Princípio Não É Norma (4 Parte)
Princípio Não É Norma (4 Parte)
Princípio Não É Norma (4 Parte)
PARTE)
15/09/2021
Nos textos anteriores, tratei das regras legais expressas (as «demonormas») como o eixo de
positivação jurídica de um Estado democrático-parlamentar de direito legislado. Da mesma
forma, tratei das regras judiciais implícitas (as «criptonormas») como o eixo de positivação
jurídica de um Estado aristocrático-tribunalício de direito jurisprudencial. Mostrei que a
Constituição Federal de 1988 institui um Estado democrático-parlamentar de direito
legislado [preâmbulo e artigos 1º, caput, e 5º, II]; porém, apesar de o Brasil constituir-se
numa democracia parlamentar ipso iure, vem parasitariamente hospedando-se no seu seio
político-institucional uma aristocracia judicial ipso facto. Nesse sentido, a experiência vivida
do direito brasileiro é bastante confusa, porquanto esses dois modelos imiscíveis do
produção jurídico-estatal se alternam de maneira aleatória e, por isso, desafiam qualquer
esforço justeorético de descrição unitário-unificante. Daí a perplexidade e a angústia do
jurista atual, que se movimenta num trânsito bagunçado entre dois mundos incompatíveis
entre si. Por fim, mostrei que essa convivência confusa entre um modelo e outro se deve, em
boa medida, à consagração dos princípios de direito como «normas jurídicas aplicáveis per
saltum». Essa «aplicação» consiste, na realidade, na criação judicial das criptorregras
intermediadoras entre os princípios jurídicos e as situações concretas. Em outras palavras, o
juiz não aplica exatamente os princípios, mas as regras que ele próprio cria
discricionariamente para concretizá-los. À medida que a democracia parlamentar
demonômica definha e a aristocracia judicial criptonômica cresce, a lei sofre um inevitável
processo de marginalização. O legicentrismo deixa de expressar a fundamentalidade da
lei (que é bonus) para expressar o «fundamentalismo da lei» (que é malus). Em
contrapartida, o decisionismo deixa de ser uma expressão pejorativa para ser uma expressão
apreciativa. Ou seja, seguir a lei à risca se torna «outdated», «atrasado», «obsoleto»,
«superado», «retardatário», «retrógrado», «ignorante», «reacionário», «subdesenvolvido»;
em compensação, curvar-se passivo à jurisprudência dos tribunais superiores se torna
«updated», «moderno», «inovador», «atual», «arejado», «adiantado», «desenvolvido»,
«esclarecido», «progressista». O legalista seria um homem tradicional fin de siècle; o
precedentalista, o homem contemporâneo super branché. A fidelidade canina à lei seria,
destarte, um vestígio sobrevivente do passado, um resto habitual detrítico, uma prática
fossílica. Consequentemente, haveria apenas um «lag ou delay temporário» entre o Estado
democrático-parlamentar de direito legislado e o Estado aristocrático-tribunalício de direito
jurisprudencial. O primeiro estaria «condenado» à superação pelo segundo. À vista disso, à
casta sacerdotal neoiluminista caberia a missão mágica de acelerar ritualmente o movimento
teleológico da nomocracia [= «governo das leis»] para a judiciocracia [= «governo dos
juízes»]. É preciso refletir, assim, sobre o papel subalterno contra constitutionem que se tem
reservado à lei. Em síntese, é preciso entender como a teoria normativa dos princípios tem
propiciado um modelo inconstitucional de Estado, que por sua vez tem empurrado
inconstitucionalmente a lei para a periferia e a jurisprudência para o centro.
II
III
Sob o ponto de vista pragmático-decisório, nas aristocracias judiciais a lei oferece apenas
um esboço primeiro de solução para os casos práticos. É meramente uma diretriz provisória,
um rascunho grosseiro, um produto semielaborado, uma fonte material de inspiração, um
ponto de partida sem caminho predefinido. A) A regra legal pode coincidir por acaso com a
regra judicial. Mas só por acaso. Nessa situação, o juiz: a.a) identifica a regra que soluciona
o caso (R); a.b) induz qual o princípio que ela densifica (P); a.c) parte desse princípio para
tentar criar uma regra nova para solucionar o caso, mas acaba chegando à mesma regra
concebida pelo legislador (R) [R → P → R]. Aqui, a regra judicial só é igual à regra legal
porque o juiz percorreu os mesmos juízos de conveniência, oportunidade e praticabilidade
do legislador. Quando isso ocorre, o juiz não perde tempo transcrevendo o seu raciocínio
principiológico: de modo natural ele invoca no acórdão tão só a regra legal que resolve o
caso prático. Por outro lado, muitas vezes a regra legal e a regra judicial não coincidem entre
si. B) É possível que o juiz: b.a) identifique a regra legal que soluciona o caso (R); b.b)
induza qual o princípio ela densifica, ou invoque outro princípio lateral (P); b.c) parta do
princípio para criar uma regra nova, ou modificar a regra legal (R’) [R → P → R’]. Tudo se
passa aqui como se o ciclo de positivação jurídica tivesse oito fases: 1) a iniciativa do
projeto de regra legal; 2) a discussão legislativa sobre o projeto; 3) a votação em plenário, 4)
a sanção presidencial; 5) a promulgação da regra legal; 6) a publicação da regra legal; 7) a
indução do princípio que a regra legal densifica, ou a invocação de um princípio lateral; 8) a
«aplicação direta» do princípio pelo juiz para se constituir uma regra nova, ou se modificar a
regra legal [= criação da regra judicial]. C) Outra possibilidade é o juiz: c.a) identificar a
regra legal que soluciona o caso (R); c.b) desvendar os dois princípios colidentes que o
legislador harmonizou para criar a regra (P1 > P2); c.c) inverter a relação de concordância
prática promovida pelo legislador, fazendo com que o princípio preponderante se torne o
preponderado, e vice-versa (P1 < P2); d) partir dessa nova relação para criar uma nova regra
de solução para o caso (R’) [R → (P1 > P2) → (P1 < P2) → R’]. Aqui, o ciclo de
positivação jurídica cumpre nove fases: 1) a iniciativa do projeto de regra legal; 2) a
discussão legislativa sobre o projeto; 3) a votação em plenário; 4) a sanção presidencial; 5) a
promulgação da regra legal; 6) a publicação da regra legal; 7) a descoberta judicial dos dois
princípios colidentes que o legislador harmonizou para criar a regra; 8) a inversão da relação
de concordância prática promovida pelo legislador, fazendo com que o princípio
preponderante se torne o preponderado, e vice-versa; 9) a «aplicação direta» desse composto
principiológico [= criação da regra judicial]. Como se nota, portanto, num Estado
aristocrático-tribunalício de direito jurisprudencial, o Poder Judiciário estabelece um
«terceiro turno» para o processo legislativo». Age como uma «terceira casa legislativa»,
revisando os trabalhos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, embora sem
legitimidade democrática. Nesse sentido, na prática, o Estado aristocrático-tribunalício de
direito jurisprudencial tem um processo jurislativo heterogêneo e tricameral.
IV
VI