Paisagem

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PAISAGEM DO PONTO DE VISTA DA ANTROPOLOGIA

Oswaldo Giovannini Junior1


Grupo Conservação Ambiental e Planejamento Espacial Marinho (CEDEPEM)

INTRODUÇÃO

As pesquisas em torno das transformações das paisagens locais, sejam elas


naturais ou antrópicas, especialmente em regiões que são unidades de conservação e que
envolvem comunidades tradicionais, carecem de uma colaboração entre diversas formas de
conhecimento, científicos (necessariamente interdisciplinares) e tradicionais. O diálogo e a
colaboração entre regimes de conhecimento diferentes são importantes para a gestão de
territórios e para ações de cunho político, social e ecológico.
Segundo Boaventura de Souza Santos, estamos vivendo uma época de
aproximação entre ciências naturais e ciências sociais, uma superação de um paradigma que
opunha dicotomicamente estas duas grandes áreas do conhecimento. Tal superação vem
acompanhada pela superação de outras dicotomias, como a de cultura e natureza, ou de sujeito
e objeto, tão afirmada historicamente no campo da sociologia e da antropologia.
A superação da dicotomia ciências naturais/ciências sociais tende assim a
revalorizar os estudos humanísticos. Mas esta revalorização não ocorrerá sem que as
humanidades sejam, elas também, profundamente transformadas (SANTOS, 2008, p. 70).
A aproximação entre as ciências naturais e antropologia, cobra desta última
reflexões no sentido de transformar certos conceitos, rever metodologias e desenvolver
investigações que levem em conta novas abordagens sobre os seres humanos e suas relações
com outros seres e fenômenos não humanos, a fim de colocá-la “a serviço de uma reflexão
global sobre o mundo”, deslocando a atenção da humanidade como centro do mundo e
colocando “a natureza como centro da pessoa” (idem, p. 71).

1 Professor Adjunto II, Universidade Federal da Paraíba. Pós Doutorado (PNPD/CAPES) pelo Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba. Doutorado em Antropologia Cultural pelo Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua principalmente nas seguintes
áreas: antropologia visual, cultura popular, patrimônio cultural, folclore, festas, festas religiosas, cultura afro
brasileira.

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Pesquisas etnográficas em torno de questões antropológicas sobre
sustentabilidade e áreas protegidas não são uma novidade. Isso porque as estratégias de
conservação da biodiversidade, assim como a formação de territórios de povos tradicionais, têm
se ampliado pelo mundo, o que leva a crer que suscitam interesse e questões de relevância
sociológica e antropológica. Segundo Cardoso, Barreto Filho e Silveira (2020), o tema foi foco
de antropólogos nos anos 1990 dando atenção especial a conflitos entre povos e comunidades
tradicionais diante de iniciativas conservacionistas que afetavam seus modos de vida, trazendo
à cena um “viés socioambiental”.
Destacamos aqui a emergência do socioambientalismo como uma dimensão
inovadora no Brasil, que decorre de um amplo conjunto de pesquisas interdisciplinares
engajadas, resultantes de redes de relações trans escalares entre acadêmicos, movimentos
sociais, organizações não governamentais e diferentes instâncias de governo (CARDOSO et al,
2020, p.13).
Os estudos mais recentes têm se debruçado, entre outras coisas, sobre como
conhecimentos de comunidades tradicionais contribuem para a conservação da biodiversidade,
da sociodiversidade e do ambiente onde estão inseridas, fazendo ver como a visão das
comunidades sobre meio ambiente e habitabilidade contribuem para a conservação da natureza
e de modos de vida sustentáveis. Tais trabalhos no Brasil têm feito cruzar os campos científicos
da antropologia, ecologia e biologia, trazendo discussões sobre as tensões em torno dos
conceitos de sustentabilidade e modos de habitar o mundo, procurando a superação da
dicotomia entre natureza e cultura (INGOLD, 2015). No centro dos debates encontramos
reflexões que procuram reformular o conceito de paisagem, enfatizando seu caráter fluido e
dinâmico na interação entre os seres.
No campo das Ciências Sociais o pensamento clássico sobre a noção de paisagem
está representado por Georg Simmel (2009). Para este autor existe uma diferença crucial entre
natureza e paisagem que deve ser levada em consideração. Enquanto a natureza é um
aglomerado de objetos em fluxo no tempo, a paisagem é um enquadramento que nós seres
humanos fazemos ao entrar em contato com o mundo tempo da natureza.
Por natureza entendemos o nexo infindo das coisas...que se expressa na
continuidade da existência espacial e temporal. Mas, para a paisagem, é justamente essencial a
demarcação... (SIMMEL, 2009 [1913], p. 5 e 6)
Penso que para Simmel a paisagem, para além da simples reunião de objetos, rios,
mares, montanhas, fauna e flora, calor, vento e chuva, envoltos a fluxos e movimentos no

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tempo, indissociáveis e ininterruptos, seria um enquadramento deste grande e ininterrupto
ambiente da natureza, uma composição elaborada pelo espírito humano. Entretanto, ressalvado
o fato das reflexões de Simmel abrir novas possibilidades de entendimento da relação entre
cultura e natureza, como fenômenos que não se opõem, por outro ainda fica a imagem de um
observador que contempla algo que lhe é exterior e por ele é arrebatado. Importa então para as
reflexões da antropologia contemporânea a superação desse distanciamento e colocar o
homem, não diante da paisagem, mas dentro dela.
Na compreensão de que habitamos um mundo ao qual não nos opomos, mas do
qual fazemos parte, penso que uma antropologia da vida seja um caminho interessante para
colocar o homem de volta à terra, de volta à vida, ou seja, como participante efetivo e
condicionado por fluxos e ritmos para além de sua existência autônoma. Como vem dizendo
Tim Ingold, vivemos em paisagens de um mundo/tempo, não em um cenário fixo no qual
atuamos e o qual exploramos ao nosso agrado e domínio, mas uma malha fluida e interativa
onde todos os seres vivos, e nós mesmos, podem experimentar vento, sol, chuva, movimentos
de maré, “e uma série de outros fenômenos relacionados com o tempo, os quais afetam
fundamentalmente todos os seus humores e motivações, seus movimentos e possibilidades de
subsistência...” (INGOLD, 2015, p. 123).
Essa existência da paisagem com um duplo, objetivamente dado por rios, mares e
manguezais, ventos, sol, chuva e marés, e também subjetivamente dado pela percepção dos
seres humanos que dela mesma fazem parte, nos remete ao entendimento em torno de uma
diversidade de percepções humanas decorrentes de processos sociais e históricos dos quais
fazem parte cada agente presente na paisagem. Tais agentes podem ser cientistas e
especialistas, moradores tradicionais, indígenas, pescadores, catadores de caranguejo ou
marisqueiros e também turistas, viajantes e novos moradores. Desta forma, nos territórios em
que atuamos, a diversidade de percepções e, consequentemente, de narrativas quanto à
paisagem e suas transformações, devem ser levadas em consideração na elaboração de
diagnósticos através de ações coletivas e colaborativas.
Propomos estudos que atentem às formulações de sentido dos grupos sociais
envolvidos, seja ele comunidade tradicional ou grupo de pesquisadores em campo, ou de
gestores de uma unidade de conservação. É preciso encontrá-los inseridos de forma
multideterminada na paisagem às quais estão agregados, no mundo-tempo ao qual pertencem
e se inserem. Uma técnica de pesca tradicional ou uma festa religiosa devotada a uma santa
padroeira, o conhecimento sobre o uso de ervas medicinais, ou os saberes em torno da

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influência da lua e os estágios da maré, são derivados de ações e ideias criadas no fluxo
contínuo da vida, dentro do qual o humano é apenas uma das partes envolvidas.
A compreensão do humano, então, se vincula à compreensão da paisagem, como
aborda Silveira e Buti (2020), caminhamos para uma etnografia sobre como se produzem, se
conservam e se transformam as paisagens nas fricções entre natureza, mangue, maré, quintais,
animais, aves, insetos, temporalidades, etc., comunidades populares, tradicionais ou não,
instituições, políticas estatais, empreendimentos privados ou públicos, mercado, turismo, etc.
Etnografias a serem produzidas em torno de itinerários, produção de espaços, sistemas de
símbolos e cosmologias, memórias, festas, rituais, trabalho e subsistência, realizados por
pessoas em suas biografias que emergem de suas narrativas e ações pelo mundo-tempo.
Seguir pessoas pelas paisagens permite revelar-nos suas ações, suas
perspectivas e ao mesmo tempo as paisagens e suas transformações, as malhas de relações
produzidas em um mundo-tempo. Transformações de curta e de longa duração, articulando o
passado pelas memórias reveladas pelas narrativas, ao presente do estado das coisas e seres
e lançando expectativas para um futuro da vida nesses locais. Tocamos aqui nos
questionamentos de Santos (2008) sobre os novos paradigmas da ciência contemporânea que
precisa buscar perspectivas descolonizadoras e apresentar as outras vozes que apontam para
muito mais além do que as nossas do cientista pesquisador.

REFERÊNCIAS
CARDOSO, Thiago Mota; ELOY, Ludivine; BARRETO FILHO, Henyo Trindade; SILVEIRA
Pedro Castelo Branco. Apresentação do Dossiê: Antropologia das Áreas Protegidas e da
Sustentabilidade. Anuário Antropológico [Online], I, 2020. Disponível:
<http://journals.openedition.org/aa/4926>, 27 janeiro 2020. Acesso em: 21 abr. 2021.
INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis,
Vozes, 2015.
Santos, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Editora Cortez,
2008 [1985/86].
SILVEIRA, P. C. B.; BUTI, R. P. A vida e a morte dos guaiamuns: antropologia nos limites dos
manguezais. Anuário Antropológico, no. I, 2020, 16 fev 2020. Disponível em: A vida e a morte
dos guaiamuns: antropologia nos limites dos manguezais (openedition.org). Acesso em: 21 abr
2021.
SIMMEL, George. Filosofia da paisagem. Colecção: Textos Clássicos de Filosofia. Covilhã,
Universidade da Beira Interior, 2009 [1913].

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