Arquivo 138
Arquivo 138
Arquivo 138
Gabriel Kraychete∗
A proposta de realização deste seminário resultou da confluência de duas constatações e uma
indagação. A primeira constatação refere-se às transformações ocorridas na estrutura do mercado
de trabalho nas duas últimas décadas, com o aumento do desemprego, a diminuição do número de
trabalhadores assalariados e o crescimento do número de trabalhadores por conta própria.
∗
Professor titular da Universidade Católica do Salvador.
2
A necessidade desta reflexão emana da prática das entidades promotoras deste seminário e de
outras instituições que, a partir das suas singularidades, possuem uma presença junto às
organizações econômicas populares, seja através da assessoria direta e de publicações sobre
administração popular, seja através da viabilização do crédito ou da destinação de recursos
econômicos orientados para projetos associativos e solidários, seja através de projetos de
pesquisa e extensão, etc.
A realização deste seminário dá seguimento a outros encontros,1 almejando, neste passo, transpor
o momento da troca de experiências e projetar, entre a realidade e a utopia, a reflexão sobre os
limites, as fragilidades, as potencialidades, os impasses e os desafios que permeiam essa
economia dos setores populares, "nestes tempos de globalização".
Neste texto, originalmente preparado como uma introdução ao tema do seminário, busco expor as
reflexões e indagações que inspiraram a proposta de realização deste evento.2 Após sumariar as
transformações ocorridas no mercado de trabalho,3 apresento algumas concepções e expectativas
em relação ao denominado setor informal e, recorrendo às informações contidas na pesquisa
sobre a “Economia informal urbana” - recentemente divulgada pelo IBGE -, apresento algumas
características do trabalho realizado por conta própria. Em seguida, sinalizo para uma forma de
percepção da economia dos setores populares, recorrendo às idéias pouco convencionais do
historiador francês Fernand Braudel sobre economia de mercado e capitalismo. Por fim, recoloco
as questões que constituem o substrato dos objetivos propostos para este seminário.
Crescimento do desemprego
1
Em meados de 1997, a CESE e o CEADe promoveram uma Consulta intitulada Economia popular: viabilidade e
alternativas, com o objetivo de recolher subsídios para análise e acompanhamento de projetos produtivos e
compartilhar experiências e proposições existentes sobre o tema. Naquela oportunidade, com a participação de cerca
de sessenta representantes de organizações dos movimentos sociais rurais e urbanos, foram debatidos temas
vinculados à viabilidade econômica, questões associativas, crédito e aspectos legais concernentes à economia dos
setores populares.
2
Este texto tem por referência os debates efetuados no âmbito da equipe da CAPINA , do Programa sobre Economia
Popular desenvolvido pela UCSal e as discussões realizadas em diferentes encontros promovidos pela CESE e pelo
CEADe.
3
A análise e os dados sobre a estrutura do mercado de trabalho foram retirados de Pochmann, Marcio. O Trabalho
sob fogo cruzado. São Paulo, Contexto, 1999.
3
Nos anos 1990, segundo dados do IBGE, todas as regiões brasileiras apresentaram taxas de
desemprego que são, no mínimo, o dobro das verificadas no final da década de 1980.4 Em 1999,
segundo a Fundação Seade e o Dieese, as taxas de desemprego correspondem a cerca de 20% da
População Economicamente Ativa (PEA) nas regiões metropolitanas. Nos primeiros meses de
1999, a taxa de desemprego na região metropolitana de São Paulo atingiu cerca de 20% da PEA,
correspondendo a quase 1,8 milhão de pessoas desempregadas. Isto eqüivale a um contingente de
desempregados, em São Paulo, superior à população de uma cidade como Recife! Em termos
relativos, a região metropolitana de Salvador apresenta o maior índice de desemprego (mais de
26% da PEA), correspondendo a cerca de 400 mil desempregados.
Na década de 90, mais do que duplica o tempo médio em que um trabalhador desempregado
demora para encontrar um emprego. Em 1990, na Região Metropolitana de São Paulo, quando a
taxa de desemprego era de 9,3%, o tempo de procura era de 15 semanas. Em abril de 1999, este
tempo aumentou para 42 semanas, conforme dados da mesma pesquisa Dieese/Seade.
Considerando que o Brasil apresenta um crescimento demográfico de 1,4% ao ano e que a PEA
cresce à taxa de 2,7%, o país precisaria criar 1,5 milhão de novos empregos por ano, o que
suporia um crescimento continuado do PIB a uma taxa de 7%, apenas para absorver a nova
população que ingressa no mercado de trabalho a cada ano. Mas, com a queda do PIB prevista
para 1999, ao invés de criação de empregos devem ser fechados novos postos de trabalho.
Nos anos 1990, a região Sudeste – principal pólo industrial do país -, apresentou um decréscimo
de quase 10% nas ocupações industriais, sem que isso fosse compensado pelo aumento da
ocupação na indústria localizada em outras regiões do país. Nestes termos, em 1995, o setor
secundário no Brasil englobava um contingente de trabalhadores não muito superior ao que
4
No Brasil o número de desempregados difere conforme a metodologia da pesquisa. O IBGE considera como
empregado qualquer pessoa que fez algum tipo de trabalho na semana anterior à pesquisa. O índice de desemprego
apurado pelo Dieese/Seade considera o desemprego oculto pela trabalho precário (aqueles que procuram trabalho
mas exercem precariamente alguma atividade) e o desemprego oculto pelo desalento (aqueles que gostariam de estar
trabalhando, procuraram trabalho no último ano, mas não o fizeram nos últimos 30 dias).
4
possuía no início da década de 1970. Atualmente, de cada dez ocupações existentes, seis são de
responsabilidade do setor terciário, duas do setor secundário e duas do primário.
Desassalariamento
Nos anos 1990, observa-se uma forte ampliação das ocupações por conta própria. Neste período,
para cada 10 ocupações geradas, apenas duas foram assalariadas, sendo quase cinco por conta
própria e três de ocupações sem remuneração. Entre 1986 e 1998, nas Regiões Metropolitanas, o
emprego assalariado com carteira teve uma redução de 4% e o número de trabalhadores por conta
própria aumentou em 61%.
70
61
60
50
Assalariados com
40 35 carteira
Assalariados sem
30 carteira
20 Conta própria
10
0
-10 -4
Fonte: IBGE. Agregação das Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Porto Alegre,
Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Dados extraídos de Dupas, Gilberto.
Economia Global e Exclusão Social. Paz e Terra, São Paulo, 1999.
Às pessoas que sempre viveram de trabalhos informais, sobretudo através das ocupações por
conta própria, soma-se um novo contingente, composto pelos trabalhadores expulsos do emprego
regular e pelas pessoas que ingressam no mercado de trabalho a cada ano.
6
Num país como o Brasil, que nunca conheceu os índices de assalariamento das economias
capitalistas centrais (superiores a 90%) nem, tampouco, experimentou nada semelhante à rede de
proteção social típica ao Welfare State europeu 5, a acomodação destas novas tendências do
mercado de trabalho pode se traduzir em vereditos intoleráveis, consagrando uma situação de
total desamparo social para os trabalhadores que transitam para o informal.
Face a essas transformações no mundo do trabalho, convem situar algumas visões e expectativas,
antigas e novas, em relação ao denominado setor informal.
5
O seguro–desemprego, no Brasil, existente desde 1986, garante o pagamento de um salário mínimo até o teto
máximo de R$ 243,00, durante um período de três a cinco meses, aos trabalhadores desempregados que comprovem
vínculo empregatício de 6 a 11 meses. O valor médio do benefício situa-se em torno de 1,5 salário mínimo.
7
de trabalho não obedecem à legislação trabalhista e fiscal, etc). Nestes termos, a conceituação do
setor informal assemelha-se mais a uma descrição de atividades ou situações, envolvendo um
conglomerado que, tratado como um conjunto, não responderia a nenhuma lógica específica. Ou
melhor, o setor informal seria um movimento reflexo do setor formal ou moderno: cresceria nos
momentos de crise, amortecendo o desemprego gerado no setor formal.
Até os anos 1970, predominava a visão que explicava a pobreza urbana como algo residual ou
transitório a ser superado pelo desenvolvimento industrial. O setor informal era entendido como
um sub-produto de um eventual período de crise ou insuficiente desenvolvimento do setor
moderno, e que seria superado pelo crescimento econômico. Desse ponto de vista, não haveria
razão para se perder tempo discutindo-se a viabilidade do setor informal. Conforme esta visão, o
futuro era o capital e todos cresceríamos juntos.
Do ponto de vista da esquerda, também não havia razões para se ocupar com o informal. O futuro
era o socialismo e o que contava era a luta sindical. Hoje, cresce, implacavelmente, o número de
trabalhadores que não são nem mesmo passíveis de sindicalização. Nestes termos, parece que,
entre o desenvolvimento capitalista e a revolução socialista, o chamado setor informal ficou
como um elo perdido.
Nos anos 1970, quando imperava o paradigma da integração social, o mercado capitalista era
visto como um mecanismo de integração-proletarização, onde o Estado completava e
compensava esta integração. Daí a importância da categoria de “consumo coletivo”, que dava
conta das políticas sociais do Estado, e cujo sentido seria o de reprodução da força de trabalho -
entendida como a capacidade de trabalho vendida em troca de um salário - via pela qual também
ocorreria a reprodução da população urbana. Daí também a importância da categoria de “novos
movimentos sociais” como aqueles capazes de articularem as forças reivindicativas diante do
Estado, o que, pressumia-se, resultaria num confonto com a ordem capitalista face à
incapacidade do Estado em atender às demandas sociais.6
Assim, as pessoas que viviam do informal eram, via teoria da marginalidade, integradas aos
movimentos sociais, não pelo trabalho que exerciam, mas na condição de participantes dos
movimentos sociais vinculados ao solo urbano, moradia, educação popular, etc.
6
Cf. Coraggio, José Luis. Economia Urbana: la perspectiva popular. (mimeo) Instituto Fronesis, 1994.
8
Hoje, entretanto, tende a se cristalizar nos espaços urbanos uma situação onde uma reduzida elite
dispõe dos benefícios prometidos por uma sociedade global, mas parcelas crescentes da
população, antes denominadas de marginalizadas e que não têm como ser globalizadas, vão sendo
implacavelmente excluídas.
Face às transformações ocorridas na estrutura do mercado de trabalho, ao longo das duas últimas
décadas, pode-se apresentar, grosso modo, pelo menos duas novas visões e expectativas em
relação ao informal.
Uma certa visão, compatível com as crenças ultra-liberais, propõe aos que não têm acesso ao
mercado formal de trabalho que adquiram uma tal de empregabilidade; que se transformem em
empresários de si mesmos. Propõe que os desempregados montem os seus próprios
empreendimentos, transformando-se em pequenos empresários individuais. Aprenderiam com o
mercado capitalista a arte dos negócios como se houvesse uma evolução contínua entre
empreendimentos populares e pequenas empresas. De um paradigma antropológico do indivíduo-
máquina passa-se, agora, a uma nova matriz: aquela do indivíduo-empresa 7, onde apenas os mais
capazes mereceriam sobreviver.
Por outro lado, estudos e análises recentes - ancorados numa visão crítica sobre os postulados
econômicos hegemônicos - apontam, embora de forma ainda pouco precisa, para a importância
de conceitos como economia popular, economia popular e solidária ou sócio-economia
solidária 8. Constatam que, diante de oportunidades de emprego regular, cada vez mais restritas,
a reprodução da vida de uma parcela crescente da população passa a depender, em maior escala,
de uma economia que se alimenta de inúmeras atividades realizadas de forma individual, familiar
ou associativa, envolvendo um extenso fluxo de produção e troca de bens e serviços.
Até o início da década de 1990, atribuía-se pouca importância política às iniciativas populares
que se dedicavam à produção/comercialização de bens e serviços. Pode-se dizer que existia um
certo preconceito, como se os grupos populares se maculassem ao entrar em contato com o
7
Cf. Lara, Francisco. “Conversas sobre economia, administração e gestão de empreendimentos sociais”. Capina.
(mimeo) novembro, 1997.
8
Apenas recentemente essa economia dos setores populares vem ensejando estudos e pesquisas. Ver Gaiger, Luiz
Inácio (org.) Formas de combate e de resistência à pobreza. São Leopoldo. UNISINOS, 1996; Singer, Paul.
Globalização e desemprego. Diagnóstico e alternativas. São Paulo, Contexto, 1998; Coraggio, José Luis.
"Alternativas para o desenvolvimento humano em um mundo globalizado", in Proposta, n° 72, março/maio 1997 e
Arruda, Marcos. Globalização e cooperativismo popular: desafio estratégico. (mimeo), Rio de Janeiro, 1996.
9
mercado. Ou, então, eram vistos como uma expressão das ações assistencialistas destinadas a
amenizar o aumento da pobreza. Entretanto, recentes linhas de pesquisa e estudo focalizam
algumas iniciativas dessa economia dos setores populares não como uma frente pré-política, mas
como uma ação de fronteira, geradora de embriões de novas formas de produção e sociabilidade.9
É possível que a forma de se olhar para estes grupos tenha sido eclipsada pela relevância
conferida à luta sindical, ou pela perspectiva de que somente as mudanças políticas nas relações
de poder permitiriam pensar um mundo melhor. Nesta ótica, a responsabilidade pela geração e
pelo gerenciamento dos investimentos econômicos seria de competência dos empresários e do
Estado. Isto está mudando. Talvez pela constatação de que, nos últimos anos, somando-se às
diversas formas de resistência a um modelo econômico estruturalmente excludente e
concentrador da renda, multiplicam-se as iniciativas das organizações populares diretamente
empenhadas na criação de atividades econômicas como uma das formas de luta pela vida. São
práticas que se vinculam ao mercado e enfrentam temas como trabalho, renda e políticas
públicas. Diferentemente do que ocorria até há pouco tempo, estas iniciativas não se encontram
mais à margem, mas na confluência de fatos e análises que perpassam os movimentos sociais.10
Resumindo, podemos colocar as seguintes questões: a informalidade conteria uma virtude a ser
potencializada, ou seria uma necessidade decorrente da luta pela vida, face à ausência de
empregos estáveis, bem remunerados e de boa qualidade? As iniciativas que se desenvolvem a
partir do informal constituiriam uma alternativa para o desemprego no setor formal, seja na
perspectiva ulta-liberal ou sob a ótica de uma economia popular?
Hoje, torna-se evidente que o crescimento do denominado setor informal, alimentado, sobretudo,
pelo aumento dos trabalhadores por conta própria, já não pode mais ser entendido como um sub-
produto de um período de crise a ser superado pela retomada do crescimento econômico. Por sua
magnitude e caráter estrutural, o crescimento dessas formas de trabalho já não pode ser explicado
9
Cf. Gaiger, Luiz Inácio (coordenador). Experiências de geração de renda: no rumo de uma economia popular e
solidária. Projeto de Pesquisa. UNISINOS/CEDOPE, São Leopoldo, 1997.
10
No campo, a luta pela terra tem se desdobrado em mobilizações por linhas de crédito adequadas à agricultura
familiar. As atividades voltadas para a comercialização e para o beneficiamento como meio de agregar valor aos seus
produtos, apesar das inúmeras dificuldades existentes, é assumida como um novo desafio pelas organizações de
trabalhadores rurais, revelando a emergência de novas formas de se relacionarem com o Estado e com a sociedade.
Deve-se reconhecer, entretanto, que, nos espaços urbanos, as iniciativas econômicas de caráter associativo enfrentam
situações bem mais adversas do que no meio rural.
10
Embora o termo economia dos setores populares designe um universo distinto daquele
usualmente representado pelo chamado setor informal, os dados recentemente divulgados pelo
IBGE, referentes à economia informal urbana, permitem traçar um perfil – parcial e aproximado -
dos empreendimentos econômicos populares. Pelos critérios do IBGE11, estariam incluídas no
setor informal as unidades econômicas de produção de trabalhadores por conta própria e de
empregadores com até cinco empregados. Uma evidente limitação dessa pesquisa reside no seu
recorte urbano12, que exclui as atividades não agrícolas desenvolvidas por moradores de
domicílios em áreas rurais, a exemplo da pequena indústria alimentar, confecções e serviços.
Nestes termos, conforme os critérios utilizados pelo IBGE, o Brasil possuía, em 1997, cerca de
9,5 milhões de empresas informais, ocupando cerca de 13 milhões de pessoas (trabalhadores por
conta própria, pequenos empregadores, trabalhadores assalariados com e sem carteira assinada e
trabalhadores não remunerados).
11
Segundo o IBGE, os critérios adotados para a Pesquisa Economia Informal Urbana baseiam-se nas recomendações
da 15a Conferência de Estatísticas do Trabalho promovida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).
12
O IBGE justifica o recorte urbano com base nos altos custos operacionais que a cobertura dos domicílios rurais
acarretaria, e na evidência empírica de que é nos grandes centros urbanos que se concentra a economia informal.
11
posição na ocupação, 12% são empregadores, 17% são empregados e 67% são trabalhadores por
conta própria.
Estes dados revelam que a unidade econômica denominada de empresa informal é constituída,
sobretudo, pelo trabalhador autônomo, que cria, muitas vezes do quase nada, o seu próprio
trabalho, contando, ou não, com ajuda de mão-de-obra não remunerada .
Quanto à receita, 38% dos estabelecimentos informais situam-se na faixa de até R$300,00
mensais. Observa-se uma grande diferença entre a receita e o lucro médio dos trabalhadores por
conta própria e dos empregadores. Considerando a receita média das atividades por conta própria,
quase 60% situam-se na faixa de até R$500,00 mensais. O lucro médio das atividades por conta
própria, em reais de 1997, era inferior ao rendimento médio mensal dos trabalhadores
assalariados com carteira de trabalho assinada, conforme dados do IBGE para o mesmo ano.
Considerando-se os dados do PNAD para o conjunto do país, observa-se que um terço dos
trabalhadores por conta própria possuíam um rendimento equivalente a, no máximo, um salário
mínimo. Entre os trabalhadores assalariados este percentual é bastante inferior (8,2%),
confirmando que os trabalhadores por conta própria situam-se num estrato de renda inferior aos
assalariados com carteira.
12
Em seu conjunto, estes dados evidenciam as carências e dificuldades dos trabalhadores por conta
própria, contrastando com o discurso fantasioso do empreendedorismo. Ao contrário de ser o
espaço que viabilize e estimule o desenvolvimento de prósperos empreendedores como
alternativa ao emprego regular, a economia informal, tal como existe hoje, é o lugar onde, mal e
precariamente, vai ocorrendo a reprodução da vida de parcelas crescentes da população, num
quadro marcado pela destruição e escassez dos postos formais de trabalho.
A pesquisa do IBGE evidencia que as atividades informais estão presentes em todos os ramos de
atividade, embora o setor de serviços absorva quase metade dos empreendimentos, seguido pelo
comércio (26%) e indústria de construção (15,5%).
assistência técnica, jurídica ou financeira nos últimos cinco anos que antecederam a pesquisa, e
apenas 5% recorreram ao crédito nos últimos três meses que antecederam a pesquisa. Entre os
3% que receberam alguma assistência, a maior parte foi prestada por órgãos não ligados ao
governo.
Quanto às motivações para o trabalho que realizam, 25% iniciaram o negócio por estarem
desempregados e 18% pela necessidade de complementação de renda. Ou seja, 43% dos
empreendimentos informais decorreram de dificuldades procedentes do mercado regular de
trabalho. Deve-se observar, entretanto, que cerca de um terço dos empreendimentos informais
estruturaram-se a partir de expectativas positivas, envolvendo o desejo de não possuir patrão
(20%), horário flexível (2%) e negócio promissor (8%).
No que se refere às dificuldades, quase 34% indicaram a falta de clientes e 18,8% apontaram a
concorrência como o principal problema, revelando a retração do mercado consumidor -
provocado pelo desemprego e pela diminuição do poder aquisitivo da população -, e a saturação
de atividades no âmbito do informal.
14
13
Mais recentemente estão surgindo ou sendo propostas algumas linhas oficiais de crédito direcionadas
especificamente às iniciativas econômicas populares . A viabilização desse crédito é algo necessário, desde que reúna
algumas condições. O acesso de pessoas pobres ao crédito é um direito e requer instituições especiais (em termos de
sua filosofia, procedimentos e qualificação de pessoal), que se dediquem a este tipo de operação. Através de um
trabalho educativo, podem ser utilizados alguns instrumentos, bastante simples, que auxiliem as pessoas a refletir
sobre a viabilidade e o aperfeiçoamento das atividades que realizam ou pretendam realizar, a exemplo de roteiros
simplificados de análise de viabilidade econômica utilizados pelo CEADe.
15
Em relação aos planos para o futuro, 37% declararam que pretendem aumentar o negócio, 30%
pretendem continuar no mesmo nível, e apenas 12% pretendem abandonar a atividade e procurar
emprego. Ou seja, entre o atual drama do desemprego e os planos para o futuro, quase 70% das
pessoas acalentam a expectativa de permanência ou de ampliação do próprio negócio. Planos de
quem sabe, porque sente, na luta cotidiana pela vida, que são cada vez mais fugidias as
esperanças de um emprego regular no mercado capitalista de trabalho.
Como tratar estas atividades do ponto de vista da sua viabilidade econômica? Neste ponto,
convém lembrar a distinção pouco convencional realizada por Braudel entre economia de
mercado e capitalismo.
Talvez seja instigante fazer referência a uma notícia tão trivial e frequente nos jornais de nossas
cidades: “aumentam as reclamações contra os vendedores ambulantes, que são prejudiciais ao
comércio, que vendem ilicitamente suas mercadorias e, por isso, são perseguidos pelas
autoridades municipais”. Apesar de atual e corriqueira, essa não é nenhuma notícia de Recife, de
Salvador ou sobre os camelôs da Praça da Sé, em São Paulo. Trata-se de um relato da França do
século XVII14 em relação ao qual Braudel assinala que “a venda ambulante é sempre uma
maneira de contornar a ordem estabelecida do sacrossanto mercado, de zombar das autoridades”.
Um vendedor ambulante que vende suas mercadorias pelas ruas situa-se em pleno mundo das
trocas, do cálculo, por mais modestos que sejam suas trocas e cálculos. Mas Braudel indica que a
palavra mercado é usualmente utilizada tanto para designar as formas de troca e de circulação
que dizem respeito às superfícies mercantis (mercado nacional, mercado urbano) ou de
mercadorias específicas (mercados do açúcar, da castanha, etc), como para designar um sistema
identificado como economia de mercado. “A visão convencional das ciências sociais, do discurso
político e dos meios de comunicação de massa é que capitalismo e economia de mercado são
mais ou menos a mesma coisa, e que o poder do Estado é oposto a ambos. Braudel, ao contrário,
encara a emergência e a expansão do capitalismo como absolutamente dependentes do poder
estatal, constituindo-se esse sistema na antítese da economia de mercado”.15 Como indica
14
Braudel, Fernand. Os Jogos das Trocas. Lisboa-Rio de Janeiro, Edições Cosmos, 1985, p.65
15
Citação de Wallerstein reproduzida por Arrigh, Giovanni. O Longo Século XX, Rio de Janeiro, Contraponto; São
Paulo, Editora Unesp, 1996, p.10
16
Para Braudel17, economia de mercado e capitalismo não são a mesma coisa. O verdadeiro lar do
capitalismo residiria numa camada superior da hierarquia do mundo dos negócios, onde reina o
direito do mais forte, “circulam os grandes predadores e vigora a lei da selva”. Como indica
Wallerstein18, Braudel reformula a relação entre mercado e monopólio, atribuindo aos
monopólios o papel de elemento-chave do sistema capitalista. Face ao poder de monopólio das
grandes empresas que as permite impor os preços e induzir o consumo, as chamadas leis do
mercado seriam inócuas. O que caracterizaria o jogo superior da economia seria a possibilidade
de transitar de um monopólio para outro. Segundo Braudel, o segredo da vitalidade do
capitalismo estaria na sua flexibilidade, na sua capacidade de mudar de rumo, um privilégio que
tem a ver com o peso dos seus capitais, com as suas capacidades de empréstimo, com sua rede de
informações e com os vínculos de regras e cumplicidades entre uma minoria poderosa, mesmo
que dividida pelo jogo da concorrência. Desfrutando do privilégio de poder escolher volta-se,
alternada ou simultaneamente, para os lucros do comércio, da indústria, da especulação
financeira, dos empréstimos ao Estado, etc. Para Braudel, o Estado é um elemento constitutivo do
sistema capitalista. Neste sentido, todo monopólio é político, tornando sem significado a
controvérsia em torno da legitimidade da interferência do Estado na economia.
Por outro lado, ontem como hoje, haveria uma economia de mercado que gira por si própria
numa margem inferior e extensa da economia, constituída por unidades independentes e
responsáveis por um volume significativo de trocas de bens e serviços. A própria atividade
produtiva pressupõe a divisão do trabalho e, portanto, a existência das trocas. O mercado, esse
lugar das trocas dos resultados dos trabalhos humanos não seria, no sentido que Braudel lhe
atribui, o signo do capitalismo. Sem o mercado não haveria economia no sentido corrente da
palavra, mas uma vida fechada na auto-suficiência. Esta matriz de observação relativiza a visão
de um sistema capitalista de alto a baixo da sociedade, contribuindo para a percepção de
atividades econômicas que se movimentam rente-ao-chão e que escapam às estatísticas.
16
CF. Braudel, Fernand. O Tempo do Mundo. São Paulo, Martins Fontes, 1996, p.579.
17
Cf. Braudel, Fernand. Os Jogos das Trocas. Lisboa-Rio de Janeiro, Edições Cosmos, 1985 e O Tempo do Mundo.
São Paulo, Martins Fontes, 1996.
18
Fernand Braudel e a história. Chateauvallon/outubro 1985. Lisboa, Teorema, 1987, pg.124.
17
Sem desconhecer os processos de submissão à reprodução do capital, pode-se afirmar que, face
ao aprofundamento da insuficiência da economia capitalista em absorver parcelas crescentes da
população como mão-de-obra assalariada, esse segmento da economia de que nos fala Braudel
deve se constituir num refúgio de uma parte cada vez maior da população economicamente ativa.
É nos interstícios dessa economia de mercado que vem ocorrendo a reprodução da vida de uma
parcela crescente da população.
Embora o comércio ambulante apareça como a manifestação mais aparentemente visível desta
economia dos setores populares, existe, na verdade, uma extensa lista de atividades, desde
produção de alimentos até a construção civil e produções culturais.
Como indica Coraggio,19 este conjunto de atividades ocorre a cargo da reprodução da população,
independentemente do seu caráter de força de trabalho para o capital. Ou seja, as condições de
trabalho necessárias à reprodução da vida de parcelas crescentes da população não vêm sendo
proporcionadas nem pelo mercado capitalista de trabalho, nem pelas cada vez mais restritas ações
compensatórias do Estado.
A eficiência dessa economia dos setores populares não pode ser aferida pela capacidade de seus
integrantes transformarem-se em pequenos empresários, mas por sua capacidade de assegurar
postos de trabalho e gerar alguma renda para um grande número de pessoas.
A racionalidade dessa economia está ancorada na geração de renda destinada a prover e repor os
meios de vida e na utilização dos recursos humanos próprios, englobando unidades de trabalho e
não de inversão de capital. Ou seja, baseia-se na lógica da necessidade, expressando o reverso da
lógica do capital, que desloca trabalhadores e fecha oportunidades de trabalho.
19
Cf. Coraggio, José Luis. “Economia Popular e Construção da Cidade”, in Proposta, n. 62, set.94.
20
Esta análise inspira-se em Coraggio, José Luis. Economia urbana. La perspectiva popular. Quito, ILDES.
FLACSO, 1998.
18
É neste cenário, delineado pelas mudanças estruturais no mundo do trabalho e pela busca de
alternativas através de inúmeras iniciativas econômicas populares, que se desvelam a
contemporaneidade e a pertinência dos objetivos propostos para este seminário. E aqui cabe
repetir as seguintes indagações:
• face às oportunidades - cada vez mais fugidias - de emprego regular assalariado, como
entender a natureza e o destino dessa economia dos setores populares dentro da lógica central
do capitalismo hoje?
• seria possível, não apenas potencializar essa economia dos setores populares mas, também,
fortalecer as relações assentadas em valores éticos de solidariedade, cooperação e justiça?
• em sua matriz empírica, esta economia dos setores populares existe apenas de forma dispersa
e fragmentada. A sua viabilidade, o crescimento e a troca de qualidade dependeria de aportes
econômicos e sociais que não são reproduzíveis atualmente no seu interior e que limitam o
seu desenvolvimento;
• mesmo que de forma ainda incipiente, a percepção do mercado pelos movimentos sociais
como uma realidade simultaneamente econômica e social, contesta a visão liberal do mercado
como um regulador sem reguladores e aponta para a resistência e proposições, desde o
interior da economia de mercado, contra a exclusão imposta pela ordem capitalista; e