A Boa-Fé Como Modelo

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A Boa-F como Modelo

(uma aplicao da Teoria dos Modelos, de Miguel


Reale) 1

Judith Martins-Costa
Umacoisa,pertencenteaumaardemdeespritos,aarganiz14odavida jurdicadasociedade,e
outra muito diversa, pertencente a outra ordem, a anlise ou a sntese dos elementos componentes do
direito. Entre a crtica ea encarnao do direito haver sempre graruie distncia. Assim conw nem a
histria, nem a teoria da arte, foi nunca obra dos grandes artistas, no so wmbm os legisladores que
fazem a sistematizao dos fatos e das relaes jurdicas. Qoaquim Nabuco, "Um Estadista do
Imprio").

Sumrio: Introduo. I) A Teoria dos Modelos: dos modelos doutrinrios aos

modelos jurisprudenciais. II) A Casustica da BoaF Objetiva nos Tribunais


Brasileiros.

1
Texto originalmente apresentado, com o ttulo "A Boa f- como Modelo (notas para a compreenso
da boa-f obrigacional como modelo doutrinrio e jurisprudencial no Direito Brasileiro") ao Convegno
La f'orma>:'.ionc de! Sistema Giuridico Lninoamericano: Codici e Giuristi, Amalfi, abril de 2001, tendo
sido atualizada apenas a referncia ao novo Cdigo Civil Brasleuo.

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Judith Martins-Costa

A boa-f obrigacional, tambm dita boa-f objetiva, chegou tarde ao Direito Brasileiro.
S muito recentemente, a partir de 1990, o direito legislado passou a contempl-la como
regra especfica, e ainda assim no domnio prprio das relaes de consumo 2 O vigente
Cdigo Civil Brasileiro, de 1916, no contm regra acerca da boa-f obrigacional, diversamente
do que ocorre com o novo Cdigo, ora em aguardo da sano presidencial, no qual so
expressivas as referncias ao princpio3 bem verdade que o vetusto Cdigo Comercial, de
1850, alude, no art. 130, boa-f como cnone hermenutica dos contratos4 , mas este texto
jamais desempenhou funes de clusula geral, pouco passando de letra morta 5 Mesmo
assim, nos ltimos quinze anos, o princpio, em sua feio objetiva, impositiva de standard
de conduta aos que entram em relao obrigacional, vem sendo aplicado pela jurisprudncia
nacional como fonte de especficos deveres de conduta e como limite ao exerccio de direitos,
conquanto nem sempre seja usada idntica gramtica, havendo mesmo expressivas diferenas
quanto ao modo e s hipteses de sua incidncia.

Cdigo de Defesa do Consumidor (Lei n 8.078, de 11.9.90) a prev no art. 4, inciso IH, como um dos
princpios da Poltica Nacional das Relacs de Consumo, visando i "harmonizao dos interesses dos
participantes das reLaes de consumo" e no art. 51, inciso IV, como critrio de aferio de abusividadc de
clusula contratual, cujo efeito a nulidade.
> Para as referncias ao novo Cdigo Civil, vide o texto O novo Cdigo Civil Brasileiro: em busca da
'tica da situao", ora nesta obra e ainda MOREIRA ALVES, Jos Carlos, "A Boa-F Objetiva no Sistema
Contratual Brasileiro", Revista Roma e Amrica Roma, vo. 7,1999.
4
Art. 130, caput e inciso l, in verbis: "Sendo necessrio interpretar as clusuLas do contrato, a interpretao,
alm das regras sobreditas, ser regulada sobre as seguintes bases: I. a inteligncia simples e adequada, que for
mais conforme boa-f, e ao verdadeiro esprito e natureza do contrato, dever sempre prevalecer rigorosa
e restrita significao das palavras".
5
Acentua, a propsito, Jos Carlos lvfORE1RA ALVES: " de notar-se, porm, que esse dispositivo, que se
apresenta com a natureza de clusula geral, at poca relativamente recente foi tido como simples princpio
de hermenutica que se baseia na boaf subjetiva". (in "A Boa-F Objetiva no Sistema Contratual Brasileiro",
cit., p. 194).

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Pesquisa realizada em sites de Tribunais brasileiros 6 indica que no ementrio de


decises do Superior Tribunal de Justia- ao qual compete, constitucionalmente, unificar
a jurisprudncia nacionaF - dezoito (18) decises encontram fundamento no prindpio 8
No Supremo Tribunal Federal, o guardio da Constituio Federal, embora sejam inmeras
as decises fundadas na boa-f possessria e na proteo aos terceiros de boa-f, h um nico
acrdo que revela a funo da boa-f como regra de conduta, a sendo o princpio alegado,
no Direito Administrativo, como limite defesa, em juzo, da Administrao Pblica9 No
mbito dos Tribunais de Justia dos Estados o Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul,
pioneiro na sua aplicao, que apresenta o maior nmero de decises fundadas na boa-f
objetiva, havendo mais de trezentas (300) referncias, das quais aproximadamente vinte e
cinco por ccnto(25%) apresentam uma feio inovadora, da qual possvel retirar uma
verdadeira construo das funes que, tal qual observa-se no Direito Comparado,

Pesquisa realizada nos meses de maro a junho de 2001, pela Internet, tendo em conta os seguintes
critrios: Tribunais Superiores (STF e STJ) e Tribunais de Justia dos Estados do Rio Grande do Sul (304
acnhlos), Rio Grande do Norte (9 acrdos) Par (9 acrdos) Bahia (2 acrdos), Gois (6 acrdos),
Paran (1 acr&io), Paraba (1 acrdo), Rondnia(l acrdo), Pernambuco (9 acrdos) c Distrito Federal
(24 acrdos). Os demais Tribunais estaduais ou no tm nenhuma referncia em seus ementrios, ou
no tm a jurisprudncia acessvel em suas home pages. Foram feitas consultas por e-mail junto aos
Tribunais de Justia de So Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Mato Grosso e Esprito Santo, as quais
no tiveram resposta, salvo a procedida junto ao Tribunal de Justia de Pernambuco. A Justia estadual de
So Paulo, atravs do Juizados Especiais Cveis, conquanto no tenha jurisprudncia disponibilizada pela
Internet, est comeando a utilizar o princpio como "mandamento de recproca confiana incumbente
s partes" notadamente em tema de Direito do Consumidor, como exempliflcativamente, os acrdos
proferidos pelo seu Primeiro Colgio Recursal dos Juizados Especiais Cveis da Capital nos Recursos
nos 7.959 G- em 14.12.2000); 7.766 (j. em 13.11.2000); 7747 G- em 1. 11.2000 c 7.767(j. em 13.11.2000), em
todos eles sendo Relator o Juiz Laerte MARRONE. Para a realizao dest'l pesquisa os verbetes procurados
foram: "boa f objetiva"; "boa, f e obrigao"; "boa-f contratual" , "boa-f c contrato" e "boa-f c
princpio". Poram desconsiderados os acrdos relacionados s palavras-chave 'boa-f c contratos'"
relativos proteo Ja boa-f de terceiros que di:>:iam respeito a situaes subjetivadas da boa-f.
Assinab-se que, segundo os sistemas de indexao usuais, as expresses buscadas deveriam constar da
ementa. Para esta pesguisa devo registrar o meu agradecimento ao valioso auxlio prestado pelo acadmico
de Direito Alexandre PEREIRA DUTRA, da Faculdade de Direito da UPRGS, que desenvolve projeto de
iniciao cientfica sob minha orientao, com bolsa de estudos patrocinada pelo CNPq-BIPIC.]
7
Constituio Federal, art. 105, inciso Jll, ao conferir a competncia para julgar, em recurso especial
(Resp), 'as causas decididas, em nica ou ltima instncia, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos
Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territrios", quando a deciso recorrida: a) contrariar tratado ou
lei federal, ou negar-lhes vigncia; b) julgar vlida lei ou ato de governo local contestado em face de lei
federal; c) der lei federal interpretao divergente da que lhe haja atribudo outro tribunal.
8
Nomeadamente: Agr. Reg. no AI n" 47. 901 - 3 - SP;;\GA 47901;EDRESP 167691;RESP 256274;RESP
107211;RESP 80036; RESP 32890;RESP 3714/RS;RESP 7187/SP; RESP 85521/PR; RESP 101061/PB;
RESP 157841/SP; RESP 5932/RS; RESP 158728/RJ; RESP 18.4573/SP, RESP 95535/SP;RElVfS n 6183MG;.ROMS 6183; ROMS 1694/RS.
q STF, 2' T, RE 158448/MG, Relator Ministro Marco Aurlio de i\IELLO, j. em 29.06.1998, sendo a boa-f
invocada articuladamente aos princpios da continuidade da prestao Jc servios e da realidade.

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Judith Martins-Costa

notadamente o direito alemo e o italiano, tm sido cometidas ao princpio 10 ,


Ora, os dados desta pesquisa sinalizam uma "modelagem brasileira" da boa-f
objetiva, de cunho fortemente jurisprudenciaL
Numa cultura jurdica na qual ainda forte a tradio legalista, ao apego lei em seu
aspecto formal, sua mais espessa literalidade, uma tal circunstncia curiosa. Na busca das
razes que a expliquem, recorro preliminarmente (Parte I) a um especfico recorte terico,
qual seja, o da teoria das fontes e dos modelos jurdicos, proposta por Miguel
Reale 11 .Compreendido este aporte terico- que aqui suporte, e busca de explicaotentarei visualizar a formao de um modelo jurisprudenial da boa-f objetiva no Direito
Brasileiro, mediante a indicao das funes que, na concreta prtica da vida jurdica, o
mesmo chamado a operar (Parte II).

I) A TEORIA DOS MODELOS: DOS MODELOS DOUTRINRIOS AOS


MODELOS JURISPRUDENCIAIS.
Ao debruar-se sobre o fenmeno da normatividade, percebeu Miguel
Reale que as normas jurdicas, provindas das quatro fontes s quais so
reconhecidos os atributos da autoridade e da prescritividade - a saber, a fonte
legislativa, a jurisprudencial, a consuetudinria e a negociai - podem apresentarse como modelos, vale dizer, como "estruturas normativas que ordenam fatos segundo valores,

numaqualifo:afo tipolgimdecomportamentosjturos,aqueseligamdeterminadasconseqnciaS'".
Correspondentes, no plano jurdico, s estruturas normativas verificadas nas
estruturas sociais, os modelos so constantemente construdos pela experincia
jurdica, clistinguindo-se entre modelos jurdicos - assim os provenientes das quatro
fontes de produo jurdica, dotados que so de fora prescritiva - e os modelos
dogmticos, ou hermenuticas, cuja elaborao doutrinria e cuja fora indicativa,
argumentativa ou persuasiva.

10

Para este cmputo a autora considerou as invocaes a boa-f no repetitivas e as decises nas quais as
funes da boa-f objetiva so efetivamente desenvolvidas, desconsiderando aquelas em que o princpio
meramente alegado, sem a correspondente motivao e o estabelecimento dos nexos com a concreta
situao ftica e ainda os acrdos fundados em similar situao de fato e idntica argumentao.
11
Veja~se, de Miguel REALE, "Fontes c Modelos no Direito- para um novo paradigma hermenutico",
So Paulo, Saraiva, 1994, e, "l)ara uma teoria dos modelos jurdicos", in "Estudos de Filosofia c de
Cincia do Direito", So Paulo, Saraiva, 1978.
12
REALE, Miguel, "Para uma teoria dos modelos jurdicos", in "Estudos de Filosofia e de Cincia do
Direito", cit., p. !7.

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A referncia fora meramente indicativa ou persuasiva da doutrina merece, no Direito


Brasileiro, um cuidado particular. Somos, os luso-brasileiros, tributrios de uma longa tradio
"bartolista" 13 , e, portanto, a fora da doutrina tem um peso especifico, de alta densidade
culturaL que, desde as nossas mais fundas origens, o mos italicus, refletido exemplarmente
na obra de Bartolo de Saxoferrato, conformou uma mentalidade. Se razo cabe a Fernand
Braudel ao aludir 'longa permanncia" das estruturas na Histria14 - comparativamente s
conjunturas e aos eventos, conformadores de ciclos de mdia e de curta durao- o certo que
a estrutura das mentalidades, dos "enquadramentos mentais" a que alude BraudeP 5 a que
apresenta a mais longa durao. o que ocorre com a nossa viso do papel da doutrina na
formao do Direito.
No antigo direito lusitano nem o centrabsmo jurdico representado pela precoce
ordenao do Direito sob o signo da autoridade estatal- nossas primeiras Ordenaes do
Reino so de 1447 16 , -teve fora para afastar a doutrina como verdadeira fonte de direito.

13

Veja,se ALMEIDA COSTA, Mario Jlio, "Romanismo e Bartolismo no Direito Portugus", Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra vol. XXXVI, 1960, p. 16.
14
BRAUDEL, Fernand, "Histria e Cincias Sociais", traduo portuguesa de Rui Nazar, Lisboa,
Editorial Presena, 4' edio, 1982, notadamente o ensaio "A Longa Durao", p. 7 a 39. Para a apreenso
das categorias braudelianas na Histria do Direito, PARADISI, Bruno, "Questioni Fondamentali per una
Moderna Storia de! Diritto", in Quaderni Fiorentini per la Storia de! Pensiero Giuridico Moderno, vol.
1, Firem:e, 1972, em especial pp. 31 e ss., e VARELA, Laura Beck, 'Algumas Contribuies da Cincia
Histrica Tarefa do Historiador do Direito", in Revista da Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, vo!. 18, Porto Alegre, 2000.
1
-' BRAUDEL, Fernand, "Histria e Cincias Sociais, dt., p. 14.
u, Ordcnaes Afonsinas cuja concluso ocorreu no segundo semestre de 1446 ou no primeiro de 1447.
O seu sistema de fontes estabeleceu (Livro li, ttulo IX) a hierarquia entre as !eis do reino que, se
insuficientes seri:lm supridas "pelas Lr:ys lmperiaies, e pelos Santos Canones,, e sucessivamente "se o caso

de que se trauta em partica, nom fosse determinado per Ley do Regno, ou estilo, ou custume suso dito ou Leyx
lmperiaaes, ou Santos Canones, entom mandamos que se guardem as grosas d"Acursio encorporadas nas ditas
Leys. E quando pelas ditas grosas o caso non for determinado, mandamos, que se guarde a opiniom de
Bartholo, n6 embargante, que os outros Doutores diguam o contrario. O sistema foi mantido, com
pequenas variantes, nas Ordenaes J\hnue]jnas (redao definitiva em 1521) e nas Ordenaes Filipinas
(1603, que vigoraram no Brasil at 1916).

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Judith Martins-Costa

Ainda 'lue os textos legislativos previssem, formalmente, o carter de fonte subsidiria,


relatam os historiadores do ius com mune ibrico ter por vezes cabido doutrina de Acursio
e Bartolo papel proerninente frente ao prprio direito do rei 17
Isto significa dizer que em nossa profunda mentabdade, paradoxalmente, 18 articulouse, ao legalismo, a ateno doutrina como fonte de produo de modelos hermenuticas,
mesmo os derivados da experincia estrangeira. Para os efeitos de uma possvel histria das
mentalidades jurdicas, o termo "bartolismo" indica, pois, este fenmeno cultural, marca
permanente, o de em nossa forma mentis estar fortemente arraigada a idia de a doutrina
no apenas desenvolver o papel de formadora dos cnones de interpretao, mas o de,
concebendo <<os modelos hermenuticas destinados a preencher as lacunas do sistema"19 ,
tornar-se fonte prescririva. Diferentemente do que ocorre em outros pases, entre ns os
juzes recorrem, em suas decises, a largas citaes da doutrina, nacional ou estrangeira. Por
esta via, os modelos doutrinrios, largamente aceitos pela jurisprudncia, so convertidos
em modelos jurdicos jurisprudenciais, estes sim marcadamente prescritivos, "graas ao
poder constitucionalmente conferido ao juiz"2o, assim dinamizando de maneira exponencial
(ou, por vezes, cristaJizando), as solues oferecidas pela fonte legislativa, em si mesma
esttica.

Os modelos jurisprudenciais incluem-se entre os modelos jurdicos ou prescritivos.


Estes, diz Reale, no so o mesmo que normas, constituindo suas especificaes, geralmente
resultando de uma pluralidade de normas que, entre si articuladas numa certa estrutura,
compem uma unidade lgica de sentido21 Se determinada estrutura serve de base a uma
srie ordenada e conjugada de atos tendentes a alcanar certos objetivos visados", tem-se um
modelo, que assim se apresenta como uma "estrutura paradigmtica" a qual, no campo das
cincias sociais, notadamente no Direito, marcada por um essencial illnamismo, sendo-lhe

''Afirma HESPANHA que em Portugal "apesar de as Ordenaes conferirem ao direito romano um lugar
apenas subsidirio no quadro das fontes do Direito (Ordenaes Filipinas, l!l, 64} na prtica ele era o direito
principal, sendo mesmo aplicado contra o preceito expresso do direiro local" (HESPANHA, Antonio Manuel,
"Panorama da Cultura Jurdica Europia" Lisboa, Publicaes Europa-America, 1997, p. 67, nota 79, por
"direito romano" devendo entender-se fundamentalmente a obra de Acursio e Bartolo).
18
O paradoxo diminuir se considerarmos que a doutrina brasileira vem recoberta, em larga medida, pela
tradio praxista, a qual pouco criativa, pois cingida aos comentrios da prtica forense, caracterizandose, por vezes, por uma vocao de retrospectividade mais do (1ue de prospectividade.
19
REAL!\ Miguel, "Fontes e Modelos no Direito- para um novo paradigma hermenutica", cit., p. 107.
zn Idem, ibidem.
21
REALE, Mit,>ucl, "Fontes c Modelos do Direito -para um novo paradigma hermenutico", cit., pp. 29
e 30.

A Boa-F como Modelo

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inerente "o movimento, a direo no sentido de um ou mais fins a serem solidariamente


alcanados ''2 2 Um modelo pode, assim, articular normas de hierarquia diversa, compondo,
numa unidade de sentido, princpios constitucionais, regras nfraconsritucionais e prescries
que resultam da atividade jurisdicionaL Por isto que, enquanto expressivas de modelos, as
normas "passam a ser captadas (...) em sua plenitude s quando o intrprete atende

dinamicidade que lhes inerente e totalidade dos fatores que atuam em sua aplicao ou
eficcia, ao longo de todo o tempo de sua vigncia ''23
Bem por isto, no so os modelos estruturas estticas ou fixas, presas ao passado:
sendo elaborados continuamente tm, a par da vocao retrospectiva (por decorrerem
das fontes, que so estticas) a vocao prospectiva, pois se projetam no presente e
para o futuro, assim agregando a experincia do passado, mas estando abertos para o
que est por vir, nesta perspectiva possibilitando a soluo de novos problemas ou a
adequao das solues tradicionais s novas escalas axiolgicas vigentes 24
Ora, no Direito Brasileiro a boa-f objetiva apresentou-se, inicialmente, como
um modelo hermenutico, ou doutrinrio, na acepo que lhe d Miguel Reale,
podendo ser atribuda obra de Clvis do Couto e Silva25 , eminente jurista falecido
em 1992, Professor Titular da Faculdade de Direito do Rio Grande do Sul, a sua

'"" REALE, Miguel, "Jurisprudncia e Doutrina", in "Questes de Direito", So Paulo, Sugestes Literrias,
1981.
v REALE, Miguel, Fontes e Modelos ,cit., p, 30, grifos do autor.
2
' Creio que a percepo de Rea!c acerca da prospectividade dos modelos plasma a antecipao, em
dcadas, do pensamento CJUC, na Europa, viria a ser desenvolvido por adeptos mais recentes da Teoria
Hermenutica, como Guseppe ZACCARIA acerca da positivao das normas como um processo
dinmico - e no por acaso estruturado numa trade - , ou por Friederich MLLER sobre a
normatividade como "processo estruturado", conseqente distino que procede entre o texto da
norma e o seu "programa" como "pauta ordenadora" obtida no processo de interpretao, o sentido e
o alcance da norma sendo alcanados apenas na concreti~,ao (para estas referncias vide ZACCARIA,
Giuseppe, "Sul concetto di positivit ne! diritto",in Diritto Positivo e Positivit dei Diritto, Turim,
Giappichelli, 1991, e L'Arte de!!'interpn.:tazione, Pdua, Ccdrtm,1990 e MLLER, Friedrich, "Discours
de la Mthode Juridique", P;uis, PUF, 1996, em especial pp. 18G t ss.)
zs Notadamente em "A Obrigao como Processo", Tese de Ctedra, Porto Alegre, 1964, posteriormente
publicada (So Paulo, Jos Bushatsy Editor, 1976) e em"(_) Princpio da Boa-F no Direito Brasileiro c
Portugus", in "Estudos de Direito Civil Brasileiro e Portugus", So Paulo, Revista dos Tribunais, 1986,
p. 43-72.

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Judith Martins-Costa

efetiva conformao como prinpio ativo, capaz de operar "verdadeira transformao jurdica
atravs da doutrina e do Poder ]udicirio26 ". Conquanto referncia boa-f contratual j

constasse das obras de 11iguel Maria de Serpa Lopes 27 , Orlando Gomes18 e de Alpio
Silveira29 , as decises que iniciaram a trajetria de seu acolhimento como modelo
jurisprudencial fazem expressas referncias obra de Couto e Silva e a de autores que divulgou,

como o portugus Mario Jlio de Almeida Costa, 30 os quais deram ao princpio um


desenvolvimento dogmtico ausente das demais obras mencionadas, explicitando os deveres
de cooperao que, na relao obrigacional, decorrem da sua incidncia. Como observa Couto
e Silva, "os autores que escreveram, posteriormente ao CC brasileiro, no mencionam em

geral a importncia do princpio da boaf para uma moderna concepo da relao


obrigacional, no a definem como uma complexidade, uma estrutura ou um sistema de
processos"31 E, confirmando o nosso "bartolismo", a boa~f objetiva ingtessa na doutrina
brasileira pelas mos de Emilio Betti, como alude Couto e Silva ao lembrar o 'magnfico
curso"proferido pelo extraordinrio jurista italiano na Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, em 195832
Com base na percepo da relao obrigacional como um processo que se
desenvolve no tempo, em sucessivas fases, polarizado pelo adimplemento, transps
Couto e Silva para o direito civil brasileiro a concepo bettiana da existncia imanente,
nestas relaes, de deveres de colaborao, ora secundrios ou anexos obrigao
principal, ora apresentando-se, por fora da boa-f, como deveres autnomos.
Conjugando esta concepes aos aportes da doutrina e da jurisprudncia alems, que

26

COUTO E SILVA, Clvis, "O Princpio da BoaF no Direito Brasileiro e Portugus", cit., p. 43.
z7 SERPA LOPES, Miguel Maria. "Curso de Direito Civil", Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1' edio, 1957.
28
GOMES, Orlando, "Transformaes Gerais do Direito das Obrigaes", So Paulo, Revista dos Tribunais,
1' edio de 1967.
29
SILVEIRA, A!pio, "A BoaF no Cdigo Civil", Tomos I e II, So Paulo, Editora Universitria de
Direito, 1973. Este, autor de um amplo estudo gue procura distinguir entre a "boa-f crena" e a 'boa-f
lealdade", mesmo assim atribui, segunda, o carter de um estado subjetivado, como se observa pelos
grupos de casos que analisa no 2" volume de sua obra.
J ALMEIDA COSTA, Mario Jlio, "Direito das Obrigaes", Almendina, Coimbra, ora na 8" edio
(2000), e cuja primeira edio de 1968.
31
COUTO E SILVA, Clvis, "O Princpio da Boa-F no Direito Brasileiro e Portugus", cit., p. 58.
12
COUTO E SILVA, Clvis, "O Princpio da Boa-F no Direito Brasileiro e Portugus", cit., p. 43, nota 1.

A Boa-F como Modelo

355

deram um notvel desenvolvimento norma do pargrafo 242 do BGB, atribuiu Couto e


Silva, boa-f objetiva, o papel de fonte autnoma de direitos e obrigaes, por cuja incidncia

"transforma-se a relao obrigacional manifestando-se no vnculo dialtico e polmico,


estabelecido entre devedor e credor, elementos cooperativos necessrios ao correto
adimplemento "33
Enfatizou Couto e Silva que o fato de o Cdigo Civil no contemplar de forma
expressa o princpio ~ constatao que decorreria de uma interpretao "meramente
gramatical", consagradora de "um absurdoJ4 - no poderia levar concluso de que o
mesmo no integra o ordenamento. "Quando num cdigo no se abre espao para um princpio

fundamental, como sefez com oprincpio da boa f, para que seja enunciado com a extensW que se
pretende" afirmou, "ororre ainda assim a suaaplim{iJpor ser o multado de nemsidades ticas essenciais,
que se impem ainda quando falte disposio legislativa expressa", reconhecendo, porm, que,
neste caso, percepo ou captao de sua apliro torna-se muito dif:il, por no existir uma lei de
referncia a quepossam os juzes relacionar a sua deciso''_
Estas dificuldades foram e continuam a ser sentidas. No entanto,
progressivamente, a partir da dcada de 80, parte da jurisprudncia passa a
acolher esta doutrina, concretizando o princpio e formando, em pequenos
passos, a sua dogmtica.
A jurisdio, acentua Reale, antes de mais nada, um poder
constitucional de explicitar normas jurdicas, e, entre elas, modelos jurdicos "36
Este poder, embora desenvolvido normalmente na "realizao das normas legais
adequadamente aos casos concretos"37 tambm se apresenta, excepcionalmente,
como "poder de editar criadoramente regras de direito, em havendo lacuna no
ordenamento "38
A inexistncia de expressa previso no Cdigo Civil ao princpio da boaf passou a exprimir lacuna, angustiosamente sentida quando os tradicionais
princpios de Direito das Obrigaes - o da autonomia privada, expresso na
auto-vinculao, e o da responsabilidade por culpa comearam a se mostrar
mais que nunca insuficientes para uma justa soluo de casos resultantes, por exemplo,

COUTO E SILVA, Clvis, "O Princpio da Boa-F no Direito Brasileiro e Portugus", cit., p. 47 .
As expresses grifadas esto em COUTO E SILVA, Clvis, "O Princpio da Boa-F no Direito
Brasileiro e Portugus", cit., p. 61.
1
' COUTO E SILVA, Clvis, "O Princpio da Boa-F no Direito Brasileiro e Portugus", cit., p"p. 61 e 62.
36
REALE, Miguel," Fontes e Modelos do Direito" , dt., p. 69.
37
Idem, p. 70.
- ~ Idem, ibidem.
33

.1

356

Judith Martins-Costa

da contratao por adeso, ou do exerccio abusivo de posio contratual, ou do indevido


recesso das tratativas contratuais, ou da necessidade de reviso das bases contratuais em casos
de excessiva onerosidade, entre outros tantos que poderiam ser aqui lembrados. A est a
razo pela qual o princpio da boa-f - que, bem lembrava Couto e Silva, "enderea-se
sobretudo ao juiz e o instiga aformar instituies para responder aos novos Jatos"39 passou
a conformar verdadeiro e prprio modelo jurisprudenciaL
E constitui modelo a boa-f porque, para a sua correta aplicao, no pode o juiz
prescindir da articulao, coordenada, de outras normas integrantes do ordenamento,
compondo-as numa unidade lgica de sentido. preciso recorrer, exemplificativamente, s
regras da mora, ou da resoluo contratual, ou da responsabilidade civil, ou do adimplemento,
ou a tpicos integrantes do direito legislado, como o da "utilidade da prestao" para o
credor40 , ou a que consagra o poder do juiz de reduzir a clusula penal41 , ou s regras da
exceo de contrato no cwnprido42 e ainda as do abuso de Direito43 , ou a outros princpios
ou diretrizes, expressos ou implcitos no ordenamento, como o da moralidade e razoabilidade
ou a solidariedade social, ou, enfim, aos cnones de interpretao e integrao do contrato,
para lograr uma adequada concreo do princpio~ adequada porque viabilizadora da insero,
no ordenamento, da nova soluo alcanada por via jurisprudencial, e porque afastada do
puro e simples voluntarismo judiciaL
Para saber como vm os juzes brasileiros implementando este modelo, essencial o
exame casustico das funes que lhe esto sendo concretamente cometidas. l~ do que agora
me ocuparei, tendo em conta a jurisprudncia do Superior Tribunal de Justia e do Tribunal
de Justia do R.io Grande do Sul.

II) A CASUSTICA DA BOA-FOBJETIVA NOS TRIBUNAIS BRASILEIROS


Se o sentido geral da boa-f o de nortear o teor geral da colaborao
intersubjetiva, especialmente no Direito das Obrigaes, porque a boa-f
produz deveres instrumentais e "a v o I u n t a r s t a s"44 , neologismo que emprego
para indicar que no derivam necessariamente do exerccio da autonomia privada
nem de punctual explicitao legislativa: sua fonte reside justamente no princpio,

39
411
41
42
43
44

COUTO E SILVA, Clvis. "O Princpio da Boa-F no Direito Brasileiro e Portugus", cit., p.53.
Cdigo Civil, art. 956, pargrafo nico.
Cdigo Civil, art. 924.
Cdigo Civil, art. 1092, caput.
Cdigo Civil, art. 160, inciso I, a contrario.
Assim o meu "A Boa-F no Direito Privado", So Pauto, Revista dos 'I'ribunais, 1999, p. 438.

A Boa-F como Modelo

357

incidindo em relao a ambos os participantes da relao obrigacional45


O efetivo desenho destas hipteses deve ser recortado da jurisprudncia que vem
empregando o mtodo de raciocnio tpico para modelar "grupos de casos tpicos" de
violao do dever de agir segundo a boa-f, em construo ainda no-sistemtica, das
hipteses 46 , porm indicativa das figuras componentes de um possvel cdigo discursivo da
boa-f em efetivo uso em alguns Tribunais brasileiros.
A fim de sistematizar estes casos, proponho agrup-los em trs setores, o primeiro
deles atinente ao que chamarei de "funo de otimizao do comportamento contratual" , o
segundo relativo "funo de reequilbrio" do contrato e o terceiro correspondente "funo
de limite" no exerccio de direitos subjetivos, recolhendo casos que dizem respeito s relaes
privadas de direito comum, de direito do consumidor e de direito administrativo, campo de
tambm especial relevncia na atuao da boa-f objetiva.

A) A BOA-F E A FUNO DE OTIMIZAO DO COMPORTAMENTO


CONTRATUAL
A funo otimizadora do comportamento contratual obtida por dois
modos diversos: de um lado, pela imposio de deveres de cooperao e de
proteo dos recprocos interesses, deveres instrumentais de conduta, pois visam o
exato processamento da relao obrigacional, a satisfao dos interesses globais
envolvidos, auxiliando na realizao positiva do fim contratual e na proteo pessoa
e aos bens da contrapart'. De outro, pela utilizao do princpio da boa-f como
cnone de interpretao e integrao do contrato consoante funo econmicosocial que concretamente chamado a realizar.

45

Para a explicitao deste tema, ver o meu ''A Boa~ F no Direito Privado", cit., em especial pp. 437 e ss.
:. natural a formao tpica ou casustica quando se trata de dar concreo aos modelos jurdicos
semanticamente abertos, como o de boa-f, ocorrendo a ressistematizao das decises mediante a
formao de "grupos de casos tpicos" conforme o interesse concretamente lesado e consoante a
identidade ou a similitude da ratio decidendi, em torno destes construindo a jurisprudncia certos
tpicos ou parmetros que possam atuar, pela pesquisa do precedente, como amarras excessiva flutuao
do entendimento jurisprudenciaL Facilitada, assim, estar a pesquisa do precedente e a elaborao,
progressiva e aberta de tpicos, nos sentido viehweguiano, obtendo-se, pouco a pouco, a ressistematizao
das fattispecies j previstas e permitindo"se a incorporao de novas hipteses sem que fosse necessrio
recorrer punctua! interveno do legislador. (Para o exame das funes e modos de operar as d~usulas
gerais, o meu "r\ Boa F no Direito Privado", cit., 330 a 377).
4
., Sobre os deveres instrumentais vide o meu "A Boa-F no Direito Privado", cit., p. 440.
46

358

Judith Martins-Costa

O mais imediato dever decorrente da boa-f o dever de lealdade com a contraparte.


ferir a boa-f objetiva o comportamento de cliente de banco,
titular de conta-corrente que, depois de sucessivos saques, a limite coberto ou no, alega a
inexistncia de dbito, Assim tambm detectou-se a quebra do dever de lealdade de contratante
de seguro privado de sade que no preenchera, com lealdade e honestidade, o questionrio
sobre doenas pr-existentes, que lhe fora fornecido pela seguradora no perodo antecedente
concluso do negcio jurdico, estando ciente da existncia de molstia49

J decicu a jurisprudncia48

A atuao contratual dos profissionais liberais, como a dos mdicos e dos advogados,
caracteriza relao fiduciria, na qual os deveres de agir segundo a boa-f no so "anexos",
mas absolutamente nucleares, a fidcia integrando o contedo do prprio dever principal.
Por isto, j decicu o Judicirio que "o advogado que recomenda providncia judicial onerosa

para o cliente e benfica a ele, estipulando-a no contrato de honorrios, age com deslealdade,
violando o princpio da boaf contratual", o que, na espcie, conduziu nulidade do
ajuste 50
A lealdade marca tambm as relaes de Direito Administrativo. Em
paradigmtica deciso, o Superior Tribunal de Justia assentou que "o

compromisso pblico assumido pelo Ministro da Fazenda, atravs de Memorando


de Entendimento, para suspenso da execuo judicial de dvida bancria de
devedor que se apresentasse para acerto de contas, gera no muturio a justa
expectativa de que essa suspenso ocorrer, preenchida a condio". Da decorrer
o direito do particular de " obter a suspenso fundado no princpio da boaf
objetiva, que privilegia o respeito lealdade "5 1 A violao da lealdade restou evidente na
medida da presuno que o compromisso pblico assumido pelo Governo, atravs
do seu Ministro da Fazenda, o condutor da poltica financeira do pas, e com a
assistncia dos estabelecimentos de crdito diretamente envolvidos, tivesse sido
celebrado para ser efetivamente cumprido. Por isto a invocao, no aresto, do princpio
geral da boa-f que, se vale no Direito Privado, vale ainda mais para a administrao pblica

48

1JRGS, Ap. Ci\( n 598225720- 17' C. Civ., j. 06.4.99, Rei. Demtrio Xavier LOPES NETO
Ap. Cv. n" 597019439- 6' C. Civ., j. 12.11.97, Antonio Janyr DALL'AGNOLJUNIOR.
50
1JRGS, Ap. Civ.194.045.472- 9' C. Civ., j.26.4.94, Rel. Des. Antnio Guilherme Tanger JARDIM, in
Revista Direito do Consumidor, vol. 14, p, 173.
11
REMS n" 6183-MG, STJ, 4'T. Rei. Min. Ruy ROSADO DE AGUIAR, unnime, j. 14.12.1995, p. DJ 8.12.95.
Tratava-se de hiptese em Banco do Brasil, que entidade bancria oficial, vinculada Administrao
Pblica, havia ajuizado processos de execuo de dvida contra clientes inadimplentes. O Ministro da
Fazenda, autoridade qual, em ltima instncia est a autarquia bancria vinculada, havia firmado "Memorando
de Entendimento" no curso de tratativas visando solucionar a questo, <JUe atingia um grande nmero de
devedores, comprometendo-se a suspender temporariamente a execuo se os devedores se apresentassem
para renegociar o dbito. Embora o compromisso, o Banco do Brasil prosseguiu, mesmo assim, a
execuo judicial, negando o carter obrigacional do mencionado "Memorando de Entendimento".
4

~TJRGS,

A Boa-F como Modelo

359

e para a direo das empresas cujo capital predominantemente pblico, nas suas relaes
com os cidados~ sendo "inconcebvel que um Estado democrco, que aspire a realizar a
Justia, esteja fundado no prindpio de que o compromisso pblico assumido pelos seus
governantes no tem valor, no tem significado, no tem eficcia. Especialmente quando
a Constituio da Repblica consagra o princpio da moralidade administrativa "52
Reforando o dever de lealdade nas relaes de direito administrativo~ mas j agora
o dever de lealdade de servidor para com a Administrao Pblica- est o caso em que
mdica, servidora municipal, foi licenciada para tratamento de sade. No perodo da licena,
porm, passou a atender pacientes em clnica particular, o gue motivou a sua punio
(suspenso disciplinar). Inconformada, a mdica ajuizou ao indenizatria contra a
Administrao, decidindo o Judicirio pela improcedncia da demanda, face ao dever,
descumprido pela mdica, de no atender paciente particular, ou trabalhar em instituio
hospitalar particular, no perodo da licena, comprometendo a plena recuperao de sua
sade, objetivo precpuo da licena que lhe havia sido concedida53
Como mandamento de cooperao intersubjectiva e de considerao aos interesses
do parceiro contratual a boa-f provoca um aumento dos deveres, isto , a sua "otimizao",
como demonstra deciso gue imps companhia seguradora o dever de, previamente
suspenso dos efeitos de contrato de seguro, por inadimplemento do devedor, notificar o
segurado, especificando os efeitos do no-atendimento 5 4 Este acrdo aponta,
exemplarmente, concreo que deve presidir a aplicao da boa-f como mandamento de
considerao, pois o relativo "peso" dos deveres ata-se, de modo incindivel, natureza do
contrato e s concretas circunstncias no qual concludo e desenvolvido. Dada a natureza
essencial do seguro-sade, a sua intrnseca importncia relativamente a um bem fundamental,
como o a sade, extremada massificao destas prestaes e a gravidade das conseqncias,
para o segurado, penalizado com a perda da indeni2ao, foi acrescido o dever de informao
que, em outras circunstncias, eventualmente no se manifestaria, assim demonstrando o
acrdo o trao essencial da "circunstancialidade" que preside a incidncia da boa-f objetiva.
No mesmo sentido de otimizao do contedo contratual pela imposio de deveres
de considerao para com o parceiro contratual est acrdo que examinou hiptese de
inadimplemento contratual, caracterizado pela violao do dever de absteno de condutas
que pudessem prejudicar o co-contratante, afrontados que foram, pelo contratado, os
let.,rtimos interesses daquele. Na hiptese, valendo-se da licena para uso de marca comercial,
a empresa contratada, a par de no executar corretamente as obrigaes principais decorrentes
do contrato, passou a veicular, na Internet, propaganda comercial na qual utilizava, no mundo
virtual, o "nome de domnio" da empresa contratante, assim prejudicando, no mundo real,

52

-l
54

Conforme os fundamentos da deciso citada.


TJRGS, Ap. Civ. n" 596131060, 3" C. Civ. j. 26.07.97, Rel. Des. Moacyr ADIERS.
TJRGS, Ap. Civ. no 598037257, 5' C. Civ. Rel. Des. Carlos Alberto BENKE, j. 19.03.98.

360

Judith Martins-Costa

os seus legtimos interesses ccon6micos 55

Por isto que, tendo presente o mandamento de considerao, tem a jurisprudncia


atentado aos deveres de proteo com a pessoa e o patrimnio da contrapartc. Acrdo
exemplar neste sentido encontra-se na jurisprudncia do STJ, pelo qual, "o estabelecimento

bancrio que pe disposio dos seus clientes uma rea para estacionamento de 'veculos
assume o dever, derivado da boaf objetiva, de proteger os bens e a pessoa do usurio"16
Ao apreciar a lide, no teve em conta o julgador apenas os deveres principais, decorrentes

do contrato bancrio, mas a totalidade dos interesses envolvidos. A proteo dos bens e da
pessoa do usurio (consumidor) dos servios bancrios encontra-se finalisticamente vinculada
relao de consumo dos servios bancrios que liga o Banco e os usurios dos seus servios.
No estando orientados diretamente ao cumprimento da prestao principal, estes deveres
esto referidos otimizao da relao obrigacional visualizada complessivamente, isto ,
satisfao dos interesses globais envolvidos.
Do mesmo modo, em ao na qual litigava-se acerca de contrato de participao
financeira em sociedade por aes, decidiu o Judicirio caber sociedade o dever de
promover subscrio, no prazo de doze (12) meses, do montante das aes,
correspondenternentc ao valor patrimonial de cada ao na data do pagamento do
preo pelo aderente, a ser obtido no balano do perodo anterior integralizao,
tudo fundado no prncpo da boa-f objetiva57 O mesmo dever de proteo conduziu,

TJRGS, Ap. Civ. n 70001059641, 6' C. Civ., Rd. Dcs. Carlos Alberto Alvaro de OLIVEIRA, j. em
25.04.2001. Na fundamentao do voto do Relator l-se a seguinte passagem: "0 imperativo da boaj
exigia da demandada conduta que respeitasse a parceira, no tentando se apropriar, em lance de esperteza, do
patrimnio desta, iludindo sua confiana e assim tornando invivel a continuao do contrato".
16
STJ, 4' T, ;\gr. Reg. no Al n" 17. 901 - 3- SP, j. 12/09/04, Rei. Min. Ruy Rosado de AGUIARJNIOR.
"TJRGS, Ap. Civ. n 70000457093, lO' C. Cv., j. 25.5.00, ReL Luiz 1\ry VESSINI DE LIMA, a exemplo de
outras dezenas de acrdos similares.
.\O

A Boa-F como Modelo

361

em contrato de consrcio para a alienao de automveis, ao dever, da empresa, de restituir


as parcelas pagas por consorciado desistente, e no contemplado com o sorteio do bem 58
Os deveres de proteo, diret.m1ente derivados do dever geral de colaborao imanente s
relaes obrigacionais, podem se estender s fases pr e ps contratual. Muito embora no exista,
no ordenamento brasileiro, regra similar do art. 1337 do Codice Civile italiano, os juizes
brasileiros tm iniciado a construo destajattispecie com base no princpio da boa-f objetiva e
no dever de proteo das legitimas expectativas dos contratantes e dos pr-contratantes.
Vejamos, em primeiro lugar, as hipteses de responsabilidade pr-contratual59 , seja
nos casos de recesso injustificado das tratativas ~nos quais mxima a tenso entre o
princpio da boa-f objetiva, de um lado, e a autonomia privada, de outro- seja na concreo
de deveres pr-contratuais de proteo, de informao e de sigilo.
Recente acrdo do Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul, confirmando j iterativa
jurisprudncia60 , considerou caber o pagamento de perdas e danos demandante que havia
tratado a locao de imveL rompendo o proprietrio do imve~ injustificadamente, as negociaes
e locando-o a um terceiro. "Tendo havido tratativas srias referentes locao de imvel,

rompida pela requerida sem justificativa, e sem a observncia de deveres anexos, decorrentes do
princfpio da boa f objetiva", consignou-se no aresto, "cabe indenizao" 61
Em outra hiptese a boa-f foi utilizada para determinar a responsabilidade pscontratual62, imputada ao fornecedor de servios, que no sustara a cobrana de ttulo extrajudicial j pago pelo devedor/ consumidor, embora com retardo. Entendeu-se que o

50

TJRGS, Ap. Civ. na 70000094433- 14' C. Civ., j. 25.11.99, Rei. Aymor Roque POTIES DE MELLO.

59

Como aponta MOREIRA ALVI.':S, muito embora no haja no Cdigo Civil regra expressa acerca da
responsabilidade pr>contratual, a doutrina a aceita, sendo "dominante o entendimento de que a
denominada culpa in contrahendo se funda na inobservncia da boaf. ("A Boa" F Objetiva no
Sistema Contratual Brasileiro", dt., p. 197).
MJ Para o exame de anteriores acrdos que romperam com a tradio dt: conectar a responsabilidade
pr-contratual prova do comportamento culposo veja-se o meu "A Boa-F no Direito Privado", cit.,
pgs. 472 a 514.
61

TJRGS, Ap. Civ. no 598209179, 16" C. Cv.

J.

em 19.08.98, Rel. Des. Helena Cunha VIEIRA

12
'

Tambm aqui h a prvia modelagem pela doutrina. Assim aponta MOREIRA ALVES ("A Boa-F
Objetiva no Sistema Contratual Brasileiro", cit., p. 200,) segundo o gual "a doutrina brasileira,

apesar do silncio da legislao, reconhece a existncia de condutas a ser observadas no pen'odo ps


contratual (post contractum). Para os que no admitem que, em nosso sistema jurdico vigente, se
possa ter a boaf objetiva, sem textos legislativos expressos, como clusula geral no direito das obrigaes
para justificar a existncia desses deveres secundrios, socorrem-se eles da teoria do abuso de direito
e, portanto, segundo a doutrina alem, de teoria vinculada boa f objetiva", aludindo doutrina
de Darci BESSONE acerca da interpretao dos contratos comerciais.

362

Judith Martins-Costa

fornecedor deveria ter detenninado ao estabelecimento bancrio incumbido da cobrana do


ttulo o cancelamento do dbito, para que assim fosse evitado um novo- e agora injustificado
-protesto do ttulo 63 que os deveres de colaborao implicam em agir positivamente
para que o fim contratual seja alcanado e em no agravar a situao da contra parte.
Porm, conforme o caso, o dever de colaborao incumbe ao prprio devedor. Assim
hiptese em que o dbito, expresso em duplicata, foi pago com trs dias de atraso na
prpria sede da empresa credora. Ocorre que o ttulo de crdito havia sido entregue instituio
bancria com autorizao para cobrana, o que motivou o protesto. O devedor pleiteou,
ento, indenizao por dano moral, o que foi rejeitado. Entendeu o Tribunal que o autor,
mesmo ciente do protesto iminente, nada fez para evit~lo, sequer solicitando empresa
credora que o sustasse, "no agindo com a preocupao daqueles que se sentem atingidos em
sua dignidade, no podendo agora pretender indenizao por dano moral:J.~J 4 .O dever
infringido foi o de colaborar para obstar a prtica do ato, "o que poderia terfeito em decorrncia
da lealdade que deve presidir s relaes negociais", como expressa a fundamentao do
voto do Desembargador Relator que, apelando doutrina de Karl Larenz, determinou que
a onllsso, caracterizando ofensa ao princpio da boa-f, estabelecia uma concorrncia de
culpa, de modo a diminuir a responsabilidade da instituio bancria pelo indevido protesto
do titulo.
A proteo da expectativa legitimamente criada pela contraparte de exponencial
relevncia tambm no Direito Administrativo, pois a conduta da Administrao Pblica,
para alm da adstrio ao princpio constitucional da moralidade pblica65 vem ainda revestida
pela presuno da legalidade dos atos administrativos. Por esta razo, entendimento
longamente mantido acerca da interpretao da lei s pode ser subitamente alterado se
houver a proteo das expectativas daqueles que confiaram na prtica por longos anos mantida.
J se decidiu, neste sentido, em sede de Ao Civil Pblica, rejeitar a pretendida anulao de
aposentadoria de professoras, especialistas em educao, na medida em que "as requeridas

optaram pelo cargo de especialista aps longos anos de exerccio em sala de aula, poca em
que vigorava o entendimento administrativo no sentido de o benefcio da aposentao

_~ TJRGS, 1\p. Civ. n" 70001037597- 9' C. Cv., j. 14.6.00, Rel. Paulo de Tarso Vieira SANSEVERINO, em
cuja ementa se l:"( .. .) Descumprimento do dever de diligncia pela fornecedora apelam-e, decorrente da boa-

f objetiva, no perodo ps-contratual, em face da no comprovao das medidas necessrias para o recolhimento
do ttulo posto em cobrana bancria".
64TJRGS, Ap. Cv. n" 589078542, sa c Civ. j. 13.02.90, Rel. Des. Ruy Rosado de I\ GUIAR JNIOR, in
RJTJRGS 148/282.
65
Constituio Federal, art. 37, caput.

A Boa-F como Modelo

363

abranger quem exercia dito cargo", fundando-se a deciso nos princpios da boa-f objetiva
e da segurana jurdica66
A proteo da justa expectativa conduz adoo de medidas positivas, razo pela
qual acrdo do S1J entendeu que, ((nas circunstncias do negcio, o credor tinha o dever,

decorrente da boaj objetiva, de adotar medidas oportunas para, protegendo o seu crdito,
impedir a alienao dos apartamentos a terceiros adquirentes de boaj'67 Na espcie, v-se
a conjugao entre, de um lado, o dever de agir segundo a boa-f objetiva, imposto
incorporadora- esta deveria agir para impedir a alienao dos imveis, no apenas propondo
a ao de execuo, mas averbando-a no Registro de Imveis e informando a empresa
financiadora- e, de outro, a boa-f subjetiva, ou boa-f crena, dos terceiros adquirentes. Fica
a evidente a distino que h entre agir segundo a boa-f e agir de boa-f.
Importante grupo de deveres positivos diz com a prestao de informaes, de
aconselhamento, de aviso, assim compondo os deveres de informao, em sentido amplo e
de veracidade. Atuando, como todos os deveres que decorrem do princpio da boa-f, em
relao a ambos os participes do vnculo contratual, o dever de informao imposto, por
exemplo, aos segurados que, no contrato de seguro sade, no podem omitir circunstncia
relevante. Neste sentido, j decidiu o Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul, fundado no
princpio da boa-f objetiva, faltar "direito a segurado que omite circunstncia relevante,

capaz de aumentar o risco, quanto o mais quando demonstrado o liame de causalidade


entre aquela e o fato que se pretende acobertado"68 As companhias seguradoras tm, por
sua vez, o dever de prestar informaes detalhadas acerca do contedo do contrato, no
momento da concluso da avena69 , cabendo-lhes informar a parte sobretudo sobre as
clusulas de excluso do beneffcid0 Do mesmo modo o princpio da boa-f foi considerado
a fonte do dever de sociedade annima de telefonia informar contraparte o real valor da
venda de aes 71

66

Comarca de Porto Alegre, 2' Vara da Fazenda Pblica, Ac. Civ. Pub. n" 01195487226, Rel. Juiz Clademir
MISSAGIA, j. 07.08.98.
67 STJ, RESp. n" 32890/SP, 4' T. j. 12/12/94, Rei. Min. Ruy Rosado de AGUIAR JNIOR, in RSTJ 73/
227.
{>!i 1JRGS, Ap. Cv. n"59719439, 6' C. Civ., j. 12.11.97, Rel. Des. Antnio Janyr DALL'AGNOLL JNIOR.
19
' 1JRGS, Em. Dcc. no 196722656- 6' C. Civ., j. 17.4.97, Rel. Roque Miguel FANK.
7
nTJRGS, Em. lnf. n 598007607- 3" Grupo de C. Civ., j. 03.4.98, Rei. Antonio Janyr DALL'AGNOL
JUNIOR.
71
TJRGS, Ap. Civ. n 59907596 - 6' C. Civ., j. 05.4.00, ReL Joo Pedro FREIRE.

364

Judith Martins-Costa

Por vezes a boa-f mostra-se a via adequada para a recepo de doutrinas que se
formam no Direito Comparado, o que mais uma vez confirma o nosso "bartolismo".
Assim ocorreu com a Teoria da Violao Positiva do Contrato (Positive Vertrageverletzung}
cuja origem, nos direitos da "famlia" romano-germnica radica-se nas idias do alemo H.
Staub, em 1902, constituindo tambm conceito versado no direito do common law sob a
denominao de anticipated breach of contract.
Afirma Couto c Silva que esta recepo "haveria de contribuir decisivamente para
uma nova concepo da relao obrigaciona/"12 O incumprimcnto antecipado ocorre
quando o devedor, em contrato cujo adimplemento sujeito a prazo mais ou menos longo,
pratica, no transcorrer desse prazo, atos que, por fora da natureza da prestao ou da lei,
tornam impossvel o futuro cumprimento. Alguns doutrinadores, notadamente os discpulos
de Couto e Silva73 , passaram a examinar a aplicabilidade desta concepo ao direito brasileiro
utilizando, para tal fim, regras legisladas acerca da impossibilidade e da mora, interpretadas
segundo o princpio da boa-f, para entender que "alm da impossibilidade, o incumprimento

antecipado pode resultar da conduta contrria do devedor, por ao(..) ou omisso(..) ou a


declarao do devedor expressa no sentido de que no ir cumprir a prestao w 4 , podendo
tambm resultar do chamado "comportamento concludente".
De modelo doutrinrio logo migrou o Inadimplemento Antecipado para a
modelagem jurisdicional, entendendo-se caracterizado, por exemplo, o dever do construtor
de construir, em tempo hbil, a prometida obra industrial em terreno que havia sido adquirido
por preo subsidiado, o qual, descumprido, deu ensejo ao provimento da demanda
resolutria75
A funo otimizadora do contedo contratual tambm opera por via da interpretao
e integrao de lacunas do contrato. Por evidente, a invocao da boa-f deve ser congruente aos

COUTO E SILVA, Clvis,"() Princpio da Bo:d~ no Direito Brasileiro c Portugus", citado, p. 47.
Assim FRADERA, Vera Maria , "A Quebra Positiva do Contrato", Revista Ajuris, v. 44, Porto Alegre,
1988, p. 144-152, AGUIAR JR, Ruy Rosado, "Extino dos Contratos por Incumprmcnto do Devedor
(Resoluo)", Rio de Janeiro, Aide, 1991, p. 126 esse FERREIRA DA Sll~VA,Jorge Cesa, ''A Boa-F e a
Violao Positiva do Contrato", Porto Alegre, 1999, no prelo.
-,AGUIAR JR., Ruy Rosado, "Extino dos Contratos por Incumprimento do Devedor", cit., p. 127.
70
TJRGS, Ap. Civ. n 596251181
l' C. Civ., j. 18.3.98, Rei. Armnio Jos ABREU LIMA DA ROSA. Em
sentido similar, TJRGS, Ap. Civ. n 59671530- s C. Civ., j. 23.5.96, Rd. Paulo Augusto MONTE LOPES.
72
73

A BoaF como Modelo

365

fatos considerados e s demais normas do sistema, tendo-se em conta, notadamente, o


programa contratual considerado concretamente, pois, se assim no ocorrer, corre-se o risco,
no descurvel, de a boa-f servir de anteparo ao partipris do julgador.
Deciso em que tal no ocorreu, caracterizando, a meu juzo, o emprego adequado
do princpio, exemplificado por acrdo do Tribunal de Justia do Rio Grande do SuF 6 em
matria de contrato de seguro automobilstico que previa a responsabilidade da seguradora,
em caso de infortnio, para "danos pessoais". Recusando-se a empresa a pagar indenizao
por danos extrapatrimoniais, por entender que a expresso 'danos pessoais" indicava to s
os "danos corporais", assentou o julgador o primeiro elemento contextual, qual seja, a
incindibilidade da "indenizao da dor causada pelo dano corporal ou pessoa.! da do dano

moral ou psicolgico, forte na bioestrutura de ser humano, corporal e psicologicamente


indissolvel. A diviso existente corpo epsiqu ,por evidente, tem ofim apenas pedaggico,
para poder melhor estudar a pessoa humana e no como pretende a seguradora".
Em seguida, recorreu o magistrado ao princpio da boa-f objetiva, estatuindo que,
na dvida quanto ao significado de clusula predisposta por uma das partes, "a interpretao
deve ser no sentido menos favorvel a quem a redigiu", assim reenviando ao princpio da
interpretatio contra preferentem, ou ainda a regra in dubio contra stipulatorem, que,
assinalou, ' especialmente importante hoje em dia, devido difuso dos contratos

padronizados e de adeso".
No "ir e vir' entre o texto e o contexto, no esqueceu o julgador da funo econmica
do contrato. Afirmando constituir este "nada mais que o revestimento juddico de uma
operao econmica" entendeu de "sopesar, na anlise de contrato, a satisfao da necessidade,

a obteno do bem que levou as partes a contratarem, e a funo econmica que o pacto
exerce na vida de relao". Realizada a ponderao entre todos os elementos, de fato e de
direito, enfim decidiu: "E a escolha dever ser feita de modo a assegurar prevalea o interesse
que se apresenta mais vantajoso em termos de custo social': o qual, no contexto do programa
contratual considerado, apontava diviso dos prejuzos.
Tambm considerando a "prpria consecuo da finalidade do contrato", o que
djzcr, a sua objetiva causa, h deciso em matria de contrato de seguro-sade cuja clusula de
"vigncia temporria" foi tida como abusiva, por impeditiva do alcance daquela concreta
finalidade77 A interpretao do contrato, com o consegente afastamento da clusula abusiva,
ocorreu complessivamente, fazendo o relator apelo doutrina de Cludia Lima Marques 78
que examinou a boa-f no mbito das relaes de consumo.

"'GTJRGS, EI n 1%032114,4 Grupo de C. Cveis, Re!. Des. Roberto I:.xpedito da CUNH;\ MADRID, j. em
17. 3. 97.
"'TJRGS, Ap. Civ. n 596230888, 5" C. Cv., ReL Deo. Luiz Felipe BRASIL SANTOS, j. em 5.6.97.

366

Judith Martins,Costa

Para alm destas hipteses - aqui lembradas a titulo exemplificativo - outras se


verificam para promover o concreto reequilbrio das prestaes contratuais ameaado seja
pela inexistncia de sinalagma gentico, seja pela quebra do sinalagma funcional, seja ainda,
notadamente no mbito das relaes de consumo, pela insero de clusulas abusivas.

B) A BOA-F E O EQUILBRIO CONTRATUAL


O relativo equilbrio entre prestao e contraprestao que deve presidir os contratos
bilaterais e sinalagmticos quebrado ou pela leso ou pela excessiva onerosidade. Ambas
hipteses hoje em dia tm especfica previso legal no mbito das relaes jurdicas de
conswno e no Cdigo Civil projetado. Porm, no campo do direito comum por vezes a
boa-f chamada para ensejar a reviso das prestaes79 lesionrias ou excessivamente
onerosas80 , muito embora nem sempre os juzes realizem o correto discrime entre ambas.
O instituto da leso, conquanto previsto nas Ordenaes Filipinas (Livro IV, Titulo
XIII) do Reino portugus, constituindo, pois, figura antiqussima no direito luso-brasileiro,
inclusive regulado por Teixeira de Freitas na Consolidao das Leis Civis (art. 359), estava
ausente de nossa legislao desde 191681 , tendo sido reincorporado no domnio das relaes
de consumo pelo Cdigo de Defesa do Consumidor, de 1990S2 Manteve-se a a nossa
tradio de considerar a leso (laesio enorme, e enormissima) defeito objetivo, diferentemente
dos sistemas de raiz francesa. Tambm o Projeto de Cdigo Civil a prev, no art. 157.
Segundo Moreira Alves, no concernente leso o Projeto se afastou tambm do
sistema alemo e do italiano - e, portanto, do adotado pelo Cdigo Civil portugus de

78
MARQUES, Cludia Lima, "Contratos no Cdigo de Defesa do Consumidor", So Paulo, Revista dos
Tribunais, 3" edio, 1999.
~TJRGS, Ap. Ch.~ n 196105167, 6' C. Cv. j. em 8.8.96, Rei. Des. Armnio Jos ABREU LIMA DA ROSA,
e assim ementada: "Contrato de financiamento. Excessiva Onerosidade. Embora no se aplique, diretamente,
7

aos contratos bancrios, o CDC pode ser objeto de utilizao analgica quando manifesta a excessividade de
interesses remuneratrios do capital. Caso em que, de resto, caberia recorrer a princpios gerais de Direito e
evitar Locupletamento indevido de uma das partes. Mantena da TR, juros moratrios de 1% ao ms e multa.
Apelo provido em partr!'.
80
No tocante reviso por quebra Ja base negociai objetiva o leading case foi a Ap. Civ. n 5880591113,
TJRG~

3" C. Cv., j. 6.12.88, Rel. Des. Ruy Rosado DE AGUIARJR.


Na dcada de 50 a leso foi recebida no Direito penal atravs da figura da usura, prevista na Lei n1521,
de 26/12/51, art.4".
82
Cdigo de Defesa do Consumidor, Lei n8.078, de 11 de setembro de 1990, art.6, inciso V, primeira
parte.
Bl

A Boa-F como Modelo

367

1967- no se preocupando em punir a atitude maliciosa do favorecido, mas em tutelar o


lesado. Assim sendo, a leso ocorre "quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por

inexperincia, se obriga a prestao manifestamente desproporcional ao valor da prestao


oposta", admitindo a lei a suplementao da contraprestao, ou a reduo do proveito, para
afastar a conseqncia anulatria 83 . A leso introduzida pelo Projeto um defeito
que se instala no momento da concluso do negcio, j impedindo a formao do
sinalagma gentico, razo pela qual, no meu entender, pressupe contrato bilateral e
comutativo, mensurando~se o desequilbrio tendo-se em conta o contrato como uma
totalidade, isto , no devem ser consideradas apenas as prestaes principais.
Para alm da leso, o Cdigo de Defesa do Consumidor e o projetado Cdigo Civil
tambm permitem ao juiz revisar o contrato quando fatos supervenientes sua concluso
tornarem excessivamente onerosa a prestao, embora o faam por modos distintos, exigindo
distintos pressupostos.
O Cdigo do Conswnidor no exige que a desproporo tenha por causa acontecimentos
extraordinrios ou imprevisveis, razo pela qual, conquanto a referncia, na lei, excessiva
onerosidad4 , mais proximamente se trata da adoo da Teoria da Base Objetiva do Negcio.
Nesta imediata a correlao entre a reviso do contrato e o princpio da boa-f, o que, de resto,
vem do Direito alemo, como relata Hattenhaue~ 5 , ao comentar a pioneira sentena de 28 de
novembro de 1923 do Tribunal Supremo86 Igualmente Clvis do Couto e Silva estabelecera

83

Assim pronunciou-se MOREIRA ALVES ao dar parecer sobre a emenda supressva do Senador
Gabriel Hermes: "A leso ocorre quando h a usura real. No h, na leso, ao contrrio do que ocorre com

o estado de perigo, que vicie a simples oferta. Ademais, na leso no preciso que a outra parte saiba da
necessidade ou da inexperincia: a leso objetiva. j no estado de perigo preciso que a parte beneficiada saiba
que a obrigao foi assumida pela parte contrria para que esta se salve de grave dano {levando-se em conta,
pois, elemento subjetivo"}.In "O Projeto de Cdigo Civil no Senado", Tomo Il, Braslia, Senado Federal,
1998, p. 015.
CDC( Lei n 8.078/90, art. 6, inciso V, primeira parte.
8
;; HATTENHAUl::R, Hans, "Conceptos Fundamentaks dd Derecho Civil", trad. espanhola, Ed. Ariel,
Barcelona, 1987, p. 90.
8
" RGZ, 107, 78, 87 e ss, apud HATIENHAUER, op., e p., acima referidas. Por esta deciso precisou-se que
no era somente o devedor, mas ambos os partcipes da relao contratual gue deveriam suportar,
conjuntamente, os prejuzos da inflao, fundando-se o decidido justamente na clusula geral da boa-f
objetiva inscrita no pargrafo 242 do Cdigo Civil. Estabelecido que a adstrio ao pactuado (pacta sunt
servanda) devia amoldar-se boa~f e aos costumes do trfego juridico, reformulou-se, no direito
alemiio, a teoria da base do negcio e o antigo princpio da equivalncia, com o gue, afirma
HATTENHAUER, "a teoria das relaes obrigacionais abriu-se para novos caminhos".
~4

368

Judith Martins-Costa

esta correlao87 , acolhida pela jurisprudncia brasileira88 . J o Projeto de Cdigo Civil, no


art. 478 prev a resoluo por excessiva onerosidade nos moldes como este instituto
previsto em sua matriz italiana, podendo, na forma do art. 480, caber a reviso para evitar a
excessiva onerosidade. Se, contudo, a reviso conduzir a que o contrato perca o seu sentido
original como regramento objetivo de interesses dotado de determinada funo econmico~
social, a sim caber o remdili) extremo da resoluo.
No vigorando ainda o novo Cdigo, a jurisprudncia faz apelo boa-f objetiva. O
Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul decidiu revisar contrato com fundamento no
princpio da boa-f, entendendo cabvel a ao revisional de contrato de locao, por excesso
de onerosidade, uma vez que indexao do valor locatcio fora pactuada pela variao do
dlar americano, que sofrera sbita valorizao em face do real. Neste caso, embora inaplicvel
o Cdigo de Defesa do Consumidor, pois no configurada a relao de consumo, caberia,

"diante das peculiaridades da situao econmica vigente aps a edio do Plano Real, em
que os ndices inflacionrios tem sido insignificantes(. ..) a anlise de cada caso a fim de se
verificar a possibilidade ou no de reviso dos contratos pretendidos revisar". Na espcie,
considerando a indexao dos encargos contratados pela variao do dlar americano e a
elevao sbita deste, pareceu ao Judicirio perfeitamente possvel a reviso do contrato

firmado pelas partes, com base na boaf objetiva 89 ".


o mesmo princpio, por igual, que est no substrato das regras do Cdigo de
Defesa do Consumidor que preceituam a nulidade de clusulas abusivas, que
desequilibrem o contrato e que sejam inquas, atentatrias boa-f e eguidade90
Entre outros inmeros casos que poderiam ser aqui lembrados est a deciso que
cominou de nulidade, por abusividade, j que atentatria boa-f objetiva, clusula
de contrato de seguro que estabelece, como parmetro indenizao, o preo de
mercado do bem, determinando devesse o mesmo ter em conta o valor indicado na
aplice de seguro 91 .
Por fim, o modelo jurisprudencial da boa-f no Direito Brasileiro tem sido
ainda composto por hipteses em que a boa-f opera negativamente, impedindo ou
sancionando condutas contraditrias e vedando o exerccio de direitos subjetivos ou de
direitos potestativos.

COUTO E SILVA, Clvis, "Teoria da Base do Negcio", So Paulo, RT v. 655, 1990.


Exemplificatwamente, Ac. 'IJRGS, Ap. Civ. na 588059113, 5' C. Civ., Rei. Des. Ruy Rosado de AGUIAR
JR., j. em 6.12.88.
~ 9 TJRGS, Ap. Civ. n 70000078626, 15' C. Ci\~ Rd. Des. Ricardo RAUPP RUSCHEL, j. em 22.3.2000.
9
CDC, art. 51, pargrafo 4.
91
TJRGS, Ap. Civ. n 599443694 ~ 1' C. de Frias Civ., j. 21.10.99, Rel. Paulo de Tarso Vieira SANSEVERINO,
a exemplo de outros acrdos.
W'

"~

A Boa-F como Modelo

369

C) A BOA-F COMO LIMITE AO EXERCCIO DE DIREITOS


Ao operar negativamente, por forma a impedir ou a sancionar condutas contraditrias,
a boa-f reconduzida mxima que probe venire contra factum proprium. A expresso
"'venire contra factum proprium "indica uma especificao da antiga Teoria dos Atos Prprios
tradutora de princpio geral que tem como injurdico o aproveitamento de situaes
prejudiciais ao a/ter para a caracterizao das quais tenha agido, positiva ou negativamente, o
titular do direito ou faculdade 92 . O princpio atua em todos os "ramos" do Direito, tendo
sua razes no Direito Romano que, sistematizado no Direito Intermdio, deu causa ao
brocardo adversus factum suum quis venire non potest93 Todavia, j no Digesto (50,17,75),
Papiniano assinalava a inadmissibilidade de algum modificar de critrio em prejuzo alheio94 ,
o que se estende rnodernamente ao Direito Civil, Administrativo, Penal e Processual com
particular intensidade.
Trata-se de uma regra de fundo contedo tico que, por refletir princpio geral,
independe de recepo legislativa, verificando-se nos mais diversos ordenamentos como
uma vedao genrica deslealdade. Na proibio do venire incorre quem exerce posio
jurdica em contradio com o comportamento exercido anteriormente, verificando-se a
ocorrncia de dois comportamentos de uma mesma pessoa, diferidos no tempo, sendo o
primeiro (o factum proprium) contrariado pelo segundo 95
A proibio da contraditoriedade no processo tambm conhecida mediante o
instituto anglo-saxo da estoppel, pelo qual entende-se estabelecida uma presuno iure et de
iure que impede juridicamente que urna pessoa afirme ou negue a existncia de um fato
determinado, em virtude de haver anteriormente executado um ato, feito uma afirmao ou
formulado uma negativa em sentido precisamente oposto, como explica o jurista argentino
Alejandro Borda em sua clssica monografia96 Pode indicar, outrossim, um freio erguido

92

Assim escrevi em "A Boa-F no Direito Privado", cit., p. 462.


Conforme BORDA, Alejandro, "La Teoria de los Actos Proprios", Buenos Aires, r\be!edo-Perrot, Y
edio atual.izaJa c ampliada, 2000, p. 13.
94
Idem, p. 14.
]O Conforme MENEZES CORDEIRO, Antonio ~'vi., "Da Boa-F no Direito Civil", Coimbra, Ahnendina,
1989, p. 745.
% Op. cit., p. 25 e ss.
91

370

Judith Martins-Costa

pretenso de quem reclama algo em aberta contradio com o que havia anteriormente
aceitado, corno explica o tambm argentino Moisset de Espans 97
Este breve delineamento conceitual explica a razo pelo qual o venire tem tido
progressiva aceitao nos Tribunais. Em matria de contrato de seguro, j decidiu o Superior
Tribunal de Justia que a boa~ f veda o comportamento contraditrio inclusive na fase
processual, por forma a incidir na fixao do dies a quo para o clculo da prescrio extintiva,
pois se a recusa da seguradora a aceitar os dados de que dispunha em seu departamento
mclico como suficientes para caracterizar a incapacidade coberta pelo seguro, e a no-aceitao
do laudo apresentado pelo segurado ao propor a ao conduziu realizao de perida em
juzo, no poderia ensejar a invocao daquelas datas dos laudos no-aceitos para a fluncia
do prazo prescricional, estatuindo a deciso: "a boa f objetiva, que tambm est presente no

processo, no permite que uma parte alegue contra a outra um fato que ela no aceita epara
o qual exige prova judicializada ''lil.
Tambm pela invocao ao venire a Administrao Pblica viu limitada a pretenso
de exigir a devoluo de vencimentos pagos a servidor durante o perodo de concesso de
licena remunerada, a qual, constatou-se posteriormente, havia sido equivocadamente
concedida99 , em outra hiptese sendo a boa-f foi o limite que impediu a reviso de contrato
que j fora alvo de transao, em anterior oportundade11w.
Pela mesma via da boa-f objetiva tm a jurisprudncia brasileira acolhido tambm o
conceito de Adimplemento Substancial, oriundo do direito do common law, pelo qual
limita-se ou se impede o exerccio do poder formativo (potestativo) de resoluo contratual
nos casos em que a prestao contratual, embora no totalmente cumprida, foi
"substancialmente adimplida".
O adimplemento substancial significa, segundo o magistrio de Clvis do Couto e
Silva, o cumprimento prximo do resultado final, que exclui o direito de resoluo, facultando
apenas o pedido de adimplemento e de perdas e danosw 1 Fazendo expressa remisso a esta

97

MOISSET DE ESPANS, Luh, ''La Teoria de los Propios Actos y la Doctrina y la Jurisprudencia
Nacionales", apud BORDA, op. cit., p. 26.
98 STJ, REsp n" 18.4573/SP, ST.J, 4' T., Rei. Min. Ruy Rosado de AGUIAR .JNIOR, DJ. 15.03.99. p. 241.
Tambm no STJ, e fundado na mxima do venire o RESP 95535/SP, DJ 1 4.10.96, p. 39015.
wTJRGS, Ap. Civ. n 597200237 ~ 3> C. Civ., j.04.6.98, Rel. Percano CASTILHO$ BERTOLUCI.
100
TJRGS, Ap. Cv. n 598474237 ~ 20 C. Civ., j.15.2.00, Rel.Jos Aquino FLORES DE CAMARGO.
101
COUTO E SILV1\, Clvis, "O Princpio da Boa-F no Dirtito Brasileiro e Portugus", cit.,
pp. 56 e 57.

A BoaF como Modelo

371

doutrina102 , j decidiu o Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul que o comprador que

pagou todas as prestaes de contrato de longa durao, menos a ltima, cumpriu


substancialmente o contrato, no podendo ser demandado por resoluo" 103 Em outra
hiptese considerou-se atentatrio contra a boa-f almejar-se a reintegrao de posse de bem
alienado fiduciariamente quando o devedor adimplira a quase totalidade do dbito
(vinte e uma de vinte e quatro prestaes) 104
A mesma doutrina do Adimplemento Substancial fundamentou deciso adotada
ao apreciar o Judicirio lide decorrente de contrato de compra e venda de imvel que apresentara
defeitos na construo. Entendeu-se que, no sendo estes suficientes para caracterizar o
inadimplemento do vendedor, incidiria a regra do art. 1.056 do Cdigo Civil, ensejadora de
perdas e danos, e no a do pargrafo nico do art. 1.092, que consagra a resoluo por
inadimplemento. Isto porque o apartamento, objeto do contrato, conquanto apresentasse
condies deficientes para a habitao, e que poderiam ser sanadas, no era maculado por
vcios quanto sua estabilidade e solidez. Assim, manteve-se o contrato, afastando-se a
pretenso resolutria, condenando-se, porm, o vendedor ao pagamento de indenizao
suficiente para suportar as despesas com a reforma do imvel, at a sua integral
habitabilidade 105
Por igual atua a boa-f como limite ao exerccio de direitos subjetivos nos casos
indicados sob a denominao de supressio. Segundo recente acrdo do Tribunal de Justia
do Rio Grande do SuP 06 , esta "constitui-se em limitao ao exerccio de direito subjetivo
que paralisa a pretenso em razo da boaf objetiva". Exige-se, para a sua configurao, li)

o decurso de prazo sem exerccio do direito com indcios objetivos de que o direito no mais
seria exercido e (II) desequilbrio, pela ao do tempo, entre o benefcio do credor e o prejuzo
do devedor".
Diferentemente dasupressio, que indica o encobrimento de uma pretenso, coibindose o exerccio do direito em razo do seu no exerccio, por determinado perodo de tempo,
com a conseqente criao da legtima expectativa, contraparte, de que o mesmo no seria

102
Tambm explicitada por BECKER, Anelise, "A doutrina do adimplemento substancial no Direito
Brasileiro e em perspectiva comparativista", Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, voi. 9, Porto Alegre, 1993, pp. 60~ 77.
103TJRGS, Ap. Civ. n" 588012666, j. 12. 04.88, Rei. Des, Ruy Rosado de AGUIAR JNIOR.
(}lTJRGS, Ag. I. n" 70000027623 ~ 1' C. de Frias Cv;, j. 18.11.99, Rei. Des. Paulo de Tarso VIEIRA
SANSEVERINO. Em sentido similar, os Agravos de Instrumento ns 70000539908- 14' C. Cv., j. 16.12.99,
e 7001005586- 14' C. Civ., j. 29.6.00, ambos tendo como Rei. oDes. Aymor Roque POTTES DE

lvlELLO.
00

106

TJRGS, Ap. Civ. n 588016147, 5" C. Civ; Rei. Des. Ruy Rosado de AGUIARJR., j. em 3. 4. 1988.
TJRGS, Ap. Civ. n" 70001123561, 2" C. Civ., j. 28.06.2000, Rei. Des Maria Isabel de AZEVEDO SOUSA.

372

J udith

Martins~Costa

utilizado, outra figura, a surrectio aponta ao nascimento de um direito como efeito, no


tempo, da confiana legitimamente despertada na contraparte por determinada ao ou
comportamento. Assim ocorreu ao examinar-se lide decorrente de contrato de locao 107 que
previa a resilio unilateral, mediante prvio aviso de sessenta (60) dias contra parte, por carta

protocolada que expressasse o poder extintivo da denncia contratual, contemplando,


outrossim, a possibilidade de renovao do contrato, desde que, por meio de carta
protocolada, a parte interessada assim expressasse vontade com antecedncia mnima de
sessenta (60) dias. Por um perodo superior a doze (12) anos, as partes vinham prorrogando
a avena, sempre mediante o recurso formalidade do envio de cartas. Em certa ocasio,
contudo, em resposta ao pedido de prorrogao, feita pelo locatrio, respondeu a locadora
que no pretendia renov-lo. O debate centrou-se na argumentao, do lado locatrio, do
"direito autornaticidade" da prorrogao, de outro, por parte da locadora, da legitimidade
de sua pretenso a resilir a avena.
A deciso, embora considerando caber razo locadora, no sentido da inocorrncia
de uma "automaticidade" da prorrogao contratual, uma vez terem as partes sempre
observado o requisito da forma contratualmente prevista, entendeu, porm, obstado o
poder formativo extintivo de resilio (denncia contratual), apontando, consequentemente,
ao nascimento do direito prorrogao pelo fato de, no perodo imediatamente anterior ao
dies ad quem do prazo contratual, ter a locadora imposto, ao locatrio, a realizao de
despesas com reformas no prdio, levando-o a acredar que no romperia, inopinadamente,
uma tradio de doze (12) anos no sentido da continuidade da relao contratual. Nos
fundamentos do acrdo est o princpio da boa-f objetiva, como proteo confiana
traida.

Estes exemplos so suficientes, no meu entender, para demonstrar como vem a


jurisprudncia brasileira construindo a normatividade do princpio da boa-f objetiva como
norma rei tora da proteo da confiana, da colaborao c da considerao com os interesses
alheios que presidem a relao obrigacional. Neste modelo em plena construo necessrio,
no entanto, atentar para trs pontos importantes.
O primeiro est em que o princpio da boa~f objetiva a via para a concretizao, no
domnio das relaes obrigacionais, notadamente as contratuais, dos deveres que defluem
da diretriz constitucional da solidariedade sodaP 08 A doutrina e jurisprudncia italianas
tm, neste aspecto, uma lio a ensinar, na medida em reconduzem os deveres de agir

mTJRGS, IM n 197280175, 1' C. Cv, j. !9.8.98, Rei. Des. Irineu MARIANI.


r;
Escrevi sobre o tema in" M.ercado e solidariedade social entre cosmos e taxis: a boa-f nas relaes de
consumo", ensaio integrante de "A Reconstruo do Direito Privado- reflexos dos princpios, diretrizes
e garantias constitucionais no Direito Privado', no prelo.
1 8

A Boa-F como Modelo

373

segundo a boa~f no perodo contratual e pr~contratual diretriz constitucional da


solidariedade sodal109 , reconhecendo que esta, por sua hierarquia constitucional, "qualifica

o complexo das atividades juridicamente relevantes dos sujeitos, a compreendidas as prnegociais"1w, constituindo a boa-f "um aspecto do princpio geral (que) exprime a
necessidade de um esprito de colaborao recproco entre os contraentes e em condies de
paridade, em Juno da realizao da pessoa humana e de seu pleno e igual
desenvolvimento"111
Com efeito, constituindo "norma-princpio" 112 , mais propriamente um modelo, a
boa-f objetiva em sua concreta atuao opera articuladamente com outros princpios e com
outras regras. No substrato desta tcnica combinatria est a considerao das transformaes
que sofre a ordem econmica em razo da chamada "globalizao" e que utiliza as normas
vagas, em combinao com normas imperativas, juntamente com outros procedimentos,
tais como novas formas de articulao negociai, para minimizar os riscos das fissuras
econmico-sociais, tendendo a assegurar, como assinala Jos Eduardo Faria, "um equilbrio
substantivo" entre os partcipes das relaes econmico-sociais e criando, na medida do
possvel, "as condies para a consecuo de padres bsicos de solidariedade e cooperao "113
O segundo trao a assinalar diz com a responsabilidade da doutrina ao apontar os
modelos hermenuticas que auxiliaro o juiz, e mesmo ao legislador, na elaborao dos
modelos jurdicos. Vivemos em um tempo que tem pressa, mas a atividade doutrinria no
pode prescindir da reflexo, do tempo de maturao das idias e das novas concepes,
equilibrando-se na tenso entre o apontar de novos caminhos, constitutivo da sua misso
antecipante de novas solues, e a necessidade de ponderao, a cada dia mais dificultosa e

IO'J Neste sentido PIGNATARO, Giseh, "Buona fede oggettiva e rapporto precontrattuale: gli ordinamenti
italiano e franccse, Salemo, l_~",dizioni Scicmifiche Italiane, 1999, p. 47, e MONATERI, Pier Giuseppe, La
Rcsponsabilit Contrattualc e Prccontrattualc, Turim, UTET, 1998, p. 377 e ss, com indicao da
jurisprudncia.,
1
w PIGNATARO, Gisela, "Buona Fede oggettiva c rapporto precontrattuale, cit, p. 48, traduzi.
111
PlGNAT1\RO, Gisela, "Buona fede oggettiva e rapporto precontrattuale, cit, p. 48, traduzi.
112
Utilho aqui as lies de ALEXY, Robert, "Teoria de Los Derechos Fundamenta!es", Madri, Ed.
Centro de Estudios Constitucionales, 1993, em especial pp. 81 a 93.
113
L\RIA, Jos Eduardo, "O Direito na Economia Globalizada", Tese apresentada ao concurso para
Professor Titular de Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de So Paulo,
1999, p. 304.

374

Judith Martins-Costa

necessria porque, como disse Hannah Arendt 114 , a irreflexo, ''a imprudncia temerria ou
a irremedivel confuso ou a repetio complacente de 'verdades" que se tornaram triviais
e vazias parece ser uma das principais caractersticas do nosso tempo".
O terceiro trao, por fim, diz com a misso da jurisprudncia. Se o Direito no um
'dado" que o jurista recebe, " uma tarefa que o concita a um ingente esforo e a uma
profunda responsabilidadel 15 ", devemos considerar que o princpio da boa-f objetiva,
justamente por configurar norma vaga, semanticamente aberta, carreia, para o juiz,
um extraordinrio acrscimo de sua responsabilidade. No pode nem recair no crasso
decisionismo, nem no voluntarismo, tanto primrio quanto perigoso aos valores da
Democracia.
Se bem verdade que o princpio enseja uma tarefa de reconstruo dogmtica do
Direito obrigacional, tambm verdadeiro que esta no absolutamente uma tarefa arbitrria.
A invocao da boa-f contratual est "contida nos limites da realidade do contrato, sua

tipicidade, estrutura e funcionalidade, com aplicao dos princpios admitidos pelo


sistema" 116 Toda e qualquer reconstruo dogmtica est, em primeiro lugar, atada aos
valores e diretivas do ordenamento, os quais exigem do juiz no apenas ato de vontade, mas,
fundamentalmente, ato de conhecimento e de responsabilidade, razo pela qual a exigncia
constitucional da motivao da sentena deve ser acrescida pela mais completa explicitao
dos elementos de fato e de direito que ensejaram, na hiptese examinanda, a invocao da
boa-f. Em segundo lugar depende do donnio tcnico do magistrado acerca dos mecanismos
-metodolgicos e dogmticos- que permitem a soluo justa nos quadros do ordenamento.
Bem sopesadas estas condicionantes, creio que, com passos s vezes hesitantes, nem
sempre adequados, mas com a coragem para enfrentar os desafios cotidianamente colocados
pela tenso entre o Direito e a realidade, a jurisprudncia brasileira comea a construir o seu
prprio modelo da boa-f objetiva.

11

ARENDT, Hannah, "A Condio Humana", 5' edio, Rlo de Janeiro, Forense Universitria, 1991, p. 13.
A expresso de CASTANHEIRA NEVES, "O Papel do Jurista no :"losso Tempo", om inDigesta, voL
1, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p. 32.
m AGUIAR JR, Ruy Rosado de, "A Boa-F nas Relaes de Consumo", Revista Direito do Consumidor
vo!. 14, So Paulo, 1995 p. 25.

11

;;

A Boa-F como Modelo

375

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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(Resoluo)", Rio de Janeiro, Ai de, 1991.
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ALMEIDA COSTA, Mario Jlio, "Romanismo e Bartolismo no Direito Pottugus", Boletim
da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XXXVI, 1960
---."Direito das Obrigaes", Almendina, Coimbra, ga edio, 2000.
ALEXY, Robert, "Teoria de Los Derechos Fundamentales ..., Madri, Centro de Estudios
Constitucionales,1993.
ARENDT, Hannah, "A Condio Humana'', Rio de Janeiro, Forense Universitria, sa edio,
1991.
BECKER, Anelise, "A doutrina do adimplemento substancial no Direito Brasileiro e em
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DECISES CITADAS
STF:
RE 158448/MG.

STJ:
Agr. Reg. no Aln 47. 901 - 3- SP;
AGA47901;
EDRESP 167691;
RESP 256274; RESP 107211; RESP 80036; RESP 32890; RESP 3714/RS; RESP
7187 /SP; RESP 85521/PR; RESP 101061/PB; RESP 157841/SP; RESP 5932/RS; RESP
158728/RJ; RESP 18.4573/SP; RESP 95535/SP.
REMS no 6183-MG.
ROMS 6183; ROMS 1694/RS;

Judith Martins-Costa

378

TJRGS
Ap. Civ. n' 598225720; Ap. Civ. n' 597019439; Ap. Civ.194.045.472; Ap. Civ. n"
596131060;Ap. Civ. n' 598037257; Ap. Civ. n 70001059641;Ap. Civ. n 70000457093, Ap.
Civ. n 70000094433 ;Ap. Civ. n.' 598209179,Ap. Civ. n 70001037597;Ap. Civ. n' 589078542;
Ap. Civ. n'597019439;Ap. Civ. n' 59907596; Ap. Civ. n' 596251181; Ap. Civ. n' 59671530;
Ap. Civ. n 596230888;Ap. Civ. n 5880591113;Ap. Civ. n 196105167;Ap. Civ. n' 588059113;
Ap. Civ. n 70000078626;Ap. Civ. n' 599443694;Ap. Civ. n' 597200237;Ap. Civ. n 598474237;
Ap. Civ. n' 588012666; Ap. Civ. n 588016147,Ap. Civ. n' 70001123561;
Agr.l. n 70000027623;Agr.l. n 70000539908; Agr.l7001005586

Em. Dec. n 196722656;


Em.!. n 598007607; Em. In' 196032114;
IM n 197280175;

za Vara da Fazenda Pblica, Comarca de Porto Alegre, Ac. Civ. Pub. no 01195487226 ..
Justia de So Paulo- Primeiro Colgio Recursal dos Juizados Especiais Cveis da
Capital- Recursos ns 7.959; 7.766; 7747 e 7.767.

GLOSSRIO

AGA- Agravo Regimental em Agravo de Instrumento.


Agr. I. -Agravo de Instrumento.
Ap. Civ.- Apelao Cvel.
C. Civ. -Cmara Cvel.

CNPq- PIBIC -Conselho Nacional de Pesquisa- Programa de Incentivo Bolsas de


Iniciao Cientfica.

Des.- Desembargador.
Em. Dec.- Embargos de Declarao.
Em. Infr. - Embargos Infringentes.
EDRESp. Embargos de Declarao em Recurso Especial.
I

-julgado.

RE- Recurso Extraordinrio.

A BoaF como Modelo

Rel- Relator.
RESP- Recurso Especial
REMS- Recurso Especial em Mandado de Segurana.
ROMS- Recurso Ordinrio em Mandado de Segurana.
RT- Revista dos Tribunais.
STF- Superior Tribunal Federal.
STJ -Superior Tribunal de Justia.
RSTJ- Revista do Superior Tribunal de Justia.
TJRGS -Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul
UFRGS- Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

379

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