em resumo, enquanto no século XVIII a Idade Média
e as instituições feudais eram vistas com desprezo e “ódio” em razão,
certamente, do movimento anticlerical e antifeudal, os historiadores do
século XIX viam na Idade Média o lugar da origem das instituições mo-
dernas. Para Oliveira (1999, p. 176)
Do mesmo modo que os autores do século XVIII, também eles
dedicaram-se ao estudo da Idade Média. A diferença entre eles
reside na função desses estudos. Enquanto para os autores do
século XVIII tratava-se de destruir todo e qualquer resquício
feudal, para os do século XIX a questão era recuperar as origens
121
da moderna sociedade, o que incluía o feudalismo, a realeza, a
Igreja e a própria nobreza. Esses historiadores valeram-se do
estudo da Idade Média para consolidarem a ordem burguesa.
122
era a Igreja e a religiosidade, uma espécie de rota necessária da História
humana. Assim, criticar a Igreja medieval e apontar as injustiças nas rela-
ções entre senhores e camponeses tornou-se um modo de problematizar
o presente e mostrar a história da dominação e da exploração do homem
pelo homem – e, diga-se de passagem, essa leitura foi deveras importante.
Mas, enquanto a historiografia marxista ou os iluministas dos
séculos XVIII viam na Idade Média um estudo útil e necessário para
problematizar o seu presente e reforçar a construção da modernidade
(ainda que cada um a seu modo e com seus interesses de classe), os
jovens que consomem a cultura pop dos jogos e dos games não buscam
no passado medieval uma utilidade política ou social imediata. Creio
que há algo interessante nessa Idade Média imaginada e fantasiosa da
cultura pop, ainda que isso lhe aproxime um pouco dos românticos do
século XIX. Transitam por ali forças que valorizam o passado medieval.
Embora as narrativas de Game of Thrones ou Senhor dos Anéis pouco ou
nada tenham a ver com a medievalística (a pesquisa em Idade Média),
a imaginação e a fantasia deixam entrever um gosto desinteressado pela
Idade Média – desinteressado, mas “à espreita”, desvinculado de uma
necessidade de explicação ou compreensão que se sustenta na inteli-
gência, na medida e no esquadrinhamento, mantendo uma distância
objetiva em relação ao medievo.
Não vou estabelecer aqui comparações entre a produção histo-
riográfica e a criação literária ou dos games, mas uma linha me parece
atravessar os dois modos de olhar para o medievo. Entre a utilidade e
o gosto fútil, atravessa uma potencialidade ética e política que torna o
passado um tempo nada distante ou frio. Nos dois casos, o que temos é
um outro: odioso ou exótico, atrasado ou heroico – a idade das trevas ou
idade de outro (neste caso, para as culturas juvenis, mas já foi assim, pri-
meiro, para os românticos do século XIX). Esses atravessamentos podem
permitir uma abertura do passado medieval, e essa abertura, que só se dá
123
numa região de desinteresse e desnecessidade do presente, pode deixar
entrever histórias pouco comuns nas grandes narrativas e nos grandes
esquemas explicativos que têm deixado um vazio tanto de empiria como
de sentidos, seja para o gosto fútil, seja para problematizar outros tempos.
É dessa inflexão que surge um acesso ao passado medieval, na curvatura
dessa dupla possibilidade de recepção, da utilidade e do gosto fútil, que
renova tanto as potencialidades éticas e políticas do estudo do medievo
quanto a aprendizagem que se pode ter com o estudo das heresias, dos
imaginários, das revoltas camponesas, das mulheres, dos corpos. E é tam-
bém aí que as histórias menores possuem relevância. É nesse cruzamento
que se torna possível aprender com o outro: o outro tempo, as outras
experiências, as outras formas de resolução de problemas, sem a perda do
potencial ético e político e sem a “ditadura do presente”. Parafraseando
Deleuze (1997), “quando mergulho no passado medieval, não estou cer-
to de ter um encontro, mas parto à espreita”. Disse o pensador francês,
ao responder aos questionamentos de Clare Parnet: “acho que os encon-
tros... quando vou ver uma exposição, estou à espreita, em busca de um
quadro que me toque, de um quadro que me comova” (DELEUZE, 1997).
Gostaria de pensar essa lógica do encontro como um elemento
vital da aprendizagem e, com a licença de Deleuze, vampirizá-lo para
pensar os encontros com o passado medieval. Eles nos livram dos gran-
des esquemas que procuram um sentido único para esse período histó-
rico, nos livram de uma necessidade a priori em relação a esse encontro,
que já defina desde o começo um contorno para o medievo, e também
nos livra das temporalizações eurocêntricas, modernas, que definem o
medievo e tudo que lá se criou como tendo um valor menor ou, no
mínimo, infantil. É que estar à espreita, como diz Deleuze, não significa
ir ao passado limitado pelas definições do presente ou por uma escuta
viciada e seletiva. Significa estar atento às possibilidades de aprender
que o medievo oferece, e essa atenção exige abertura, desidentificação
124
e uma certa passividade diante do passado. É assim que um encontro
sempre promove um valor por seu fator surpreendente; é quando algo
nos acontece, como se um “fora” se abatesse sobre nós e nos exigisse
reflexão e aprendizagem.
Quero supor, portanto, que o abandono das amarras temporais
da modernidade pode, muito bem − ainda que faça uma forte menção
às residualidades e que respeite profundamente o mergulho ao passado
medieval a partir as urgências do presente −, ensejar um aprender por
aprender. É um certo desinteresse que nos leva ao medievo desarmados
de qualquer preconceito, mas também dos limites identitários e tempo-
rais que nos constituem. Aprender por aprender com o passado medieval
não visa excluir a potencialidade ética e política de tais aprendizagens;
significa replicar o futuro no passado. O futuro como vitalidade virtu-
al, ou seja, como forças, singularidades que povoam nosso olhar de fora,
pode emergir como criação a partir dos encontros com o passado medie-
val, uma criação de novas configurações, novos territórios. Trata-se, por-
tanto, de não querer replicar o presente nem no passado, nem no futuro
− como se este fosse mera continuidade do primeiro −, mas de assistir ao
espetáculo imprevisível de abertura para novos futuros. Para os Warlpi-
ri, povo aborígene australiano mencionado por Pelbart, o futuro é como
o sonho, onde passado, presente e futuro constituem estoques de todas
as combinações possíveis “entre os elementos da existência” (PELBART,
2000, p. 49). É como se o sonho, para os Warlpiri, fosse uma camada
virtual “que recobre o mundo concreto e que está com ele numa relação
de troca permanente, de coalescência, de indiscernibilidade. Espécie de
duplo, porém absolutamente real, que envolve os existentes atuais, re-
criando seus possíveis, liberando novos trajetos” (PELBART, 2000, p. 49).
Ora, um ensino que se permita “aprender por aprender”, que é
capaz de introduzir o elemento do desinteresse no processo de apren-
dizagem, que se permite flertar com o fora, que se envolva eticamente
125
na construção de alternativas para o futuro, pode inserir novas temáti-
cas, povos e experiências que não sejam tratados como o outro distante
e suscetível ao valor moral de minha narrativa, mas como outros es-
tranhos que façam nascer diálogos ainda não pensados, encontros que
permitam aprendizagem para expandir a vida. As histórias menores
que constituem o que conhecemos como o mundo medieval têm muito
para nos ensinar: o amor cortês; os romances de cavalaria; os jovens
estudantes das universidades medievais; as mulheres camponesas, es-
tudiosas, artistas; os movimentos sociais; as heresias e as diversas alter-
nativas religiosas; enfim, uma diversidade de temáticas, experiências e
movimentos que fazem ruir as grandes estruturas criadas pelo discurso
histórico e, particularmente, pelos livros didáticos.
A opção que faço aqui pela história menor não implica inseri-la
como boxes em certos momentos do currículo, mas “como uma práti-
ca política do currículo de História – ou seja, como um elemento que
organiza e pensa as escolhas curriculares no que se refere aos recursos
e formas de expressão bem como aos conteúdos e recortes no passa-
do” (PEREIRA, 2018, p. 104). A história menor rasga as estruturas que
envolvem os currículos e se coloca disposta a narrar “histórias pouco
comuns com meios de expressão que param o tempo cronológico e dis-
põem os(as) alunos(as) na duração precisa de novas memórias e novas
histórias” (PEREIRA, 2018, p. 109). É nessa medida que o tempo da
história menor não é cronos, mas aion, porque o centro da preocupação
não é com a organização cronológica de informações numa linha evolu-
tiva, mas com as durações, com cada experiência, que não conhece hie-
rarquias ou valorações: “em vez da linha, a história menor vê o tempo
como labirinto e como rizoma, por onde as diversidades das durações
não estão nem antes, nem depois, nem acima, nem abaixo, mas, quem
sabe, num jogo de interferências” (PEREIRA, 2018, p. 116).
126
O MODELO DA HISTÓRIA TOTAL:
UMA IDADE MÉDIA, UM SENTIDO
127
O TEMPO E A ESTRUTURA
128
ceitos criados acerca do período – fragmentos deslocados da narrativa
principal, o que acaba dando mais destaque a essa “narrativa mestra”,
reafirmando seu caráter de “verdadeira história da Idade Média”. Isso
reforça a ideia de um sentido comum aos dez séculos descritos, um
sentido cuja força argumentativa se vale das contraposições ao mundo
antigo e ao mundo moderno. Trata-se de uma modalidade do discur-
so histórico, nesse caso muito bem utilizada nos livros didáticos, que
procura produzir uma lógica, uma visão de conjunto, uma coerência
narrativa, uma temporalidade sem fissuras e sem singularidades.
Esse modelo é estranho às residualidades. Ainda que uma das
coleções tenha uma preocupação em utilizar o medievo para pensar o
presente, como veremos no próximo subtítulo, a prisão a esse modelo
baseado na História quadripartite e numa temporalidade cronológi-
ca e evolucionista dificulta sair do lugar comum se sua visão de Idade
Média como um passado frio, distante e desinteressante, que pouco ou
nada tem a ver com a vida dos brasileiros no presente. Essa disposição
do medievo num passado que nunca se relaciona com o presente, que
nunca se dobra ou se bifurca, desqualifica a Idade Média de potencial
ético e político e a distância das nossas práticas sociais e culturais atuais.
Os resíduos que podemos ver hoje, seja nos eventos religiosos, seja na
poesia de cordel ou em outros inúmeros elementos do nosso cotidia-
no, são invisíveis porque, justamente, a sina do modelo é invisibilizar,
estabelecendo um sentido único e uma lógica que dita uma coerência
sem fissuras na narrativa, que impede a existência de desvios. Em vez
de tratar das heresias, trata do domínio incontestável da Igreja Católica,
uma instituição monolítica e sem contradições. Em vez de abordar as
práticas e relações sociais diversas, aborda uma sociedade de ordens,
fundada na ideia da existência de apenas três grandes camadas sociais.
O modelo também é estranho à história menor. Ele, sem dúvida,
é tributário de uma história maior; uma temporalidade que se ofere-
129
ce ao leitor e ao estudante como uma linha organizada por períodos
de transição e por uma relação de inferioridade intelectual, cultural,
econômica e política com a modernidade, não deixando entrever o po-
tencial criativo, os sujeitos e os corpos. O que se verifica é apenas um
conjunto de abstrações e generalizações. A narrativa possui o tom de
uma história total, que engloba uma pluralidade que é invisibilizada
no interior de um sentido único, um modelo econômico e social, e até
uma mentalidade. Assim, as histórias dos estudantes nas universidades
de Paris, mulheres como Hildegarda de Bingen, os modos de vida dos
camponeses, os amores da nobreza, as lógicas desviantes dos hereges, as
feiticeiras, as cosmologias pagãs e outra série de vidas, modos de vida e
subjetividades continuam como virtualidades pulsantes, mas que não se
atualizam e não viram histórias ou experiências com as quais os jovens
de hoje possam aprender.
130
mais”, onde há uma atividade que procura pensar as visões criadas sobre
a Idade Média na História, nesse caso específico, o Romantismo:
Responda em seu caderno:
131
O segundo elemento diz respeito ao fato de que a coleção Cami-
nhos do Homem dá uma dinamicidade maior à narrativa, uma vez que
insere, de modo significativo, as relações entre o passado medieval e o
presente. Faz esse movimento sem cair em anacronismo, sendo sempre
sustentada pela medievalística, permitindo um diálogo e uma aprendi-
zagem com o passado. Isso pode ser observado em algumas estratégias:
a seção “Presente Passado”, já no início da abordagem sobre a Idade
Média, utiliza a obra de Duby, Ano 1000, ano 2000: na pista de novos
medos, para propor uma problematização dos medos e ansiedades do
presente, sobretudo o medo do outro e seus efeitos para as relações en-
tre as pessoas, e, ao final da seção, apresenta a seguinte atividade:
Responda em seu caderno:
132
ção do espaço anteriormente ocupado pelo Império Romano?
Explique.
133
destaco que o próprio título da coleção ainda dialoga com uma narrati-
va de história mestra, que é masculina e eurocêntrica.
134
tite ou da história total, práticas sociais e culturais diferentes dos modos
de temporalização que estamos acostumados. Isso tudo quer dizer que
não estamos presos à Idade Média dos 10 séculos, não somos prisio-
neiros de uma Idade Média média, e também não estamos obrigados
a ver o medievo situado no que conhecemos como Europa Moderna.
Podemos pensar outros modos de aprender com esse conteúdo, e isso
significa partilhar sua potência ética e política.
Pensar o medievo a partir das residualidades e das histórias
menores corresponde ao pensamento de um tempo rizomático e ao
aprender por aprender – duas situações relacionadas à aprendizagem
histórica e que não negam a importância de uma aprendizagem através
de disparadores do presente. Mas aprender é muito mais complexo e
aberto do que fazer do passado uma interpretação útil ao presente, ou,
por outro lado, reduzir o passado com base nas necessidades identitá-
rias e políticas do presente – questões todas importantes politicamente
na época em que vivemos. Trata-se da aprendizagem como abertura,
expansão da vida, acúmulo de energia, flerte com a energia vital.
Aprender guarda, em si, o elemento indecifrável do silêncio – o
silêncio que nos faz escutar o grito dos poetas-cantores galego-portu-
gueses, de “menor categoria social”, entoando cantigas de escárnio; o
silêncio que faz aparecer Joana d’Arc, mulher e guerreira; o silêncio que
nos mostra a insubordinação dos Puros (cátaros); o silêncio que nos faz
ouvir os gritos dos camponeses; o silêncio que rompe com a onipre-
sença da Igreja e faz aparecer uma heresia como a albigense; o silêncio
que abriga o grito dos poetas trovadores nordestinos, num ruminar da
Idade Média em pleno Sertão. Enfim, é um silêncio que, deixando em
seu rastro o mistério da aprendizagem, oferece encontros improváveis
com o medievo, afirma suas “pulsantes” experiências, deixando que se
escutem as histórias menores e dando visibilidade aos resíduos que em-
baralham nossas concepções temporais.
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