Cultura e Sociedade

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ESTUDOS

CULTURAIS E MEIO
AMBIENTE

Íris Nery do Carmo


Relação cultura-
-sociedade-natureza
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Relacionar os conceitos de cultura, sociedade e natureza.


 Explicar a contraposição da noção dicotômica de natureza e sociedade.
 Definir as redes sociotécnicas.

Introdução
O cenário contemporâneo coloca desafios urgentes, sinalizando a im-
portância de construir um aparato analítico capaz de superar e des-
construir a visão dicotômica e binária que está na base do pensamento
moderno ocidental, fornecendo uma ferramenta crítica adequada aos
imperativos atuais. Por isso, é fundamental ter contato com os recentes
debates sociológicos acerca das relações entre natureza, cultura e so-
ciedade, refletindo sobre como as três categorias podem ser articuladas
de diferentes maneiras situadas no tempo e espaço e entendendo que
o que compreendemos por “natureza” e “natural” é uma construção
sócio-histórica e cultural.
Neste capítulo, portanto, você verá contribuições da sociologia para
pensar as relações entre sociedade, natureza e cultura e que desembo-
cam na crítica ao dualismo que está na base da matriz de pensamento
moderno. Além disso, conhecerá o conceito de redes sociotécnicas, que
é fundamental a esse debate na medida em que fornece uma alternativa
epistemológica.
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1 Sociedade, natureza e cultura:


as contribuições da sociologia
Vivendo em sociedade, os seres humanos produzem sistemas classificatórios
como forma de ordenar o mundo ao seu redor e as suas experiências cotidia-
nas. Por exemplo, classificamos pessoas, seres e objetos em masculino ou
feminino, organizamos as relações de sangue em categorias de parentesco
(mãe, pai, avós, genro, netos, etc.), classificamos o cosmo e entidades a partir
de esquemas religiosos e cosmologias, entre outros.
Natureza e cultura são parte importante dos sistemas classificatórios oci-
dentais. Nosso cotidiano é povoado por frases como “É natural que os homens
sejam os provedores da família”, “É natural que existam pessoas pobres e
pessoas ricas” ou “Os seres humanos ocupam naturalmente o topo da cadeia
alimentar”, por exemplo. Nessas frases, observe como as palavras “natural” ou
“natureza” são empregadas para denotar uma suposta verdade, uma essência
humana pretensamente imutável e universal.
Por outro lado, também é comum — especialmente nos meios midiáticos —
afirmações como “A revolta da natureza”, “A vingança dos tubarões”, “O tsunami
irrefreável”, entre outras. Em comum a esses dois usos da natureza está a ideia
de algo exterior ao âmbito da razão, como uma força dotada de lógicas próprias,
guardando um princípio imutável em seu interior. Esse modo de organizar e
classificar o mundo corresponde ao que diversos estudiosos chamam de modelo
cartesiano, sobre o qual você vai aprender mais ao longo deste texto.
A contribuição da sociologia, nesse contexto, ocorre no sentido de mostrar
que natureza e cultura só fazem sentido em relação uma à outra — daí a neces-
sidade de uma abordagem relacional. Essa distinção não é algo transcendente,
mas o produto histórico da ação dos próprios seres humanos. Isto é, não se
trata de analisar tais categorias isoladamente, uma vez que o significado de
uma está sempre em relação ao da outra. Isso significa que natureza e cultura
podem ser articuladas de diferentes maneiras situadas no tempo e no espaço.
Assim, devemos lembrar que há sociedades que nem mesmo possuem palavras
para designar o que chamamos por “natureza” e o que chamamos por “cultura”,
operando em um sistema classificatório bastante diferente do nosso.
Estudos antropológicos sobre as cosmologias ameríndias têm mostrado
que essas culturas não separam a vida humana das formas de vida do mundo
animal e natural, compreendendo as relações desses outros seres com os seres
humanos como constitutivas da sua humanidade (TORNQUIST; LISBOA;
MONTYSUMA, 2010). Nesse sentido, é digno de destaque o intenso traba-
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lho realizado por Eduardo Viveiros de Castro (2011) voltado às sociedades


indígenas dos territórios latino-americanos.
Em linhas gerais, aquilo que entendemos por “natureza” é uma construção
histórica e cultural, que reflete os valores, anseios e comportamentos de uma
dada sociedade. Essa visão tem permitido que pesquisadores e estudiosos
das ciências sociais possam ter como objeto de estudo temas como o corpo,
a emoção, a sexualidade, as relações interespécies, entre outros tópicos que,
até um passado recente, eram vistos como objetos de estudo exclusivamente
das ciências naturais.

Ontologia diz respeito a um sistema de distribuição de propriedades — nós atribuímos


propriedade a esse ou aquele “existente”, seja um objeto, um animal, uma planta ou
uma pessoa; por sua vez, à organização do mundo na qual os “existentes” mantêm
certo tipo de relação é dado o nome de cosmologia (DESCOLA, 2006).

Um pouco de história
No entendimento das sociedades capitalistas modernas, a natureza é vista
como um campo ontológico exterior à cultura, um recurso a ser explorado,
civilizado e dominado para a completa realização do homem. Isso remete às
mudanças vivenciadas na Europa a partir do século XVI, com a emergência
do humanismo no bojo de profundas transformações sociais, econômicas e
politicas.
Durante os séculos XVI e XVII, a Europa assistiu a uma Revolução Cien-
tífica que significou uma profunda ruptura com os dogmas religiosos, que
tinham centralidade na vida social da Idade Média. A construção de um
conhecimento racional da natureza consolidou uma nova visão de mundo,
também conhecida como humanismo, posicionando o “homem” no centro
do conhecimento (FERRY, 2007 apud PAULILO, 2010). Cabe mencionar
também que essas transformações atingiram não só o campo científico, mas
também a produção artística, sendo especialmente marcante a obra O Homem
Vitruviano, de Leonardo da Vinci (Figura 1), que posicionou o homem como
ideal de perfeição, proporção e harmonia.
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Figura 1. O Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci, é um símbolo do an-


tropocentrismo moderno.
Fonte: O homem... (2019, documento on-line).

O filósofo, físico e matemático René Descartes (1596–1650) exerceu uma


grande influência nesse contexto. Na sua visão, a natureza é como uma má-
quina, podendo ser reduzida a números e quantidades (PAULILO, 2010). Assim,
o conceito de natureza deixa de fazer parte do âmbito da criação divina (como
obra de Deus) e passa a estar submetido a leis de funcionamento. Ou seja, o
ser humano começar a tomar uma posição exterior à natureza, de modo que
essa é transformada em objeto de sua ciência e de dominação. Essa matriz de
pensamento cartesiana — derivada de Descartes — forneceu a base da nossa
cultura ocidental moderna.
Portanto, em nossa sociedade, a relação natureza-cultura tem caráter forte-
mente hierárquico, distanciando-se de outras culturas nas quais as fronteiras
entre os dois polos são mais tênues e permeáveis (como exemplo, podemos
mencionar as cosmologias indígenas citadas anteriormente).
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2 Noções dicotômicas entre natureza


e sociedade
O pensamento de valorização hierárquica, a lógica de dominação e os dualismos
normativos são parte do que autoras como Greta Gaard (2011) denominaram
quadro ideológico da cultura ocidental. Pares como sociedade/natureza, razão/
emoção, humano/animal, masculino/feminino, mente/corpo, civilizado/primi-
tivo, sujeito/objeto, pessoa/coisa são dicotomias que povoam a nossa matriz de
pensamento. Elas refletem formas de organizar o mundo binarismos, em que
cada termo do dualismo é entendido como oposto (ao invés de complementar),
mutuamente exclusivo e é atribuída superioridade a um em detrimento do outro.
Gaard (2011), entre outros autores, defende a importância de olhar criticamente
para as conexões verticais de cada lado dos dualismos entre as categorias des-
valorizadas (natureza, emoção, feminino, animalidade etc.), pois ocorre uma
espécie de “contaminação” entre elas, o que leva à produção de desigualdades.

O filósofo e antropólogo Philippe Descola (2006) argumenta que não foi por acaso
que a segunda expansão colonial ocorreu em plena Revolução Industrial, pois o que
fazemos com a natureza é um indicador do modo pelo qual tratamos os seres humanos.
Assim, as populações colonizadas — com frequência classificadas como primitivas —
foram relegadas ao rol de recurso natural, tendo direito ao mesmo tratamento que a
matéria-prima explorada nas minas de carvão. Ou seja, o colonialismo atuou no sentido
de dominar a natureza — representada tanto nos recursos naturais quanto naqueles
povos vistos como selvagens.

Contestando a ideia de algo inerte e objeto à disposição da ação do “homem”,


a reconceitualização da natureza, não à toa, partiu de sujeitos que habitam
as categorias desvalorizadas do dualismo, como pesquisadoras mulheres e
intelectuais pertencentes a povos não ocidentais, frequentemente vistos como
primitivos ou não civilizados.
Em comum, está a proposta analítica de olhar para esses conceitos a partir de
uma complexa teia de relações envolvendo igualmente agentes humanos e não
humanos, como populações, ecossistemas, modos de produção, comunidades
e demais formas de vida.
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A virada ontológica no pensamento contemporâneo


O filósofo e antropólogo Philippe Descola (2012 apud ARMANI, 2020) cri-
tica a conduta intelectual que age como se os não humanos não estivessem
presentes em todos os lugares da vida social. O autor lembra que as interações
entre os habitantes do mundo não se limitam às instituições que guiam a vida
dos seres humanos.
Tais questionamentos têm impulsionado a chamada virada ontológica, a
qual consiste em um movimento filosófico que tem como principais autores o
próprio Descola, Eduardo Viveiros de Castro, Bruno Latour, Manuela Carneiro
da Cunha, Dawi Kopenava, Ailton Krenak, entre outros (ARMANI, 2020).
Em linhas gerais, esse movimento questiona as posições de sujeito e objeto,
abraçando a instabilidade dessas categorias e, mais ainda, desestabilizando
as posições de pesquisador/antropólogo e objeto de estudo (encapsulado na
figura do “nativo”). Essa virada tem possibilitado que grupos tradicionalmente
assinalados como nativos (caso das populações indígenas) possam desenvolver
teorias acerca das suas próprias sociedades (assim como de seus visitantes)
(SÁ JÚNIOR, 2014). Essa abordagem — à qual é também dado o nome de
antropologia simétrica — tem permitido o reconhecimento da multiplicidade
conceitual da noção de natureza.

O princípio da simetria não se confunde com o relativismo cultural. Nas palavras de


Armani (2020, documento on-line):
[...] não se trata de estabelecer a relatividade de todas as culturas ou
dos enunciados sobre determinadas realidades particulares e manter a
natureza absoluta como árbitra das diferenças (daí a crítica de Latour
ao multiculturalismo), mas de estabelecer relações entre os entes em
seus modos de ser.

“Perspectivismo ameríndio” é o nome dado pelo antropólogo Eduardo


Viveiros de Castro para caracterizar o pensamento ameríndio, com insights de
suma importância para a virada ontológica. O termo designa uma percepção
segundo a qual o mundo é formado por uma multiplicidade de pontos de vista,
dado que todos os seres existentes são centros potenciais de intencionalidade
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(VIVEIROS DE CASTRO, 2015 apud ARMANI, 2020). O perspectivismo


designa um universo povoado por diferentes tipos de agências, tanto humanas
quanto não humanas — plantas, deusas, animais, mortos, fenômenos mete-
orológicos —, as quais apreendem os demais existentes segundo diversas
perspectivas. É interessante notar que, nesse modelo de pensamento, o que há
em comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade
(VIVEIROS DE CASTRO, 2015 apud ARMANI, 2020).
A inflexão representada pela virada ontológica tem também um contorno
político de reconhecimento não só da agência dos não humanos (objetos,
animais e outros seres), mas também daqueles humanos que foram levados a
habitar as fronteiras da humanidade.

Descola (2006) viveu por três anos entre os jívaros, povos ameríndios situados entre
o Peru e o Equador. Da análise dessa vivência, nasceu o livro “Mais além da natureza e
cultura”, no qual o autor argumenta que o costume de dividir o universo entre o cultural
e o natural não se trata de uma expressão espontânea da experiência humana. Em
entrevista, Descola (2006) relata que, ao conhecer os jívaros, foi muito difícil compre-
ender o que se passava. O que para ele consistia em uma atividade produtiva — como
a pesca, a caça, a plantação —, para eles, tratava-se de uma prática de sociabilidade.
O autor nota que os jívaros mantêm relações sociais com os animais e as plantas,
tratando-as como seres personificados, isto é, pessoas.

3 As redes sociotécnicas
O conceito de redes sociotécnicas é relevante a esse debate, pois fornece
uma alternativa epistemológica ao pensamento binário examinado ante-
riormente. Tal conceito é parte de um contexto intelectual mais amplo,
denominado pós-humanismo, que pode ser entendido como uma postura
epistemológica crítica que descentra o ser humano como único sujeito da
ação social. Ao mesmo tempo, opera-se um alargamento da agência, de
modo a incluir os não humanos (objetos, animais, coisas) como parte da
teia de significação.
Nessa perspectiva, atores não humanos são reconhecidos como importantes
mediadores nas interações da vida social, em relações de interdependência.
Isso consiste em um deslocamento frente a análises que reservam ao não hu-
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mano a posição passiva de objeto à espera da significação humana. Os autores


alinhados ao pós-humanismo criticam a universalização de um ponto de vista
que se trata de uma construção eminentemente ocidental (e, portanto, parcial).

A teoria do ator-rede e as redes sociotécnicas


Bruno Latour é um intelectual francês que se dedica ao estudo das relações
entre ciência, tecnologia e sociedade. Latour inovou a sociologia da ciência ao
considerar a participação dos artefatos (atores não humanos) nas investigações
e descobertas científicas, inaugurando um campo de estudos interdisciplinar.
Nesse sentido, vê a descoberta científica não como um fato, mas como resultado
de um processo social (ARAÚJO; FROTA; CARDOSO, 2009), ao mesmo
tempo rompendo com as polarizações clássicas entre natureza e sociedade,
sujeito e objeto, centro e periferia.
Actor-network theory (ANT), ou teoria do ator-rede, em português, é um
método utilizado por Latour, sendo relevante para a compreensão do conceito
de redes sociotécnicas. A ANT sugere que a sociedade, suas organizações e
seus agentes são produzidos de forma interconectada por certos padrões e
diferentes materialidades (humanas e não humanas) (LAW, 1992; ARAÚJO;
FROTA; CARDOSO, 2009). Seguindo esse raciocínio, uma rede é formada por
elementos animados e inanimados, interconectados e agenciados (ARAÚJO;
FROTA; CARDOSO, 2009).
Ator ou “actante” é uma categoria fundamental para essa teoria, designando
“qualquer entidade, elemento, coisa, pessoa ou instituição que age sobre o mundo
e sobre si, sendo capaz de ser representada” (ARAÚJO; FROTA; CARDOSO,
2009, p. 138). É interessante sublinhar que o termo “actante” expressa a busca por
não restringir a agência como uma propriedade exclusiva dos elementos humanos.
A noção de rede sociotécnica foi elaborada por Latour tendo como base a
perspectiva fornecida pela teoria do ator-rede e avançou no sentido de lidar
com a proliferação dos híbridos, isto é, com a instabilidade das fronteiras que
definem os actantes (LAW, 1992; ARAÚJO; FROTA; CARDOSO, 2009).
Como colocado pelo próprio autor:

[...] nós mesmos somos híbridos, instalados precariamente no interior das


instituições científicas, meio engenheiros, meio filósofos, um terço instruídos
sem que o desejássemos; optamos por descrever as tramas onde quer que
estas nos levem. Nosso meio de transporte é a noção de rede. Mais flexível
que a noção de sistema, mais histórica que a de estrutura, mais empí rica
que a complexidade, a rede é o fio de Ariadne destas histórias confusas
(LATOUR, 1994, p. 9).
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Os híbridos denotam associações complexas de agentes humanos e não humanos


que não podem ser considerados exclusivamente sociais, nem exclusivamente naturais
(CASTRO; OLIVEIRA, 2018).

Trata-se de um conceito que desafia a noção tradicional de rede, entendida como


uma malha de fios entrelaçados e pontos fixos que se cruzam, estando mais próximo
dos sentidos de fluxo, movimentação, circulação, alianças tecidas na ação de actantes
em associação, sejam eles humanos (cientistas, economistas, ambientalistas, juristas,
etc.) ou não humanos (computadores, bactérias, animais, leis, dinheiro, etc.). Para
Latour, as redes são sempre provisórias e contingentes (LATOUR, 2012; CASTRO;
OLIVEIRA, 2018). Na visão crítica do autor, o paradigma de interpretação oferecido
pela modernidade falha em dar conta dessas redes sociotécnicas.
O conceito de rede tal como exposto nos lembra que, ao lidar com um
fenômeno tido como “natural”, encontraremos elos com o humano e, ao abordar
um fenômeno aludido como “social”, esbarraremos com vínculos profundos
com o não humano (LATOUR, 2012; CASTRO; OLIVEIRA, 2018). Tratam-
-se, portanto, de elementos indissociáveis e interdependentes. Assim, Latour
coloca em xeque a crença de que é possível realizar a dissociação entre o âmbito
natural, das coisas inatas, e o âmbito social e político, da ação humana. São
separações que não se efetivam na prática, tratando-se de uma ficção ocidental.
Na visão do filósofo, a abordagem moderna opera um “salto mortal” entre
homens e natureza, ignorando o “meio do caminho”. Isso faz com que as
questões ambientais nos sejam apresentadas como produtos finais, de modo
que sabemos pouco ou nada acerca das relações entre os actantes que as
constituem (CASTRO; OLIVEIRA, 2018).

A título de ilustração, Latour (2011 apud CASTRO; OLIVEIRA, 2018) aborda um ato do
cotidiano que provavelmente você também já executou: a troca de uma lâmpada
incandescente por uma fluorescente. Ele lembra que, nesse momento, não existe
um caminho que conecte o ato de trocar a lâmpada da sua casa ao destino da Terra.
Trata-se, na metáfora do autor, de uma “escada sem degraus”.
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Gaia e a natureza
Nas suas obras e palestras mais recentes, Bruno Latour tem usado a figura de
“Gaia” para fazer avançar a sua crítica à cosmopolítica ocidental, bem como
para problematizar a noção de natureza como um bloco homogêneo (CAS-
TRO; OLIVEIRA, 2018). A figura de Gaia é evocada pelo autor como “[...]
uma metáfora para os processos de uma Terra que está viva”, isto é, “[...] uma
forma de reabrir a noção de Natureza e redistribuir o que tinha sido embalado
dentro desse conceito” (CASTRO; OLIVEIRA, 2018, p. 354).
Nesse sentido, Gaia está em contraposição à noção segundo a qual a Terra
seria um espaço inerte — ela é uma multiplicidade que escapa à natureza e,
portanto, não pode ser nela encerrada. Se a natureza, para os modernos, consiste
em uma espécie de pano de fundo homogêneo e inanimado, Gaia, por outro
lado, denota um mundo animado composto por múltiplas entidades e que reage
às nossas ações de modo nem sempre previsível (CASTRO; OLIVEIRA, 2018).

O uso de Gaia como metáfora provém de uma releitura da teoria do químico inglês
James Lovelock. Na década de 1970, em parceria com a bióloga estadunidense Lynn
Margulis, Lovelock elaborou a tese inovadora de que a biosfera e os componentes
físicos da Terra (como a atmosfera, hidrosfera, litosfera, criosfera) interagem entre si,
buscando meios de autorregulação (CASTRO; OLIVEIRA, 2018).

Gaia compreende ondas de ação que não reconhecem fronteiras entre ho-
mem e natureza, sociedade e indivíduo. Sob tal perspectiva, o agente é como
“[...] um vizinho que manipula ativamente seus vizinhos e é manipulado por
todos os outros” (CASTRO; OLIVEIRA, 2018, p. 356).
Para ilustrar essa ideia, os autores mencionam o caso da poluição dos oce-
anos por plástico. O descarte de canudos plásticos descartáveis em direção aos
oceanos (Figura 2) produz ondas de ação não intencionais, isto é, estabelece
inúmeras relações recíprocas e retroativas: ao encontrar o oceano, os canudos
de plástico degradam-se lentamente, ao passo que os peixes confundem tais
resíduos — compostos por componentes químicos tóxicos — com outros
organismos e terminam ingerindo-os. Esses animais, por sua vez, também
nos servem de alimento (carregando os componentes plásticos).
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Figura 2. O caso do descarte de canudos ilustra a teia de constituição mútua e


interrelações entre agentes humanos e não humanos.
Fonte: Campos (2019, documento on-line).

O exemplo ilustra uma teia complexa de interações (e constituições


mútuas) entre organismos vivos e elementos inorgânicos. Aquilo que cos-
tumava ser nomeado como “ambiente” — sobre o qual se desenrolava a
ação, como um pano de fundo —, na proposta aqui exposta, passa a ser
considerado como um amálgama de forças, ações, entidades e elementos
fluindo em rede. Como consequência, é dissolvida a distinção entre um ente
e o seu ambiente. Em síntese, com Gaia, não há dentro, nem fora (CASTRO;
OLIVEIRA, 2018).
Por fim, é importante pontuar que a atual crise ecológica é produto da
perspectiva moderna aqui problematizada. É urgente a busca por uma nova
sensibilidade, uma alternativa capaz de (re)traçar as conexões entre os agentes
e o coletivo (CASTRO; OLIVEIRA, 2018).
Ao longo deste capítulo, você viu que, nas ciências sociais contemporâneas,
diversos termos, conceitos e modelos analíticos têm sido criados a fim de
lançar luz sobre a complexa teia de relações que envolve os agentes humanos
e não humanos, isto é, as populações, os ecossistemas, os modos de produção,
comunidades e as diversas formas de vida na Terra.
A título de conclusão, cabe retomar o argumento central aqui desenvol-
vido: a dissociação entre natureza e cultura é uma ficção ocidental moderna,
produzida em um determinado período histórico (século XVI e XVII), e que
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hoje está sendo contestada. Essa reflexão indica como a crise ambiental que
vivemos é também uma crise social e econômica: não só os ecossistemas estão
sendo ameaçados, mas também diversas populações vulneráveis.

ARAÚJO, R. F.; FROTA, M. G. C.; CARDOSO, A. M. P. Práticas, inscrições e redes sociotécnicas:


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Leituras recomendadas
DESCOLA, P. Más allá de naturaleza y cultura. Buenos Aires: Amorrortu, 2012.
FAUSTO-STERLING, A. Dualismos em duelo. Cadernos Pagu, n. 17-18, 2002. Disponível
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FERRY, L. Aprender a viver: filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
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