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Economia dos setores populares: entre a realidade e a utopia

Gabriel Kraychete∗
A proposta de realização deste seminário resultou da confluência de duas constatações e uma
indagação. A primeira constatação refere-se às transformações ocorridas na estrutura do mercado
de trabalho nas duas últimas décadas, com o aumento do desemprego, a diminuição do número de
trabalhadores assalariados e o crescimento do número de trabalhadores por conta própria.

Uma segunda constatação, decorrente da anterior, é o reconhecimento de que a reprodução da


vida de parcelas crescentes da população passou a depender, em maior escala, de atividades
assentadas no trabalho realizado de forma individual, familiar ou associativa. Pode-se afirmar
que essas atividades, em seu conjunto, sustentam uma economia dos setores populares,
envolvendo, mesmo que de modo disperso e fragmentado, um extenso fluxo de produtos,
serviços e modalidades diversas de trocas e mercados. Convém observar que, face à existência
de diferentes denominações - economia popular, economia popular e solidária, sócioeconomia
solidária - convencionamos designar por economia dos setores populares as atividades que,
diferentemente da empresa capitalista, possuem uma racionalidade econômica ancorada na
geração de recursos (monetários ou não) destinados à prover e repor os meios de vida, e na
utilização de recursos humanos próprios, agregando, portanto, unidades de trabalho e não de
inversão de capital. No âmbito dessa economia dos setores populares convivem, além das
atividades realizadas de forma individual ou familiar, as diferentes modalidades de trabalho
associativo, formalizadas ou não, a exemplo das cooperativas, empreendimentos
autogestionários, oficinas de produção associada, centrais de comercialização de agricultores
familiares, associações de artesãos, escolas e projetos de educação e formação de trabalhadores,
organizações de micro-crédito, fundos rotativos, etc. Esta designação, portanto, pretende
expressar um conjunto de atividades heterogêneas, sem idealizar, a priori, os diferentes valores e
práticas que lhes são concernentes.

Das constatações anteriores, fluem as seguintes indagações: quais as expectativas que se


vislumbram para essa economia dos setores populares face à lógica central do capitalismo hoje?
Seria possível não apenas potencializar essa economia dos setores populares, mas, também


Professor titular da Universidade Católica do Salvador.
2

expandir e desenvolver as relações assentadas em valores éticos de solidariedade, cooperação e


justiça? Ou estes setores estariam, inapelavelmente, condenados a viver nas franjas do sistema?

A necessidade desta reflexão emana da prática das entidades promotoras deste seminário e de
outras instituições que, a partir das suas singularidades, possuem uma presença junto às
organizações econômicas populares, seja através da assessoria direta e de publicações sobre
administração popular, seja através da viabilização do crédito ou da destinação de recursos
econômicos orientados para projetos associativos e solidários, seja através de projetos de
pesquisa e extensão, etc.

A realização deste seminário dá seguimento a outros encontros,1 almejando, neste passo, transpor
o momento da troca de experiências e projetar, entre a realidade e a utopia, a reflexão sobre os
limites, as fragilidades, as potencialidades, os impasses e os desafios que permeiam essa
economia dos setores populares, "nestes tempos de globalização".

Neste texto, originalmente preparado como uma introdução ao tema do seminário, busco expor as
reflexões e indagações que inspiraram a proposta de realização deste evento.2 Após sumariar as
transformações ocorridas no mercado de trabalho,3 apresento algumas concepções e expectativas
em relação ao denominado setor informal e, recorrendo às informações contidas na pesquisa
sobre a “Economia informal urbana” - recentemente divulgada pelo IBGE -, apresento algumas
características do trabalho realizado por conta própria. Em seguida, sinalizo para uma forma de
percepção da economia dos setores populares, recorrendo às idéias pouco convencionais do
historiador francês Fernand Braudel sobre economia de mercado e capitalismo. Por fim, recoloco
as questões que constituem o substrato dos objetivos propostos para este seminário.

1. As tendências estruturais do mercado de trabalho

Crescimento do desemprego

1
Em meados de 1997, a CESE e o CEADe promoveram uma Consulta intitulada Economia popular: viabilidade e
alternativas, com o objetivo de recolher subsídios para análise e acompanhamento de projetos produtivos e
compartilhar experiências e proposições existentes sobre o tema. Naquela oportunidade, com a participação de cerca
de sessenta representantes de organizações dos movimentos sociais rurais e urbanos, foram debatidos temas
vinculados à viabilidade econômica, questões associativas, crédito e aspectos legais concernentes à economia dos
setores populares.
2
Este texto tem por referência os debates efetuados no âmbito da equipe da CAPINA , do Programa sobre Economia
Popular desenvolvido pela UCSal e as discussões realizadas em diferentes encontros promovidos pela CESE e pelo
CEADe.
3
A análise e os dados sobre a estrutura do mercado de trabalho foram retirados de Pochmann, Marcio. O Trabalho
sob fogo cruzado. São Paulo, Contexto, 1999.
3

Nos anos 1990, segundo dados do IBGE, todas as regiões brasileiras apresentaram taxas de
desemprego que são, no mínimo, o dobro das verificadas no final da década de 1980.4 Em 1999,
segundo a Fundação Seade e o Dieese, as taxas de desemprego correspondem a cerca de 20% da
População Economicamente Ativa (PEA) nas regiões metropolitanas. Nos primeiros meses de
1999, a taxa de desemprego na região metropolitana de São Paulo atingiu cerca de 20% da PEA,
correspondendo a quase 1,8 milhão de pessoas desempregadas. Isto eqüivale a um contingente de
desempregados, em São Paulo, superior à população de uma cidade como Recife! Em termos
relativos, a região metropolitana de Salvador apresenta o maior índice de desemprego (mais de
26% da PEA), correspondendo a cerca de 400 mil desempregados.

Na década de 90, mais do que duplica o tempo médio em que um trabalhador desempregado
demora para encontrar um emprego. Em 1990, na Região Metropolitana de São Paulo, quando a
taxa de desemprego era de 9,3%, o tempo de procura era de 15 semanas. Em abril de 1999, este
tempo aumentou para 42 semanas, conforme dados da mesma pesquisa Dieese/Seade.

Considerando que o Brasil apresenta um crescimento demográfico de 1,4% ao ano e que a PEA
cresce à taxa de 2,7%, o país precisaria criar 1,5 milhão de novos empregos por ano, o que
suporia um crescimento continuado do PIB a uma taxa de 7%, apenas para absorver a nova
população que ingressa no mercado de trabalho a cada ano. Mas, com a queda do PIB prevista
para 1999, ao invés de criação de empregos devem ser fechados novos postos de trabalho.

O crescimento do desemprego foi acompanhado por uma modificação na composição da


estrutura ocupacional, com uma diminuição gradativa, desde os anos 80, da mão-de-obra
empregada na indústria e no setor primário, e um aumento do terciário, que cresce deteriorando-
se, absorvendo ocupações instáveis e mal remuneradas.

Nos anos 1990, a região Sudeste – principal pólo industrial do país -, apresentou um decréscimo
de quase 10% nas ocupações industriais, sem que isso fosse compensado pelo aumento da
ocupação na indústria localizada em outras regiões do país. Nestes termos, em 1995, o setor
secundário no Brasil englobava um contingente de trabalhadores não muito superior ao que

4
No Brasil o número de desempregados difere conforme a metodologia da pesquisa. O IBGE considera como
empregado qualquer pessoa que fez algum tipo de trabalho na semana anterior à pesquisa. O índice de desemprego
apurado pelo Dieese/Seade considera o desemprego oculto pela trabalho precário (aqueles que procuram trabalho
mas exercem precariamente alguma atividade) e o desemprego oculto pelo desalento (aqueles que gostariam de estar
trabalhando, procuraram trabalho no último ano, mas não o fizeram nos últimos 30 dias).
4

possuía no início da década de 1970. Atualmente, de cada dez ocupações existentes, seis são de
responsabilidade do setor terciário, duas do setor secundário e duas do primário.

Desassalariamento

Entre as décadas de 1940 e 1980, o mercado de trabalho no Brasil estruturou-se através da


ampliação dos empregos assalariados, principalmente dos assalariados com carteira assinada,
havendo uma redução dos trabalhadores por conta própria e do desemprego. Para cada 10 postos
de trabalho abertos naquele período, oito eram assalariados (sendo 7 com registro e 1 sem
registro) e 2 não assalariados. O emprego assalariado aumentou a sua participação na PEA de
42%, em 1940, para 62,8%, em 1980.

A partir de 1980, essa tendência de estruturação do mercado de trabalho, em torno do emprego


assalariado, sobretudo dos empregos assalariados com registro formal, foi interrompida.
Entrecortada por um curto período de crescimento econômico (1984/86), a década de 1980 foi
marcada pela recessão (1981/83 e 1987/89) e por elevados índices de inflação.

Os sucessivos ajustes macroeconômicos, voltados para o controle da inflação e das contas


externas, repercutiram sobre o mercado de trabalho, interrompendo a tendência anterior. Na
década de 1980, diminui o ritmo de crescimento dos empregos assalariados, aumenta o número
de trabalhadores sem contrato de trabalho e dos trabalhadores por conta própria. Entre 1980 e
1991, o emprego assalariado total apresentou uma taxa média de crescimento anual semelhante à
variação da PEA (2,8%). Mas o emprego assalariado sofreu uma alteração significativa na sua
composição, ou seja, houve um grande aumento do número dos assalariados sem registro em
carteira. De cada cem empregos assalariados gerados neste período, cerca de 99 foram sem
registro e apenas um com registro.

Na década de 1990, torna-se mais nítido o fenômeno do desassalariamento, influenciado,


principalmente, pela redução dos empregos assalariados com registro. Em 1989, o total de
assalariados representava 64% da PEA. Em 1995, este percentual diminuiu para 58%. Entre 1994
e 1999, embora a economia tenha apresentado evolução positiva do Produto Interno Bruto - ainda
que a taxas pouco expressivas -, o volume de emprego assalariado com carteira em todo o país foi
reduzido em 1,5 milhão.
5

Ampliação dos trabalhadores por conta própria

Nos anos 1990, observa-se uma forte ampliação das ocupações por conta própria. Neste período,
para cada 10 ocupações geradas, apenas duas foram assalariadas, sendo quase cinco por conta
própria e três de ocupações sem remuneração. Entre 1986 e 1998, nas Regiões Metropolitanas, o
emprego assalariado com carteira teve uma redução de 4% e o número de trabalhadores por conta
própria aumentou em 61%.

Variação % do emprego por posição na ocupação


Regiões Metropolitanas - 1986/1998

70
61
60
50
Assalariados com
40 35 carteira
Assalariados sem
30 carteira
20 Conta própria

10
0
-10 -4

Fonte: IBGE. Agregação das Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Porto Alegre,
Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Dados extraídos de Dupas, Gilberto.
Economia Global e Exclusão Social. Paz e Terra, São Paulo, 1999.

Verifica-se, portanto, um crescimento das ocupações denominadas de informais, como um


resultado do aumento do desemprego, do processo de desassalariamento, do crescimento dos
trabalhadores sem registro e das ocupações por conta própria. Estes fatos, somados ao aumento
do tempo médio em que o trabalhador permanece desempregado, empurram parcelas cada vez
maiores da população para formas alternativas de ocupações, colocando novos problemas a um
mercado de trabalho historicamente desigual e excludente.

Às pessoas que sempre viveram de trabalhos informais, sobretudo através das ocupações por
conta própria, soma-se um novo contingente, composto pelos trabalhadores expulsos do emprego
regular e pelas pessoas que ingressam no mercado de trabalho a cada ano.
6

Num país como o Brasil, que nunca conheceu os índices de assalariamento das economias
capitalistas centrais (superiores a 90%) nem, tampouco, experimentou nada semelhante à rede de
proteção social típica ao Welfare State europeu 5, a acomodação destas novas tendências do
mercado de trabalho pode se traduzir em vereditos intoleráveis, consagrando uma situação de
total desamparo social para os trabalhadores que transitam para o informal.

Quando os trabalhadores perdem seus empregos regulares e mergulham na informalidade do


trabalho por conta própria, experimentam uma diminuição da sua renda média, somada a uma
grande insegurança em relação ao futuro e a sua proteção social. Tudo passa a depender do
próprio indivíduo, que deve criar e manter o seu próprio trabalho. Como não contribuem para a
Previdência Social, os trabalhadores por conta própria, em sua quase totalidade, estão excluídos
do direito à aposentadoria e enfrentam a ameaça incontornável da obtenção de algum rendimento
na eventualidade de doenças ou acidentes que interrompam o trabalho que realizam.

Face a essas transformações no mundo do trabalho, convem situar algumas visões e expectativas,
antigas e novas, em relação ao denominado setor informal.

2. Economia informal e empreendimentos populares: visões e expectativas

Embora a denominação de economia dos setores populares não se confunda ou se reduza ao


âmbito do setor informal, a referência ao mesmo justifica-se na medida em que: i) os estudos e as
informações estatísticas sobre o trabalho realizado de forma individual ou familiar, sobretudo nos
espaços urbanos, normalmente estão referenciados ao denominado setor informal; ii) estas formas
de trabalho não são iniciativas isoladas, mas interagem com o seu entorno, relacionando-se com
os mercados e circuitos produtivos dominantes e iii) parto do pressuposto de que estas
modalidades de trabalho são historicamente determinadas, não se confundem com a economia
capitalista e possuem uma lógica econômica específica.

Usualmente o setor informal é delimitado, justapondo-se, com ponderação variável, diversos


critérios (trabalhadores por conta própria, contando ou não com a ajuda de mão-de-obra não
remunerada; empresas com menos de cinco empregados; setor em que os negócios e os contratos

5
O seguro–desemprego, no Brasil, existente desde 1986, garante o pagamento de um salário mínimo até o teto
máximo de R$ 243,00, durante um período de três a cinco meses, aos trabalhadores desempregados que comprovem
vínculo empregatício de 6 a 11 meses. O valor médio do benefício situa-se em torno de 1,5 salário mínimo.
7

de trabalho não obedecem à legislação trabalhista e fiscal, etc). Nestes termos, a conceituação do
setor informal assemelha-se mais a uma descrição de atividades ou situações, envolvendo um
conglomerado que, tratado como um conjunto, não responderia a nenhuma lógica específica. Ou
melhor, o setor informal seria um movimento reflexo do setor formal ou moderno: cresceria nos
momentos de crise, amortecendo o desemprego gerado no setor formal.

Até os anos 1970, predominava a visão que explicava a pobreza urbana como algo residual ou
transitório a ser superado pelo desenvolvimento industrial. O setor informal era entendido como
um sub-produto de um eventual período de crise ou insuficiente desenvolvimento do setor
moderno, e que seria superado pelo crescimento econômico. Desse ponto de vista, não haveria
razão para se perder tempo discutindo-se a viabilidade do setor informal. Conforme esta visão, o
futuro era o capital e todos cresceríamos juntos.

Do ponto de vista da esquerda, também não havia razões para se ocupar com o informal. O futuro
era o socialismo e o que contava era a luta sindical. Hoje, cresce, implacavelmente, o número de
trabalhadores que não são nem mesmo passíveis de sindicalização. Nestes termos, parece que,
entre o desenvolvimento capitalista e a revolução socialista, o chamado setor informal ficou
como um elo perdido.

Nos anos 1970, quando imperava o paradigma da integração social, o mercado capitalista era
visto como um mecanismo de integração-proletarização, onde o Estado completava e
compensava esta integração. Daí a importância da categoria de “consumo coletivo”, que dava
conta das políticas sociais do Estado, e cujo sentido seria o de reprodução da força de trabalho -
entendida como a capacidade de trabalho vendida em troca de um salário - via pela qual também
ocorreria a reprodução da população urbana. Daí também a importância da categoria de “novos
movimentos sociais” como aqueles capazes de articularem as forças reivindicativas diante do
Estado, o que, pressumia-se, resultaria num confonto com a ordem capitalista face à
incapacidade do Estado em atender às demandas sociais.6

Assim, as pessoas que viviam do informal eram, via teoria da marginalidade, integradas aos
movimentos sociais, não pelo trabalho que exerciam, mas na condição de participantes dos
movimentos sociais vinculados ao solo urbano, moradia, educação popular, etc.

6
Cf. Coraggio, José Luis. Economia Urbana: la perspectiva popular. (mimeo) Instituto Fronesis, 1994.
8

Hoje, entretanto, tende a se cristalizar nos espaços urbanos uma situação onde uma reduzida elite
dispõe dos benefícios prometidos por uma sociedade global, mas parcelas crescentes da
população, antes denominadas de marginalizadas e que não têm como ser globalizadas, vão sendo
implacavelmente excluídas.

Face às transformações ocorridas na estrutura do mercado de trabalho, ao longo das duas últimas
décadas, pode-se apresentar, grosso modo, pelo menos duas novas visões e expectativas em
relação ao informal.

Uma certa visão, compatível com as crenças ultra-liberais, propõe aos que não têm acesso ao
mercado formal de trabalho que adquiram uma tal de empregabilidade; que se transformem em
empresários de si mesmos. Propõe que os desempregados montem os seus próprios
empreendimentos, transformando-se em pequenos empresários individuais. Aprenderiam com o
mercado capitalista a arte dos negócios como se houvesse uma evolução contínua entre
empreendimentos populares e pequenas empresas. De um paradigma antropológico do indivíduo-
máquina passa-se, agora, a uma nova matriz: aquela do indivíduo-empresa 7, onde apenas os mais
capazes mereceriam sobreviver.

Por outro lado, estudos e análises recentes - ancorados numa visão crítica sobre os postulados
econômicos hegemônicos - apontam, embora de forma ainda pouco precisa, para a importância
de conceitos como economia popular, economia popular e solidária ou sócio-economia
solidária 8. Constatam que, diante de oportunidades de emprego regular, cada vez mais restritas,
a reprodução da vida de uma parcela crescente da população passa a depender, em maior escala,
de uma economia que se alimenta de inúmeras atividades realizadas de forma individual, familiar
ou associativa, envolvendo um extenso fluxo de produção e troca de bens e serviços.

Até o início da década de 1990, atribuía-se pouca importância política às iniciativas populares
que se dedicavam à produção/comercialização de bens e serviços. Pode-se dizer que existia um
certo preconceito, como se os grupos populares se maculassem ao entrar em contato com o

7
Cf. Lara, Francisco. “Conversas sobre economia, administração e gestão de empreendimentos sociais”. Capina.
(mimeo) novembro, 1997.
8
Apenas recentemente essa economia dos setores populares vem ensejando estudos e pesquisas. Ver Gaiger, Luiz
Inácio (org.) Formas de combate e de resistência à pobreza. São Leopoldo. UNISINOS, 1996; Singer, Paul.
Globalização e desemprego. Diagnóstico e alternativas. São Paulo, Contexto, 1998; Coraggio, José Luis.
"Alternativas para o desenvolvimento humano em um mundo globalizado", in Proposta, n° 72, março/maio 1997 e
Arruda, Marcos. Globalização e cooperativismo popular: desafio estratégico. (mimeo), Rio de Janeiro, 1996.
9

mercado. Ou, então, eram vistos como uma expressão das ações assistencialistas destinadas a
amenizar o aumento da pobreza. Entretanto, recentes linhas de pesquisa e estudo focalizam
algumas iniciativas dessa economia dos setores populares não como uma frente pré-política, mas
como uma ação de fronteira, geradora de embriões de novas formas de produção e sociabilidade.9

É possível que a forma de se olhar para estes grupos tenha sido eclipsada pela relevância
conferida à luta sindical, ou pela perspectiva de que somente as mudanças políticas nas relações
de poder permitiriam pensar um mundo melhor. Nesta ótica, a responsabilidade pela geração e
pelo gerenciamento dos investimentos econômicos seria de competência dos empresários e do
Estado. Isto está mudando. Talvez pela constatação de que, nos últimos anos, somando-se às
diversas formas de resistência a um modelo econômico estruturalmente excludente e
concentrador da renda, multiplicam-se as iniciativas das organizações populares diretamente
empenhadas na criação de atividades econômicas como uma das formas de luta pela vida. São
práticas que se vinculam ao mercado e enfrentam temas como trabalho, renda e políticas
públicas. Diferentemente do que ocorria até há pouco tempo, estas iniciativas não se encontram
mais à margem, mas na confluência de fatos e análises que perpassam os movimentos sociais.10

Resumindo, podemos colocar as seguintes questões: a informalidade conteria uma virtude a ser
potencializada, ou seria uma necessidade decorrente da luta pela vida, face à ausência de
empregos estáveis, bem remunerados e de boa qualidade? As iniciativas que se desenvolvem a
partir do informal constituiriam uma alternativa para o desemprego no setor formal, seja na
perspectiva ulta-liberal ou sob a ótica de uma economia popular?

3. Uma caracterização dos "empreendimentos" informais

Hoje, torna-se evidente que o crescimento do denominado setor informal, alimentado, sobretudo,
pelo aumento dos trabalhadores por conta própria, já não pode mais ser entendido como um sub-
produto de um período de crise a ser superado pela retomada do crescimento econômico. Por sua
magnitude e caráter estrutural, o crescimento dessas formas de trabalho já não pode ser explicado

9
Cf. Gaiger, Luiz Inácio (coordenador). Experiências de geração de renda: no rumo de uma economia popular e
solidária. Projeto de Pesquisa. UNISINOS/CEDOPE, São Leopoldo, 1997.
10
No campo, a luta pela terra tem se desdobrado em mobilizações por linhas de crédito adequadas à agricultura
familiar. As atividades voltadas para a comercialização e para o beneficiamento como meio de agregar valor aos seus
produtos, apesar das inúmeras dificuldades existentes, é assumida como um novo desafio pelas organizações de
trabalhadores rurais, revelando a emergência de novas formas de se relacionarem com o Estado e com a sociedade.
Deve-se reconhecer, entretanto, que, nos espaços urbanos, as iniciativas econômicas de caráter associativo enfrentam
situações bem mais adversas do que no meio rural.
10

como um fenômeno residual ou conjuntural, cujo movimento compensaria as variações do setor


formal: ele tende a crescer com o próprio crescimento do setor moderno. Em outras palavras, as
formas de trabalho típicas ao setor informal não representam um passado a ser superado pelo
desenvolvimento do processo de acumulação, mas a presença de um futuro a ser recriado em
escala ampliada.

Embora o termo economia dos setores populares designe um universo distinto daquele
usualmente representado pelo chamado setor informal, os dados recentemente divulgados pelo
IBGE, referentes à economia informal urbana, permitem traçar um perfil – parcial e aproximado -
dos empreendimentos econômicos populares. Pelos critérios do IBGE11, estariam incluídas no
setor informal as unidades econômicas de produção de trabalhadores por conta própria e de
empregadores com até cinco empregados. Uma evidente limitação dessa pesquisa reside no seu
recorte urbano12, que exclui as atividades não agrícolas desenvolvidas por moradores de
domicílios em áreas rurais, a exemplo da pequena indústria alimentar, confecções e serviços.

Nestes termos, conforme os critérios utilizados pelo IBGE, o Brasil possuía, em 1997, cerca de
9,5 milhões de empresas informais, ocupando cerca de 13 milhões de pessoas (trabalhadores por
conta própria, pequenos empregadores, trabalhadores assalariados com e sem carteira assinada e
trabalhadores não remunerados).

Economia Informal urbana


Empresas e pessoal ocupado
Brasil - 1997
Empresas 9.477.973 100%
Conta própria 8.151.616 86%
Empregadores 1.326.616 14%
Pessoal ocupado 12.870.421 100%
Conta própria 8.589.588 67%
Empregador 1.568.954 12%
Empregado 2.194.725 17%
Não remunerado 517.153 4%
Fonte:IBGE.
Do total de empresas, 86% correspondem a trabalhadores por conta própria. Os empreendimentos
com empregadores representam apenas 14% do total. Considerando as pessoas ocupadas por

11
Segundo o IBGE, os critérios adotados para a Pesquisa Economia Informal Urbana baseiam-se nas recomendações
da 15a Conferência de Estatísticas do Trabalho promovida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).
12
O IBGE justifica o recorte urbano com base nos altos custos operacionais que a cobertura dos domicílios rurais
acarretaria, e na evidência empírica de que é nos grandes centros urbanos que se concentra a economia informal.
11

posição na ocupação, 12% são empregadores, 17% são empregados e 67% são trabalhadores por
conta própria.

Estes dados revelam que a unidade econômica denominada de empresa informal é constituída,
sobretudo, pelo trabalhador autônomo, que cria, muitas vezes do quase nada, o seu próprio
trabalho, contando, ou não, com ajuda de mão-de-obra não remunerada .

Quanto à receita, 38% dos estabelecimentos informais situam-se na faixa de até R$300,00
mensais. Observa-se uma grande diferença entre a receita e o lucro médio dos trabalhadores por
conta própria e dos empregadores. Considerando a receita média das atividades por conta própria,
quase 60% situam-se na faixa de até R$500,00 mensais. O lucro médio das atividades por conta
própria, em reais de 1997, era inferior ao rendimento médio mensal dos trabalhadores
assalariados com carteira de trabalho assinada, conforme dados do IBGE para o mesmo ano.

Economia Informal urbana


Receita e lucro Médio Mensais
Brasil - 1997
Especificação Total conta própria empregador
Receita Média (em R$ out/97) 1.405 931 4.262
até 300 38% 42% 6%
301 a 500 15% 17% 6%
501 a 1000 18% 19% 15%
mais de 1000 29% 22% 73%
Lucro Médio (em R$ out/97) 629 489 1.513
Rendimento médio do empregado assalariado
com carteira (em R$) 546
Fonte:IBGE

Considerando-se os dados do PNAD para o conjunto do país, observa-se que um terço dos
trabalhadores por conta própria possuíam um rendimento equivalente a, no máximo, um salário
mínimo. Entre os trabalhadores assalariados este percentual é bastante inferior (8,2%),
confirmando que os trabalhadores por conta própria situam-se num estrato de renda inferior aos
assalariados com carteira.
12

Renda dos trabalhadores por conta própria


e dos assalariados com carteira assinada.
Brasil - 1997
Faixa de renda assalariado conta-própria
(salário-mínimo)
até 1 8,2% 32,4%
mais de 1 a 2 23,1% 19,5%
mais de 2 a 3 23,5% 14,5%
mais de 3 a 5 23,1% 16,4%
mais de 5 a 10 14,2% 10,3%
mais de 10 a 20 5,3% 4,6%
mais de 20 2,5% 2,3%
Total 100,0% 100,0%
Fonte: IBGE - PNAD.

Em seu conjunto, estes dados evidenciam as carências e dificuldades dos trabalhadores por conta
própria, contrastando com o discurso fantasioso do empreendedorismo. Ao contrário de ser o
espaço que viabilize e estimule o desenvolvimento de prósperos empreendedores como
alternativa ao emprego regular, a economia informal, tal como existe hoje, é o lugar onde, mal e
precariamente, vai ocorrendo a reprodução da vida de parcelas crescentes da população, num
quadro marcado pela destruição e escassez dos postos formais de trabalho.

A pesquisa do IBGE evidencia que as atividades informais estão presentes em todos os ramos de
atividade, embora o setor de serviços absorva quase metade dos empreendimentos, seguido pelo
comércio (26%) e indústria de construção (15,5%).

Economia Informal Urbana


Empreendimentos informais por grupo de atividade
Brasil – 1997
Total 100,0%
Indústria de transformação 11,9%
Indústria da construção 15,5%
Comércio 26,2%
Serviços de alojamento e alimentação 8,3%
Serviços de transporte 6,7%
Serviços de reparação e diversões 19,8%
Serviços técnicos e auxiliares 11,3%
Fonte: IBGE.

Embora mais de 90% dos empreendimentos informais constituam-se em atividades permanentes,


que funcionam durante todos os meses do ano, e seja responsável pela reprodução da vida de
uma parcela significativa da população, a grande maioria (97%) não recebeu qualquer tipo de
13

assistência técnica, jurídica ou financeira nos últimos cinco anos que antecederam a pesquisa, e
apenas 5% recorreram ao crédito nos últimos três meses que antecederam a pesquisa. Entre os
3% que receberam alguma assistência, a maior parte foi prestada por órgãos não ligados ao
governo.

Economia Informal Urbana


Acesso ao crédito e recebimento de assistência técnica
Brasil – 1997
Utilizou crédito nos três meses anteriores a pesquisa 5%
Recebeu assistência técnica, jurídica, ou financeira
nos últimos cinco anos 3%
de órgão do governo 34%
de outras instituições 66%
Fonte:IBGE.

Quanto às motivações para o trabalho que realizam, 25% iniciaram o negócio por estarem
desempregados e 18% pela necessidade de complementação de renda. Ou seja, 43% dos
empreendimentos informais decorreram de dificuldades procedentes do mercado regular de
trabalho. Deve-se observar, entretanto, que cerca de um terço dos empreendimentos informais
estruturaram-se a partir de expectativas positivas, envolvendo o desejo de não possuir patrão
(20%), horário flexível (2%) e negócio promissor (8%).

Economia Informal Urbana


Motivação para iniciar o negócio
Brasil - 1997
Total 100%
Não encontrou emprego 25%
Desejo de não possuir patrão 20%
Oportunidade de fazer sociedade 2%
Horário flexível 2%
Tradição familiar 8%
Complementação de renda 18%
Experiência na área 9%
Negócio promissor 8%
Trabalho secundário 2%
Outro motivo 5%
Fonte: IBGE.

No que se refere às dificuldades, quase 34% indicaram a falta de clientes e 18,8% apontaram a
concorrência como o principal problema, revelando a retração do mercado consumidor -
provocado pelo desemprego e pela diminuição do poder aquisitivo da população -, e a saturação
de atividades no âmbito do informal.
14

Economia Informal Urbana


Principais Dificuldades
Brasil - 1997
Total 100,0%
Falta de clientes 33,6%
Falta de crédito 1,0%
Baixo lucro 7,1%
Problemas com fiscalização 0,7%
Falta de mão-de-obra qualificada 0,3%
Concorrência muito grande 18,8%
Falta de instalações adequadas 1,8%
Falta de capital próprio 12,4%
Outras dificuldades 5,5%
Não teve dificuldade 18,8%
Fonte:IBGE
O baixo lucro e a ausência de capital de giro representam um problema típico dos
empreendimentos informais. Deve-se observar, entretanto, que apenas 1% apresentaram a falta de
crédito como uma dificuldade. Estes dados refletem a inexistência de um sistema de crédito
adequado às atividades econômicas populares, inibindo a contração de empréstimos como uma
forma de contornar as dificuldades. Por outro lado, a busca de crédito nas condições vigentes no
mercado financeiro comercial introduz uma importante mudança no modo de operar destes
empreendimentos populares, que passariam a responder não apenas às exigências do trabalho e
de sustento da família, como às do capital financeiro, aumentando as condições de insegurança e
risco das atividades que realizam.13

Economia Informal urbana


Planos para o Futuro
Brasil – 1997
Total 100%
Aumentar o negócio 37%
Continuar no mesmo nível 30%
Mudar de atividade e continuar independente 9%
Abandonar atividade e procurar emprego 12%
Outros planos 2%
Não sabe 9%
Fonte:IBGE

13
Mais recentemente estão surgindo ou sendo propostas algumas linhas oficiais de crédito direcionadas
especificamente às iniciativas econômicas populares . A viabilização desse crédito é algo necessário, desde que reúna
algumas condições. O acesso de pessoas pobres ao crédito é um direito e requer instituições especiais (em termos de
sua filosofia, procedimentos e qualificação de pessoal), que se dediquem a este tipo de operação. Através de um
trabalho educativo, podem ser utilizados alguns instrumentos, bastante simples, que auxiliem as pessoas a refletir
sobre a viabilidade e o aperfeiçoamento das atividades que realizam ou pretendam realizar, a exemplo de roteiros
simplificados de análise de viabilidade econômica utilizados pelo CEADe.
15

Em relação aos planos para o futuro, 37% declararam que pretendem aumentar o negócio, 30%
pretendem continuar no mesmo nível, e apenas 12% pretendem abandonar a atividade e procurar
emprego. Ou seja, entre o atual drama do desemprego e os planos para o futuro, quase 70% das
pessoas acalentam a expectativa de permanência ou de ampliação do próprio negócio. Planos de
quem sabe, porque sente, na luta cotidiana pela vida, que são cada vez mais fugidias as
esperanças de um emprego regular no mercado capitalista de trabalho.

Como tratar estas atividades do ponto de vista da sua viabilidade econômica? Neste ponto,
convém lembrar a distinção pouco convencional realizada por Braudel entre economia de
mercado e capitalismo.

4. Economia dos setores populares, capitalismo e economia de mercado

Talvez seja instigante fazer referência a uma notícia tão trivial e frequente nos jornais de nossas
cidades: “aumentam as reclamações contra os vendedores ambulantes, que são prejudiciais ao
comércio, que vendem ilicitamente suas mercadorias e, por isso, são perseguidos pelas
autoridades municipais”. Apesar de atual e corriqueira, essa não é nenhuma notícia de Recife, de
Salvador ou sobre os camelôs da Praça da Sé, em São Paulo. Trata-se de um relato da França do
século XVII14 em relação ao qual Braudel assinala que “a venda ambulante é sempre uma
maneira de contornar a ordem estabelecida do sacrossanto mercado, de zombar das autoridades”.

Um vendedor ambulante que vende suas mercadorias pelas ruas situa-se em pleno mundo das
trocas, do cálculo, por mais modestos que sejam suas trocas e cálculos. Mas Braudel indica que a
palavra mercado é usualmente utilizada tanto para designar as formas de troca e de circulação
que dizem respeito às superfícies mercantis (mercado nacional, mercado urbano) ou de
mercadorias específicas (mercados do açúcar, da castanha, etc), como para designar um sistema
identificado como economia de mercado. “A visão convencional das ciências sociais, do discurso
político e dos meios de comunicação de massa é que capitalismo e economia de mercado são
mais ou menos a mesma coisa, e que o poder do Estado é oposto a ambos. Braudel, ao contrário,
encara a emergência e a expansão do capitalismo como absolutamente dependentes do poder
estatal, constituindo-se esse sistema na antítese da economia de mercado”.15 Como indica

14
Braudel, Fernand. Os Jogos das Trocas. Lisboa-Rio de Janeiro, Edições Cosmos, 1985, p.65
15
Citação de Wallerstein reproduzida por Arrigh, Giovanni. O Longo Século XX, Rio de Janeiro, Contraponto; São
Paulo, Editora Unesp, 1996, p.10
16

Braudel, o entendimento entre capital e Estado atravessa os séculos da modernidade. O capital


vive sem constrangimentos da complacência, isenções, auxílios e liberalidades do Estado. Para o
capital, o Estado é uma fonte ressurgente de recursos da qual nunca se mantém muito longe.16

Para Braudel17, economia de mercado e capitalismo não são a mesma coisa. O verdadeiro lar do
capitalismo residiria numa camada superior da hierarquia do mundo dos negócios, onde reina o
direito do mais forte, “circulam os grandes predadores e vigora a lei da selva”. Como indica
Wallerstein18, Braudel reformula a relação entre mercado e monopólio, atribuindo aos
monopólios o papel de elemento-chave do sistema capitalista. Face ao poder de monopólio das
grandes empresas que as permite impor os preços e induzir o consumo, as chamadas leis do
mercado seriam inócuas. O que caracterizaria o jogo superior da economia seria a possibilidade
de transitar de um monopólio para outro. Segundo Braudel, o segredo da vitalidade do
capitalismo estaria na sua flexibilidade, na sua capacidade de mudar de rumo, um privilégio que
tem a ver com o peso dos seus capitais, com as suas capacidades de empréstimo, com sua rede de
informações e com os vínculos de regras e cumplicidades entre uma minoria poderosa, mesmo
que dividida pelo jogo da concorrência. Desfrutando do privilégio de poder escolher volta-se,
alternada ou simultaneamente, para os lucros do comércio, da indústria, da especulação
financeira, dos empréstimos ao Estado, etc. Para Braudel, o Estado é um elemento constitutivo do
sistema capitalista. Neste sentido, todo monopólio é político, tornando sem significado a
controvérsia em torno da legitimidade da interferência do Estado na economia.

Por outro lado, ontem como hoje, haveria uma economia de mercado que gira por si própria
numa margem inferior e extensa da economia, constituída por unidades independentes e
responsáveis por um volume significativo de trocas de bens e serviços. A própria atividade
produtiva pressupõe a divisão do trabalho e, portanto, a existência das trocas. O mercado, esse
lugar das trocas dos resultados dos trabalhos humanos não seria, no sentido que Braudel lhe
atribui, o signo do capitalismo. Sem o mercado não haveria economia no sentido corrente da
palavra, mas uma vida fechada na auto-suficiência. Esta matriz de observação relativiza a visão
de um sistema capitalista de alto a baixo da sociedade, contribuindo para a percepção de
atividades econômicas que se movimentam rente-ao-chão e que escapam às estatísticas.

16
CF. Braudel, Fernand. O Tempo do Mundo. São Paulo, Martins Fontes, 1996, p.579.
17
Cf. Braudel, Fernand. Os Jogos das Trocas. Lisboa-Rio de Janeiro, Edições Cosmos, 1985 e O Tempo do Mundo.
São Paulo, Martins Fontes, 1996.
18
Fernand Braudel e a história. Chateauvallon/outubro 1985. Lisboa, Teorema, 1987, pg.124.
17

Sem desconhecer os processos de submissão à reprodução do capital, pode-se afirmar que, face
ao aprofundamento da insuficiência da economia capitalista em absorver parcelas crescentes da
população como mão-de-obra assalariada, esse segmento da economia de que nos fala Braudel
deve se constituir num refúgio de uma parte cada vez maior da população economicamente ativa.
É nos interstícios dessa economia de mercado que vem ocorrendo a reprodução da vida de uma
parcela crescente da população.

Embora o comércio ambulante apareça como a manifestação mais aparentemente visível desta
economia dos setores populares, existe, na verdade, uma extensa lista de atividades, desde
produção de alimentos até a construção civil e produções culturais.

Como indica Coraggio,19 este conjunto de atividades ocorre a cargo da reprodução da população,
independentemente do seu caráter de força de trabalho para o capital. Ou seja, as condições de
trabalho necessárias à reprodução da vida de parcelas crescentes da população não vêm sendo
proporcionadas nem pelo mercado capitalista de trabalho, nem pelas cada vez mais restritas ações
compensatórias do Estado.

A eficiência dessa economia dos setores populares não pode ser aferida pela capacidade de seus
integrantes transformarem-se em pequenos empresários, mas por sua capacidade de assegurar
postos de trabalho e gerar alguma renda para um grande número de pessoas.

A racionalidade dessa economia está ancorada na geração de renda destinada a prover e repor os
meios de vida e na utilização dos recursos humanos próprios, englobando unidades de trabalho e
não de inversão de capital. Ou seja, baseia-se na lógica da necessidade, expressando o reverso da
lógica do capital, que desloca trabalhadores e fecha oportunidades de trabalho.

Diferentemente da empresa, que tem por objetivo a acumulação de capital, a racionalidade


econômica dos empreendimentos populares está subordinada à lógica da reprodução da vida da
unidade familiar.20 Ao contrário das empresas que - na busca do lucro, da competitividade e da
produtividade - dispensam mão-de-obra, os empreendimentos populares não podem dispensar os
filhos e conjuges que gravitam no seu entorno.

19
Cf. Coraggio, José Luis. “Economia Popular e Construção da Cidade”, in Proposta, n. 62, set.94.
20
Esta análise inspira-se em Coraggio, José Luis. Economia urbana. La perspectiva popular. Quito, ILDES.
FLACSO, 1998.
18

Para os empreendimentos populares, por exemplo, a perda do emprego de um dos membros da


família tende a ser absorvido como um “custo” adicional para o próprio negócio. Ou seja, como a
família não pode “dispensar” os seus membros, os recursos que seriam destinados ao
empreendimento são redirecionados para as despesas básicas do consumo familiar, mesmo que
comprometendo o “capital de giro” ou a ”lucratividade” do empreendimento. O que seria um
comportamento irracional ou ineficiente, sob à lógica da acumulação do capital, assume um outro
significado para os empreendimentos populares. Ou seja, no caso dos empreendimentos
populares, é impossível separar as atividades de produção e comercialização de bens e serviços
das circunstâncias de reprodução da vida da unidade familiar destas pessoas.

5. Uma conclusão: a necessidade de repor as nossas indagações

É neste cenário, delineado pelas mudanças estruturais no mundo do trabalho e pela busca de
alternativas através de inúmeras iniciativas econômicas populares, que se desvelam a
contemporaneidade e a pertinência dos objetivos propostos para este seminário. E aqui cabe
repetir as seguintes indagações:

• face às oportunidades - cada vez mais fugidias - de emprego regular assalariado, como
entender a natureza e o destino dessa economia dos setores populares dentro da lógica central
do capitalismo hoje?

• face às tendências do capital e do trabalho "nestes tempos de globalização", o que se pode


projetar, entre a realidade e a utopia, sobre os limites e possibilidades dessa economia dos
setores populares?

• seria possível, não apenas potencializar essa economia dos setores populares mas, também,
fortalecer as relações assentadas em valores éticos de solidariedade, cooperação e justiça?

Em relação a estas questões pode-se dizer que:

• em sua matriz empírica, esta economia dos setores populares existe apenas de forma dispersa
e fragmentada. A sua viabilidade, o crescimento e a troca de qualidade dependeria de aportes
econômicos e sociais que não são reproduzíveis atualmente no seu interior e que limitam o
seu desenvolvimento;

• estimulam ações propositivas dentro de um marco conceitual onde a viabilidade das


organizações econômicas populares transcende os aspectos estritamente econômicos,
19

requerendo uma ação convergente e complementar de múltiplos atores e iniciativas no campo


político, econômico, social e tecnológico, envolvendo ongs, sindicatos, igrejas, universidades,
órgãos governamentais, etc.;

• mesmo que de forma ainda incipiente, a percepção do mercado pelos movimentos sociais
como uma realidade simultaneamente econômica e social, contesta a visão liberal do mercado
como um regulador sem reguladores e aponta para a resistência e proposições, desde o
interior da economia de mercado, contra a exclusão imposta pela ordem capitalista; e

• instigam uma redescoberta cidadã do trabalho, com as consequentes implicações políticas,


econômicas e sociais. Deve estar claro que não se trata de idealizar valores e práticas
existentes no âmbito popular, nem da criação de uma ilusória economia alternativa, ou de
coisa feita para pobre, pequenininha, precária ou compensatória, mas de intervenções públicas
que, através do fortalecimento da cidadania, imponham direitos sociais como princípios
reguladores da economia.

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