Cultura e Sociedade
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Cultura e Sociedade
CULTURAIS E MEIO
AMBIENTE
Introdução
O cenário contemporâneo coloca desafios urgentes, sinalizando a im-
portância de construir um aparato analítico capaz de superar e des-
construir a visão dicotômica e binária que está na base do pensamento
moderno ocidental, fornecendo uma ferramenta crítica adequada aos
imperativos atuais. Por isso, é fundamental ter contato com os recentes
debates sociológicos acerca das relações entre natureza, cultura e so-
ciedade, refletindo sobre como as três categorias podem ser articuladas
de diferentes maneiras situadas no tempo e espaço e entendendo que
o que compreendemos por “natureza” e “natural” é uma construção
sócio-histórica e cultural.
Neste capítulo, portanto, você verá contribuições da sociologia para
pensar as relações entre sociedade, natureza e cultura e que desembo-
cam na crítica ao dualismo que está na base da matriz de pensamento
moderno. Além disso, conhecerá o conceito de redes sociotécnicas, que
é fundamental a esse debate na medida em que fornece uma alternativa
epistemológica.
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Um pouco de história
No entendimento das sociedades capitalistas modernas, a natureza é vista
como um campo ontológico exterior à cultura, um recurso a ser explorado,
civilizado e dominado para a completa realização do homem. Isso remete às
mudanças vivenciadas na Europa a partir do século XVI, com a emergência
do humanismo no bojo de profundas transformações sociais, econômicas e
politicas.
Durante os séculos XVI e XVII, a Europa assistiu a uma Revolução Cien-
tífica que significou uma profunda ruptura com os dogmas religiosos, que
tinham centralidade na vida social da Idade Média. A construção de um
conhecimento racional da natureza consolidou uma nova visão de mundo,
também conhecida como humanismo, posicionando o “homem” no centro
do conhecimento (FERRY, 2007 apud PAULILO, 2010). Cabe mencionar
também que essas transformações atingiram não só o campo científico, mas
também a produção artística, sendo especialmente marcante a obra O Homem
Vitruviano, de Leonardo da Vinci (Figura 1), que posicionou o homem como
ideal de perfeição, proporção e harmonia.
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O filósofo e antropólogo Philippe Descola (2006) argumenta que não foi por acaso
que a segunda expansão colonial ocorreu em plena Revolução Industrial, pois o que
fazemos com a natureza é um indicador do modo pelo qual tratamos os seres humanos.
Assim, as populações colonizadas — com frequência classificadas como primitivas —
foram relegadas ao rol de recurso natural, tendo direito ao mesmo tratamento que a
matéria-prima explorada nas minas de carvão. Ou seja, o colonialismo atuou no sentido
de dominar a natureza — representada tanto nos recursos naturais quanto naqueles
povos vistos como selvagens.
Descola (2006) viveu por três anos entre os jívaros, povos ameríndios situados entre
o Peru e o Equador. Da análise dessa vivência, nasceu o livro “Mais além da natureza e
cultura”, no qual o autor argumenta que o costume de dividir o universo entre o cultural
e o natural não se trata de uma expressão espontânea da experiência humana. Em
entrevista, Descola (2006) relata que, ao conhecer os jívaros, foi muito difícil compre-
ender o que se passava. O que para ele consistia em uma atividade produtiva — como
a pesca, a caça, a plantação —, para eles, tratava-se de uma prática de sociabilidade.
O autor nota que os jívaros mantêm relações sociais com os animais e as plantas,
tratando-as como seres personificados, isto é, pessoas.
3 As redes sociotécnicas
O conceito de redes sociotécnicas é relevante a esse debate, pois fornece
uma alternativa epistemológica ao pensamento binário examinado ante-
riormente. Tal conceito é parte de um contexto intelectual mais amplo,
denominado pós-humanismo, que pode ser entendido como uma postura
epistemológica crítica que descentra o ser humano como único sujeito da
ação social. Ao mesmo tempo, opera-se um alargamento da agência, de
modo a incluir os não humanos (objetos, animais, coisas) como parte da
teia de significação.
Nessa perspectiva, atores não humanos são reconhecidos como importantes
mediadores nas interações da vida social, em relações de interdependência.
Isso consiste em um deslocamento frente a análises que reservam ao não hu-
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A título de ilustração, Latour (2011 apud CASTRO; OLIVEIRA, 2018) aborda um ato do
cotidiano que provavelmente você também já executou: a troca de uma lâmpada
incandescente por uma fluorescente. Ele lembra que, nesse momento, não existe
um caminho que conecte o ato de trocar a lâmpada da sua casa ao destino da Terra.
Trata-se, na metáfora do autor, de uma “escada sem degraus”.
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Gaia e a natureza
Nas suas obras e palestras mais recentes, Bruno Latour tem usado a figura de
“Gaia” para fazer avançar a sua crítica à cosmopolítica ocidental, bem como
para problematizar a noção de natureza como um bloco homogêneo (CAS-
TRO; OLIVEIRA, 2018). A figura de Gaia é evocada pelo autor como “[...]
uma metáfora para os processos de uma Terra que está viva”, isto é, “[...] uma
forma de reabrir a noção de Natureza e redistribuir o que tinha sido embalado
dentro desse conceito” (CASTRO; OLIVEIRA, 2018, p. 354).
Nesse sentido, Gaia está em contraposição à noção segundo a qual a Terra
seria um espaço inerte — ela é uma multiplicidade que escapa à natureza e,
portanto, não pode ser nela encerrada. Se a natureza, para os modernos, consiste
em uma espécie de pano de fundo homogêneo e inanimado, Gaia, por outro
lado, denota um mundo animado composto por múltiplas entidades e que reage
às nossas ações de modo nem sempre previsível (CASTRO; OLIVEIRA, 2018).
O uso de Gaia como metáfora provém de uma releitura da teoria do químico inglês
James Lovelock. Na década de 1970, em parceria com a bióloga estadunidense Lynn
Margulis, Lovelock elaborou a tese inovadora de que a biosfera e os componentes
físicos da Terra (como a atmosfera, hidrosfera, litosfera, criosfera) interagem entre si,
buscando meios de autorregulação (CASTRO; OLIVEIRA, 2018).
Gaia compreende ondas de ação que não reconhecem fronteiras entre ho-
mem e natureza, sociedade e indivíduo. Sob tal perspectiva, o agente é como
“[...] um vizinho que manipula ativamente seus vizinhos e é manipulado por
todos os outros” (CASTRO; OLIVEIRA, 2018, p. 356).
Para ilustrar essa ideia, os autores mencionam o caso da poluição dos oce-
anos por plástico. O descarte de canudos plásticos descartáveis em direção aos
oceanos (Figura 2) produz ondas de ação não intencionais, isto é, estabelece
inúmeras relações recíprocas e retroativas: ao encontrar o oceano, os canudos
de plástico degradam-se lentamente, ao passo que os peixes confundem tais
resíduos — compostos por componentes químicos tóxicos — com outros
organismos e terminam ingerindo-os. Esses animais, por sua vez, também
nos servem de alimento (carregando os componentes plásticos).
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hoje está sendo contestada. Essa reflexão indica como a crise ambiental que
vivemos é também uma crise social e econômica: não só os ecossistemas estão
sendo ameaçados, mas também diversas populações vulneráveis.
Leituras recomendadas
DESCOLA, P. Más allá de naturaleza y cultura. Buenos Aires: Amorrortu, 2012.
FAUSTO-STERLING, A. Dualismos em duelo. Cadernos Pagu, n. 17-18, 2002. Disponível
em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-83332002000100002&script=sci_
abstract&tlng=pt. Acesso em: 13 jul. 2020.
FERRY, L. Aprender a viver: filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
HARAWAY, D. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do
século XX. In: TADEU, T. (org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano.
Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
LATOUR, B. Facing Gaia: six lectures on the political theology of nature. In: GIFFORD
Lectures. Edinburgh: University of Edinburgh, 2013. Disponível em: https://www.gifford-
lectures.org/lectures/facing-gaia-new-enquiry-natural-religion. Acesso em: 13 jul. 2020.
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