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EMPREENDEDORISMO E REPRODUÇÃO DO CAPITAL: tendências ídeo-políticas

em tempos de crise

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo discutir as bases histórico-ontológicas do empreendedorismo,


como tendência da reprodução do capital, no contexto da crise acelerada pela Covid-19.
Dadas as condições de desassalariamento e crescimento do desemprego, argumentamos
que o incentivo ao empreendedorismo através dos programas governamentais potencializa
as relações de precarização do trabalho e se constitui como ideologia da crise.
Metodologicamente, utilizou-se uma pesquisa bibliográfica que recupera teses
schumpeterianas, com o auxílio de dados sobre a temática, a partir de relatórios da
CEPAL/OIT (2020), Portal do Empreendedor-MEI(2021) e SEBRAE (2021), buscando
problematizar as contradições, a partir da crítica da economia política em Marx.

Palavras-Chave: Empreendedorismo. Precarização do trabalho. Reprodução do capital.

ABSTRACT

This work aims to discuss the historical-ontological bases of entrepreneurship, as a trend in


the reproduction of capital, in the context of the crisis accelerated by Covid-19. Given the
conditions of unemployment and unemployment growth, we argue that the incentive to
entrepreneurship through government programs enhances the relations of precariousness of
work and constitutes an ideology of the crisis. Methodologically, a bibliographic research was
used that retrieves Schumpeterian theses, with the help of data on the subject, from reports
from ECLAC/ILO (2020), Portal do Empreendedor-MEI (2021) and SEBRAE (2021), seeking
to problematize the contradictions, from the critique of political economy in Marx.

Keywords: Entrepreneurship. Precariousness of work. Reproduction of capital.


1. INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, sobretudo, com a crise acelerada pela Covid-19, o capital reitera
medidas de ajuste neoliberal que já vinham em processo enquanto saída da crise financeira
mundial, deflagrada em 2008. No Brasil, diante da redução drástica de postos formais de
trabalho, ganham força as estratégias de incentivo ao empreendedorismo como alternativa
ao desemprego. Seduzidos pela ideia de ser “dono do seu próprio negócio”, muitos
trabalhadores, em escala individual, passam a redefinir a sua personalidade jurídica e
registrarem uma empresa em seu nome, assumindo a responsabilidade com encargos
sociais e custos relacionados a compra de mercadorias e meios de trabalho.
A nossa argumentação sugere que essa alternativa tem demonstrado contradições:
na medida em que contribui para o ocultamento dos índices de desemprego1 realçando a
preocupação do Estado com os trabalhadores em atividades informais, tem potencializado
novas formas de precarização do trabalho e incorporação da mais-valia ao processo
produtivo, enquanto mecanismo de contra tendência à queda da taxa de lucro.
Essas atividades situam-se, predominantemente, na esfera da circulação, lócus da
venda de serviços e mercadorias por pequenas e microempresas e microempreendedores
individuais, aparentemente, descoladas da esfera produtiva do capital e, portanto, “à
margem” de suas determinações macrossociais. Em vista disso, supomos que a aceleração
da crise contemporânea e o seu desdobramento em diversos níveis da vida social,
representa a capacidade de reprodução ampliada do capital.
Nesse contexto de crise, as políticas voltadas ao trabalho e a renda são recolocadas,
notadamente, no epicentro do debate das agendas governamentais, sob a orientação dos
organismos internacionais e com forte apelo ideológico do empreendedorismo. De acordo
com o estudo da CEPAL e da OIT2, destacam-se como recomendação imediata à recessão
a) o apoio dos serviços de proteção social básica e b) a proteção das pequenas e médias
empresas e dos trabalhadores da economia informal3 através de incentivos financeiros.
Seguindo a recomendação, o governo brasileiro regulamentou o Programa Nacional
de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (PRONAMPE), sancionado

1
Na nossa interpretação, tornar-se MEI significa sair das estatísticas oficiais de emprego informal e desemprego
De acordo com a PNAD, "a taxa de informalidade – soma dos trabalhadores sem carteira, trabalhadores
domésticos sem carteira, empregador sem CNPJ, conta própria sem CNPJ e trabalhador familiar auxiliar".
Disponível:https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/26913-
desemprego-cai-em-16-estados-em-2019-mas-20-tem-informalidade-recorde Acesso 7/9/2020.
2
Situação trabalhista na América Latina e no Caribe maio de 2020 Número 22: Trabalho em tempos de
pandemia: desafios contra a doença de coronavírus (COVID-19). De acordo com as estimativas da OIT, o
trabalho informal é a fonte de renda para muitos lares na América Latina e no Caribe, onde a taxa média de
informalidade é de aproximadamente 54%. Disponível: <https://www.cepal.org/es/publicaciones/45557-
coyuntura-laboral-america-latina-caribe-trabajo-tiempos-pandemia-desafios frente > Acesso em 16 jun 2020.
3
O termo se refere a setorizalização da economia – formal e informal – adotada, originalmente, nas formulações
expostas no Relatório do Quênia (OIT, 1972) e nos trabalhos do Programa de Emprego para a América Latina e
o Caribe (PREALC), que se revela presente até hoje em seus estudos.
pela Lei nº 13.999/2020, com o objetivo de desenvolver e fortalecer os pequenos negócios.
O programa prevê investimentos de 15,9 bilhões e uma linha de crédito até o limite de 30%
da receita bruta obtida em 2019, com a participação de diversos bancos públicos. O público
alvo a ser atingido pelo programa são as pequenas e microempresas com faturamento de
R$ 360 mil a R$ 4,8 milhões por ano, não contemplando, portanto, os Microempreendedores
Individuais (MEI), cujo faturamento é expressivamente menor4.
Importa destacar que esse cenário de expansão do empreendedorismo já havia sido
verificado no Brasil desde a década de 1990, com a intensificação da reestruturação
produtiva no país, inspirada nos receituários políticos e ideológicos definidos no Consenso
de Washington5, que reconfigurou os setores produtivos conforme a dominância econômica,
político-ideológica e social do capital portador de juros, como veremos na seção seguinte.
“De repente, a relação Estado-capital disseminava a grande descoberta: o que fora força de
trabalho podia e devia, agora, tornar-se empresa” (TAVARES, 2018, p. 112). São dadas as
condições legais necessárias às experiências de trabalho por conta própria.
Buscando compreender suas bases histórico-ontológicas, partimos do suposto do
empreendedorismo como tendência ideológica da sociedade burguesa em sua fase de
expansão monopólica, formulada em meados do século XX pelo liberal austríaco Joseph A.
Schumpeter (1961) e, buscando estabelecer um fio condutor na direção do trato crítico do
empreendedorismo na contemporaneidade, perguntamos ao longo das discussões tratadas
neste artigo, quais as bases materiais que particularizam o empreendedorismo no
capitalismo contemporâneo? poderíamos considerá-lo como ideologia da crise fundada pelo
pensamento liberal? E, neste sentido, também estaria cumprindo função à reprodução do
capital?
Diante do cenário de crise, em que o capital necessita cada vez mais de respostas
que não só garantam a recuperação de suas taxas de lucro, mas que possa estabelecer um
consenso entre as classes, supomos que a reedição do empreendedorismo na
contemporaneidade reforça o projeto de dominação burguesa, buscando legitimar uma
forma de trabalho, hegemonicamente, descolada da totalidade social (HARVEY, 1996;
ANTUNES, 2018; CANTALICE, 2013; SOUZA, 2016, TONET, 2016).
Longe da pretensão de esgotar a complexidade que contempla tais questões,
pretendemos, especificamente, resgatar contribuições teóricas no debate sobre
empreendedorismo no Serviço Social, a partir das reflexões suscitadas, algumas delas que

4
Até R$60 mil, podendo contratar até um funcionário, são os chamados trabalhadores por conta própria,
fortemente atingidos pela crise atual, de acordo com a Lei Complementar nº 128/2008.
5
O Consenso de Washington foi um conjunto de medidas formuladas em novembro de 1989 por economistas de
instituições financeiras situadas em Washington como o FMI e o Banco Mundial e que se tornaram oficiais
quando passaram ser "receitadas" para promover o "ajustamento macroeconômico" dos países em
desenvolvimento.
se encontram em aberto6. O trabalho tem como fonte de pesquisa o levantamento de dados
estatísticos, oriundos de pesquisas realizadas anteriormente e revisão bibliográfica de
autores clássicos e contemporâneos, no sentido de provocar reflexões acerca das
peculiaridades do empreendedorismo na contemporaneidade.

2. Empreendedorismo como tendência da reprodução do capital

Partindo do pressuposto analítico deste trabalho, nos interessa nesta sessão


compreender as bases ontológico-materiais que fundam o empreendedorismo, a partir do
trabalho e da sua função determinante na constituição da sociedade moderna capitalista.
Essa função se relaciona com o conjunto de idéias que se tornam dominantes a partir
daquele momento de constituição de uma razão ontológica7.
Como se sabe, foi da elaboração de uma ontologia do ser social8 que se funda na
práxis e encontra no trabalho a sua protoforma, que é inaugurada uma nova e radical forma
de ser, a partir dos processos histórico-concretos, que se desdobram no surgimento de
novas categorias, inacabadas e moventes. Portanto, as relações de rupturas e
continuidades entre os fenômenos fundados pelo trabalho, principal complexo social, tem
raiz no legado do pensamento marxiano e na possibilidade de compreensão crítica dos seus
fundamentos.
Em Marx não há elaboração teórica à respeito do empreendedorismo, contudo, a sua
perspectiva lança luz à compreensão das particularidades dos fenômenos contemporâneos
em relação à totalidade social, entendida como um complexo com muitas dimensões.
O debate em torno do empreendedorismo e a sua funcionalidade na sociedade
contemporânea tem vínculo umbilical com o modo de ser e de se reproduzir do capitalismo
maduro. Em meados do século XX, em meio ao desenvolvimento contraditório do
capitalismo monopolista, eram delineadas as primeiras teorias de um dos mais
proeminentes economistas liberais, o austríaco Joseph A. Schumpeter, fundador de um dos
conceitos mais utilizados nas últimas décadas. Naquele momento, o economista acreditava
que o surgimento de grandes empreendedores capitalistas, concentrando as reservas
financeiras disponíveis no mercado, seriam alavanca para as novas investidas tecnológicas
e para o desenvolvimento econômico e social.
6
Constitui reflexões do Projeto de Tese intitulado: Empreendedorismo e reprodução do capital: a concessão de
crédito aos microempreendedores individuais (MEIs) como tendência da precarização do trabalho (UFRN, 2021).
7
Trata-se da razão moderna, posta pelo mundo do trabalho. “Podemos dizer que uma razão de caráter
ontológico é uma forma da racionalidade que tem como ponto de partida uma teoria geral do ser, no caso de
Marx, uma teoria geral, do ser social, e que tem na realidade objetiva o pólo resolutiva das questões relativas ao
conhecimento” (TONET, 2016, p. 4).
8
Aqui, fazemos referência a própria ontologia lukacsiana dos livros As Bases Ontológicas do Pensamento e da
Atividade do Homem. In: LUKACS, G. O Jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
2009. E do livro Para a Ontologia do Ser Social. Tomo II. Vol. 14. São Paulo: Coletivo Veredas, 2018. (Capítulo
1 – O Trabalho).
Em seu livro Teoria do Desenvolvimento Econômico, Schumpeter (1934) renova as
promessas liberais, ao defender o elemento da inovação, como pilar do desenvolvimento
econômico. Na perspectiva schumpeteriana, a figura do “empreendedor” se apresenta como
o indivíduo, que pode ser um trabalhador ou um capitalista, vinculado ou não a uma
organização empresarial, que dispõe de habilidades e competências técnicas e subjetivas
funcionais ao “mundo dos negócios”. E para dizê-lo, nas suas próprias palavras:

Chamamos “empreendimento” a realização de combinações novas; chamamos


“empresários” aos indivíduos cuja função é realizá-las. Esses conceitos são a um
tempo mais amplos e mais restritos do que no uso comum. Mais amplos porque em
primeiro lugar chamamos “empresários” não apenas aos homens de negócios
“independentes” em uma economia de trocas, que de modo geral são assim
designados, mas todos que de fato preenchem a função pela qual definimos o
conceito, mesmo que sejam, como está se tornando regra, empregados
“dependentes” de uma companhia, como gerentes, membros da diretoria etc.,
(SCHUMPETER, 1934, p. 83)

Dentre outros temas discutidos em seu livro, destacamos a importância dada por
Schumpeter ao acesso a crédito como meio de fomento ao empreendedorismo. “De onde
vêm as somas necessárias à aquisição dos meios de produção necessários para as
combinações novas, se o indivíduo em questão por acaso não as tiver? (SCHUMPETER,
1934, p. 83), indagou o economista em uma de suas análises, se referindo a importância do
crédito como referência para o desenvolvimento do “espírito empreendedor dos homens de
negócios” da época. Essa realidade repõe na ordem do dia a clássica do laissez-faire e a
promessa da suposta liberdade buscada no mercado, formulada por Adam Smith em “A
riqueza das nações” (1776).
Ainda sobre as análises do mesmo autor, no livro Capitalismo, socialismo e
democracia (1961), Schumpeter contraria as formulações neoclássicas do desenvolvimento
econômico como evolução natural e harmoniosa, problematizando o complexo de
contradições expressas no desenvolvimento, do qual denomina Destruição Criadora.
Nesse último livro, ao analisar o contexto da Grande Depressão de 1929, enquanto
os neoclássicos afirmavam que o capitalismo havia atingido o seu limite de desenvolvimento
e, portanto, levaria ao esgotamento. O economista afirmava o contrário: seria a
oportunidade dos empresários investirem em novos negócios, inovando as suas forças
produtivas e os hábitos de consumo. Tais investidas combinadas a divulgação em massa
dos novos produtos eliminaria a concorrência e os tonariam acessíveis a todos. Portanto,
na concepção shumpeteriana, o processo de desenvolvimento econômico associado ao
acesso a bens de consumo levaria a redução das desigualdades de renda e, supostamente,
ao bem-estar de todos e fim do capitalismo. Em consequência disso, tem-se
a abertura de novos mercados, estrangeiros e domésticos, e a organização da
produção, da oficina do artesão a firmas, como a U.S. Steel, servem de exemplo do
mesmo processo de mutação industrial, que revoluciona incessantemente a
estrutura econômica a partir de dentro, destruindo incessantemente o antigo e
criando elementos novos (SCHUMPETER, 1961, p. 110).

Nesta perspectiva, o fortalecimento do discurso do empreendedorismo incorporado


pelas políticas públicas e, fortemente difundido pelos aparelhos midiáticos do grande capital
reproduz a idéia de uma suposta predisposição individual dos trabalhadores para o “mundo
dos negócios”, direcionada a diversos segmentos da informalidade genérica e
indistintamente, como se a incorporação do empreendedorismo nas experiências de
trabalho mais qualificadas, por exemplo, pudessem ser equiparadas ao desenvolvimento de
atividades como as dos trabalhadores ambulantes, camelôs e outras atividades de
sobrevivência.
“O grande paradoxo indisfarçável do capitalismo no século XXI é o modo pelo qual o
atual avanço produtivo antagoniza com a sobrevivência de uma parcela cada vez maior da
humanidade” (MARANHÃO, 2012, p. 81). Em outras palavras, dissemos que a tentativa de
conciliação entre desenvolvimento econômico e desenvolvimento social, apenas reforça as
estratégias de ocultação das contradições capitalistas, cumprindo função determinante ao
processo de reprodução do capital.
No que se refere ao trabalho, empiricamente, verifica-se que o discurso de incentivo
ao empreendedorismo, supostamente factível nas teses schumpeterianas, esbarra nas
condições objetivas experimentadas pelos trabalhadores, como veremos na próxima seção.
Para logo, importa esclarecer as bases histórico-materiais sobre as quais essa ideologia
ganha força na contemporaneidade.

Nesse cenário de forte apelo ao empreendedorismo como a via para o


enfrentamento ao desemprego, o empreendedor é apresentado como o indivíduo
que incansavelmente não desiste de buscar as oportunidades até encontrá-las. Seu
diferencial está na sua suposta capacidade de se esforçar o suficiente, de se
interessar em conquistar seu sucesso financeiro. O sentido é de responsabilização
individual pela empregabilidade, em que a persistência do empreendedor e sua
coragem de tomar para si a responsabilidade de crescer na vida, sem culpar as
condições objetivas — falta de apoio do Estado, de incentivo financeiro, condições
econômicas e sociais — determinam a sua capacidade de se tornar um vencedor
(VALENTIM & PERUZZO, 2018, p. 4).

A reflexão das autoras nos remete a algumas teses pós-modernas sobre trabalho. O
que se convencionou chamar de pós-modernidade9, que ganha impulso com a crise de
superacumulação da década de 1970, e segue na passagem do século XX para o século
XXI, trata-se, na realidade, de novas tendências funcionais ao projeto de dominação

9
Indicamos: LYOTARD, Jean François. A Condição Pós-moderna. Tempos Pós- modernos e CANTALICE,
Luciana B. de O. As incidências pós-modernas na produção do conhecimento em Serviço Social. (Tese de
Doutorado). Rio de Janeiro: PPGSS/UERJ.
burguesa, em conformidade com a chamada acumulação flexível10. Ou, nos escritos de
Harvey (1996), uma condição histórico-geográfica, marcada por uma falsa ilusão de uma
sociedade de produtores independentes, uma sociedade sem vendedores de força de
trabalho, posto que o contrato de compra e venda da força de trabalho vai se
metamorfoseando, reduzindo tais fenômenos a processo isolados da totalidade social.

Historicamente o capital tem buscado, ao passo que viabiliza suas bases de


produção, constituir seus mecanismos de reprodução social e suas estratégias de
saída dos momentos de crise. Para tanto, incorporando novas medidas econômicas
e constituindo novos mecanismos de regulação e de construção do consenso entre
as classes, objetivando manter sua hegemonia e sua auto-afirmação como “única
possibilidade histórica” (CANTALICE, 2003, p. 56).

Uma das consequências destrutivas deste processo é a subsunção incontestável do


trabalho ao capital, refletida na intensificação do quadro de desemprego e na transferência
de capital constante para o trabalhador, que passa a assumir a responsabilidade dos custos
e condições de trabalho (desprotegido), aumentando a intensidade e extensão das jornadas
de trabalho, chegando, por sua vez, na esfera do consumo e apropriação dos lucros pelo
capital.
Ganha centralidade o discurso de incentivo e fomento ao empreendedorismo,
incorporando diversos programas governamentais, Estado, bancos e organismos privados
fortalecem parcerias, junto aos aparelhos midiáticos em função da divulgação de
experiências empreendedoras exitosas, mediando o acesso à crédito e cursos oferecidos
por instituições por instituições como Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas
Empresas (SEBRAE), contribuindo para o fomento da cultura empreendedora.

Dados de uma pesquisa a cargo da Global Entrepreneurship Monitor (GEM), feita no


Brasil pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e
pelo Instituto Brasileiro de Qualidade e Produtividade (IBQP), em 2014, constataram
que em dez anos a taxa de empreendedorismo no Brasil aumentou de 23%, em
2004, para 34,5% naquele ano (2014). Na comparação mundial, o Brasil se destaca
com a maior taxa de empreendedorismo, quase oito pontos porcentuais à frente da
China, o segundo colocado, com taxa de 26,7%. O número de empreendedores
entre a população adulta no país é também superior ao dos Estados Unidos (20%),
Reino Unido (17%), Japão (10,5%) e França (8,1%). Entre as economias em
desenvolvimento, a taxa brasileira é superior à da Índia (10,2%), África do Sul (9,6%)
e Rússia (8,6%) (BRASIL, 2015, n.p) (TAVARES, 2018, p. 113).

É inegável que essa tendência seja expressão dos limites cada vez maiores de
acesso ao trabalho formal e, consequentemente, do desemprego e pauperismo da classe
trabalhadora. Ou, dito a partir da própria teoria marxiana, trata-se do “material humano a
serviço das necessidades variáveis de expansão do capital e sempre pronto para ser
10
Utilizando-se das teses de Piore e Sabel (1984), Harvey (1996, p.140) afirma: a acumulação flexível, como vou
chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos
processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo
surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros,
novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e
organizacional.
explorado, independentemente dos limites do verdadeiro incremento da população” (MARX,
2010, p. 735).
No capítulo 23 do livro I de O Capital, ao tratar sobre a lei geral da acumulação
capitalista, Marx demonstra que o crescimento da força de trabalho sobrante é parte
constitutiva do modo de produção capitalista e condição necessária à acumulação,
fenômeno também denominado pelo filósofo de superpopulação relativa.
No contexto de crise contemporânea, a coexistência de múltiplas faces da
informalidade disponíveis ao capital à níveis de exploração cada vez mais elevados, reitera
a assertiva marxiana. São as ocupações situadas na esfera da circulação e da venda de
serviços e mercadorias, cuja natureza se funda, de modo insubstituível, na produção de
mais valia pelas grandes empresas e setores produtivos. Ou seja, a reprodução do capital
ocorre sem que ele precise, necessariamente, investir em força de trabalho.
Ao criticar as formulações dos economistas clássicos e contrariar o suposto caráter
imanente da lei do valor, Marx demonstra que quanto maior o grau de desenvolvimento do
capital, menor é a necessidade de força de trabalho para atender a um dado nível de
acumulação. Isto quer dizer que:

O sobretrabalho da parte ocupada da classe trabalhadora engrossa as fileiras de


sua reserva, ao mesmo tempo que, inversamente, esta última exerce, mediante sua
concorrência, uma pressão aumentada sobre a primeira, forçando-a ao
sobretrabalho e à submissão aos ditames do capital. A condenação de uma parte da
classe trabalhadora à ociosidade forçada em razão do sobretrabalho da outra parte,
e viceversa, torna-se um meio de enriquecimento do capitalista individual, ao mesmo
tempo que acelera a produção do exército industrial de reserva num grau
correspondente ao progresso da acumulação social (MARX, 2013, p. 465).

Ao analisar as determinações do processo de reprodução social se valendo da


Ontologia lukacsiana, Souza (2016) recorda que:"[...]o ser social, ao reproduzir a si mesmo,
torna-se cada vez mais social, que ele constrói o seu próprio ser de modo cada vez mais
forte e intenso a partir de categorias próprias, categorias sociais". Deste modo, a reprodução
social apresenta tendências teleologicamente modificadas no decorrer do desenvolvimento
histórico que, na sociedade capitalista, mantém as bases de sustentação da estrutura de
classes fundada pela propriedade privada.

Em consequência disso, pode-se dizer que o mundo moderno assenta-se


sobre a contradição entre capital e trabalho e, segundo pensamos, somente
deixará de ser mundo moderno quando esta contradição deixar de existir.
Seria ocioso enfatizar que os dois termos da contradição sofrerão mudanças,
das menores às maiores, ao longo da sua trajetória. Contudo, dificilmente se
poderá dizer que essas mudanças alterarão, de modo radical, a sua
essência. Mas, certamente, alterarão profundamente as formas concretas de
existência (TONET, 2016, p. 2).
Visto dessa perspectiva, podemos antecipar, de modo generalizado, um dos nossos
argumentos principais, o de que o capitalismo opera numa tentativa de apagamento das
contradições de classe, na medida em que busca fortalecer a concepção liberal burguesa, a
partir de uma suposta ruptura entre indivíduo e totalidade social, entre trabalho e produção
capitalista. Tudo se passando como se fosse possível, em momentos de profunda crise, o
isolamento de determinados segmentos da classe trabalhadora – diga-se, os
empreendedores -, numa espécie de “blindagem” da crise.
Não é novidade, por exemplo, a tentativa de renovação das idéias liberais no debate
sobre desenvolvimento econômico e social11, que tem como pano de fundo as estratégias
políticas de conciliação de classe. Daí, o papel determinante das ideologias no processo de
reprodução social.

A ideologia emerge como desenvolvimento da estrutura imanente ao trabalho, como


desdobramento da categoria do espelhamento, ou prévia-ideação, adotando uma
designação mais conhecida. Portanto, é impensável sem o desenvolvimento da
categoria fundante do ser social, o trabalho (SOUZA, 2016, p. 41).

A partir dos anos 2000, seguindo o vocabulário dos organismos financeiros


internacionais, o Brasil passa a implantar programas governamentais com vistas à
formalização de microempresários. Entre tais iniciativas está o Programa
Microempreendedor Individual (PMEI), instituído em nível federal no ano de 2008,
representando hoje uma das principais estratégias de enfrentamento ao desemprego e à
informalidade no país (VALENTIM E PERUZZO, 2018).
Esta forma de trabalho teve como marco regulatório a aprovação da Lei
Complementar nº 128, de 19/12/2008, que criou condições especiais para que o trabalhador
conhecido como informal se legalize como pequeno empresário ou microempreendedor
individual (MEI)12. Esta nova tendência vem moldando novas formas de subsunção que
abarca também a esfera subjetiva da classe trabalhadora e suas formas de organização
coletiva, como veremos a seguir.

3. De trabalhador à empreendedor: alternativa ao desemprego ou ofensiva ídeo-


política do capital?

11
Lembremos das teses dos economistas indianos Amartya Sem no livro Desenvolvimento como liberdade
(2000) e Muhammad Yunus (2008) no livro O banqueiro dos pobres.
12
A Lei Complementar nº 128/2008 que alterou a Lei Geral da Micro e Pequena Empresa (Lei Complementar nº
123/2006) cria a figura do Microempreendedor Individual. Constituem critérios para o cadastro: o faturamento
limitado a R$ 81.000,00 por ano, a não participação como sócio, administrador ou titular de outra empresa, a
contratação de até no máximo um empregado e que exerça uma das atividades econômicas previstas no Anexo
XI, da Resolução CGSN n. 140, de 2018, o que relaciona todas as atividades permitidas ao MEI. Disponível: <
http://www.portaldoempreendedor.gov.br/legislacao> Acesso 15/04/2021.
Como vimos, o empreendedorismo enquanto ideologia fundada pelo pensamento
liberal tem suas raízes e bases histórico-ontológicas no trabalho. Neste sentido, falar sobre
a função do empreendedorismo no capitalismo contemporâneo implica recorrer ao arsenal
teórico da ontologia do ser social, nas formas de produzir e de se reproduzir da sociedade
capitalista e, não menos importante, na ampliação nas formas geradoras de valor,
produzidas nesse estágio de acumulação sob a hegemonia financeira13.
A partir dos anos 2000, particularmente, no rastro da crise financeira que atingiu uma
das principais economias mundiais14, evidencia-se uma busca inexorável pela valorização do
capital acumulado. Segundo Marques e Nakatani (2009, p. 63), trata-se de uma crise
provocada pela hipertrofia do capital fictício 15. Ou seja, grande parte do capital global se
especializa na apropriação do valor produzido e uma menor parte investe na produção
desse valor. Esta apropriação chega ao ápice quando falta capital para ser apropriado:
caem as taxas de lucro e o capital entra em crise (CARCANHOLO, 2009).
Nas suas lições sobre a lei do valor, Marx (2010) demonstra as formas
multifacetadas do processo de transformação do dinheiro em capital, que passa desde a
produção do excedente econômico, identificado em sua grandeza como mais-valia e
extraídas da produção e circulação de mercadorias, até a forma especifica assumida pelo
capital como portador de juros, definido com suas próprias palavras, como um “[...] capital
vadio, à espera de aplicação” (LIVRO III, Volume V, capítulo XIX). De acordo com
Carcanholo e Nakatani (2015), a remuneração do capital fictício está constituída pelos juros
auferidos e pelos ganhos obtidos pelo capital especulativo parasitário, forma desenvolvida
do capital fictício.
Em tese, a saída da crise seria desvalorizar o capital concentrado, o que implicaria
em maiores investimentos nos setores produtivos e, consequentemente, a geração de novos
postos de trabalho.No entanto, os Estados continuam a adotar medidas neoliberais de
contenção de gastos sociais, enquanto medidas de ajuste necessário à retomada da taxa
média de lucro do capital.
As novas determinações da produção global capitalista traduz a relação estabelecida
entre capital produtivo e o que Marx no capítulo XXI do livro III de O capital denominou
capital portador de juros. Ao examinar o desenvolvimento do sistema de crédito no capítulo
13
Indicamos os livros A mundialização financeira: gênese, custos e riscos (1998) e A finança mundializada:
raízes sociais e políticas, configurações, consequências (2005). Ambos de autoria do economista francês
François Chesnais.
14
A primeira manifestação dessa crise ocorreu na esfera financeira, não por acaso, nos Estados Unidos, país
onde se desenvolveu um maior grau de capital fictício. Para esta compreensão sugerimos a análise de Charles
R. Morris (2008), autor do livro “O crash de 2008: dinheiro fácil, apostas arriscadas e o colapso global do crédito.
São Paulo: Aracati, 2009”.
15
Segundo Chesnais (1998, p. 268): “Na época em que Marx escreveu, essas representações de um capital
público ou privado ainda eram pouco numerosas: limitavam-se aos títulos dos empréstimos tomados pelo Estado
e às ações. Nas páginas que tratam do que ele chama de capital fictício, Marx estudou, com inegável fascínio, a
maneira como as instituições financeiras (entre as quais a Bolsa) são capazes de fazer com que um crédito ou
um título se desdobre para viver muitas vidas (livro III, capítulo XXIX e XXX)”.
XXV do Livro III, Marx (2017) chama a atenção para o fato de que este é uma expressão
desenvolvida da produção capitalista haja vista a sua função à aceleração do
desenvolvimento das forças produtivas e valorização do capital.
Sobre tais circunstâncias, importa destacar que essa nova dinâmica de acumulação,
que modificou a finalidade do processo de valorização do capital por intermédio da
mercadoria dinheiro, só pode existir, teoricamente, destruindo valor de uso. Os leitores desta
tradição teórica sabem que o dinheiro se converte em capital na medida em que se vincula
ao movimento global, sendo, portanto, na forma inicial dinheiro que se gesta o processo
capitalista de produção.
Tais tendências reforçam a hipótese central de Antunes (2018) no livro O privilégio
da servidão, a de que se processa uma nova morfologia de trabalho denominada de novo
proletariado de serviços da era digital. Nesse cenário em que o empreendedorismo aparece
como alternativa à crise16, o trabalho digital tornou-se mediação fundamental. Sem relação
patronal, sem propriedade dos meios de produção, são “empreendedores de si mesmos”,
com jornadas exaustivas e salários rebaixados (pagos por peça), algumas vezes,
transformada em dívida, a exemplo do emblemático serviço dos entregadores. Explica o
autor:

Como o capital não se valoriza sem realizar alguma forma de interação entre
trabalho vivo e trabalho morto, ele procura aumentar a produtividade do trabalho,
intensificando os mecanismos de extração do sobretrabalho, com a expansão do
trabalho morto corporificado no maquinário tecnológicocientífico-informacional.
Nesse movimento, todos os espaços possíveis se tornam potencialmente geradores
de mais-valor (ANTUNES, 2018, p. 39).

Supomos, portanto, que as experiências de empreendedorismo incentivadas pelos


programas governamentais – a exemplo da figura do microempreendedor individual –, na
atual forma de organização produtiva, não está desvinculado dos ditames da acumulação
financeira do capital e do seu movimento global de valorização.
Embora os discursos de incentivo sugiram a possibilidade do trabalhador, a partir das
suas próprias condições de investimentos e atributos pessoais, “fazer o seu próprio salário”
e gerar novas alternativas de renda, o que se observa, na realidade do que se convencionou
chamar de ”empreendorismo por necessidade”17 é, além da tendência ao endividamento,
também o baixo faturamento e rentabilidade desses trabalhadores.

16
Pensemos no Vamos Ativar o Empreendedorismo (VAE), criado pela grande mídia em 2020, em meio à
pandemia e financiado por diversas instituições financeiras, como o Itaú e o Bradesco.
17
Termo comumente utilizado pelas instituições de fomento ao empreendedorismo e adotado pelas políticas
sociais. “Uma a análise da evolução das taxas de empreendedorismo no país nos últimos 20 anos mostra que,
em tempos de recessão econômica, é comum que os brasileiros recorram ao empreendedorismo por
necessidade, como alternativa de ocupação e renda. Isso já ocorreu em períodos anteriores (a exemplo do que
foi verificado entre os anos de 2014 e 2016).
Disponível:<https://www.agenciasebrae.com.br/sites/asn/uf/NA/mesmo-com-pandemia-pais-registra-recorde-na-
abertura-de-mei,028f6d7ad1c47710VgnVCM1000004c00210aRCRD> Acesso 24/11/21.
Os dados são incontestáveis. Mesmo em condições de pandemia, o Brasil alcançou
no final de 2020 recorde no número de registros de MEI, com um total de 11,3 milhões de
MEIs ativos, 20% a mais do que no fim de 2019, quando o segmento tinha 9,4 milhões de
registros (Portal do Empreendedor, 2020)18. No entanto, os dados revelam que apesar do
empreendedorismo se constituir como alternativa ao desenvolvimento e da “livre” escolha
dos trabalhadores, as condições objetivas não deixam dúvidas:

Segundo pesquisa divulgada pela Neon, responsável pela plataforma MEI Fácil,
53% destes empreendedores viviam com até R$ 1 mil reais por mês ao fim do ano
passado. Ainda segundo a pesquisa, nos últimos meses, 52% dos empreendedores
individuais buscaram auxílio financeiro com parentes e amigos. E apenas um em
cada cinco obteve empréstimo com bancos ou instituições financeiras tradicionais
(NEON, 2020)

Ainda que as estatísticas recentes evidenciadas no Portal do Empreendedor (2020) 19


sinalizem uma elevação do número de registros de MEIs no país, (cerca de 10 milhões)
observa-se que os índices de formalização são ainda muito baixos se considerarmos o total
de trabalhadores por conta própria (23,4 milhões). Na nossa interpretação, tornar-se MEI
significa sair das estatísticas de emprego informal e desemprego a partir do momento em
que o trabalhador assume a personalidade jurídica, o que revela, de certo modo, uma
ocultação dos índices de desproteção social do trabalho 20 e, portanto, da reprodução da
força de trabalho precária, haja vista que as condições subjetivas para se tornar
empreendedor esbarram nas limitações objetivas do próprio mercado. Nas palavras de
Tavares (2004, p. 185), “uma desigualdade estrutural metamorfoseada em igualdade
individual”.
De acordo com o SEBRAE/PB (2020), com base em dados da Receita Federal 21, o
índice de inadimplência dos microempreendedores individuais na Paraíba sofreu um
aumento de quase 15% entre os meses de dezembro de 2019 e maio deste ano. No mês de
maio, o índice de inadimplência era de 57,12%, ou seja, 59.716 microempreendedores dos
139.271 registrados no Simples Nacional na Paraíba estavam em dia com o pagamento do
Documento de Arrecadação do Simples (DAS). Em dezembro de 2019, esse percentual era
de 42,75%: dos 130.102 MEIs registrados no estado, 74.488 estavam adimplentes, o que
revela a tendência ao endividamento dos MEIs, no período anterior à crise agravada pela
pandemia.

18
Disponível: < https://www.cnnbrasil.com.br/business/numero-de-novos-microempreendedores-individuais-bate-
recorde-em-2020/> Acesso 24/11/21.
19
Disponível em: < http://www.portaldoempreendedor.gov.br/estatisticas> Acesso em: 20 de Out 2020.
20
De acordo com a PNAD, "a taxa de informalidade – soma dos trabalhadores sem carteira, trabalhadores
domésticos sem carteira, empregador sem CNPJ, conta própria sem CNPJ e trabalhador familiar auxiliar".
Disponível: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/26913-
desemprego-cai-em-16-estados-em-2019-mas-20-tem-informalidade-recorde.
21
Disponível:https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2020/08/07/microempreendedores-atingem-inadimplencia-
de-5712percent-na-paraiba-aponta-o-sebrae.ghtml acesso 14/04/21.
Os dados acima ratificam a contradição entre os discursos de incentivo ao
empreendedorismo e as condições objetivas experimentadas pelos trabalhadores, no
tocante a desproteção associada ao endividamento. Nesta direção, as desigualdades de
classe – inerentes à sociedade capitalista – são canceladas e os indivíduos passam a se
distinguir pelas e aptidões individuais e subjetivas, cuja referência comum é o mercado.
Seguindo essa linha de análise, as relações sociais de produção e reprodução social
são polarizadas, como se pertencessem a extremos opostos. Neste sentido, “o
empreendedorismo se apresenta como uma função especial, para além da sociedade de
classes e dos conflitos entre capital e trabalho” (VALENTIM; PERUZZO, 2018).
A despeito das análises da categoria trabalho nas teorias pós-modernas afirmarem o
fim da sociedade do trabalho e por em xeque a sua centralidade ontológica na sociedade
contemporânea, a nossa argumentação principal sugere que, o empreendedorismo tratado
como tendência da reprodução do capital, se constitui como mais uma expressão de
negação das contradições de classe e dos valores emancipatórios fundados na
modernidade.

No âmbito social firmam-se alterações na estrutura das classes sociais,


modificações que se processaram no campo das relações, no plano da produção e
reprodução dessas, em termos de consciência de classe, de organização e de
práticas. O que não se deve confundir com a digressão pós-moderna de fim das
classes sociais, argumentada por um lado pelo deslocamento da produção do valor
como eixo central de análise da sociedade do capital e por outro lado pelo
alargamento da diversificação e da diferenciação no tecido social, o que
supostamente deflagraria o fim das classes sociais como categorias explicativas
(CANTALICE, 2013, p. 60).

Portanto, as consequências da ampliação da noção de classe trabalhadora, dadas


as profundas metamorfoses no universo produtivo, se traduz numa estratégia que deixa a
cargo do trabalhador, em escala individual, a responsabilidade com a geração de trabalho e
renda, às custas de uma liberdade (impossível) sob a ordem do capital, não deixando
alternativas à classe trabalhadora fora do campo da reprodução das condições precárias de
trabalho. “É, pois, de se esperar, uma vez definida a natureza da ideologia, que as
necessidades de reprodução social apareçam, como necessidades de conservação e
aprimoramento da forma capitalista de produção” (SOUZA, 2016, 98).

4. CONCLUSÃO

Nas últimas décadas, a expansão e concentração do capital levado às últimas


consequências pela internacionalização da produção, alterou o padrão de acumulação
baseado na apropriação do trabalho não pago, levando o capital a redefinir suas estratégias
de monopolização em escala planetária, instituindo o rentismo como a norma geral para a
produção da riqueza. Esta forma de acumulação é marcada pela contradição
produção/apropriação de valor e pela insuficiente capacidade do setor produtivo gerar o
excedente econômico necessário à acumulação do capital.
Este artigo busca recuperar as bases materiais histórico-ontológicas do
empreendedorismo, enquanto tendência da reprodução do capital no contexto da crise
contemporânea e hegemonia do capital financeiro. Nesse novo universo em que ganha
centralidade a figura do infoproletariado/cibertariado/proletariadodigital, a burguesia trata de
desenvolver estratégias para acelerar a produtividade do trabalho em grau extremo,
instituindo o home office, teletrabalho, empreendedorismo digital dentre outras formas
mediadas ou não por plataformas digitais, como imperativo de sobrevivência do capital,
conforme analisa Antunes (2018). Sobre tais circunstâncias, nos importa destacar que essa
nova dinâmica de acumulação, só pode existir, teoricamente, destruindo valor de uso, o que
implica no crescimento acelerado do desemprego, fenômeno que tende a fortalecer as
experiências de empreendedorismo, ao estilo schumpeteriano.
Sob a recomendação de organismos financeiros internacionais e, em resposta ao
quadro de desemprego e informalização do trabalho, historicamente agravadas nos países
da América Latina, vimos que o Estado brasileiro tem exercido papel fundamental no
fomento ao empreendedorismo, operacionalizado pelos programas governamentais em
parceria com os bancos. Essas atividades, por sua vez, se articulam aos setores produtivos,
uma vez que o crédito ofertado permite que os microempreendedores paguem suas contas,
comprem mercadorias e meios de produção, amortizem dívidas com fornecedores etc.
Do ponto de vista ídeo-político, tais contradições se passam como um processo de
generalização de um modelo “ideal” de trabalho, cancelando as contradições de classe.
Contudo, suas condições objetivas de existência e subsistência evidenciam contradições.
Ora, um indivíduo que se utiliza de um crédito bancário na tentativa de se formalizar como
empreendedor, não significa, necessariamente, formalização do trabalho, ao contrário, por
não ter seus direitos garantidos, em termos de salário e delimitação de jornada de trabalho,
pode estar cumprindo função à reprodução do capital sem, necessariamente, sair da
condição de trabalhador precário. A possibilidade de formalização e as suas supostas
vantagens, que aparecem como benefício para os trabalhadores, na realidade, contribui ao
ocultamento dos índices de desproteção social.

5. REFERÊNCIAS
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