2021 XeniaRoqueBenito VCorr
2021 XeniaRoqueBenito VCorr
2021 XeniaRoqueBenito VCorr
SÃO PAULO
2021
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
PÓS-GRADUAÇÃO INTERUNIDADES EM
ESTÉTICA E HISTÓRIA DA ARTE
Versão Corrigida
SÃO PAULO
2021
Agradecimentos
Esta tese não seria possível sem o suporte e a generosidade de museus e arquivos do
Brasil e do mundo. Nossos agradecimentos à Bibliothèque Nationale de France, por
possibilitar a aquisição de cópias dos livros originais ilustrados por Wifredo Lam; ao Centre
d‘Art Georges Pompidou, ao Musée du Tout-Monde e aos sítios web Edouard Glissant: une
Pensée Archipélique e ao Centro Gabo, por disponibilizar parte de seus acervos e valiosas
informações em formato online. À Biblioteca do Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo (MAC-USP), à Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Letras
(FFLCH- USP) e à Biblioteca Brasiliana da Universidade de São Paulo, por seus acervos
físicos.
Agradecemos à CAPES do MEC e à Comissão de Pós-Graduação do Programa de
Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP (CPG- PGEHA), pela
concessão da bolsa de doutorado.
Segmentos desta tese foram apresentados em congressos e seminários acadêmicos,
como o XI Congresso Internacional de Estética e História da Arte que teve por tema
"Rompendo as Fronteiras'' e o ―III Simpósio Internacional Pensar e Repensar a América
Latina ‖2019, no PROLAM/ USP onde fui responsável por ministrar o minicurso
"Surrealismos na América Latina". Agradecemos aos organizadores e participantes desses
eventos pela receptividade com que os trabalhos apresentados foram acolhidos.
Dedicamos um agradecimento especial a nossa orientadora, Daisy V. M. Peccinini,
que leu com extremo cuidado e debateu em conjunto com a autora os tópicos defendidos na
presente tese. Outro agradecimento às professoras Idalia Morejón, Simone Mesquita e a
Mariela Brazón, pela leitura e debate em torno do trabalho.
Agradeço a minha família de Cuba e do Brasil, que me brindaram todo seu apoio e
amor, em especial a minha mãe Margot Benito, a meu pai, Pablo Roque e a minha irmã,
Yipsy Benito, a meu companheiro, Ricardo Fraga, a minha cunhada Rosana Fraga e ao casal
Fraga-Rossi. Agradeço aos amigos Roberto Bezerra, Isidro Martins, Adelina França, Luciane
Briotto, Enrique Hernández, José A. Aravena e Flávio Carrança, pelo carinho com que
colaboraram nas diferentes etapas desta empreitada.
Resumo
A tese analisa como este gênero coloca Lam entre os protagonistas da vanguarda d'outremer,
em que confluem as derivações programáticas do surrealismo: a "negritude", "antilhanidade",
e o "realismo mágico", que o artista em seu contexto de origem encontrou. Estes três
conceitos, os quais trataremos reiteradamente no decorrer da tese, e que chamamos de
derivações "programáticas", – no sentido outorgado pela vanguarda às palavras que
condensam o tom de manifestos –; foram referências determinantes para Lam, e que até aqui,
no entanto, não se encontram suficientemente sistematizados.. Sendo inerentes às obras e aos
autores que Lam foi dado ilustrar, os conceitos negritude, decantado mediante a parceria com
Aimé Césaire; a antilhanidade, manifesta na colaboração com Édouard Glissant e, por fim, o
realismo mágico, compartilhado com Gabriel García Márquez.
Abstract
The thesis considers how the act of interpreting the literary works of renowned
intellectuals, many of which affiliated to surrealism or to its branches in the American
continent, permeated the works of Wifredo Lam within the realm of "illustration". Such
conciliation created an integrated system of relationships that greatly bolster the valuation of
his work.
The thesis further analyzes how this genre places Lam among the protagonists of the
avant-garde d'outremer, where the programmatic derivations of surrealism converge: the
"negritude"(blackness), "antilleanity", and "magic realism". Theses concepts, all of which are
reoccurring throughout the thesis and which we call "programmatic" derivations ─ in the
sense given by the vanguard to words that condense the tone of maniphests ─, were central
references for Lam, yet they remain lacking within in the bibliography dedicated to the artist.
Being inherent to the works and to the authors that Lam was given to illustrate, they set up a
basic theoretical framework for this thesis. It draws attention to the concepts stipulated by the
writers that Lam illustrates. Namely, blackness, decanted through the partnership with Aimé
Césaire; antilleanity, manifested in the collaboration with Édouard Glissant, and finally magic
realism, shared with Gabriel García Márquez.
Lista de Figuras
1. Casas Colgadas. Série Del Cuenca típico. 1927. Desenho sobre papel, 28 x 26 cm
2. Amour et Désamour, 1930, óleo sobre cartão, 60 x 108 cm
3. Autorretrato. 1934. Lápis sobre papel 21,5 x 15 cm
4. Cartaz da Exibição Drawings by Picasso/ Gouaches by Wifredo Lam, 1939
5. Desenho de Nadja. À mort o L‟âme du blé (Para a morte, a alma do trigo). 12 x 18 cm.
Impressão fotográfica usada por André Breton para ilustrar Nadja ,1928.
6. Foto Vila Air Bel, Marselha, 1941: Oscar Dominguez, Helena Holzer, amigo de
Dominguez, Varian Fry, Jacqueline Lamba, Pino e amigo, Wifredo Lam, André Breton,
Jacques Hérold (na árvore) e Henriette Gomez
7. Ilustração I. Fata Morgana. 1942
8. Cadavre Exquis por André Breton, Jacqueline Lamba e Lam
9. Baralho do Jogo de Marselha representando a rainha Alice no país das maravilhas
(conjunto e detalhe)
10. Ilustração II Fata Morgana. 1942
11. Ilustração III Fata Morgana. 1942
12. Ilustração IV Fata Morgana. 1942
13. Ilustração V Fata Morgana. 1942
14. Ilustração VI Fata Morgana. 1942
15. Foto da Exposição First Papers of Surrealism. 1942. Whitelaw Reid Mansion
16. Documentos expostos em First Papers of Surrealism, 1942
17. Mujer sentada (retrato de H.H.). Óleo sobre papel montado em cartolina.106 x 85 cm
18. Sem título, ca. 1943. Nanquim sobre papel 19 x 18,4 cm
19. Déesse avec feuillage, 1943. Gouache sobre papel, 105,4 x 85,1 cm
20. Le Roi de Bilboquet, 1942. Gouache sobre papel 105,4 x 84,1 cm
21. Primeira página da datilografia do poema Cahier d‟um Retour au pay natal com
dedicatória a Wifredo Lam
22. Retorno al país natal de A. Césaire. (Capa)
23. O guerreiro (Personage avec lézard), 1947. Óleo sobre tela, 107x 84
24. Ilustração Retorno al país natal de A. Césaire.
25. Ilustração. Retorno al país natal de A. Césaire.
26. La Jungla, 1943. Óleo sobre papel reforçado. 220x228 cm. Col. MoMA
27. Chan de la forêt (Canto da floresta), 1946, óleo sobre tela.
28. Oya (Divinité de l‟air et de la mort/ Idolos), 1944, óleo sobre tela 70 x 60 cm
29. Foto da chegada ao Haiti do poeta André Breton, à esquerda do casal Breton, Sra. Lam,
Dr Pierre Mabille e Wifredo Lam. À direita Sra. Mabille, Reynor Bernard e M. de
Peillon, ministro da França
30. Desenho haitiano, nanquim sobre papel, 1946
31. Boca e vela. Da série desenhos haitianos,1946, nanquim sobre papel, 31 x 50 cm
32. W. Lam. Yoruba ritual, Da série desenhos haitianos, 1946, nanquim sobre papel, 31,8 x
24 cm.
33. Da série Desenho haitiano, 1946 nanquim sobre papel. 31 x 50 cm
34. Foto de Pierre Mabille, Wifredo Lam e André Breton, inauguração da Exposição no
Centre d'Art, posam frente ao quadro Harpa Cardinal, 1944
35. Catálogo da Exposição Lam, Centre d‘Art, 1946. (frente)
36. Catálogo da Exposição Lam, Centre d‘Art, 1946. (verso)
37. L‟Harpa cardinale, 1944. óleo sobre tela, 216 x 200 cm, 1944. Col. Urvarter
38. Presença eterna. Óleo sobre tela 217 x 197 cm, 1945
39. Ceux de la porta battante - óleo sobre madeira encerada, 127 x 109 cm, 1945
40. Coq de Caraïbes, 1945. Óleo sobre tela 41 x 50 cm
41. L' Oiseau au roc (Um pássaro sobre uma roca) óleo sobre tela 1945.
42. Foto entrada do Centre d'Art
43. Detalhe da placa anunciadora com o slogan " Reconnu d' utilité publique fondé a 1944"
(Reconhecido de utilidade pública fundado em 1944)
44. Detalhe dos espaços ao ar livre no pátio do Centre d'art com aulas de pintura
45. Estudante fazendo um retrato com modelo ao vivo
46. Visitantes apreciando os quadros no Centre d‘art dispostos de maneira linear a com
espaçamento regular
47. Capa do livro Pierre Mabille, Le Miroir du merveilleux, 1962
48. Ilustração de para Le Miroir du merveilleux, 1962. Gravura em metal.
49. Édouard Glissant recém-chegado a Paris.
50. Ilustração para La Terre Inquiète (contracapa)
51. Ilustração II para La Terre Inquiète de Édouard Glissant, 1955
52. Ilustração III para La Terre Inquiète de Édouard Glissant, 1955
53. Ilustração IV para La Terre Inquiète de Édouard Glissant, 1955
54. Umbral. 1950. Óleo sobre tela 185 x170 cm. Coleção Musée National d‘Art moderne
Centre Georges Pompidou
55. Quand je ne dor me pas, je rêve (Quando eu não durmo, eu sonho) 1955. Óleo sobre
tela 194 x 216 cm.
56. Au commencement de la nuit [Bonjour monsieur Lam] (No começo da noite [Olá, Sr.
Lam]), 1959. Óleo sobre papel montado,75 x 151 cm (29 1/2 x 59 1/2 pol.)
57. Totem à la lune, 1955. Óleo sobre papel montado em tela. 254 x 67 cm e o artista
pintando uma das telas da série
58. Série La Brousse, 1958. Óleo sobre tela, 212 x 291 cm
59. La Reunión, 1945 óleo sobre papel montado sobre tela, 152 x 212 cm
60. Livro El último viaje del buque fantasma
61. Fotografia da Galeria Joan Prats durante a Exposição novembro-dezembro de 1976.
62. Fotografia da Galeria Joan Prats durante a Exposição novembro-dezembro de 1976
63. Poster da mesma exposição Wifredo Lam: olis, aiguades i obra gravada. Litografia.
64. Sem título, 1973. Óleo sobre tela, 25 x 35 cm. Obra Exposta na Galeria Joan Prats
(novembro-dezembro de 1976)
65. A Guerra Civil Espanhola, 1937 Guache sobre papel 211 x 236
66. Vase II, 1975. Terracota, altura: 50 cm x diâmetro, 28 cm
67. Abakuá I, 1975. Diâmetro: 50 cm.
68. Páginas do Livro El Buque Fantasma. Lam/ García Márquez, 1976
69. Wifredo Lam. Lâmina I para a obra El buque fantasma, 1976
70. Representações de veves haitianos
71. Lâmina II para a obra El buque fantasma, 1976
72. Lâmina IIIpara a obra El buque fantasma, 1976
73. Lâmina IV para a obra El buque fantasma, 1976
74. Lâmina V para a obra El buque fantasma, 1976
75. Lâmina VI para a obra El buque fantasma, 1976
76. Lâmina VII para a obra El buque fantasma, 1976
77. Lâmina VIII para a obra El buque fantasma, 1976
78. Lâmina IX para a obra El buque fantasma, 1976
79. Lâmina X para a obra El buque fantasma, 1976
80. Lâmina XI para a obra El buque fantasma, 1976
81. Lâmina XII para a obra El buque fantasma, 1976
82. Fotografia Wifredo Lam e Garcia Márquez, Havana 1977
83. Fotografia Lam e Césaire em Havana, 1967
84. Lâmina I. façon langagière, para o livro Annonciation, 1969/1982
85. Lâmina II. nouvelle bonté, para o livro Annonciation, 1969/1982
86. Lâmina III. que l‘on represente son coeur au soleil, para o livro Annonciation,
1969/1982
87. Lâmina IV. insolites bâtisseurs, para o livro Annonciation, 1969/1982
88. Lâmina V. passages, para o livro Annonciation, 1969/1982
89. Lâmina VI. reboidalle, para o livro Annonciation, 1969/1982
90. Lâmina VII. connaître dit-il, para o livvro Annonciation, 1969/1982
91. O Terceiro Mundo (1966). Óleo sobre tela 251 x 300 cm
92. Os Babaloches bailam para Dambalah, deus da unidade, 1970. Óleo sobre tela 213 x
244 cm
Sumário
1. Introdução ............................................................................................................................ 13
3. O primeiro livro ilustrado: Fata Morgana (1940-1942), poema de André Breton .............. 38
4. Do traço contínuo à Negritude: Ilustrações para Retorno al país natal (1943) de Aimé
Césaire ...................................................................................................................................... 67
5.3. Outro entrelaçamento possível entre autor e artista: a voz crítica de Glissant e a teoria
da Antilhanidade ......................................................................................................... 132
Wifredo Lam sempre nos foi familiar, pois trata-se de um dos artistas de maior renome
internacional de Cuba, nosso país. Na Faculdade de Artes e Letras em Havana, onde cursamos
o bacharelado em História da Arte, tomamos mais conhecimento de toda a trajetória artística
de Lam. Terminando o mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro recebemos um
convite pelo professor Paulo Venâncio para realizar a curadoria adjunta da exposição
―Wifredo Lam: Gravuras‖, 2009. De fato, essa exposição foi considerada a maior mostra de
arte em papel do artista já exibido no Brasil, que incluía, dentre outras, as séries de ilustrações
feitas em colaboração com os autores: Aimé Césaire, Édouard Glissant e Gabriel García
Márquez, e ainda as obras realizadas junto a autores europeus como Ghérasim Luca, René
Char, Antonin Artaud, José Pierre e Jean-Dominique Rey. Na ocasião iniciamos uma pesquisa
complementar que resultou em um dos textos do catálogo: ―Lam e seu modernismo selvático‖
(BENITO, 2009) que é sem dúvida o embrião que agora toma a forma de tese. Em 2016
começamos os estudos no Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da
Arte da Universidade de São Paulo optando por pesquisar um tema cujo recorte não foi até
então sistematizado. Trata-se da relação de Lam com André Breton e seguidamente com
poetas e escritores das Antilhas buscando trabalhar os livros ilustrados realizados em parceria
com ditos autores e paralelamente aprofundar nas problemáticas comuns da região como a
diáspora africana e a identidade caribenha manifesta nessas produções. O tema ―Os livros
ilustrados por Wifredo Lam: Confluências do Surrealismo à Antilhanidade‖ é inédito dentro
dos estudos dedicado à obra do artista e ainda adquire uma relevância significativa, sobretudo,
por tratar-se de um artista latino-americano com uma obra integrada ao Museu de Arte
Contemporânea de São Paulo, em cujo programa a atual pesquisa se insere.
Observamos que a relação entre Lam e os escritores foi também destacada nas seguintes
exposições: em 2011 no Grand Palais de Paris: ―Aimé Césaire, Lam, Picasso: Nous nous
sommes trouvés‖ (Aimé Césaire, Lam, Picasso: Nós nos encontramos) com curadoria Daniel
Maximin, poeta e ensaísta originário de Guadalupe que naquele ano trabalhava para o
Ministério de Cultura francês. Também em maio de 2016 é apresentado o livro ―La Terre
Inquiete”, de autoria de Glissant e ilustrado por Lam, na exposição ―Le musée de Tout Monde
& Agora Mundo‖, pela ocasião do décimo aniversário do Instituto du Tout-Monde. Esta
exposição dava visibilidade à coleção idealizada por o martinicano Édouard Glissant
colocando em perspectiva o tema da ―creolização‖. Por fim alguns itens de Lam dedicados à
13
primeira edição de poema-manifesto de Césaire Cahier d‟un retour au pays natal que teve
tradução de Lydia Cabrera foram incluìdos na exposição da Americas Socitey: ―Lydia
Cabrera and Édouard Glissant: Trembling Thinking‖, 2018 com curadoria de Hans Ulrich
Obrist. Estas ações demonstram o crescente interesse nos últimos anos do tema que aqui
abordamos.
Wifredo Lam, é hoje considerado um dos grandes artistas latino-americanos do século
XX. Foi o primeiro desta região a integrar a coleção do MoMA em 1944, e desde então,
ancorado em uma carreira de sucesso, sua obra tornou-se paradigmática e pioneira em debater
relações centro-periferia. Como artista não só acompanhou os ismos de seu tempo, em
particular o surrealismo, senão que sua obra tem sido amplamente difundida mediante os
catalogues raisonné (em pintura e gravura), e em uma pluralidade de artigos registrados em
antologias. No entanto, o artista não foi contemplado em estudos prévios sobre as artes do
livro. Foi mediante essa atividade que o artista melhor absorveu da vanguarda poética de seus
contemporâneos uma identidade de intelectual de contornos mais nítidos e revigorados. Note-
se que essa prática foi cobrando tal importância em sua carreira chegando a produzir um total
de vinte e um livros ilustrados até o final de sua vida1.
Diante da tarefa desta tese fomos induzidos a trabalhar com uma combinação de
métodos bem conhecidos pela historiografia da arte. Quanto à metodologia privilegiamos os
critérios de Giulio Carlo Argan. Segundo ele adverte, vale a pena especificar que o estudo de
certos objetos, como os que aqui abordamos, tem sido historicamente inacessível à atenção
dos pesquisadores e por consequência, ignorados ou pouco aprofundados. É o caso daqueles
―objetos que giram por este mundo passando de um comerciante a outro, sem que os
estudiosos deles tenham notícia. Objetos de alto artesanato que ficam ignorados porque o
estudo das artes ditas ‗artes menores‘ ainda está [...] bem pouco desenvolvido." (1992, p. 87).
1
Os livros ilustrados em ordem cronológica incluem: BRETON, A. Fata Morgana. Buenos Aires:
Lettres Françaises, 1942; CÉSAIRE, A. Retorno al país natal. Havana: Ed. Molinas & Cia, 1943; LOEB. P.
Voyages à travers la Peinture. Paris: Bordas, 1946; CHAR, R. Le Rempart de Brindilles. Paris: Louis Broder,
1953; GLISSANT, E. La Terre Inquiète. Paris: Editions du Dragon, 1955; BOSQUET, A. Paroles peintes.
Paris: Galerie Diderot, 1959; MABILLE, P. Le Miroir de Merveilleux. Paris: Editions de Minuit, 1962;
JOUFFROY, A. La Antichambre de la Nature. Paris, 1966; ARTAUD, A. Le Théatre et les Dieux. Paris:
Gallimard, 1966; LUCA, G. Apostroph’Apocalypse. Milão: Ed Giorgio Upiglio, Gráfica Uno, 1967;
FRANQUI, C. El Círculo de Piedra. Milão: Ed Giorgio Upiglio, Gráfica Uno, 1970; MAGLOIRE SAINT-
AUDE, C. Dialogues de mes lampes. Paris: Jacques Veuillet. Col. Premier personne, 1970; MADIARGUES,
A.P. Croiseur noir. Paris: Editions O Lazar-Vernet. Col. Paroles Peintes, volume IV, 1972; PIERRE, J. Pleni
Luna. Stockholm, A. H. Grafik, 1974; MANSOUR, J. Orsa Maggiore. Pollenza-Macerata: Nuova Foglia
Editrice, 1975; CHAR, R. Contre une maison séche. Paris: Jean Hugues, 1976; CHAR, R. De la sainte famille
au Droit à la paresse. Paris: Le Point Cardinal, 1976; GARCÍA MÁRQUEZ, G. El último viaje del buque
fantasma. Barcelona: Ediciones Polígrafa, 1976; REY, J.D. L’herbe sous les pavés, Paris, 1982; CÉSAIRE, A.
Annonciation. Milão: Ed. Giorgio Upiglio, Gráfica Uno, 1982; LUNDKVIST, A. Plainte pour Pablo Neruda.
Col. Escritures/ Figures. Paris: Editions Galilée, 1984.
14
Esta colocação de Argan é um importante ponto de partida metodológico ainda que tenhamos
que colocar a ressalva de que cada um destes livros ilustrados com exceção de Fata Morgana,
1942 e Retorno al país natal, 1943, cujas ilustrações não são gravuras, mas séries de desenhos
em nanquim, foram incluídos no volume editado por Dominique Tonneau- Rickelyn e
Pascaline Dron, em 1993: Wifredo Lam: oeuvre gravé et lithographié: Catalogue raissoné.
(1993). Esse estudo realiza uma valoração da obra gravada da qual uma parcela representativa
é dedicada à ilustração. No entanto o seu objetivo difere da atual pesquisa, seja porque as
observações resultam muito rasas em torno da questão do gênero livro ilustrado, seja porque
não foram incluídos todos os livros, senão apenas os que foram realizados em gravura. Faltou
a esses estudos prévios as análises dos contextos em que essas iniciativas se desenvolveram.
De qualquer modo, a perspectiva de Argan funciona como alerta sobre como deve-se abordar
essas obras incluídas dentro das chamadas artes menores, trazendo à tona sua relevância na
história da arte.
Por outra parte, a relação de Lam com o desenho e com as obras em papel, como já foi
antecipado por alguns historiadores, nos fornece uma forma de mapear as mudanças e
contrastes que se evidenciaram em sua arte. É sabido que em diferentes fases da sua vida, o
artista considerou o papel um veículo crucial para plasmar novas ideias: ―Forma econômica e
acessível de trabalhar, o papel e o desenho serviram a um propósito mais fundamental, como
meio imediato de ligar as explorações formais que o modernismo sofreu na sua obra‖
(MEREWETHER, 1992, p.16, tradução nossa). Paralelamente o livro ilustrado é uma
manifestação em que o artista também desenvolveu seus experimentalismos.
Em 1938 Lam se traslada a Paris onde conhece Picasso. Expõe por primeira vez junto
ao mestre: ―Drawings of Picasso, Guaches of Lam‖, na Galeria Perls em Nova York, em
1939. Seu vínculo com André Breton, máximo expoente do surrealismo, se estreita a partir de
então. Podemos afirmar ainda que neste momento a relação entre escritores e pintores alcança
um auge sobre as influências mútuas desses intelectuais que frequentavam o estúdio de
Picasso no Bateau-Lavoir. Surrealistas e Futuristas que ali encontravam-se deram lugar nas
décadas de 1920 e 1930 a realização de verdadeiras obras de vanguarda de livro ilustrado
usando um alto senso experimental. Quando no verão de 1940, estando refugiado em
Marselha, Breton lhe pede que ilustre o poema Fata Morgana inicia assim uma interface
única com a literatura e os poetas à maneira do próprio Picasso.
Algumas abordagens sobre a ilustração como manifestação artística vem ganhando um
interesse crescente entre os historiadores, apontando os antecedentes e a caracterização da
15
natureza do gênero desde um registro teórico e histórico. Neste sentido, veja-se os estudos
precedentes dedicados às artes do livro como: Johana Drucker, The Century of Artist's Book
(New York, Ed Granary Books, 2004); Riva Castelman, A Century of Artist's Books (New
York. Ed. Museum of Modern Art/ Harry N. Babrams, 1994); Kathryn Brown, Introduction
The Art Book Tradition in Twentieth Century Europe: Pincturing Language, ed. Kathryn
Brown. (Farnham: Ashgate, 2013).
A rigor, a ilustração faz parte de um conjunto maior que no jargão técnico se conhece
como "conteúdo paratextual" ou "paratexto". Esse conceito inclui não somente as lâminas ou
imagens, senão tudo aquilo que é preconcebido para acompanhar o texto: capas, apresentação,
tipografia e subtítulos. Dentro deste conteúdo, é em geral a ilustração que possui maior
presença. Sendo considerada como arte, sobretudo no período moderno, a ilustração é
geralmente apresentada pelos estudiosos a semelhança da gravura, como prática incidental
levada a cabo por alguns pintores. No entanto, à luz das atuais investigações, ela é muito mais
um meio de expressão artística com características próprias do que uma arte menor, ou
incidental. E, tal como pretende demonstrar a presente tese, é uma manifestação cuja estética
bebeu das ideias postas em circulação pelos avanços da literatura e da crítica, e que progrediu
a um compasso bastante acelerado durante o período das vanguardas históricas do século
vinte.
Por outro lado, esse gênero se amplia ainda mais com os novos conceitos estabelecidos
pela historiografia. Em um dos principais estudos dedicados ao tema, Riva Castelman, quem
foi durante um tempo a pesquisadora e curadora chefe do Departamento de Gravuras do
MoMA, assevera que "algumas das mais famosas gravuras do século vinte foram feitas para
ilustrar livros" (1976, p.11, tradução nossa). Essa tradição, segundo ela, surge em oposição à
bibliofilia tradicional ― que sob nenhum conceito se permitia conceder tal direito a
ilustradores ocasionais ou que não fossem de ofício, excluindo assim os artistas e pintores.
Dois grandes mecenas, Ambroise Vollard e Henri Kahnweiler, e mais tarde o jovem Albert
Skira, contestando esta tradição inóspita para o desenvolvimento deste gênero de artes
aplicadas, irão patrocinar os mais belos exemplares do que se convencionou em chamar
"livros ilustrados" (livre illustré) ou "livros de pintor" (livre du peintre). Com pleno uso das
faculdades que cabe a um mecenas eles se propuseram a organizar requintadas e raras edições,
cuja principal novidade muitas vezes consistia, no fato de ter ilustrações de um afamado
artista ou pintor. Esses editores pioneiros recorreram às mãos de Matisse, Picasso, Chagall,
Léger, Dalí, prenunciando assim também um novo tipo de colecionador bibliófilo: o
16
"moderno". Entretanto, existia uma acirrada disputa entre os mecenas para achar o melhor
livro, engenhoso e alvo das melhores críticas, segundo Castleman. Neste sentido comenta:
"Exitosas suítes de lâminas eram adicionadas a exemplares especiais de livros, sendo
inclusive muitas delas encartadas separadamente, a fim de poderem circular no mercado de
gravuras‖. (1976, p.11, tradução nossa).
Outra característica que observa Castleman no gênero livro ilustrado é a identificação,
cada vez mais explícita, de fazer acompanhar o estilo de um autor pela obra de um artista
contemporâneo, fazendo por consequência coincidirem os estilos de um e outro. Inseridos nos
distintos movimentos de vanguarda, os editores mecenas irão ter dentre seus maiores alvos os
mais expressivos artistas modernistas cubistas, surrealistas, dentre outras afiliações e ismos
que começavam a eclodir na Paris da primeira metade do século vinte. Ela conclui que de fato
"é impossível estudar as gravuras de Fauves, cubistas, muito menos as dos surrealistas, sem
desvendar o que está contido nesses livros especiais." (CASTELMAN, 1976, p.17, tradução
nossa).
Outra motivação para localizar historicamente o uso da ilustração como registro
indispensável nas reflexões estéticas dos pintores e artistas do século XX, é o recente estudo
de Kathryn Brown sobre o tema focado na figura de Matisse, trata-se de Matisse's Poets:
Critical Performance in the Artist's Book (2017). Na análise que faz sobre este artista, ela
anuncia que sua exemplaridade no uso do meio pretendia estar à altura das obras literárias que
ilustrou com imagens, e que integravam o chamado "cânone literário francês". Brown coloca
como um ponto de partida importantíssimo na elaboração de uma teoria sobre este meio, é o
texto de Paul Valéry "Duas verdades sobre um livro", (1926), onde o poeta se diz preocupado
ao perceber que os livros luxuosos estavam ganhando cada vez mais espaço no gosto dos
leitores, e fala da necessidade de sair em defesa da qualidade visual do texto per se. A seu ver,
um livro ideal (une livre parfait) supunha que o ato de ler deveria ser propiciado pelas
delicadas passagens, sem interrupções desnecessárias da leitura do texto com a contemplação
das imagens. "O texto visto e o texto lido são distintos porque a atenção dada a um é um
prelúdio da atenção que deve ser dada ao outro" (VALÉRY, 1960, p 43). Desde esta
concepção o livro materialmente perfeito é aquele que se converte numa "máquina de leitura"
(machine à lire). Ao interrogar-se sobre como um livro poderia melhor satisfazer esta sua
função principal, Valéry colocava dentre os aspectos positivos o uso da tipografia; mas
lamenta "as mudanças insensíveis das acomodações visuais" porque podem acabar
interrompendo esta reciprocidade entre contemplação e leitura. Seu conceito de um livro
17
como ―máquina de ler‖, acabaria tendo um impacto na concepção dos artistas modernos como
Matisse.
Matisse não tarda em retrucá-lo, corrigindo com a práxis e a teoria o que seria um bom
uso das "acomodações visuais". Assim como aponta Brown foi Matisse dentro das noções
modernistas um dos primeiros artistas a teorizar sobre os elos entre arte, decoração, gravura,
desenho e ilustração de livros dentro das noções modernistas. No seu "Escritos e propostas
sobre a arte‖ irá repensar os objetivos atribuídos ao ilustrador, aplicando uma fórmula
simples: convertendo em valores positivos aqueles aspectos que incomodavam Valéry,
desenha assim uma espécie de credo sobre o gênero, que bem pode nortear o trabalho dos
historiadores da arte devotados a essa prática. Primeiro, as ilustrações deveriam atrair ao leitor
de maneira hipnótica; segundo, nunca os textos deveriam ser completados por ilustrações
imitativas; terceiro, ao realizá-las, o pintor deveria ser como "um segundo violino", que deve
evidenciar o propósito do escritor cuja obra ele ilustra. Por último, em uma carta escrita a
Rouyer, seu interlocutor sobre estes assuntos, Matisse manifestou o desejo de produzir exatos
"equivalentes plásticos da palavra escrita‖, ou o que é o mesmo, o desejo de produzir com as
ilustrações "perfeitas máquinas de ler" como as que queria Valéry. Contudo, Matisse se
tornará uma referência importante para muitos admiradores desta arte, sendo sua linha solta
rapidamente identificável com arquétipos desta demonstração.
Lam, ainda que não teorizasse a esse respeito, reconhecia a influência matissiana em sua
obra, e não descartamos que tenha assimilado a prática deste renomado pintor nas artes do
livro. Ele, assim como Matisse, concedia um valor especial à serialidade. Este elemento tão
relevante dentro do formato do livro atraiu as preocupações artísticas de Matisse nas décadas
de 1930 e 1940. Seu álbum, Dessins: Thèmes et Variations, publicado por Martin Fabiani em
1943 com prefácio de Aragon, foi uma demonstração do pensamento sequencial nas artes
visuais, com cada conjunto de imagens revelando a diferente produção gestual de um sujeito
primário. No seu ensaio Aragon afirmava que ―o essencial é o carácter serial dos desenhos‖,
(1943, p 17), sublinhando que o efeito da obra deriva da interação entre as imagens e não da
apreciação de um motivo dominante. Para Lam, esse princípio de coesão entre as imagens que
em sua maioria estão sujeitas ao traço linear, se desdobra como uma espécie de escrita, um
registro sempre em ressonância com a obra que se dispunha a ilustrar.
No extenso âmbito das suas ações mediadas pela relação palavra e imagem, as artes
visuais e a literatura permaneciam de tal modo imbricadas que recriam um profundo senso de
unidade. Por outro lado, Lam atenderia em seus experimentalismos aos registros de viagens,
18
aos jogos de azar praticados como parte da programática do grupo surrealista. De igual modo
quando ilustra certos autores desde outras prerrogativas apela a procedimentos e métodos
artísticos identificando formas e tipologias da obra plástica com enlaces com a obra escrita.
Por exemplo, o método da linha contínua, é uma resposta direta ao automatismo, e os
desenhos seriais potencializam a ideia da relação pluralista arquitetada por Glissant, e por fim,
a inclinação ao informalismo, muito gráfico, permitiram a liberdade expressiva requerida no
conjunto de gravuras realizadas para o livro em parceria com García Márquez. Essas opções,
mas que meras colocações estilísticas permitem corroborar como neste momento a ilustração
acusa um rompimento com a hierarquias entre as artes, ao ponto que o texto escrito comparte
a mesma relevância que as imagens, paralelamente abre um leque onde a forma guarda uma
dívida com os postulados teóricos provindos da literatura.
Após essas considerações destacamos também a respeito da escolha do título "Os livros
ilustrados por Wifredo Lam: Confluências do Surrealismo à Antilhanidade", em que o
elemento contextual cobra peso e será fundamentado pelas cronologias, a comparação, as
evidências, as trocas sobre as demandas dos editores, assim como as notas valorativas que
normalmente abundam nas apresentações desses livros. Em suma, aspectos que possam
transparecer as circunstâncias históricas como aspectos fundamentais da pesquisa. De igual
modo, destacam-se nesse sentido algumas atividades características dos grupos vanguardistas
com os quais Lam ou militou ou se fez eco ao corresponder com um livro ilustrado. As
análises sobre esses lineamentos programáticos entrelaçados com o surrealismo, e outras
derivações e nomeações dos quais toma partido, ajudaram a conformar o elenco de temas que
transparecem em cada obra ilustrada. Encontros, viagens, roteiros, que esclarecem essas
parcerias entre escritores e o artista em foco.
A soma dessas análises mostrará um Lam intérprete que tem no seu esclarecimento um
dos objetivos mais importantes desta pesquisa. Com cada livro ilustrado novas ferramentas e
abordagens sobre este artista virão à tona tomando em conta os embates entre os estilos em
pauta que ele elencou nessas produções. Contrabalançando a relação de influência entre verbo
e imagem se abrirão novas luzes sobre a obra Lam, e sobre o papel que a crítica comumente
lhe outorgou.
Se de um lado não iremos descuidar a pertinência de atender a contextualização de cada
obra ilustrada, por outro lado estudaremos os enlaces com outros enfoques que darão conta da
relação com a literatura. Ainda serão necessárias no nosso quadro teórico certos conceitos que
se manifestam naquelas obras cujas temáticas surgem atreladas à palavra escrita e que tocam
19
tanto as disciplinas como iconologia e semiótica. Tratando aqui de um tema propriamente de
arte moderna, o trabalho com o texto se torna um tanto problemático, se pensado nos moldes
da iconologia. Portanto, considerando que as questões estéticas têm caráter cíclico, será
possível reconsiderar os problemas sugeridos por elas, não em atenção a textos canônicos,
como pretende a iconologia, mas em consanguinidade com a poesia, sem excluir os problemas
intrínsecos a quaisquer relações do paralelo entre as artes.
Aristóteles foi um dos primeiros a tratar o paralelo entre a pintura e a poesia. Esta
questão foi retomada no Renascimento, fato pelo qual, ao discutir o tema, pensamos na muito
debatida frase do pintor romano Horácio: Ut pictura poesis, traduzida como "em pintura como
em poesia", e que também irá integrar o quadro teórico proposto. Segundo Jaqueline
Lichtenstein, no estudo dedicado ao tema esta frase "é a peça essencial de um imenso
empreendimento de legitimação social e teórica da pintura" (2005, p.59), explica com ela que
"as artes visuais ascendem ao privilégio até então concedido apenas à poesia, de integrar o
universo do Logos, na ordem do discurso e da razão‖ (2005, p. 60). No século XVII, Gotthold
Ephraim Lessing (1729-1781) seria o primeiro a discursar sobre a ideia de um paralelo entre
as artes, no Laocoonte, texto que teria inúmeras consequências no plano da especificidade e
não especificidade entre as artes.
Para nosso tema de estudo é importante manter a tensão entre ambos os pólos e se faz
de vital importância permanecer longe dessas especificidades. Neste sentido, Mieke Bal em
seu estudo Reading "Rembrandt" Beyond the Word - Image opposition [Lendo ―Rembrandt‖
através da oposição Imagem Palavra] aponta:
Diante disso, não podemos menos que discutir níveis diversos de contraposição, e
graus diferenciados de reafirmação dos registros plásticos e verbais. Neste sentido, outra
motivação teórica e metodológica que permite articular o paralelo artístico é a concepção de
W. J. Mitchell. No estudo Teoria da Imagem (2009) ele propõe igualar palavra e imagem a
dois países que falam diferentes línguas, mas que tem uma longa história de trocas. Do
mesmo modo ele demonstra que ambos domínios, visual e verbal, tem uma indiscutível
univocidade como processos de representação, porém estão frequentemente interconectados
20
por meio de práticas artísticas prévias ou de contextos sociopolíticos. Para Mitchell há certas
atividades que devem nortear ao historiador que pretende mergulhar na abordagem
comparativa entre obras visuais e verbais como é o caso da presente tese:
21
Conjuntamente foram analisados os posicionamentos adotados a respeito da vanguarda
do surrealismo, que às vezes se assumem como ramificações daquele e em outras, aparecem
como exigentes detratores. Esse debate, em paralelo com a literatura, possibilitou analisar os
devaneios entre um meio e outro. A ideia é constatar como esses dois pólos, o literário e o
artístico confluem. Contudo, além de oferecer leituras atentas da prosa e poesia selecionadas
por Lam, iremos nos preocupar com a maneira como o formato de um livro se configura como
um objeto pictural/ textual que circulou em outras formas materiais e dentro de vários
circuitos de troca.
Verificaremos como essas escolhas de alguma maneira também orientarão as
atividades de pintura de Lam. Algumas obras pontuais permitiriam traçar paralelos entre uns e
outros. De igual peso são as críticas, produzidas por esses autores com que de modo especial
se envolveu e que ofereceram importantes insights sobre o seu trabalho. Examinaremos
elementos desses textos críticos que se conectam diretamente com seus afazeres na ilustração.
Mostraremos o curso inovador atendendo a objetivos criativos em paralelo com a recepção
desses escritores com os quais Lam colaborou. A compreensão desse correlato fornece um
espectro que permite explorar temas que perpassam sua obra como um todo e que corroboram
como esse vocabulário comum a ambos (artista e autor), tiveram um impacto duradouro na
sua obra.
Metodologicamente serão feitas as análises sobre cada um destes livros ilustrados
contemplando três aspectos: a) Primeiro: análise e apresentação do tema, a sinopse,
apresentações em prólogos, nomenclaturas, e elos de vínculo com os programas de vanguarda,
dentre outros aspectos referentes à obra escrita; b) Segundo: as escolhas formais do artista
para cada projeto, comparação e enumeração de heranças surrealistas, tais como, métodos de
criação associados com a aparição da imagem, ou como as descobertas encontradas em
desenhos automáticos e nos signos determinados pelo acaso, dentre outros assuntos no âmbito
da configuração enquanto obra plástica. c) E terceiro: análise das ideias de ordem teórica que
sintetizem os aspectos da escrita e da imagem e que estejam em sintonia com o momento,
contexto e bagagem de cada autor/livro ilustrado. Neste sentido, se fará confluir a revisão da
crítica da arte com os assuntos que competem aos estudos culturais.
O segundo capítulo foi arquitetado como preâmbulo à vasta obra de Lam no campo da
ilustração e aborda como ela se insere no contexto do Caribe. Seguidamente aprofunda na
formação artística de Lam e as primeiras descobertas do movimento surrealista espanhol,
assim como o encontro decisivo com o surrealismo da escola de Paris. Aqui foi contemplado
22
como no início de sua carreira, quando tem sua primeira formação como pintor acadêmico e
quando ainda não tinha um perfil de artista moderno, como ele padecia de uma inquietação
por querer ir além em suas projeções criativas. Lembremos que Lam quando parte com 21
anos para a Espanha aprimora seus estudos em Madrid numa das academias mais respeitadas
junto ao pintor Sotomayor, conservador do Museo del Prado. O certo é que Lam não se
contenta com ser um pintor acadêmico. Ele buscará os nichos onde se fomenta o modernismo,
como a Academia livre da Alhambra, onde acudiam pintores excêntricos como Salvador Dalí.
Quando irrompe a Guerra Civil Espanhola em 1936, Lam se alista do lado dos republicanos2,
e coincidentemente é esse momento onde começa a fazer corresponder seus próprios
interesses como artista com os intelectuais, sobretudo ao descobrir o alcance da poesia de
vanguarda como agente transformador.
No terceiro capítulo dedicado ao livro Fata Morgana (1942) abordamos o porquê do
convite de André Breton (1896-1966) e o valor concedido à ilustração do ponto de vista do
líder do movimento surrealista. Tratamos dos desdobramentos desta obra ilustrada que se
converte em um símbolo da diáspora da vanguarda francesa após tomada de Paris pelo
exército nazista. Por fim discutimos como é colocado em cheque o tema do automatismo
psíquico e da beleza convulsiva. O objetivo é levar o surrealismo tão a sério quanto possível:
não como um conjunto variado de visões idiossincráticas, mas como um grupo de práticas
complexas que desenvolvem uma concepção ambígua de estética. Portanto, nossa pesquisa
privilegia o quadro teórico extraído dos artífices desse movimento. Sumariamente trataremos
de alguns dos principais preceitos do surrealismo e como se desdobram na obra de Lam no
campo da ilustração. Verificamos como esses conceitos aplicados por Breton em sua obra
escritural, foram tangenciais à obra de Lam, sendo absorvidos parcialmente apenas, em suas
buscas por um registro de imagem.
No quarto capítulo abordamos o traço contínuo e a negritude nas ilustrações para
Retorno al país natal (1943) de Aimé Césaire (1913-2008). Tratamos do encontro fortuito de
Lam Césaire e Breton nos anos quarenta na Martinica. Abordamos as alegorias criadas pelo
escritor caribenho a partir de uma geografia revisitada das Antilhas e a biologia da afro
descendência. Esmiuçamos neste capítulo a viagem coletiva dos surrealistas Breton, Mabille,
Lam e Césaire ao Haiti entre finais de 1945 e inícios de 1946. A viagem não só corroborou o
2
Lam sofre o impacto da Guerra Civil Espanhola. Pouco depois de se destacar na luta junto aos
republicanos, Lam fica convalescente e passa a viver em Caldes de Montbui, onde trava contato com a nata da
intelectualidade catalã por mediação do amigo Manolo Hugué. Ali conhece diversos poetas como Miguel de
Unamuno e Federico García Lorca, este último um adepto de ilustrar suas criações em poesia.
23
ativismo do movimento no Caribe, como também propiciou um novo prisma de relação entre
Lam e sua região autóctone. Neste capítulo se verá inclusive uma sucessiva confluência de
ações que levaram a Lam e Césaire a assumir definitivamente seu papel de agentes
propulsores de um discurso respectivamente artístico e verbal levantado a bandeira da
negritude. O conceito, a negritude, é um neologismo que define um sujeito colonizado
"negro", que discute e flexiona até na etimologia a consciência do processo de extirpação à
força da própria cultura. Ele exalta ainda os valores culturais dos povos africanos, desde uma
visão idílica e gloriosa. O termo negritude foi primeiramente cunhado pelo poeta Aimé
Césaire em 1935, no número 3 da revista L'étudian noir (Paris), mas como conceito foi
trabalhado por ele e pelos demais membros do movimento caribenho nucleados em torno da
revista de vanguarda Tropiques, publicada na Martinica entre 1940-1945.
No quinto capítulo tratamos a imbricação entre Lam e martiniquense Édouard Glissant
(1928-2011) no contexto parisiense dos anos cinquenta, especialmente a Galerie du Dragon.
Neste momento Lam comparecia não mais como membro do surrealismo, mas do grupo
neosurrealista PHASES, uma agremiação que atendia mais à articulação entre os nichos de
vanguarda do pós-guerra. Estas primícias viabilizaram uma análise formal das ilustrações.
Outro aspecto problematizado foi a teoria da antilhanidade. Esse novo conceito foi difundido
pela geração que dá sequência às ideias do grupo Tropiques, como é o caso do Glissant de
quem Lam, após a experiência com Césaire, ilustra o poema La Terre Inquiète (1955).
Considerando que esse povo das ilhas era culturalmente "autônomo" em relação à África,
Édouard Glissant veria a necessidade de ampliar o conceito de antilhanidade, já trabalhada
pelo seu predecessor, Césaire. Reforça com este uma zona de interesse e de pertencimento,
não apenas de um país, mas de todo um rosário de ilhas. Ao discutir procedimentos e métodos
artísticos neste capítulo identificamos formas e tipologias da obra plástica que permitiram
traçar elos com a obra escrita, como é o caso dos ―desenhos rizomáticos‖ que foram elencados
nas ilustrações do livro.
No sexto capítulo apresentamos a publicação El último viaje del Buque Fantasma
(1976) de Gabriel García Márquez (1927-2014) destacando a idiossincrasia garciamarquiana
em confluências com a arte de Lam. A contextualização possibilitou um diálogo com as doze
imagens dedicadas a este livro. Aqui ressaltamos o conceito, o realismo mágico que surge
como uma reação ao surrealismo e apela a uma literatura cujos aspectos mágicos ou
fantásticos se fundem com a realidade. Seu mais importante teórico, Uslar Pietri enfatiza que
toda a obra do escritor colombiano se ajusta a esse princípio base.
24
Por fim, o sétimo e último capítulo está dedicado a Annonciation (1969-1982), o
último livro ilustrado por Lam em parceria com um autor caribenho. Neste trabalho ocorre um
processo inverso, já que as ilustrações antecedem a escrita dos poemas de Césaire.
Delimitamos o contexto das ilustrações do Lam, no ano em que são produzidas as gravuras
em 1969. Neste capítulo ainda vimos como ambos, artista e autor formalizaram como um
resumo de suas obras a partir do contato entre velho e novo mundo expondo uma reflexão
histórico crítica tomando em conta as vertentes multiculturais do pensamento. O capítulo
abriu uma reflexão que permeia um acúmulo e um resumo da filosofia e o conjunto da obra de
ambos, artista e poeta.
25
2. Preâmbulo à obra de Wifredo Lam
Ao estudar os livros ilustrados por Lam, nos quais sobressaem os autores caribenhos, a
pesquisa atual sugere a seguinte ponderação. Como situar o artista dentro da história da arte
na região do Caribe? Expressão de um paradigma que cada vez mais vem recuperando seu
espaço no mundo das ideias, o diálogo intercultural implícito no Caribe é dotado de uma
diversidade ontológica muito vantajosa. No entanto, a produção da região tem sido
historicamente obliterada pelo discurso do mainstream. Lam, é um dos primeiros a reverter
essa insuficiência.
John Yau, autor nova-iorquino de origem asiática no texto ―Please wait by the
coatroom” (Por favor espere no guarda-volumes, 1988), que toma como ponto de partida o
fato de que uma obra como La Jungla (1943) no fosse exibida dentro do conjunto principal de
obras do museu, e sim próxima ao guarda-volumes, desmontava a visão eurocêntrica do
MoMA sobre a obra do artista. Lam era considerado como um autor de importância
secundária. Essa visão aparece em estudos e exposições gerais sobre a história da arte
moderna, no melhor dos casos, pois comumente é omitida como a de muitos latino-
americanos. Isto ocorre no estudo da curadora da seção de gravuras do MoMA, Riva
Castleman, dedicado à gravura no século vinte, Prints of the Twentieth Century (London,
1976), onde se citam e comentam inúmeros exemplos de livros ilustrados, porém sequer um
só livro de Lam é mencionado.
De igual modo, na emblemática exposição ―Primitivism in 20 th Century Art‖ que teve
lugar no mesmo museu, Evan Maurer em seu texto para o catálogo conclui que ―A grande
sìntese de Lam como surrealista‖ consistiu em combinar ―um contato estreito entre o rito
tribal e a sofisticação cultural e artística do intelectual do Ocidente‖ (1985, p. 580). Essa
colocação prova como se mostraram generalizadoras as afirmativas das vozes autorizadas e
vinculadas com o canônico museu na construção histórica da arte de vanguarda à qual Lam
pertenceu. Esta situação sobre a qual deveria ter-se aprofundado só é assinalada. Isto reafirma
que o discurso eurocêntrico excluiu de suas posições o ativismo de artistas periféricos que
começavam a expressar-se no âmbito do Não-Ocidente desde ações e programáticas
diferenciadas. A obra de Lam, é necessário que assim seja entendida, bebe da cultura cubana e
do Caribe, e é pioneira na colocação deste Não-Ocidente na cena artística.
26
A perspectiva que o presente estudo traz implica a revisão da alastrada visão
colonizada. Embora a virada na obra de Lam desde começos dos quarenta não exclua nem a
sua formação acadêmica, nem a influência de Picasso ou a relação com surrealismo ─ o qual
ganha na atual pesquisa um valor considerável ─ a questão é que graças à sua práxis ele
assume as contradições da histórica dependência para debatê-las como deformações pós-
coloniais. Assim devemos continuar identificando os caracteres do substrato caribenho, que
começaram a fazer-se mais tangíveis na sua arte. Será necessário para tanto apropriar-se de
um pensamento em forma de arquipélago, onde as ilhas por sua vocação natural ao Diverso
têm vantagens sobre o continente, como professava Édouard Glissant no seu livro antológico,
Discurso Antillano (1981).
Isto ocorre porque apesar das estruturas sempre prevalecentes, a ruptura com os velhos
mecanismos de dependência que se dá no pós-guerra e logo seguidamente na pós-
modernidade começava a ganhar seu espaço. Contudo a obra de Lam produzida dentro do
livro ilustrado é simplesmente potencializada no sentido de ser uma arte relacional, uma vez
que mergulha no universo de autores como os martinicanos Césaire, Glissant, e o colombiano
García Márquez, autores que estavam antenados com o projeto de demarcação de uma
identidade do Caribe. A assimilação de seus programas de vanguarda que apelavam a
conceitos tais como a ―negritude‖, a ―antillanidade‖ e o ―realismo mágico‖, colocam a Lam
em uma posição de igual a igual com seus pares literários. Ditos conceitos colocados aqui
entre aspas, em momentos distintos emergem como resposta fecunda à formação do Eu latino-
americano, o qual tinha oscilado anteriormente entre a utopia da ―raça cósmica‖ de José
Vasconcelos e o amiúde caótico e prolífero despertar das identidades nacionais.
O movimento de Lam dentro da perspectiva crítica dos autores que ilustra, e dos quais
absorve seu ideário, vai gerar um ativismo que vai da periferia ao centro e não ao contrário.
Representa também uma contribuição necessária à revisão da História da Arte desde o
discurso totalizador que tem excluído, diminuído ou descontextualizado uma parte relevante
da produção simbólico-artística produzida no Terceiro Mundo. Este processo contribui com
os discursos descentralizadores, multidisciplinares, híbridos e abertos, gerando uma projeção
mais abarcador dos fenômenos que caracterizam o Caribe. Sem dúvida ao estudar um artista
27
como Lam é indispensável romper com as perspectivas da frequente monocultura Ocidental,
não negando o papel que teve Ocidente, mas apropriando-se, reciclando seus objetivos em
função de um discurso diferente que corrige as posições da relação centro-periferia. À
assimilação de uma perspectiva contrária provavelmente se referia Lam quando diz querer ser
um ―cavalo de Tróia" para atormentar o sonho dos exploradores.
Já quanto às pulsações históricas que emergiram no Caribe o estudioso da arte na
região, Gerardo Mosquera, afirma:
Essa ―etnocultura‖ no Caribe referida por Mosquera tem como componente mais
significativo a cultura africana, a qual supõe o ressurgimento das subjetividades que
desenvolvem e mantêm viva essa herança muitas vezes pouco dissolvida na cultura mestiça
em um sentido amplo. As etnoculturas africanas funcionam como eixos de práticas, crenças e
visões da realidade que potencializam essa herança. A incorporação de maneira pioneira
dentro da arte culta da região latino-americana e caribenha do componente africano é um dos
atributos da obra de Lam. Essa demarcação da síntese provocada pela presença na cultura do
continente negro, que se funde com a arte moderna funcionou como catalisador do
reconhecimento por discursos críticos. A propósito de Lam, Mosquera fez questão de
sistematizar as diferentes modulações e registros do componente caribenho nas artes visuais:
Nas artes plásticas cultas do Caribe podemos ver a partir da arte moderna
certos ritmos, cores e acentos e estruturas frequentes nessa obra em cujo
caráter caribenho mais se insiste. É bem possível que a raiz africana tenha
desempenhado um papel ativo no surgimento desses aspectos. Mais do que
por uma ação estilística, pela presença substancial de componentes culturais
na profundidade de sua conformação. Menos pelo desenvolvimento de uma
tradição de manifestações materiais dessas culturas e mais para a intervenção
prometeica de suas consciências. Ou seja, pela gestação direta da cultura
espiritual da África – com suas cosmovisões, valores, orientações, modos de
pensamento, costumes – na etnogênese do Caribe e, consequentemente, nas
formas onde se identifica e reconhece a nova cultura. (2002. p. 36,
tradução nossa)
28
parâmetros formais externos, como adverte Mosquera em sua generalização sobre a área, mas
sim a partir de sua assimilação como cosmovisão e modos de pensamento.
E de fato, no caso de Lam, o livro ilustrado produzido em paridade com vozes tão
autorizadas como a de Césaire, resultou em um importante ponto de partida para essa
apropriação do problema do papel histórico dos afrodescendentes. Da mesma forma, quando o
artista retorna à sua Cuba natal, em 1941, depois de ter despertado essa consciência, ocorre
uma verdadeira emergência desses significados profundamente ressemantizados. Devemos
levar em consideração que seus interlocutores mais frequentes durante o reencontro com seu
país de origem foram Lydia Cabrera e Fernando Ortiz. A primeira uma etnóloga e escritora, e
o segundo, um antropólogo. Ambos dedicados em suas ações ao universo afro-cubano. Se
Lam soube realizar uma obra afro-americana no seu sentido mais profundo, foi porque soube
adaptar os cânones da cultura que lhe interessavam, recriando-os com novas condições
materiais.
Por outro lado, muitos autores enfatizam o fato de Lam ser filho de um imigrante
chinês e mãe descendente direta de escrava congolesa. Outros também atribuem esse
despertar de consciência e assimilação de sua africanidade ao fato de sua madrinha, uma
sacerdotisa da religião afro-cubana, santería, fosse quem o introduziu nesses assuntos quando
era jovem. Esses fatos são importantes em si, mas principalmente depois que Lam,
recentemente retornado a Paris, faz contato com intelectuais como o etnólogo Michel Leiris,
que insiste em buscar nas memórias de Lam possíveis explicações para suas teorias sobre a
assimilação e expansão do elemento étnico africano e seus desdobramentos na arte. Também
graças à sua proximidade com Picasso de quem toma seu afã pelo colecionismo de máscaras e
fetiches de África e Oceania. Em suma, todos esses dados delineiam suas motivações em
relação à questão africana desde cedo e as retoma com nova força junto com Césaire na
literatura. Mas insistimos que deve ser entendido como um processo e não como uma
interferência direta, ou apenas hereditária. Como consequência em sua obra, os objetos rituais
vão de uma relação formal com seus ancestrais à reinvenção dos seus verdadeiros significados
e funções. Sua obra faz confluir todos esse imaginário com flexibilidade trocando com as
normas originais, assimilando diferentes elementos e técnicas que se abriram para sua poética
pessoal.
Graças às suas raízes heterodoxas, África oferece-lhe menos uma lição morfológica do
que uma motivação para personificar o sobrenatural. Veja-se sua conclusiva frase "queria
devolver-lhe a esses objetos [às máscaras africanas] uma paisagem e um mundo próprio"
29
(MOSQUERA, 2002, p.526). Nele a conexão com a África e o Caribe funcionavam de
maneira fecunda.
Por outro lado, Lam queria manter certas distâncias sem se confundir com os
problemas locais. Conhecido é o caso de ele se recusar a participar da mostra dedicada à
pintura moderna de seu país de origem: ―Cores cubanas‖, com curadoria do então especialista
do MoMA Alfred Barr, e que inaugurou no mesmo museu em 1944. Muito possivelmente
temia que sua obra fosse classificada e valorada segundo os parâmetros da ―cor local‖. Por
isso, simultaneamente à mostra dedicada a Cuba, inaugurou a exposição solo na galeria Pierre
Matisse, em Nova York.3.
Também em Cuba o artista não fez escola, embora tenha prevalecido a sua obra e sua
experiência como inspiração para artistas a partir dos anos oitenta. Esses o reconheceram não
como o autor de uma obra tribal ou pueril, mas ajustado aos discursos filosóficos dentro da
nova sensibilidade pós-moderna.
3
Ver ampliado em BARR, A. Uma carta. The Museum of Modern Art,New York. In NOCEDA,
2002.p.446
30
que a título de bolsa de manutenção de gastos lhe concede um empresário de sua cidade natal.
Curiosamente esta iniciativa, que lhe permite a viagem à península, se consumou via a
municipalidade e era dirigida exclusivamente a um "jovem pintor de cor".4 Afinal que
melhores aspirações, poderia ter este artista de talento precoce, mas de origem e condição
social bem modestas? Antes de sua partida para Espanha, Lam organiza uma exposição
individual com patrocínio de La Sociedad, Círculo de Cultura y Recreos, reunindo os seus
primeiros trabalhos realizados em Cuba5.
A produção de Lam na etapa espanhola foi prolixa, apesar de que os historiadores
tenham tão pouco se debruçado sobre ela, referida comumente como período que não rendeu
grandes frutos desde o ponto de vista pictórico, e de nela se ater ao gosto dos salões de arte. 6
A estadia na Espanha, porém, o remete a uma segunda alma, herdada talvez da soma da arte
clássica e flamenga, e da paisagem provinciana da região de Cuenca, onde mais tarde decide
residir.
Depois de sua chegada a Madri, frequenta o ateliê do pintor aristocrata Fernando
Álvarez Sotomayor, que um ano antes tinha-se tornado diretor do Museu do Prado, e que era
considerado o maior retratista do país. Chega com uma carta de recomendação do diretor do
Museu Nacional de Havana, Antonio Rodríguez Morey7. Neste período de formação no
Prado, Lam assimila não apenas a técnica, mas o contato com esse mundo tradicionalíssimo
que envolve a arte por encomenda. Experiência essa de que se vale na Escola Vespertina de
Livre Paisagem da Alhambra, ponto de encontro da boêmia e dos pintores excêntricos, como
Salvador Dali e Bejamín Palencia, ambos praticantes da pintura orientada pela vertente
surrealista.
4
Devo esta referência à Cronologia Catalogue Raisonné of the Painted Work. Volume I 1923-1960.
Paris: Gary Nader fine art, 1996.p.172-212 "A municipalidade de Sagua La grande concede a Lam uma bolsa
para estudos na Europa. A bolsa era oferecida por um marchand local, que especificava que o dinheiro seria
destinado a uma pessoa jovem de cor com necessidades financeiras" p. 174. Ainda em entrevista com Fernando
Rodrigues Sosa, Lam declara: "(...) cheguei a Espanha no outono, com pouco dinheiro e uma ajuda econômica
da municipalidade de Sagua, que consistia em quarenta pesos ao mês durante alguns anos, o que, você pode
imaginar, não servia para nada". (RODRIGUEZ SOSA, 2002, p.551, tradução nossa)
5
Era de se esperar que Lam concorresse depois de sua aparição por quatro anos consecutivos no Salón
de la Asociación de pinturas y esculturas (1920-1923). Inclusive era previsível que o ganhasse nessa condição de
"jovem artista", e que depois a Associação Pintores e Escultores lhe concedesse o privilégio de ser um dos seus
mais jovens membros premiados e decidisse encaminhá-lo, já em 1920, no mesmo ano em que começava os
estudos na mais importante instituição do país, a Academia São Alejandro. Ver ampliado em MEREWETHER,
1992. p. 14.
6
Noceda comenta como dado curioso que, nas monografias dedicadas ao pintor, os autores concedem
destaque apenas a algumas escassas obras suas com influência surrealista ou matissiana. Ver ampliado em
NOCEDA, 2002. p. p.551.
7
Ver ampliado em BORRAS, 1996, p 72.
31
Em 1927 Lam passou a residir na cidade de Cuenca, lugar onde afastado de Madrid
encontrará a paisagem que mais lhe lembrará Cuba. Nesse mesmo ano, a revista Ilustração
Castellana publicou trinta desenhos a carvão de sua autoria, sob o título "Del Cuenca Típico”
(Do Cuenca Típico), paisagens com certas acomodações cubistas à moda de Cézanne (fig.1).
Com este episódio, o seu nome começa a circular, atingindo um certo reconhecimento por
parte de órgãos críticos. Esse é também um ano importante quanto às reverberações das
vanguardas na Espanha e ainda para a nova pintura cubana. Dois anos antes, integrantes do
núcleo de pintores e escritores assinam em La Coruña o Manifesto dos Pintores Ibéricos 8.
Neste manifesto criticavam os artistas da capital do país "por não seguir os movimentos
internacionais das artes plásticas, deixando-os isolados dentro de sua própria nação‖. Quanto
a Cuba, é em 1927 que, com a Exposição Arte Nova9, é lançada a geração da jovem
vanguarda cubana.
Pode-se dizer que esses são anos fundamentais para a tomada de posição de Lam com
relação à arte de vanguarda. Em 1930 ele se casa, porém, um acontecimento trágico acontece
em seguida: a um ano do nascimento do seu primeiro filho, sua esposa Eva Piriz e filho
Wifredo contraem tuberculose e morrem. Isto o deixou submerso em uma tristeza
8
Alfar, 51(La Coruña, Julho de 1925) O Manifesto foi assinado por escritores, intelectuais e artistas,
incluindo Manuel Abril, Bergamin Emiliano Barral, Francisco Durrio, Juan Echevarría, Oscar Esplà, Manuel de
Falla, García Lorca, Maroto, Joaquim Sunyer, Guillermo de Torre e David Vazquez Díaz. Ver ampliado em
BORRÀS. 1996, p. 49
9
Nomes como Carlos Enriques, Victor Manuel, Amélia Pelaez e Marcelo Pogolotti, despontam
trazendo as reverberações da península e que não tardam em chegar a Cuba. Ver Cronologia Catalogue Raisonné
of the Painted Work. Volume I 1923-1960. Paris: Gary Nader fine art, 1996. p.172-212
32
avassaladora e que se traduz em pausas e devaneios nas concepções de vida e da arte. Uma
das maiores estudiosas do Lam, durante o período espanhol, Maria Luisa Borràs, associa este
momento de profunda dor com uma diminuição radical de suas produções. Episódio que
explica também o fato de virem à luz nessa época telas de "aurea surrealista", que destoam do
resto de seus quadros. Em uma delas, "Amour et Désamour", (1930), (fig. 2) aparece uma
composição tipicamente surrealista, e que se assemelha às escolhas formais de algum quadro
de seu contemporâneo, o pintor espanhol Benjamin Palencia. Além disso, está ambientado em
um lugar de tessitura desértica, quase abstrata, e apresenta duas cenas, como indicando um
antes e um depois: primeiro um casal em postura feliz e em seguida um homem que levanta as
mãos como símbolo de desespero. Contudo, a linguagem surrealista não prevalecerá, sendo
mais uma prática para desafogar seu grave estado emotivo que, em seguida, é abandonada
para uma retomada pintura acadêmica. Isto não deixa de ser ainda uma reação compreensível,
se pensarmos nos critérios de aversão ao surrealismo e às artes de vanguarda que abundavam
na Espanha daquela época. Para Lam, o surrealismo era um passo muito radical, uma
transição entre o que era considerado "arte boa" ou "arte ruim". Afinal, a pintura ortodoxa,
como o retrato e outras encomendas de gêneros tradicionais, eram seu único meio de
subsistência nesse momento.
Figura 2. Wifredo Lam. "Amour et Désamour", 1930, óleo sobre cartão, 60 x 108 cm
Teria que esperar o ano de 1936 para recomeçar com os experimentalismos, justo no
momento em que vai a Barcelona como convalescente da Guerra Civil Espanhola na qual
tinha lutado do lado dos republicanos como mais um espanhol. Ali encontra uma comunidade
33
artística vibrante. Lam se aproxima de Miguel de Unamuno, Rafael Alberti e também de
Garcia Lorca, máximas figuras da vanguarda literária espanhola conhecida como "geração de
27‖. Deste momento surge sem dúvida uma paixão definitiva pela literatura e a poesia. Paixão
que fomentará até o final de sua vida conforme se verificará no decorrer desta pesquisa. Por
esses anos Lam realiza "Autorretrato" (fig. 3) um desenho onde tem um destaque a mão
empunhando uma pena, instrumento para trabalhar a técnica que era comum a poetas e artistas
visuais, o nanquim. Essa mão levada ao peito traduz também um gesto de nobreza e fidalguia
que contrasta com o fundo trabalhado com planos interceptados ao gosto moderno. Esse
trabalho sem dúvida rende tributo a seu renascimento pessoal como um artista de vanguarda.
Também devido ao advento da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) Lam tem a
impressão de que ―algo muito importante estava em jogo não apenas para a Espanha, mas
para Europa como um todo‖. (LAM, apud. BORRAS, 1996, p. 38). Além disso, devido às
vicissitudes e carências típicas dos períodos bélicos, inova com o uso de materiais precários e
transitórios: "Eu fiz desenhos grandes sobre papel, usando pintura caseira. Pobres e sem
brilho, obscuras demais, estudos que eu deveria transpor a um suporte permanente, mesmo
estando ali já todos os problemas resolvidos." (LAM apud. BORRAS, 1996, p.40)
34
Por outro lado, ainda que hoje subsista a esse respeito uma razoável quantidade de
pontos obscuros, foi também nessa etapa, entre 1936 e 1938, durante sua estadia em
Barcelona, que Lam travou contato com a nata da intelectualidade poética cubana. Literatos
que ali estavam como Nicolás Guillén e Alejo Carpentier, os quais tinham se alistado nas
Brigadas Internacionais para lutar contra o fascismo de Franco. Neste tempo ele resolve que
sua arte estava definitivamente comprometida com a vanguarda, fosse na literatura, na
música, ou naquela arte próxima à anti-arte que descobre entre seus colegas catalães. Anos
depois, Lam reconhecerá que foi no contexto daqueles anos difíceis da revolução que uma
grande mudança aconteceu em sua obra: "A revolução teria mudado minha maneira de pintar.
Eu achava com facilidade as soluções da composição. Acredito até hoje que através dessa
emancipação minha arte se tornou autêntica" (LAM, apud BORRAS, 1996, p.42)
Ainda durante esses anos, Lam veria uma grande retrospectiva de Picasso. Mal poderia
imaginar que pouco depois ele se tornaria seu grande mestre. Quando em 1938 a guerra, o
abatimento psicológico e uma intoxicação no fígado lhe provocam tal desgaste que toma a
decisão de partir da Espanha. O amigo Manolo Hugué, personagem chave na promoção do
cubismo na região, e grande amigo de Picasso, lhe entrega uma carta de recomendação e
sugere que mude para Paris, o mais importante centro artístico da época, onde teria o apoio do
grande pintor espanhol e de seu círculo de amigos.
Ao chegar a Paris, Lam encontra Picasso. Por coincidências históricas, como lembra o
crítico catalão Sebastiá Gasch, Picasso tinha seu ateliê na rua Grands-Augustin, próxima ao
Sena. Era a mesma rua onde transcorria o primeiro episódio de Le chef d'oeuvre inconnu, de
Balzac, obra ilustrada com orgulho por Picasso. Este fato não despertaria interesse de Lam
voltado à ilustração de livros? Não aumentaria mais a áurea mítica do artífice moderno como
ilustrador daquela obra? Todas estas hipóteses não são desprezíveis, tomando em conta que,
como já comentado, o ateliê do mestre tinha se convertido em um nicho de encontro de
artistas, escritores, editores, mecenas e demais figuras chaves do meio que impulsionaram as
chamadas artes do livro.
Por enquanto, do que se tem certeza é que Lam, como amigo de Hugué, e ainda mais
por sua própria história, foi acolhido por Picasso de modo especial. Hoje é sabido que este
abrigava e norteava os artistas que, como Lam, tinham lutado na frente de batalha durante a
Guerra Civil Espanhola ao lado dos Republicanos. O artista também foi reverenciado pelo
35
fato de que Lam já tinha feito uma incursão no modernismo. Por tudo isso, ele ganha a
simpatia de Picasso, quem lhe confessa: "Mesmo se não tivesses vindo com uma carta de
Manolo, teria te reconhecido." (LLANA, 2002, p. 540, tradução nossa).
Em resposta às atribuições de herança picassiana que a crítica comumente lhe
outorgou, Lam declara: ―Mais que de influência convém falar de saturação espiritual. Não fiz
imitação, mas Picasso podia habitar facilmente no meu espìrito, nele nada me era alheio.‖
(Lam apud. FOUCHET, 1976, p.25, tradução nossa). Outra grande vantagem da amizade com
Picasso foi a possibilidade do artista ser apresentado a Tristan Tzara. Victor Brauner, Marcel
Duchamp, André Breton, Michel Leiris, Max Ernst, dentre outros. Ainda Picasso foi então
responsável por ter Lam assinado seu primeiro contrato junto a um dos marchands do pintor,
Pierre Loeb, dono da Galeria Pierre. Um ano após sua chegada a Paris, Lam inaugura nesta
galeria a mostra Peintures (junho-julho, 1939); e nesse mesmo ano, abre também as portas
uma exposição a duo de ambos os pintores na galeria Perls em New York da exibição
Drawings by Picasso and Gouaches by Wifredo Lam. (novembro- dezembro, 1939) (fig. 4).
Começa assim uma interface única, que vai fazer com que Lam estabeleça conexões
com suas mais intrincadas origens e com sua vocação de artista de vanguarda. Nas palavras de
seu cúmplice, o poeta René Char: "Este século tem determinado nossos espaços imemoriais:
primeiro, o espaço íntimo em que atuam nossa imaginação e nossos sentimentos; segundo, o
espaço circular, do mundo concreto. Ambos eram inseparáveis. Subverter um era enlouquecer
o outro" (CHAR, 1975, p.53, tradução nossa). A seguir se tratará das gradações desses
espaços imemoriais.
37
3. O primeiro livro ilustrado: Fata Morgana (1940-1942), poema de André
Breton
38
Prose and Poetry. O texto é publicado depois em francês em brochura, no ano de 1942, em
Buenos Aires, sob os cuidados das Edições de Lettres françaises, com as ilustrações de Lam e
uma impressão de 520 exemplares. Depois foi reproduzido no número 4 da revista Les Quatre
vents ("L'Evidence surréaliste", 1946) e incluído em 1948 no volume Breton: Poèmes
publicado por Gallimard.
A publicação em Buenos Aires, em 1942, correu por parte de Lettres françaises, uma
editora mantida para promover autores do círculo de franceses e argentinos que gravitavam
em volta da figura de Victoria Ocampo. Ela foi amiga e anfitriã de Duchamp quando na
década de 1910 visitara o país. Ainda durante a guerra mediante as publicações Sur, e as já
citadas Edições de Lettres françaises ela promoveu a obra de muitos surrealistas neste
momento de exílio. Foi ademais o seu casarão de Beccar, ora residência de Ocampo, ora lugar
de acolhida a vários europeus, como o pianista Igor Stravisnky, ou do escritor dissidente,
ensaísta, editor, e descobridor de Borges, Roger Caillois, quem ali reside, por quatro anos,
onde se gestaram diversas ações de vanguarda internacional em solo argentino. Esse círculo é
apenas um dos elos entre América e o surrealismo. Para Lam foi da maior relevância ter sido
editado pelo grupo de Ocampo, ainda que isso tenha se dado por mediação de Breton, ele se
tornou mais conhecido fora do estreito núcleo de surrealistas de Paris ou Marselha.
Podemos dizer que uma sucessão de eventos, relacionados ao livro, trazem consigo a
ressignificação de uma ―zona de atividade‖. Como Johanna Druker apontou: ―Este tipo de
trabalho [o livro de artista] é menos um gênero específico que uma 'zona de atividade' e no
qual diferentes meios intersectam-se para produzir resultados inesperados e diversos"
(DRUKER, 2004, p.2, tradução nossa). Esta zona permite de um lado revisitar o universo
poético bretoniano, complexo em si mesmo desde suas prerrogativas, e de outro, verificar
como a realização deste livro produzirá uma divisão de águas na vida artística de Lam, um
salto definitivo, de proporções então insuspeitadas. Como se produz este salto, quais foram as
características desta zona de atividade?
Dedicado originalmente a Jacqueline Breton, este poema excepcionalmente longo foi
escrito em dezembro de 1940, no momento em que Breton era um dos amparados pelo
Comité Americano de Resgate aos Intelectuais. Uma carta enviada 4 de fevereiro de 1941 ao
editor Léon Pierre Quint descreve o primeiro projeto de publicação:
39
impressora um pouco qualificada, que aparentemente não pode ser
encontrada a não ser em Avignon [...] eu realmente gostaria de publicar mais
uma brochura com o signo de Sagitário, e solicitar ao impressor que garanta
a sua divulgação. Só pode ser uma tiragem de duzentas ou trezentas cópias
que eu pagaria. (BRETON, A. Bibliotheque Nationale, Nouv. Acq, 18358, f
390, p.1786, tradução nossa)
São significativas essas palavras por remarcar o valor que Breton atribuía a Lam,
deixando claro que para esse livro específico era importante a escolha de um artista como ele,
com suas habilidades e sua bagagem. Era não apenas ―o que tinha mais a dizer‖, mas também
um artista estrangeiro e caribenho, que como veremos a seguir, são qualidades relevantes no
momento em que o poema sai à luz sob as circunstâncias da viagem de exílio. Segundo
Etienne-Alain Hubert, em seu texto explicativo sobre Fata Morgana, ―a ilustração de Lam é
composta de figuras esquemáticas e angulares, evocando vagamente imagens totêmicas‖
(1992, p. 1787, tradução nossa). Pode se sugerir um desenho que conjuga algumas práticas
surrealistas como a observação do primitivo10, e as respostas de jogos de automatismo. Sendo
assim, poderíamos concluir que se trata de um desenho que conflui com o pensamento
bretoniano.
Segundo a tese anteriormente exposta, do livro como uma zona de interatividade. É
imprescindível que vejamos as propostas do surrealismo tão literalmente quanto possível. Isto
é, considerando seu posicionamento crítico. Por isso é importante que de um lado se veja o
automatismo indicador de um inconsciente, e de outro o caso do maravilhoso, conceito que
deslocou o automatismo como princípio básico do surrealismo. Impulsionado por Breton, o
maravilhoso tem dois componentes: beleza convulsiva e acaso objetivo. Discutido por outros
surrealistas, tanto no início (por exemplo, Aragon) quanto no final (o caso de Pierre Mabille),
o maravilhoso é mais importante no caso do Breton. Essa ideia reflete diretamente na
definição de beleza convulsiva em L‟Amour fou: "A beleza convulsiva será velada erótica,
fixa explosiva, mágica circunstancial ou não será" (BRETON, 1992, p.120). Acaso podemos
inclinar-nos a ver Fata Morgana como uma obra expressiva de tal conceito, a beleza
convulsiva? Nesse caso, o desenho assimila a representação do convulsivo: deslocamentos
dentro de um campo mimético dado.
10
O problema do primitivismo surrealista é muito complexo. Embora posicionado contra o racismo,
mantém abordagens primitivas, principalmente na forma de associar o primitivo e o primordial, entendendo-o
como infantil ou neurótico (surrealistas bretonianos).
40
3.2. Outras ilustrações nos livros de André Breton
Uma das primeiras tarefas da atual tese foi fazer um levantamento, por assim dizer, da
postura de André Breton com relação à ilustração de seus livros. Elas estão presentes desde
suas primeiras e mais importantes obras, conhecidas como "trilogia do amor louco": Nadja
(1928), Les Vases Communicants, (1932) e L‟Amour Fou, (1937). Na trilogia Breton põe em
prática seus conceitos que abrangem automatismo, o acaso e muitas outras associações com
os fenômenos da psique estudados no conjunto da obra. Há uma palpável negociação com o
plano imagético que haveria de completar a escrita. Contudo, a fotografia parecia ser a técnica
predestinada para a maioria dessas ilustrações. Desde o prólogo da primeira destas obras,
Nadja, o autor/prefaciador observa a esse respeito: ―Talvez convenha de modo especial a
Nadja, em razão de um dos principais imperativos ‗antiliterários‘ aos quais esta obra obedece:
a abundante ilustração fotográfica que objetiva eliminar qualquer descrição.‖ (BRETON,
2007, p.8, tradução nossa)
Ante tal afirmação, cabe a seguinte ponderação: por que tinha Breton tanta certeza da
conveniência da fotografia para suas primeiras ilustrações? Questão também formulada por
Dawn Ades: "Por que Breton decide usar a fotografia para Nadja? E mais tarde para Os Vasos
Comunicantes, e depois para o Amor Louco?" (1985, p.23, tradução nossa). Segundo Ades, a
resposta curiosamente não guarda relação com o "potencial da capacidade de imaginação" da
fotografia como meio expressivo. Ao contrário, ela afirma que seu uso se justifica porque "a
fotografia grava uma verificação do que tinha em mente Breton quando escreve esses livros"
(1985, p.23, tradução nossa)
Procurando outros indícios mais longínquos, encontramos uma possível resposta à
proposição bretoniana na revista Minotaure (n. 5). Explicando seu conceito de ―beleza
convulsiva‖ conjuntamente com o de escrita automática em um texto de cunho teórico, ele
escolhe como ilustração a foto de um relâmpago, acompanhada da legenda: ―A imagem assim
como se produz na escrita automática‖. Esse relâmpago colocava a fotografia como um dublê
do pensamento. A legenda enfatiza um dos aforismos que guiaram o ânimo surrealista: ―Tanto
em pintura como em poesia a escrita automática que aparece no final do século dezenove é
uma verdadeira fotografia do pensamento.‖ (BRETON apud KRAUSS, 1985, p.115, tradução
nossa). Isso explica também porque tantas vezes o meio de reprodução mecânica se mostrou
conveniente para acompanhar o espírito contido na obra escritural de Breton11.
11
De fato, a escrita automática surge no final do século dezenove com o espiritismo .
41
Em uma aprofundada análise sobre fotografia de vanguarda no livro O Desafio do
Olhar, Annateresa Fabris comenta, como este meio vinha associado às pesquisas do autor em
torno da ―beleza convulsiva‖; ―explosivo fixa‖ e por fim, ―a beleza erótica velada‖, definições
estampadas na revista Minotaure. Sem querer esgotar aqui esses conceitos, são os
movimentos e os aspectos fenomenológicos destes pares ou tipos de beleza os que primeiro
traduzem o papel do uso da imagem fotográfica como ilustração. A autora comenta esta
relação com as bases de suas inventivas, como o automatismo literário e as relações entre
artístico e não artístico, no trecho a seguir:
[...]
42
gráficos (também compartilhado por Breton), que ajudam a decifrar os enigmas durante toda a
trama do romance:
Figura 5. Desenho de Nadja. À mort o L’âme du blé (Para a morte, a alma do trigo). 12 x 18 cm.
Impressão fotográfica usada por André Breton para ilustrar Nadja ,1928.
Fonte: www.andrebreton.fr
43
Por tanto, usada com veemência nas ilustrações, a foto e o desenho compartilham uma
relação secreta com os métodos científicos; pelo fato de que o repertório do autor provinha em
grande parte de suas pesquisas e formação na área da psiquiatria. Lembremos que antes de se
tornar o conhecido escritor, Breton teve uma formação em medicina e debutou nas pesquisas
na área psíquica como defensor das teorias de Sigmund Freud.
Já no livro Fata Morgana (1942), Breton optou pela ilustração em desenhos,
convidando Lam, que os realizou em nanquim. Isto talvez se deveu ao fato de tratar-se aqui de
um registro poético. E em parte também determinado pelos jogos como o cadavre exquis e o
tarô praticados em Marselha, usando como base a técnica do desenho. Por outro lado, essas
ilustrações carregam consigo uma ideia do transitório, de um universo que transcorre diante
dos olhos de Breton, ante a iminência da guerra. Esta conjuntura o leva a tomar decisões
imediatas, tais como a de refugiar-se nos Estados Unidos.
No entanto, a sua vocação pela ilustração fornece significativos insights para a análise
de Fata Morgana. Pese às diferenças, acredita-se ainda que Lam não ignorou essas
colocações anteriormente expostas, na medida em que poderia absorvê-las por sua
convivência em Marselha somado ao fato de ser um leitor atento das obras de Breton.
44
nessas breves palavras a resolução de abandonar a França para fugir de uma experiência
escabrosa que na época já tinha sido testemunhada em outras latitudes. O destino era claro:
"novos territórios‖ ou que significava em outros termos: Novo Mundo. Eis que
empreenderiam em grupo uma viagem de exílio. Não já como aquelas viagens anteriormente
feitas ao México por Antonin Artaud (em 1936) e Breton (em 1938), ou a tão famosa
expedição de Wolfgang Paalen ao Alaska em busca de experiências com culturas distantes e
remotas na década de trinta, mas sim como viagem de fuga.
Desde sua primeira obra, Les Champs Magnétiques, (1920) escrita com Soupault, já a
ideia de abandonar a vida aprazível e segura e partir sob qualquer pretexto era uma constante.
―Larguem tudo, às estradas‖. (BRETON apud. PONGE,1999, p.335, tradução nossa) era o
chamado lançado por eles e que resultou em viagens coletivas a cidades escolhidas a esmo.
Há uma enorme distância, porém, entre estas experiências de viagens anteriores, e a partida
que se produz para evitar o total desabamento dos valores em 1940. Súbita, desmedida, é
assim a viagem apresentada no poema.
No estudo ―A viagem como vocação‖, Fernanda Peixoto, aponta duas dimensões da
viagem: ―Uma [...] diz respeito ao lugar decisivo da amizade na produção de conhecimento e
a criação de modo geral [...] A segunda, [diz respeito] à importância decisiva da memória nas
experiências de viagens‖ (2004, p.245). Sobre estas dimensões, ou seja, sobre o sentimento de
colaboração durante esses deslocamentos é que se apoiarão as ponderações a seguir.
Vale esclarecer que o texto faz contínuas alusões à água, às inundações, e a outros
códigos de procedência marítima que nos ajudam a encontrar rastros de um estado anímico
que parece percorrer todo o poema: a incerteza da viagem. Mas antes de mais nada, há o
estado que se produz quando se experimenta para usar a expressão de Peixoto, "a pré-
viagem". Eis porque o cenário escolhido pelo poeta, ainda que fragmentário, intenso e
carregado de signos, está delimitado pelas experiências concretas: os momentos vividos em
Marselha e tudo o que isto carregava consigo para o destino de Breton, do movimento
surrealista e para a França como nação. E se é certo que o poema está longe de ser um registro
de "memória", e que estão ausentes rótulos que nos remetem a uma viagem do tipo expedição,
a soma dos versos e do vocabulário empregado carregam esse sentido. Marselha será central
no contexto do poema. Será válido esmiuçar como transcorreu essa estadia e que surpresa é
ali encontrada, a ponto de transcender a esfera de arte.
Marselha era em si mesma um cenário vívido e mutante. Sendo a capital da zona
neutra durante a ocupação de Vichy, suas ruas e espaços públicos estavam lotados de judeus,
45
comunistas, intelectuais de vanguarda, homens que apenas com sua existência poderiam
representar uma ameaça à ordem nazista. ―Em 1940, depois da ocupação, teria bastado ir a
Marselha para dispor de uma antologia viva do surrealismo", comenta Max Poul Fouchet
(1976, p. 25, tradução nossa). E logo em seguida agrega: ―Vasta, animada, tomada por um
ambiente artístico e literário [...] parecia que era possível viver em Marselha. Ao menos em
certa medida, salvo as ‗moléstias‘ policiais.‖ (1976, p.26, tradução nossa). Marselha também
era a cidade voltada para o mar, e cujo horizonte era o lugar dos ―navios ancorados‖ dos quais
se desprendia um sopro de esperança.
Figura 6. Vila Air Bel, Marselha, 1941: Oscar Dominguez, Helena Holzer, amigo de Dominguez,
Varian Fry, Jacqueline Lamba, Pino e amigo, Wifredo Lam, André Breton, Jacques Hérold (na árvore)
e Henriette Gomez
46
Foi esta obra que fez com que Breton fosse apontado para ingressar nas listas negras, o que
levou à eliminação simbólica de todos seus exemplares, salvo os cinco que foram salvos.
Mesmo sendo essa a parte neutra de uma França dividida em zona ocupada e zona livre, que,
portanto, se beneficiava de um relativo liberalismo, pairava no ar a ameaça iminente do
avanço e da ocupação total pelas forças do nazismo. Os surrealistas estavam ideologicamente
condenados com a vinda da guerra. Suas obras eram o alvo perfeito para as acusações
fascistas. Quando o marechal Pétain visitou Marselha, André Breton foi preso e submetido a
diversos interrogatórios. A este respeito, ele próprio comentou:
Breton ficaria perplexo, sobretudo porque as razões de tal censura nunca foram
explicitadas, e dificilmente corresponderiam à sua temática, estando ela diluída nos versos
escritos em estado de automatismo psíquico. Acaso os censores agiam a pretexto de tratar
desses versos obscuros e labirínticos? Ou seria o próprio Breton o verdadeiro alvo do ataque?
O autor assim o lembrava: ―Quando o editor questionou ao chefe da censura sobre as causas
deste rigor, este mandou a responder nos seguintes termos: ‗Não nos proponha obras de
autores que são a própria negação do espìrito de ressurgimento nacional.‘"(GRANELL;
BRETON, 1999, p. 335, tradução nossa). Sendo o autor, figura marcada como líder e
principal promotor da adesão de quase a maioria dos membros do grupo surrealista ao partido
comunista, e ainda com a sua mais que explícita simpatia pelo trotskismo, para qualquer
pessoa que estivesse à par das publicações periódicas e literárias de Breton, não ficariam
dúvidas quanto ao objetivo que estava por trás da censura ao poema, sendo o autor o principal
alvo. Ainda cabe lembrar que não só este autor, mas a maioria dos intelectuais que estavam
refugiados em Marselha, foram submetidos a interrogatórios por parte da polícia. Fato este
que o levou a relatar o episódio no seu livro escrito após o Fata Morgana, Martinica
charmous de serpentes (Martinica encantadora de Serpentes,1948)
Para acentuar seu valor histórico e literário, Fata Morgana, que seria taxado como
―detestável‖, ―inaceitável‖, se tornara um símbolo da luta que se travaria no seio do
47
movimento em defesa da poesia. Mesmo quando na declaração feita pouco depois ele afirma:
―Fata Morgana, que se desenvolve totalmente à margem do momento atual‖ (GRANELL;
BRETON, 1999, p.335, tradução nossa), há de se supor estar este ―à margem‖ se referindo a
que o plano subjetivo prevalece por cima de qualquer objetividade. Na análise a seguir,
veremos como e por que a alusão a esses dias conturbados está apenas disfarçada.
O título Fata Morgana se refere a uma lenda italiana sobre a fada Morgana. Esta
personagem mítica habitava no nublado Monte Gible, ou seja, Etna. Ela produz miragens lá
onde as populações da Sicília e da Calábria, ansiosas para decifrar presságios, teriam sido
espectadores atentos da fada. Guillaume Apollinaire, (1880-1918) notadamente no
L'Enchanteur pourrissant, utilizou amplamente essa tradição, para ilustrar os temas do
"verdadeiro falso" e para simbolizar o poder da revelação contido na ilusão poética e artística.
Na origem da lenda: um fenômeno óptico de ―miragem superior‖, estudado anteriormente
pelo famoso P. Kircher é comumente qualificado, em várias lìnguas europeias, como ―fata
morgana‖, escrito em letra minúscula. Entre muitos outros tìtulos, pode-se referir à descrição
dada por Camille Flammarion desse fenômeno especificamente de manhã cedo onde a
atmosfera em claro-obscuro se assemelha a fileiras de pilastras que aparecem no céu, para
desaparecer em um piscar de olhos e uma imagem que projeta arcadas e abóbadas como a dos
aquedutos dos romanos. Acima de tudo, lembremo-nos de que Kircher, Flammarion ou
Apollinaire descrevem o efeito ―fata morgana‖ como uma sucessão de ilusões, um conjunto
de sequências escorregadias: um bom modelo para um poema que Breton imaginou. No
jargão dos marinheiros, esse efeito traduz uma espécie de miragem que se produz em alto
mar quando uma massa de ar quente se encontra com uma de ar frio. O objeto refletido na
água é visto com um relevo excessivo e destacado do fundo, fazendo com que, aos olhos
humanos, barcos, ilhas ou montanhas pareçam estar flutuando no horizonte. Portanto o uso da
simbologia da fada também está atrelado a algo ilusório, ou não real. Neste texto de Breton
tampouco há uma continuidade estrita, mas uma concatenação de fatos cuja mensagem deve
ser procurada em analogias, em direta relação com as miragens ao lado das montanhas de
calcário visíveis da Vila Air Bel12.
Em resumo, que significa o título desta obra? Na verdade, Breton também se apoia
nas lendas da Europa nas quais Fata Morgana é uma fada cuja aparência está sempre em
mutação. Com esta qualidade de produzir efeitos ilusionistas, esta fada é sobretudo um
12
Sobre esta interpretação do poema ver o texto HUBERT, 1992.
48
símbolo da instabilidade, das mutações e das realidades oblíquas. Por outro lado, alusões ao
mar não faltarão no poema, e sobretudo aquelas que lembram o efeito fata morgana: ―tudo é
aprisionado de novo pelo movimento do mar‖, (BRETON, 1942, p.4, tradução nossa) ou
mesmo alusão ao porto, que poderia se referir a esse lugar onde pacientemente aguardavam o
momento de zarpar: ―Muito tarde nos portos percorridos em ziguezague‖. (BRETON, 1942,
p.5, tradução nossa). Contudo, é cada vez mais claro e óbvio que o ilusionismo encarnado
pela fada lendária tenha sido a motivação inicial e a imagem concreta para descrever a França
de 1940, assim como para preservar os relances sobre a estadia na cidade circundada de
contornos marítimos onde habitaram durante meses, a já referida Marselha.
Estas ideias sugeridas pelo próprio título, irão depois fluir da mão de seu autor,
provocando a união que a priori não existia entre os versos. Esse fluxo é em si um valor por
assemelhar aos caprichosos da mente humana. O estudioso Maurici Pla descreve como Breton
procedia na hora de escrever.
Esse trecho sobre o método de Breton parece reproduzir com exatidão o procedimento
que ele seguiu para escrever o livro. Passagens que emergem da ―embriaguez mìtica‖ da
escritura, e que surgem como ―imagens coerentes e potentes‖, fazem eco da programática
inicial do surrealismo, mas impedem muitas vezes de acessar aos significados metafóricos tal
qual acontece nos estudos poéticos em geral. No entanto, dentro do poema há evocações
identificáveis pelo leitor especializado. Acaso não é a seguinte frase uma mostra do método
do automatismo? ―Há o que está escrito/ e há o que está escrito em nós/ e o que nós
escrevemos [...] seu traçado exterior deixa de ser superposto a seu traçado interior. / A mão
passa.‖ (BRETON, 1942, p.7, tradução nossa). Essa mão que parece não ter controle é a
resposta de um reflexo incondicionado e alude de forma direta ao método automático
plasmada no Primeiro Manifesto (1924)
49
ausência de todo controle exercido pela razão, e à margem de toda
consideração moral e estética. (BRETON, 2001, p.40)
Em análises anteriores deste poema feita por outros autores, como a de Jorge Nuñez
Vega, se reconhece a dificuldade de esmiuçar o significado total por se tratar de uma ―zona
mutável‖. Admite ainda a falta de correspondência de documentos que remetem a um tema
claro. Entretanto de nossa parte vemos como o poema recorre à enumeração de vocábulos que
norteiam a leitura dessa escrita pulsante. Esses termos poderiam orientar uma primeira
exegese, se ajudados desde a circunstância da viagem. Vale rever a enumeração de Nuñez
Vega no fragmento a seguir:
É mediante esta estratégia de ressaltar os léxicos que ganham peso no poema que toda
essa escrita labiríntica vai se desvendando. Vemos concatenar-se palavras como ―açúcar‖,
―café‖, ―móveis no fundo do mar‖, para a construção de uma sequência que aproxima essas
realidades afastadas entre imagem escrita/imagem desenhada. De tal maneira esses versos
tocam a Lam quando ilustra o poema.
Nesta tese buscamos desenvolver as pontes entre os vocábulos que sejam relevantes na
dinâmica imagem/texto. O primeiro destes temas em jogo é o próprio título, a fada Fata
Morgana, com seus signos de metamorfose e seu papel de confundir a visão para salvar de
circunstâncias fatídicas. A figura da fada protagoniza as representações do artista. Outro
elemento recriado e que produz estranheza, prenúncios e intermediações costuradas desde
cosmogonias primitivas, consiste em um pássaro mítico evocado no poema. Trata-se do
quetzal, o pássaro sagrado dos astecas, e que toma vida em uma das ilustrações acopladas na
parte do texto que a ele refere: ―De nossos dias sonha que uma expedição se forma para a
captura do pássaro quetzal, do qual somente se possuem em vida quatro exemplares.‖
(BRETON, 1942, s/p)
Outra figura semântica repetida duas vezes como anáfora é a do leão, ―à sua destra o
leão com suas mãos de ouriço [...] à sua destra o leão all rigth‖. (BRETON, 1942, s/p).
Sabemos que Breton foi identificado com o Leão por seus contemporâneos. De igual modo,
aparece um animal parecido ao quadrúpede entre as imagens.
50
3.4. Fisionomia das ilustrações de Fata Morgana
Seis figuras formam o conjunto de ilustrações feitas para o poema. Quanto à técnica
geral destes desenhos a nanquim, Lam reflete em seu processo uma advertência do que Breton
fez com a escrita automática, já que os desenhos em parte se originaram do jogo cadavre
exquis. No entanto, mesmo que não sejam desenhos automáticos, seu trabalho garante ser um
equivalente plástico das motivações protagonizadas pelo texto. É importante fazer um aparte
com relação ao processo automático e dizer que o artista deveria digerir e assimilar o poema
para acompanhar o texto que ilustrava. Por outro lado, para alguns surrealistas a experiência
automática era indissociável do desenho. No próprio poema Fata Morgana encontramos
frases como ―a mão passa‖, ―seguir os ditados do pensamento‖, ―na ausência de qualquer
controle‖, empunhando a pena que desenha. Este recurso de usar o desenho como propulsor o
guiaria mediante a linha protagonista, com a qual o artista se permitia um andar vagaroso, mas
também contornos sólidos, e ao mesmo tempo leves de extremidades rígidas e cabelos que
aqui parecem convergir.
Mesmo que pouco ou nada Lam teorize sobre o automatismo, sabemos que ele não
esteve à margem das discussões que circulavam sobre o assunto.
Cabe aqui expor dessas obras-ilustrações seus valores e significados, comecemos por
classificá-las. Primeiramente a representação arquétipo da figura feminina. Trata-se do
desenho da primeira ilustração (fig. 7) e que não resta dúvida ser a própria representação da
fada, Fata Morgana, que protagoniza o poema. Com coroações e signos que expressam sua
áurea, e acentuada expressão de seus cabelos esticados, com a nudez, esta figura parece
repetir-se mais de uma vez nas ilustrações, e assim o leitor vai se familiarizando. O desenho
parece brotar de poucas linhas que conformam o corpo nu, e o cabelo que o artista resolve
mais como uma progressão de elementos em desordem.
De fato, o rosto desta figura emergiu literalmente durante as seções do jogo praticado
em Marselha conhecido como cadavre exquis. (Cadáver delicioso), que Lam praticaria com o
próprio André Breton e sua esposa Jacqueline Lamba, Victor Brauner, dentre outros artistas
reunidos no chateux (fig. 8).
51
Figura 7. Ilustração I. Fata Morgana. 1942
Fonte: Livro Fata Morgana. André Breton (autor), Lettres Françaises, 1942
Este jogo cadavre exquis foi determinante dentro das práticas surrealistas. Consistia
em pegar uma folha de papel, desenhar algo ou escrever uma frase e dobrar, de modo a
impedir que qualquer jogador visse o que foi escrito ou desenhado antes. Na sequência, era
formada uma frase ou um desenho final construído a cegas por todos. Com ele se reforçava a
magia implícita na ideia da colaboração e das obras que emergem como fruto do acaso. Ver
também o jogo de tarô conhecido como Le jeu de Marseille, do qual Lam desenhou uma das
rainhas (fig. 9). Nele os ânimos eram outros, mas também foi criado durante o período em
Marselha, mantendo o apelo do jogo como filosofia de vida. Na primeira carta deste jogo que
fora publicado durante a estância dos surrealistas na cidade estava escrita a seguinte inscrição:
52
Editado em Marselha por André Dimanche e fabricado segundo um procedimento artesanal
pelo mestre (Maitre) – Cartier Grimaud"13.
Figura 9. W. Lam Baralho do Jogo de Marselha representando a rainha Alice no país das maravilhas
(conjunto e detalhe)
13
Sobre este assunto ver Editor Dimanche: disponível em:
http://poezibao.typepad.com/poezibao/2010/10/andr%C3%A9-dimanche-portrait-dun-%C3%A9diteur-
par-alain-paire.html acessado em junho de 2018
53
Será válido comentar a seguir, alguns dos detalhes deste jogo e como ele se torna o
núcleo embrionário das ilustrações encomendadas por Breton a Wifredo Lam. Como já
referido, uma das cartas, destinadas a representar uma das rainhas do tarô, que a licença
poética dos jogadores se permitiu juntar com a personagem de Alice no País das Maravilhas,
foi representada por Lam. Foi esta Alice, rainha (fig. 9) a que deu o rosto às ilustrações que
representam a Fata Morgana. Max Pol Fouchet colheu de primeira mão em suas conversas
com Lam alguns dados sobre como se estruturou esse conjunto de cartas:
Não podemos esquecer que o jogo esteve entre as práticas mais importantes dos
surrealistas. ―Que é o jogo? É a pintura, é a escrita, é fazer a poesia. Quando você está só,
diante da mesa para escrever, começa a jogar um jogo com você mesmo.‖ (HEROLD apud.
JOUFFROU, 1972, p.51, tradução nossa). O ato de jogar tinha implícita uma missão:
demonstrar a eficácia do acaso, divertimentos para responder à outra ordem com respostas
tecidas a partir de uma outra lógica.
Procedendo com a descrição da imagem em questão, a primeira ilustração se deriva
uma beleza estonteante da misteriosa Fata Morgana, (fig. 7). Todos os atributos completam a
expressão hierática da fada, que com exceção do cabelo de onde saem os motivos vegetais em
floração, aparece em pose de quietude. Julgamos interessantes também as esquemáticas e
quadriformes saliências da testa. Pensamos que elas indicam que a fada está usando um
capacete, seja como proteção, seja como arranjo surgido do acaso. O elemento reforça os
apelos mágicos, os poderes secretos da mítica figura. Nuñez Vega sobre esta primeira
ilustração do livro escreveu: ―A figura é um meio corpo feminino. É magra, tem o cabelo
comprido e liso e o peito nu. Tem os olhos afiados e uma expressão séria. Os lábios são
pequenos e nada dizem porque vivem um completo silêncio‖ (2018, p.73, tradução nossa).
14
Lamiel, 1989, romance inacabado de Stendhal, que tinha por protagonista uma jovem apaixonada por
romances de aventuras.
15
Foi uma famosa física francesa que desenvolveu várias atividades mediúnicas.
16
Pseudônimo de um médico, alquimista, físico, astrólogo e ocultista suíço, criador do elemento zinco.
17
Ubu Rei, 1986, obra do poeta, romancista e dramaturgo simbolista francês, Alfred Jarry
54
A segunda ilustração (fig. 10) alude ao universo animal. Eis que vemos um
quadrúpede de aparência leonina, e masculina, possivelmente uma alusão a Breton, apelido
dado a ele por seus companheiros. Os traços são trabalhados com forte presença do signo
mais elementar, abstrato e primitivo. A sua procedência animal e totêmica acha-se em perfeita
sintonia com o registro linear e o gosto moderno deste conjunto de ilustrações. Vemos
também pousado sobre o quadrúpede um colibri, uma ave que para os astecas era uma das
representações de quetzalcoalt. É provável que Lam tenha assimilado de um modo geral o
gosto das representações pré-hispânicas, também simples em seu acabamento, mas carregadas
das simbologias que fusionam o reino animal, vegetal, humano e divino.
A terceira ilustração (fig. 11) é uma das mais interessantes pois traça uma
continuidade entre a primeira Morgana, porém ao aparecer com uma segunda figura
entrelaçada, que repete alguns de seus traços fisionômicos, como a testa ornada de capacete, o
cabelo retilíneo e os traços da face, remete a uma duplicação da fada. Essas duas figuras
femininas interconectadas dão a ideia de ser ela mesma: uma em sua pose potente e hierática,
a outra, diferentemente, semelha uma beleza convulsiva.
55
Figura 11. Ilustração III Fata Morgana. 1942
Na quinta imagem (fig. 13) outra figura monstruosa se desenha parecendo estar lado a
lado do capacete de Fata Morgana. Ela está por demais carregadas de atributos, cabelos
esquemáticos, olhos e olhares que se distribuem por dentro de seu corpo, mãos e extremidades
que parecem também multiplicar-se e uma delas sustentando um espelho, quiçá uma alusão
57
direta ao Espelho do Maravilhoso (1940) obra de Mabille que Breton conhece enquanto
estava recluso em Marselha. Uma figura portando um espelho no desenho de Lam. O espelho
aqui denota um artefato mágico que aparece como sinal de que teria ocorrido uma
transformação. Essa magia sutil que aflora e vem à superfície nos correlatos surrealistas, no
universo imagético e lendário que subsiste e prolifera nos povos do mundo.
Nuñez Vega adverte se referindo às características gerais do conjunto das seis figuras:
A fuga fecha a série de desenhos. Uma mulher, um leão, uma alegoria das
ameaças, de um monstro, um espelho, pássaros em grupo. Lam começou a
contar uma história, e desvia [...] como pode ocorrer em qualquer processo
de produtor de ficção. (2018, p.77, tradução nossa)
Ante as evidências aqui apresentadas sugerem certas sentenças conclusivas. Uma delas
é o uso da imagem como valor em si, a força do que ela consegue exprimir. A ilustração é a
59
que nos guia durante a leitura do poema. Seja em um primeiro momento propensa a situar-se
como interpretação das lendas da fada da metamorfose; seja nas subsequentes com o reflexo
do contexto ilusório no qual a fada se ambienta na aproximação aos encantamentos e ao
maravilhoso que lhes aguardava no Novo Mundo. Além do mais, essas figuras ganham uma
de suas maiores expressões neste desdobramento tácito, a partir do texto e das práticas do
jogo, à qual os surrealistas concederam um valor primordial. Por fim, devemos ressaltar que o
poema Fata Morgana se converteu em um símbolo. Não só por ser um livro dedicado por
Breton à viagem ao exílio, senão também porque em sua condição de censurado, acabou
sendo mais difundido, e inclusive em várias línguas (francês e inglês) e suportes, ainda que
em circuitos requintados. Sua dualidade implícita se bem nos remete ao momento de crise
diante de realidade tão hostil da Segunda Guerra Mundial, também expressa uma aprimorada
beleza convulsiva, em movimento, mutante, estética realçada com as ilustrações de Wifredo
Lam.
Figura 15. Exposição. First Papers of Surrealism. 1942. Whitelaw Reid Mansion
Fonte: www.andrebreton.fr
60
Figura 16. Documentos expostos em First Papers of Surrealism, 1942
Fonte: www.andrebreton.fr
Podemos afirmar que nem em certos cenários latino-americanos, nem no cenário nova-
iorquino tardaram em reconhecer-se a importância de livros ilustrados como Fata Morgana,
por seu poder de fácil circulação de uma ponta à outra dessa rede surrealista. Ele é
rememorado nas diversas latitudes onde se deslocou esta vanguarda, formando a zona de
interatividade a qual o presente estudo toma como eixo de sua discussão.
Cabe agora verificar na atividade crítica se aparecem as semelhanças de algum modo
explicitada entre pintura e desenho. Depois dessa experiência que tem a dizer Breton sobre
Lam? No texto monográfico Wifredo Lam (A la gran nostalgia de los poetas) que Breton lhe
dedica ao artista de uma maneira muito especial e que se publica na brochura da segunda
exposição de Lam na galeria Pierre Matisse (Nova York, 1945), e que depois é incluído na
edição de 1965, revisada e ampliada de Le Surrelisme et la peinture, Breton situa Lam na
tradição de poetas e artistas que interpretaram o primitivo, sobretudo o encantamento com a
soberba África:
Breton estabelece primícias, primeiro a dívida com África salientada pelos pintores e
poetas. Segundo, o olhar moderno, diga-se de passagem, o olhar de Lam, que toma
consciência dos recursos da visão primitiva. Dada essa situação o autor realça cosmovisões
61
fortes e representativas, e faz um preâmbulo à questão central, ou tese desse texto histórico: a
teoria do maravilhoso, que ancora através da comparação com Picasso: ―É provável que
Picasso tenha encontrado em Lam a única confirmação a que poderia se agarrar, a de um
homem que percorreu um caminho inverso em relação ao seu: ir desde o maravilhoso que
carrega em si, ao ponto mais alto da consciência [...]‖ (BRETON, 1965, p. 94, tradução nossa)
Breton prossegue a falar como o artista tinha assimilado as ―mais sábias disciplinas da arte
europeia‖ e completa:
A fim de poder nortear o estudo da obra de Lam, esse texto nos fornece algumas
chaves não tanto quanto ao vocabulário de Lam, mas sobretudo destaca o apelo deste artista
ao conceito do maravilhoso. Depois de tudo, Breton foi sistemático em destacar o surrealismo
como uma arte entre o gesto automático e a descrição onírica, e como fonte do maravilhoso.
Do artista ele não faz diferente, ele persiste em ver esses dois signos suspendidos: ―[...] quem
há penetrado o templo da pintura sabe que os iniciados raras vezes se comunicam através de
palavras. Se contentam [...] quando mais circunscrevendo, com o ângulo da mão, um espaço
fragmentado do quadro [...]‖. (BRETON, 1965, p.94, tradução nossa). Quer dizer, Lam
ativava os princípios básicos do surrealismo, ainda que não aplique a rigor o automatismo,
mas uma liberdade expressiva guiada pelo livre fluir da mão. Prossegue mais adiante com
esse raciocìnio: ―tenho observado como se saboreia no limite do estado de sonho [...] com o
retumbar das palmeiras da memória‖. (BRETON, 1965, p.94, tradução nossa). Breton chama
à atenção: sobre ―a carga emotiva‖ desse aspecto do ser humano ―apenas desprendido do
ìdolo médio confundido no lendário tesouro da humanidade [...]‖. (BRETON, 1965, p.94,
tradução nossa). As posições do crítico estão novamente atreladas ao conceito da pintura
como reflexo do maravilhoso, como uma realização elucidativa do funcionamento deste
elemento vital que passo a passo descobre ao percorrer o grande castelo da humanidade18.
Por fim, subjugado por uma escrita selvagem e fluída, Breton completa a descrição
apelando a um traço característico da obra laminana. Algo que identificamos como parte de
seu vocabulário plástico desde Fata Morgana, ou seja, a junção metade humana, metade
18
Vale lembrar que a ideia do maravilhoso como castelo, provém da interpretação do livro Le miroir du
merveilleux onde Mabille documenta a entrada no ―castelo da iniciação‖, o ―castelo do maravilhoso‖.
62
―animais totêmicos‖: Breton dirá fazendo apelo a uma linguagem um tanto encoberta e
obscura, mas que apreendemos quando pensamos no conjunto da obra deste artista: ―A
arquitetura da cabeça afunda no andaime de animais totêmicos que pensávamos ter afastado e
que voltam‖. (1965, p. 94, tradução nossa). Os surrealistas eram de longa data preocupados
com o que Breton chama, ―arquitetura da cabeça‖. Em todo sentido é um reconhecimento e
um halago da pintura não já como uma pintura automática, mas uma alusão aos complexos
processos da beleza convulsiva. A definição de beleza convulsiva é sempre a soma de dois
léxicos antagônicos: ―será velada-erótica, explosiva-fixa, circunstancial-mágica ou não será. ‖
(BRETON, 1992, p.120).
De modo geral essa experiência junto a Breton aponta a uma mudança de rumo na
pintura de Lam. É destacável nessa época duas características, de um lado o apelo à essa
beleza antagônica, e de outro, a aproximação da pintura com o ato de desenhar. A obra Mujer
sentada, 1942, (fig. 17) a paleta oscila em poucos tons, branco, cinza, laranja e bege, nos
remete em primeiro lugar ao deslocamento da cor. De fato, essa obra, mesmo sendo em
pintura, guarda uma dívida com o desenho como manifestação, ao deixar os contornos bem
delineados e através dessa enfática paleta reduzida. Outra característica é a cabeça de meia lua
e crinas como de um cavalo, e uma fusão com a figura que emerge de um segundo plano com
cabeça de hipogrifos e asas batentes. Essa é a primeira dualidade, a que expressa
simultaneidade, caracterìstica em comum com o ―desenho convulsivo‖. A fórmula se repete
inúmeras vezes nos trabalhos dessa etapa.
Lam sobrepôs outra dimensão, que tomou diretamente da religião afro-cubana: a
femme cheval, ou a imagem da mulher cavalo, apareceu como motivo central de suas obras,
não apenas em pintura, mas também em um desenho. Na obra Sem título, ca. 1943, (fig. 18)
onde uma mulher, ao se olhar no espelho, vê a imagem de um cavalo. ―Usando a ideia de
metamorfose, ele registra realidades duais que vão e voltam como alguém que é retirado,
como um possuído [...] A metamorfose como possessão representa mais do que uma figura
um diálogo artìstico modernista‖. (MEREWETHER, 1992, p. 24, tradução nossa).
Outra obra desta mesma época, Déesse avec feuillage, (Deusa com folhagens) um
guache sobre papel, de 1943, (fig. 19) remete a uma característica frequente: a metamorfose
trabalhada na série de Fata Morgana e no desenho anteriormente citado. Essa figura se
resolve na tela de um modo que faz também que salte à vista o traço, da figura central,
claramente uma alusão à femme-cheval. As folhas desprendem-se do corpo gerando
movimento, e apontando uma ideia de transformação.
63
Figura 17. Mujer sentada (retrato de H.H.). Óleo sobre papel montado em cartolina.106 x 85 cm
Figura 18. Sem título, ca. 1943. Nanquim sobre papel 19 x 18,4 cm
Figura 19. Déesse avec feuillage, 1943. Guache sobre papel, 105,4 x 85,1 cm
64
Fonte: www. wifredolam.net
No Le Roi de Bilboquet, 1942, (fig. 20) a obra adquire o mesmo estilo linear e
hierático dos desenhos que evocam deuses sem idade de Fata Morgana. Os braços elevados e
as extremidades inferiores culminantes em pés exagerados, reafirmam a opção pelo
primitivismo. A cabeça de igual modo prospecta aquelas máscaras africanas e de uma maneira
geral aproxima-se dos desenhos para o livro de Breton.
Os surrealistas entenderam a ideia de transformação corporal como a vontade de
externalizar seus instintos, bem como a manifestação de paixão por outrem. Esta paixão
produz uma metamorfose do corpo, uma ―beleza convulsiva‖, como o expressou Breton. Esta
ideia de beleza como sinônimo de sinistro distinguiu-se e pode ser vista de forma distinta na
obra de Lam do início dos anos 1940.
Figura 20. Le Roi de Bilboquet, 1942. Gouache sobre papel 105,4 x 84,1 cm
65
Fonte: www.wifredolam.net
66
4. Do traço contínuo à Negritude: Ilustrações para Retorno al país natal
(1943) de Aimé Césaire
Poucas obras literárias tiveram a mesma sorte de ter a própria história de sua
descoberta narrada como algo díspar pela indiscutível pena de André Breton. Trata-se do
poema Cahier d'um Retour au Pay Natal (Diário de um Retorno ao País Natal) de Aimé
Césaire (1913-2008) cuja primeira versão é editada em espanhol: como Retorno al País
Natal.19. Lendo o texto ―Um grande poeta negro‖ de Breton sabemos como conhece a poesia
deste intelectual no significativo ano de 1941 em Fort-de-France, quando ávido pela produção
intelectual local, como um verdadeiro hassard objectif, abre a revista Tropiques (Revista
organizada por Aimé Césarie, sua esposa Suzana Césaire e René Ménil, revista que recém
começava a circular pela capital.). Chegados a bordo do navio Captain Lemerle fretado por
Varian Fry desde Marselha, se depararam com os interrogatórios por parte das autoridades
locais, mas apesar do clima criado com os controles navais, Breton faz que se produza o
inimaginável. Quando lê na revista de vanguarda o poema de Césaire Pure sang (Puro
sangue), é impactado com a grandeza deste intelectual. Vários círculos concêntricos se
propagam ao redor desta descoberta, como as ondas de uma pedra lançada ao lago. Uma das
primeiras consequências, um sarau literário dos surrealistas vindos de Marselha na casa de
Césaire para assistir à leitura de Cahier d'um Retour au Pay Natal. Esses e outros relatos estão
recolhidas no texto de Breton, que fora depois publicado na VVV de 1944 e incluído em suas
memorias de viagens Martinique Charmouse de Serpents (Martinica encantadora de
19
A edição ocorreu em Havana pela editora Molinas & Cia e data de 1943. A tradução do texto contaria
com a renomada folclorista cubana, Lydia Cabrera (1899-1991), intelectual da burguesia criolla que melhor
atendia a esse requisito de tradutora de francês ao espanhol. Para a sua impressão escolheriam a casa editora
Molinas & Cia que Cabrera e outros intelectuais como o antropólogo cubano Fernando Ortiz tinham frequentado
para publicar diversos estudos culturais.
67
serpentes), 194820. O texto de Breton se converteria em um dos melhores comentários críticos
sobre o martiniquense até aquele momento.
Esta permanência de poucos meses na ilha, portanto, viabiliza a adesão do grupo de
autor Cahier e outros membros de Tropiques, como René Menil e Aimé e Suzanne Césaire,
ao surrealismo. Ela ainda garante o reconhecimento de Césaire por parte dos poetas e pintores
parisienses, visto a partir daí como um dos escritores mais excepcionais das Antilhas, mas
também, naquele momento, um dos maiores da literatura francófona. Benjamin Péret, por
exemplo, apontaria: ―[Césaire] o único grande poeta da lìngua francesa que apareceu em vinte
anos.‖ (1943, p. 3, tradução nossa).
Quando Wifredo Lam, quem se encontrava no grupo, escuta o poema, é tomado por
uma reação imediata ao ponto de sentir que ―Césaire se tratava de uma alma gêmea‖
(BENITEZ, 1999, p.56, tradução nossa). Ao chegar o momento de deixar a Martinica para
alcançar Cuba, sua terra natal, onde irá se radicar, Lam já tinha formulado a ideia de preparar
a edição do poema com ilustrações suas. Recebe do martinicano uma cópia datilografada com
dedicatória: ―A Wifredo Lam este poema que nasce de nossas revoltas, nossas esperanças e
nosso fervor‖ (fig. 21).
Figura 21. Primeira página da datilografia do poema Cahier d’um Retour au pay natal com dedicatória
a Wifredo Lam.
Fonte: The Original 1939 Notebook of a Return to the Native Land, 2013.
20
O texto de apresentação ao poema assinado por André Breton se intitulou "Un grand poète
noir" (Um grande poeta Negro) texto que, junto a outros relatos sobre Martinica e sua região selvagem de
Absalon, inspiraram a coleção de Breton intitulada, Martinique charmeuse de serpents. (Martinica encantadora
de Serpentes), uma obra escrita em colaboração com o pintor André Masson e publicada em 1948.
68
Portanto, paradoxalmente, a primeira publicação do grande poema de Césaire em
forma de livro se concretiza não na Martinica ou na França, mas em Havana. O poema
publicado em espanhol ainda contou com o prefácio de Benjamin Péret, que descreve com
voz de louvor a poesia de Césaire:
21
A doutrina do Ut pictura poesis, como adverte Jaqueline Lichtenstein, tal como se constituiu no
Renascimento e se desenvolveu no período clássico, baseia-se num ―erro de interpretação‖ da frase de Horácio
em Epístola aos Pisãos: “Ut pictura poesis erit” significava no seu texto de origem: ―um poema existe tal como
um quadro‖. ―Desta forma, a frase cria um privilégio em favor das artes das imagens com as quais são
relacionadas as artes da linguagem‖ (2005, p.10). Quando os teóricos do Renascimento tomaram a frase
inverteram os termos da comparação. Para eles, significava ― ‗a pintura é como a poesia‘., esse foi o sentido que
a tradição conservou. ‖ (2005, p. 11)
69
Nesta tese foi indispensável consultar diferentes estudos dedicados à complexa obra de
Césaire. Destacamos nesse sentido os textos de James Arnold22, pesquisador norte-americano
responsável por organizar um volume bilíngue francês-inglês com a versão original do poema
de Césaire, Cahier d'um Retour au Pay Natal, edição que inclui uma introdução escrita pelo
renomado acadêmico e um glossário de termos extraídos do longo poema preparado por
Lilian Kestloot23. Assim mesmo, devemos pautar que o poema escrito originalmente em
francês, foi traduzido nas restantes línguas que povoam o Caribe: espanhol, inglês, português
e holandês. Entretanto para as citações aqui contempladas utilizamos a versão em português
(Diário de um retorno ao País Natal, EDUSP, 2012); sendo não menos importantes as
consultas feitas ao poema original de 1939 e a fim de manusear o texto na sua forma primeira,
considerando que foi esta a versão que conheceram os surrealistas e a que dera origem à
edição cubana lançada em 1943 por Molinas & Cia.
Publicado por primeira vez na revista francesa Volontés24, em 1939, ano da formatura
do Aimé na Escola Normal Superior de França, Cahier d'um Retour au Pay Natal tinha, no
momento da sua primeira publicação 109 estrofes. Em versões posteriores, ele acrescentou
novas estrofes, além de incluir correções na terminologia do poema segundo iam mudando e
evoluindo suas próprias concepções sobre os assuntos centrais dessa obra literária. Quanto à
terminologia, consideramos imprescindível verificar a versão original, por ter sido essa a que
foi lida e interpretada por Lam.
Diário de um Retorno... é um poema de estrofes numeradas e que se leem em
intervalos mínimos. Segundo Charles Peguys, do ponto de vista formal tem uma dívida com
Odes, o poema de Paul Claudel, que tinha clamado por uma poesia com ritmo semelhante ao
das sístoles e diástoles do coração (PEGUYS apud ARNOLD, 2013, p. 11). Para Césaire, o
ritmo é um elemento essencial. A brevidade dos enunciados, o uso excessivo da vírgula, do
ponto e vírgula e pontos como enfáticos elementos expressivos, ajuda a dar a quem lê a
sensação de estar ali participando ativamente dos acontecimentos descritos pela voz poética.
22
James Arnorld é professor emérito e fundador dos programas de Literatura Comparada e de Estudos
do Novo Mundo da Universidade de Virginia. Entre outros cargos editoriais, tem sido diretor do Archive of
Literatures of the Caribbean, assim como editor das seguintes séries publicadas pela Universidade de Virginia:
CARAF, dedicada à tradução ao inglês de obras francófonas do Caribe e África, e de New World Studies,
dedicada ao estudo dos processos culturais das ilhas do Caribe e das terras continentais do hemisfério americano.
De seu amplo número de publicações destacam-se Modernism and Negritude: The Poetry and Poetics of Aimé
Césaire (Harvard UP); Introduction in The Original 1939 Notebook of a Return to the native land. New York:
Wesleyan Poetry Series, 2013
23
Esse glossário foi incluído em ARNOLD, J. The Original 1939 Notebook of a Return to the
Native Land: Wesleyan Poetry Series, 2013
24
Voluntés era uma revista de poesia que publicou texto de autores estrangeiros e que por motivos
óbvios desaparece durante a guerra.
70
Consideremos que o livro de Césaire era um longo poema com estrofes de tamanho
desigual e de forma mista, composto de anáforas, que desencadeiam sucessivas metáforas
com o qual alcança um alto teor epopeico. O efeito lembra em alguns casos as epifanias
bíblicas que invocam um estado de revelação. O poema é assim por definição, um exemplo da
articulação do movimento pela criação de uma consciência da diáspora africana que ele e o
poeta Léopold Sédar Senghor (1906-2001) 25 chamaram de negritude.
A primeira parte nos apresenta a personagem em torno da qual gira o poema, ou seja,
―o falante‖: ―Abraçai-me sem temor, eu não sei senão falar‖ (CÉSAIRE, 2012, p.12). Essa
simples tautologia, o falante não sabe senão falar, além de irônica, se relaciona com a ideia da
personagem construída para designar aquele que observa, que estuda, que possui e
compartilha o logos como privilégio. Entendemos que seja uma representação do tema do
exílio e todo aquele que parte do seu país de origem e um dia retorna. Em particular esse
personagem é caracterizado como um évolué ─ nome que era dado durante a época colonial
aos nativos que tinham completado uma educação na França incluindo o aprendizado da
língua e dos costumes franceses. Esse tom heroico indica uma característica, o retorno
redimensionado, dessa figura tìpica, ─ o évolué ─ que define o próprio Césaire, tanto como o
Wifredo Lam, fazendo um paralelo com a língua e os costumes do colonizador. Esta
personagem, no entanto, não é a primeira que vai ser evocada nas ilustrações de Lam. Ele se
abstém de representar a personagem principal tão somente no momento da transformação.
"Ele [a voz central do poema] imagina seu retorno como heroico‖. (ARNOLD, 2013,
p.14, tradução nossa). ―Eu chego jovem e altivo e eu digo a esta terra [...]‖ (CÉSAIRE, 2012,
p.12). O personagem começa a compreender sua própria alienação como consequência da
educação colonial. Se por um lado a personagem se apoia no fato de possuir o conhecimento,
de saber-se dono de uma civilização africana carregada de valores, não vá adiante com seu
otimismo. Ele vai articular com a locução "minha negritude" as definições e ideias mais
importantes que põe de relevo o poema.
Sendo a negritude construída a partir de sucessivas anáforas, isto é, usando a repetição
constante, ela progride e se constrói como num letargo sem fim, tal como versa um dos
fragmentos mais belos que se lêem a seguir: "minha negritude não é pedra, / sua surdez
lançou-se contra o clamor do dia, / minha negritude não é um leucoma de líquido morto em
25
Foi um escritor e político senegalês. Foi presidente do Senegal de 1960 a 1980. Foi entre as duas
Guerras mundiais juntamente ao poeta antilhano Aimé Césaire ideólogo do conceito de negritude.
71
cima do olho morto da terra. /Minha negritude não é torre nem catedral." (CÉSAIRE, 2012,
p.53)
A segunda sequência do poema faz uma longa e irônica descrição da própria alienação
da voz que fala, expondo assim o autor seu receio ante a aculturação. Aculturação, um
conceito bastante difundido na época, expressava a extirpação de uma cultura, a do
colonizado, e a respectiva imposição da cultura do colonizador. Em 1940, o etnógrafo cubano
Fernando Ortiz utilizou o conceito de transculturação para o campo da pesquisa
antropológica, com o objetivo de explicar as diferentes etapas e resultados do contato cultural
entre pessoas reunidas pela expansão colonial europeia em Cuba e o Caribe, e obviamente
queria contestar o termo aculturação, dizendo que esta cultura original não era totalmente
abolida. No entanto, como alerta Arnold, no momento em que escreve o poema, Césaire
desconhecia a teoria da transculturação. Fato talvez que o leva ao final da segunda sequência
do poema a usar o termo de pseudomorfose, quando o indivíduo que de maneira catártica
sofre uma transformação. Esse termo foi tomado da etnologia de Leo Frobenius, que significa
que a cultura do colonizador impera sobre a do colonizado. Para Césaire, representava a
mudança desse sujeito de um receptor passivo da cultura francesa a profeta de sua nação. Este
evento apocalíptico da conversão profética desemboca na terceira e última etapa do poema.
Como interpretar a linguagem de Césaire em imagens de Lam? Não poderia ser senão
levando o simplificado traço, às vezes contínuo. Três são as ilustrações feitas por Lam para o
poema: capa e mais duas lâminas no interior do texto. Guarda uma relação ali submersa com a
escrita de Césaire.
Quando interrogado por René Depestre, haitiano e conhecedor da obra de Césaire,
sobre o poema Cahier, o autor afirma que seu esforço todo estava concentrado em criar uma
nova língua, uma língua antilhana com o substrato africano.
[...] há havido em mim, ao mesmo tempo, um esforço por criar uma língua
nova, capaz de expressar a herança africana. Dito de outra maneira, para
mim o francês era um instrumento, que eu queria dar uma dobra desde uma
expressão nova. Queria fazer um francês antilhano, um francês negro, que
ainda sendo francês levasse a marca negra. (DEPESTRE; CÉSAIRE,
1969, p 46, tradução nossa)
72
oferece um dos vieses de seu ideário poético. Fazemos um aparte aqui para revisar a
considerações de Depestre, que bem resumem a complexidade do termo:
Arnold observa que estas paisagens idílicas e menção à África continental de glórias
passadas correspondem à leitura por parte de Césaire de Civilization Africaine (1936) de Leo
Frobenius. Com a leitura do antropólogo, Césaire tem contato pela primeira vez com as
grandes glórias do sujeito africano antes de ser ―domesticado‖ com a colonização. Eis como
ele nutre sua poesia das imagens extraídas da magnânima obra do mesmo.
Antes de chegar às principais nomenclaturas de Césaire é importante debater como o
poema recria verdadeiras imagens verbais. De fato, elas são semantizadas desde uma
complexidade que vai além e que em primeira instância provocam um efeito que atrai o leitor.
Uma vez que se torna participante dessa condição colonial do eu poético, a ideia de Césaire é
73
que o mesmo chegasse a ―desobstruir‖ sua alienação. Estas imagens verbais encontram um
particular eco na fisionomia das ilustrações de Wifredo Lam.
Além do conceito negritude, vale a pena comentar outros dois termos que cobram
relevância para a nossa análise por permitir uma colocação mais direta como imagens: ―minha
geografia‖ e ―minha biologia‖. Em primeiro lugar, esses dois termos vão completar e agregar
elementos à negritude, e segundo lugar, são de destaque por fazerem alusão à imagem ou
imagens que estruturam o poema, e que irão nortear uma comparação com as artes visuais.
O primeiro deles, ―minha geografia‖, evoca significados desde os mais pragmáticos
até os mais mìticos. Por exemplo, no começo, há uma geografia insular devastada: ―As
Antilhas que têm fome, as Antilhas marcadas pela varíola, as Antilhas dinamitadas pelo
álcool, encalhadas na lama dessa baía, na poeira dessa cidade sinistramente encalhadas [...]
maldito sol venéreo‖ (CESAIRE, 2012, p.9). Césaire trata de uma ―geografia‖ longe do
paraíso dos turistas, hostil, pobre e que padece como de um mal congênito: pálida, agreste e
doentia. Neste fragmento citado vemos como o autor se coloca diante da necessidade de fazer
um novo ideário sobre as Antilhas, um dos aspetos que mais deve ter tocado Wifredo Lam na
hora de conceber suas ilustrações, e mais, para pensar sua obra como um todo desde um
posicionamento novo sobre o significado de ser antilhano e caribenho.
Esta concepção de geografia que aparece já no auge da litania no poema é simbolizada
pela imagem do mapa-múndi. ―É a minha original geografia também; o mapa-múndi feito
para meu uso, não pintado com as arbitrárias cores dos sábios, mas de acordo com a
geometria de meu sangue derramado, eu aceito.‖ (CÉSAIRE, 2012, p. 54). Há uma
necessidade de fortalecer esse recrudescimento de um cenário acanhado e sórdido, diferente
da alusão idílica dos cartões postais. Geografia que em seu lugar antepõe como distribuição
geopolítica um mapa-múndi fatídico em cujas cores haverá de advertir-se não as habituais
tintas, mas o sangue derramado. Fato que já nos inclina a ver como o autor prepara a
observação dessa distribuição ―violenta‖ com os anteparos de uma crueza corporal, e os
desvarios que o falante enfrenta e o ofuscam. Geografia que replica o cenário típico
miserabilíssimo da exploração colonial. Geografia que depois, no entanto, há de se
transformar sucessivamente em outras várias acepções.
A primeira destas imagens de Lam (fig. 22) a da capa, representa uma iguana com
duas cabeças. Uma escolha mais convencional da fauna endêmica e remota da ilha, antilhana.
Um tanto ingênua ainda, esta imagem não parece remitir-se à cruel ou adversa descrição da
ilha nos termos acima descritos. Em seu lugar parece remitir-se à tão mítica figura da lezarde
74
(iguana), e a encantação de fauna e flora da ilha como no seguinte verso: ―Sonho com um
bico proeminente, com hibiscos e com sentencias virgens em violeta, o que faz com que seja
ouvido por iguanas e voe ao sol‖ (CÉSAIRE, 2012, p.10).
Fonte: The Original 1939 Notebook of a Return to the Native Land, 2013.
Na primeira sequência Césaire nos oferece uma visão dos males e mazelas da
colonização. Representa sem citar nomes aos enclaves tropicais do império (seja este o
francês, o inglês, o holandês, ou o espanhol) um adendo que se refere às Antilhas. Nos anos
quarenta ele e Ménil estavam interessados, como parte do grupo Tropiques na promoção de
uma imagem a partir da cultura créole antilhana. Em Cahiers estavam também as hipérboles
do Caribe mimetizadas com a fauna tropical, como na frase poética que acabamos de citar.
Lam nos anos quarenta fez a pintura intitulada O guerreiro (Personage avec lézard) (Fig.23)
que parece uma homenagem ao pensamento cesariano.
Essa ―geografia‖ antilhana, perto da estrofe 92, sofre uma mutação: a terra ganha vida
como nas lendas e num sentido similar das cosmogonias primitivas, é sexualizada e fecundada
no poema. A terra se fecunda num ato simbólico pelo esperma da personagem principal.
Assim, o autor nos remete às partes da ilha comparadas com órgãos reprodutores, ao peito que
amamenta, cujo contorno imagético é evocado pelas formas circulares dos morros e pelos
75
respiros provindos dos vulcões. Esta transformação é interpelada por Lam, na segunda
imagem dedicada ao poema (fig. 24).
Figura 23. O guerreiro (Personage avec lézard), 1947. Óleo sobre tela, 107 x 84
Fonte: The Original 1939 Notebook of a Return to the Native Land, 2013.
Por último, a terceira ilustração (fig. 25) representa um plano aéreo ou divino. Ela
lembra um Eleguá. Lam costumava evocar em suas obras essa divindade representada pelas
cabeças cornudas e que segundo a religião afro-cubana faz alusão ao deus das encruzilhadas,
das chegadas, se invoca para ter boas partidas e bom percurso de toda viagem. Por fim, essa
ilustração final parece recriar o trecho onde o falante invoca as forças da natureza, as
divindades do vento. “E a pomba celestial enlaça o falante com seus laços de estrelas e o
77
eleva ao céu.” (CESAIRE, 2012, p. 103). Esta epifania da viagem também é identificável com
a parte final como um todo, onde o falante, agora heroico, conduz o barco da nação.
Assim mesmo como Césaire esgarça estes conceitos de negritude, de geografia e de
biologia que tem um apelo ontológico no poema, ele tinha plena consciência de que sua
poética contribuiria com a inventiva mítica, uma origem no plano literário da Martinica, e
extensível ao Caribe cultural ou politicamente colonizado.
Fonte: The Original 1939 Notebook of a Return to the Native Land, 2013.
78
Para se prevenir contra a assimilação26, era preciso criar bases intelectuais, armar-se
com uma poética e uma plástica consistente. Segundo Arnold, a França alentava os
intelectuais das colônias a que se vissem como franceses tropicais, e desde o começo os
alertava que necessitavam inventariar uma tradição, um ―passado utilizável‖, mediante a
literatura, que os diferenciasse das culturas imperiais. Foi o que fez Césaire brilhantemente
com o poema Cahier d'um Retour au Pay Natal onde em soma se descreve como uma
ontologia do sujeito antilhano desde a voz de um intelectual que era a superação do évolué.
Vejamos como na concepção de Breton certas declinações e inflexões de linguagem
permitem que o poema seja um ―poema-tese‖. E por consequência, os desenhos de ilustração
de Lam têm uma grande força de manifesto. De fato, o que à primeira vista o atrai é
justamente essa forma corrosiva e flamejante daquele que fala, que sobressai em todo o
poema. Césaire confessaria que o uso dessa linguagem se devia a que: "tinha também
compreendido a poesia corrosiva de Lautreamont" (1994, p 12, tradução nossa); e é claro, as
analogias implícitas, as transmutações, fazem de Césaire um novo achegado de acordo com o
espírito do movimento surrealista. Citemos um fragmento de ―Um grande poeta Negro‖ o
texto introdutório de Breton ao poema:
Finalmente ― e aqui, para tirar qualquer dúvida de que Cahier d'um Retour
au Pay Natal é, excepcionalmente, um poema ‗com um tema‘, se não ‗uma
tese‘, [...] A poesia de Césaire, como toda grande poesia e toda grande arte,
alcança o ponto mais alto pelo poder de transmutação que põe em jogo e que
consiste em, a partir dos materiais mais desacreditados, incluindo feiura e a
servidão, em produzir, não mais o ouro ou a pedra filosofal, mas
simplesmente a liberdade. (BRETON, 1979, p.15, tradução nossa)
26
―Até minha época até minha geração, os franceses e os ingleses, e particularmente os franceses
tinham seguido uma desenfreada política de assimilação. Não sabíamos o que era África. Os europeus
desprezavam a África por completo, e na França se considerava, por uma parte, o mundo civilizado e, por outra,
o mundo bárbaro. Esse mundo bárbaro era África. E por tanto, o melhor que se podia fazer por um africano era
assimilá-lo, o ideal era fazer um francês de pele negra‖. (CÉSAIRE; DEPESTRE, 1969, p. 13, tradução nossa)
79
dispostas lado a lado, ocupando a largura do quadro. Soma de outras somas menores, como
uma sinfonia e junção de pelo menos três esferas: o vegetal, o animal e o divino. Tanto que
27
foi chamada por Jouffroy de ―declaração do Terceiro Mundo‖ , e de ―poema bárbaro
monumental, magnìfico‖, por Max-Pol Fouchet, talvez pela advertência de figuras nuas e com
os braços para o alto. Pernas como raízes de canavial, com algumas guelras de peixe para o
sustento do trabalho; rostos de luas de divindades imprecisas e órgãos prontos para procriar;
alegoria do gesto ávido erguido e pronto para dominar a intrincada cena.
Figura 26. La Jungla, 1943. Óleo sobre papel reforçado. 220x228 cm. Col. MoMA
O sentido de Jungla era talvez chegar a esse mito vegetal que nos faltava, como
Carpentier afirma:
27
Para Alain Jouffroy ―A Jungla constitui a primeira declaração plástica de um Terceiro Mundo que
provavelmente considerava a necessidade de pôr o que é comum a todas as culturas, e o anúncio profético desse
despertar no ambiente mundial. ‖ (2002, p. 236)
80
A obsessão pelo vegetal era bastante rara num pintor. A obsessão pelo
animal é mais frequente, sendo o admirável Snyder a mais perfeita ilustração
do caso. Mas a planta pela planta, o talo pelo talo, fora de todo
funcionalismo de fundo ou moldura, é tema somente encontrado mais tarde
num artista plástico. [...] no cubano Lam a obsessão pela planta atinge a
importância de uma ideia fixa. (CARPENTIER, 2002, p. 189, tradução
nossa)
Por fim concluímos, pela análise ou fisionomia das imagens, que ler Lam é muito
semelhante a ver Césaire. Lê-lo não só mediante as ilustrações aqui enumeradas, mas
mediante a conexão de algumas de suas obras dos anos quarenta que acabam se mimetizando
com a essência do poema com as suas múltiplas imagens complexas e biomórficas.
81
A partir desse momento na obra de Lam sucedem-se os estudos de máscaras e
artefatos africanos, que mais que recriados, são levados "de volta a uma paisagem e um
mundo próprios" (LAM; MOSQUERA 2002, p. 529, tradução nossa).
O livro pode ser subentendido como zona de interatividade? O que tinha Wifredo em
comum com o autor destes versos, e com o movimento da negritude que descobre na
Martinica? Não somente tinham-se tornado grandes amigos quando Lam transita pela colônia
francesa ocupada; ambos são motivados a usar a poesia como potente veículo para mudanças
estéticas em seus respectivos vocabulários, plástico e visual.
Quanto à situação colonial que ambos enfrentavam e deveriam subverter desde suas
poéticas, e que Lam mesmo confessa quando retorna a Cuba: ―Todo o drama colonial de
minha juventude reviveu em mim‖ (FOUCHET, 1976, p.31), estas experiências desembocam
na negação da identidade nacional ou das reminiscências na sua plástica da cor local gasta ou
estereotipada.
Esta ruptura é um dos maiores acontecimentos na carreira de Lam nesse momento. Em
Cuba a crítica não tarda em classificar sua postura como uma resposta em função da
identidade caribenha mais do que uma resposta de apelo ao ―nacional‖. No texto ―Antilhas em
Wifredo Lam‖, Mirta Aguirre escreve:
[…] Olha aquelas mãos que se juntam para se apoiar, olha aquele traseiro
haitiano, idólatra, olha aquele seio, aquele côco, instrumento güira, e a
graviola [...] olha aquele pé civilizado, e aquela perna da qual brotam folhas.
Veja aquele Omí Obini em que parece que choveu como chove sobre os
vegetais tropicais. Olha só aquelas pálidas imagens que não estão no
catálogo; e as Noces Chimiques; o La lune est un cerf-volant. Não é francês:
é haitiano [...] A cor? O desenho? [...] Cada uma dessas loucuras, essa
orquestração de figuras é um equilíbrio perfeito, um arranjo íntimo
completo. Por isso não é um pintor que se sufoca, nem se cansa. Há paz [...]
há ─ é a palavra ─ harmonia. Tudo isso, sim, no delìrio tropical. Acima de
tudo, das Antilhas. E mais do que Cuba, Guadalupe e Martinica. Como se
quiséssemos dizer, uma Cuba em que os negros teriam reinado de forma
decisiva. […]‖. (2002, p 197, tradução nossa)
Como alertava Mirta Aguirre eram muitos os exemplos na obra de Lam que se deviam
à língua créole e ao universo caribenho. Ela detecta uma orquestração que vai de objetos
rituais (güira, instrumento de percussão de origem afrocubano), até metamorfoses de plantas,
deuses haitianos (Omí Obini). Eloquentes sínteses onde a mistura de raças, deuses e simbioses
do Caribe emergem na obra do artista após a experiência primeira com o intelectual por
82
excelência da Martinica. Todo este repertório de formas, longe dos clichês ou das influências
picassianas, foram reveladas por meio de uma africanidade traduzida desde a presença mítica
e ritual, bem como a dose alta de antilhanidade encontrada nas metamorfoses, nos sismos, nos
altercados na voz do exilado. Esta primeira intermediação de suas vozes abriria uma
sequência de novos caminhos que permeia a inter-relação das ilhas cuja comunicação havia
sido interrompida ou cortada durante séculos. Uma síntese da qual só se teria dimensão com o
passar do tempo e perceptível acompanhando a evolução do artista e de Césaire. Em suma, até
aqui podemos testemunhar como Lam reveste sua obra com outros elementos extraídos do
logos que estava sendo trabalhado desde a perspectiva de Césaire. As parcerias entre Aimé
Césaire e Wifredo Lam iriam perdurar décadas, até a morte do pintor cubano em 1982.
Por outro lado, André Breton contribuiria para difundir o trabalho de ambos no
ambiente nova-iorquino onde transcorreu seu exílio durante a Segunda Guerra. Vale lembrar
que através da revista V.V.V. fundada nos Estados Unidos por ele se publicou a poesia de
Césaire. Assim também o intelectual fez suas articulações para que a edição bilíngue inglês e
francês saísse publicada de imediato, mas o que finalmente ocorreu foi que a tradução de
Lionel Abel e o poeta Yvan Goll seria publicada quase no final da década, em 1947. Por
demais Breton foi quem articulou a inserção de Wifredo na Galeria Pierre Matisse de Nova
York. Foi através das exposições entre 1943, 1944, 1945 nesta galeria que Lam se daria a
conhecer ao público norte-americano mediante uma não desprezível repercussão da crítica.
Concomitantemente Wifredo Lam lança uma exitosa carreira de exposições como uma
ponte entre ambos os mundos. Especialmente neste momento prévio à viagem de volta ao
Caribe isso será determinante, já que a valoração crítica deixa de situar sua obra como a de
―um apadrinhado de Picasso‖, marca que tinha cunhado a imprensa durante seu debut em
1939, na galeria Perls de Nova York. Vale mencionar alguns exemplos desta, por assim dizer,
evolução da recepção crítica. Em 1939, George Besson escreveu a propósito da primeira
exposição internacional. Drawins of Picasso, Gouaches of Lam, na Perls: ―O tema exótico
não era novo. Tanto em Lam como em Picasso ele constitui um saber [...] mas o exótico se
distingue em Lam pela essência, pela sedução do tratamento harmônico e as construções [..]”
(BESSON, 1942, p.12, tradução nossa). Na segunda exposição de Lam, em 1942, na Pierre
Matisse Gallery, Nova York, Henry Mc Bride lhe dedica uma resenha em que compara sua
obra com o Guernica de Picasso, mas adverte que o conhecimento que ambos
compartilhavam era trabalhado por Lam com ―propriedade‖, e, muito provavelmente
influenciado pelas palavras de Breton no catálogo desta exposição, mencionava as referências
83
presentes em sua pintura à arte da Oceania, em especial da Nova Guiné. A exposição seguinte
de Lam realizada em Nova York no ano de 1944, teve muita repercussão (a favor e contra)
pelo fato de Lam ter se recusado a participar da exposição coletiva de pintores cubanos
organizada pelos curadores Alfred Barr e Edgar Kaufmann naquele mesmo ano. Outro fato,
não menos relevante, foi o de que paralelamente à exposição coletiva dos seus conterrâneos,
Lam expôs na galeria comercial Matisse, dentre outras pinturas, a tela La Jungla (1943), obra
que pouco tempo depois o MoMA adquire para a coleção permanente. Por fim, quando chega
a vez da exposição de 1945, novamente na galeria Matisse, a crítica notou como as vias do
exotismo agora subjugavam sua obra, em direção a um registro em branco e preto. E advertem
que, nas obras como Sur les traces e Butinates, seu estilo tinha ―se tornado anêmico‖ e
―amaneirado‖. Novamente, esses comentários ressaltaram a ausência de Lam na exposição de
Pintura Cubana do MoMA um ano antes, mas não como reprovação, antes com um elogio ao
fato de que sua obra ―não se limitava a esvaziar com liberdade os potes de tinta‖ como faziam
―aqueles outros pintores incluìdos na exposição coletiva‖28. Este argumento representava um
progresso, apesar do desrespeito com que injustamente eram tratados os demais modernistas
de Cuba, porque situava a pintura de Lam como um marco, do ponto de vista formal, dentro
da história da pintura moderna, um passo rumo à exploração das possibilidades do meio como
―superfìcie‖, ―como gesto enérgico‖, paralelamente aos traços que começavam a eclodir na
chamada action-painting, cujos representantes eram nada menos que Jackson Pollock,
Clyfford Still e Robert Motherwell.
Optando por cores neutras, claras e escuras, Lam reafirmava a força do desenho como
meio autônomo, onde se ancorava não sua cubanidade, ou sua cor local, mas antítese desses
clichês. Era um passo para a formulação de uma pintura caribenha, na mesma medida em que
Césaire lançava uma linguagem consciente e ao resgate da autonomia da região.
Durante esses anos, Césaire e Lam se mantiveram em contato com assiduidade.
Césaire divulga as atividades de Lam na revista Tropiques. O número de fevereiro de 1943
deu nota do sucesso da primeira exposição de Lam em Nova York realizada em outubro do
ano anterior. Também a Revista difundiu o conceito ―o maravilhoso‖ que ambos trabalharam
desde seus respectivos meios artísticos, a plástica e a escrita. O número da revista de janeiro
de 1942 publica trechos do livro de Mabille, Le miroir du merveilleux (O espelho do
maravilhoso), de 1940.
28
Esses comentários críticos correspondem a resenhas da época. Ver ampliado em STOKES-SIMS,
2002, p 81
84
Cerimônias mágicas, exercícios psíquicos destinados à concentração e ao
êxtase, liberação do automatismo mental, simulação de atitudes mórbidas,
são outros dos tantos meios capazes, pela tensão que provocam, de aumentar
as faculdades normais; estas são as vias de acesso ao âmbito do maravilhoso.
(MABILLE apud. Tropiques, 1942, p.12, tradução nossa)
Césaire pontua aspectos do maravilhoso no escrito no texto que dedica a Wifredo Lam
pouco depois e que sai publicado na revista Cuadernos Americanos,
É difícil não posso explicá-lo tudo, Aimé Césaire é um poeta que encontrou
em sua ilha tropical, Martinica, depois de estudar em França e lhe deu uma
grande força de gravidade em sua poética. Parece-me que ele na literatura e
eu na plástica temos tocado o panorama de dois emigrados ao retornar ao
país natal com a força necessária. (LAM, LLANA, 2002, p 532, tradução
nossa)
Posterior a este encontro, Lam realizou quadros onde a flora dos trópicos é
protagonista, como podemos ver na obra Chant de la forêt (Canto da floresta) 1946 (fig. 27).
85
Formas que se assemelham a um cacho de banana dominam a composição com uma grande
força expressiva.
Outras obras carregam um altíssimo teor ritualístico como Oyá (Divinité de l‟air et de
la mort/ Ídolos), 1944, (fig. 28), cujas potentes interpretações das deidades do panteão Iorubá,
aparecem como transformismos esquematizadas com nuances e repetições a semelhança do
desenho dedicado a Cahier... A linguagem de revolta e de gênese tinha sido apreendida de
Césaire. No já maduro pintor modernista que tinha se tornado, não é de estranhar que um
número significativo de obras da década de quarenta, o consagrem. Sem dúvida tinha sido
marcada a principal virada em sua carreira. Como se não fosse pouco, na segunda metade da
década uma série de novos eventos proporcionam uma adensada rede de seguidores no
contexto imediato do artista, e ainda, uma projeção também no contexto do Caribe antilhano.
Figura 27. Chan de la forêt (Canto da floresta), 1946. Óleo sobre tela. Figura 28. Oya (Divinité de l’air
et de la mort/ Idolos), 1944, óleo sobre tela 70 x 60 cm
Fonte: Fonte: Catalogue Raisonné of the Painted Work. Volume I 1923-1960., 1996.
Como proponho neste tópico, esses pontos de viradas guardarão também uma dívida
com os estudos do ritual, com as formas não verbais que lhe produzem ―giros imagéticos‖
(MITCHELL, 2009, p. 24). Muitos desses giros se produzem em contato com a literatura de
seus contemporâneos. Foram também consequência de se colocar no papel de intérprete do
maravilhoso, conceito discursado amplamente por Pierre Mabille e absorvido e assimilado por
Lam durante a viagem ao Haiti.
86
4.4. Confirmação do espírito de antilhanidade: A viagem ao Haiti (1945-1946)
Lam visita o Haiti em uma comitiva junto com André Breton. Ambos são convidados
por Pierre Mabille por motivo da inauguração do Institut Français. Chegam em outubro de
1945 (fig. 29). A recepção incluía passeios programados e ciclos de conferências. A imprensa
colocou em várias ocasiões que o grande homenageado era Aimé Césaire, que tinha visitado
pouco antes o país. Também foi uma empreitada para comparar aspectos referenciais prévios
sobre o conceito primitivo com os da cultura afro-haitiana, e uma missão cultural, como não
se cansou de repetir André Breton durante os depoimentos sobre a viagem.
Uma questão incontornável é o porquê interessava tanto aos surrealistas viajar ao
Haiti. São várias as motivações que levam os surrealistas a conhecer e se aprofundar na
cultura haitiana. Essa ilha constituía quase que um périplo de iniciação. E foi esta experiência
fundamental para a formação do ―Eu‖ Caribenho.
Figura 29. Chegada ao Haiti do poeta André Breton, à esquerda do casal Breton, Sra. Lam, Dr Pierre
Mabille e Wifredo Lam. À direita Sra. Mabille, Reynor Bernard e M. de Peillon, ministro da França
Fonte: www.andrebreton.fr
Por outro lado, na década de 1940, nem Lam nem Césaire conheciam a África de seus
anseios. O que emergia em suas obras era uma África construída, reverberante no cotidiano
do Caribe. Eles tinham trabalhado com recursos semelhantes a Pablo Picasso, a Breton, a
Guillaume Apollinaire, a Blaise Cendrars. A ―coisa negra‖, como conveniaram em chamar
seus predecessores, era também trabalhada desde os aprendizados adquiridos nos acervos do
Musée d'Ethnographie du Trocadéro de que tanto tinham bebido na primeira etapa. No caso
de Lam, os saberes sobre a África eram também aprendidos da proximidade com Michel
Leiris quem se envolve na Missão Etnográfica e Linguística Dacar- Djibouti (1930-1931),
87
uma viagem de costa a costa do continente africano, a qual o leva a produzir L'oeil de
l"ethnographe. Para Césaire, essa proximidade se dava mediante a leitura de Leo Frobenius já
citada.
Para ambos também era necessário interpretar o Haiti. Essa cultura possui não uma
―massa encefálica débil‖, como amiúde proposto pelo olhar eurocêntrico, mas um rico
repertório na sua história e na sua cultura simbiótica. Para uma melhor definição de suas
epistemes modernas convém falar de outro elo que une a ambos, Lam e Césaire, trata-se dessa
visita ao país mítico por excelência. Em 1944 Mabille tinha organizado para o governo da
França Livre no Haiti uma Conferência Internacional sobre filosofia, onde ocuparam lugar
destacado as correntes de pensamento e atividades artísticas surrealistas. Aimé Césaire
participou dessas festividades, que incluíam, além das apresentações públicas ─ por exemplo,
proferiu conferências sobre Lautréamont e Rimbaud ─ excursões às comunidades rurais e
assistência ao ritual vodu.
De outro lado, a viagem de Breton e Lam aconteceu entre os últimos meses de 1945 e
fevereiro de 1946 e seria documentada com o teor que a imprensa dá aos grandes
acontecimentos. No artigo de Le Soir de 1 de outubro de 1945 se enuncia: ―[..]chegará à nossa
capital [...] atendendo a um amável convite, o grande poeta francês André Breton, que desde a
guerra se estabeleceu em Nova York‖. (DOSSIER DE HAITI, 1946, p.16). O jornalista
acrescentou com entusiasmo elementos ao relato sobre o movimento de vanguarda para leigos
e entendidos: ―André Breton é o pai de um ramo do surrealismo e publicou coleções de
poemas [...] e dois manifestos do Surrealismo que contribuíram para aumentar
consideravelmente o número de adeptos desta nova doutrina literária.‖ (DOSSIER DE HAITI,
1946, p.16). Como a grande novidade era o contato direto com o movimento surrealista, ─ sua
―doutrina‖, ou ―sistema aglutinador de adeptos‖─ o artigo traz à tona o poeta haitiano,
inclinado por essa vertente:
29
Ver ampliado em Dossiê de Haiti, 1946, acessado em www.andrebreton.fr acessado em 07/07 de
2018.
89
aprofundando seus conhecimentos sobre os assuntos rituais. Diante de tais influências, no
Haiti era possível aprofundar mais, buscar pontos de contato com os Abakuá, a complexidade
da música, as danças e os numerosos casos de transe do vodu, traços que acabam marcando de
maneira profunda sua pintura em anos posteriores.
É possível estabelecer equivalências entre uns e outros rituais em seus trabalhos em
papel? Lam realizou a série de desenhos haitianos (fig. 30, fig.31, fig. 32 e fig 33) levando
todo o ímpeto do ritual a desembocar no suporte. ―Através do desenho, recuperando motivos e
temas do início dos anos 1940, La Jungla praticamente desaparece, até voltar a emergir no
final dos anos 1950.‖ (MEREWETHER, 1992, p.29, tradução nossa). Um desenho desta série
foi obsequiado em Haiti por Lam a André e a Elisa Breton com dedicatória incluída. Outros
integram a coleção particular de Lydia Cabrera.
Figura 30. Wifredo Lam. Desenho haitiano, nanquim sobre papel, 1946
90
Figura 31. Wifredo Lam. Boca e vela. Da série desenhos haitianos,1946, nanquim sobre papel, 31 x
50 cm
Figura 32. W. Lam. Yoruba ritual, 1946, nanquim sobre papel, 31,8 x 24 cm. / Figura 33. W. Lam. Da
série Desenho haitiano, 1946 nanquim sobre papel. 31 x 50 cm
91
Como alguns poucos cadernos de desenho de Lam, esta série não acompanhou nenhum texto.
Os desenhos que ficaram esparsos em coleções particulares poderiam ter sido concebidos para
ilustrar algum texto de Breton ou de Mabille, já que Lam neles mimetiza as experiências
vivenciadas no Haiti e lhe rende homenagem à ritualística sacrificial. Ao mesmo tempo eles
interpretam com a força do traço, a distribuição de claros e obscuros, e a simplicidade que
apela aos registros plásticos desse vodu recém descoberto, tudo aquilo que era objeto de
admiração para os surrealistas. Vale aclarar que a cerimônia haitiana guardava relação com
um dos conceitos chaves do movimento. Isto é, o consideravam fonte do maravilhoso.
Sem dúvida, a visita dos surrealistas além das motivações de ordem poética e artística,
também tinha contornos culturais e políticos. Esse território antilhano tem como singularidade
mais notável o episódio da sua história, a saber, a revolta promovida pelos escravos, negros
libertos e mestiços que leva à abolição da escravatura no país e a independência da França, ou
seja, a Revolução Haitiana (1791-1804). Essa história de libertação constituía uma das
inspirações mais nítidas para o Movimento Negro Norte-Americano e é aplaudida pelo
surrealismo. Por tanto, o heroico Toissant Louverture, líder da revolução haitiana, era uma
referência indispensável para estes intelectuais. As celebrações dedicadas ao Haiti
remarcaram os fortes enlaces que vinculavam o pensamento anticolonialista com os
propósitos libertários do pensamento surrealista.
Nessa viagem Breton, como Lam, descobre o vodu pelas mãos de Mabille. Leva-o
(cerca de oito ou nove vezes) às cerimônias secretas, proibidas aos brancos. Com seu prestígio
o amigo tinha acesso aos rituais e este ficava impactado. Breton, evocando este encontro,
recorda a assiduidade e a devoção com que o erudito Mabille frequentava aos houmphors
(templos), onde era recebido com notável simpatia pelo houngan (sacerdote) ou pela hounsi
(mãe de santo), para as cerimônias do rito. Recorda, também, sua capacidade de entendimento
das possessões e sobretudo, sua capacidade de plena comunhão com aquele grupo étnico e
cultural tão diverso do seu. Consta que Mabille entrou pelo menos uma vez em transe de
possessão. Breton maravilhado com o clima do Trópico, em carta a sua filha Aube descreve
como é absorto pela atmosfera bucólica e as cerimônias vodu:
92
Minha linda pequena Aube, recebi sua carta ontem (quase no meu Natal) [...]
Ontem levantamos às três da manhã, Elisa e eu, para ver o nascer do sol e
milhares de pássaros (garças, garças, garças, patos) acordaram no lago
salobro. Os negros empurravam nossos barquinhos no meio dos juncos. Eu
gostaria que você tivesse visto isso. Ainda não dei muitas palestras, mas só
falamos sobre surrealismo no Haiti, nos jornais e nas ruas. Também vi uma
briga de galos e, você dirá a Jacqueline, participamos de várias cerimônias e
sacrifícios de ‗vodu‘. Eu também publiquei um livro sobre a Martinica e
dentro de alguns dias um livro grande de poemas você receberá de mim.
(BRETON, A. Carta datada de Paris. 12 de Outubro de 1948. DOSSSIÊ DE
HAITI, p. 18, tradução nossa)
Chega a sua vez a hora de celebrar a exposição de arte de ninguém menos que do
artista que resumia e condensava em sua arte um marcado ―eu‖ caribenho, Lam. Em 23 de
fevereiro de 1946 publica-se nos principais jornais da cidade a seguinte notícia: ‗Inaugura
hoje no Centre d'Art a Exposição do pintor surrealista Wifredo Lam‘. Em uma das notas de
imprensa, se explicita ainda: ―Wifredo Lam, o grande pintor cubano, atualmente em Porto
Príncipe, expõe no Centre d'Art. Ele faz homenagem a Césaire e tem o patrocínio do grande
poeta surrealista André Breton‖ (Matin, 24 de janeiro de 1946, DOSSIÊ DE HAITI, 1946, p.
19). Esta homenagem a Aimé Césaire cobrava uma dimensão muito importante em território
haitiano. Ela elucida desde a seleção até o conteúdo das obras expostas. A série, ali exibida,
mas que uma arte primitivista, resultava um grupo de obras ―revelações‖, quiçá não de todo
compreendidas. Estas aparições em sua pintura carregavam o peso de tudo o assimilado até
esse momento em sua carreira.
Mabille convida a Breton a escrever as palavras para a exibição individual de Lam na
galeria do Centre d‟Art. Surge o texto de catálogo (figuras 34 a 36) de Breton “La nuit à
Haiti” (A noite no Haiti), onde o autor expressa o desejo de encontrar um ―Éden moderno no
Caribe‖, uma questão mais urgente diante da ―atômica desintegração‖. (BRETON, 2002,
p.474). O comentário de Breton tinha sido escrito cinco meses depois de ter surgido a notícia
de que os Estados Unidos lançaram sua primeira bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki
em agosto deste ano. De fato, essa notícia, a rendição do Japão em setembro de 1945 e o fim
da guerra pairavam sobre o ar no momento da exposição.
93
Figura 34. Pierre Mabille, Wifredo Lam e André Breton, inauguração da Exposição no Centre d'Art,
posam frente ao quadro Harpa Cardinal, 1944
Figura 35. Catálogo da Exposição Lam, Centre d’Art, 1946 (frente) / Figura 36. Catálogo da
Exposição Lam, Centre d’Art, 1946 (verso)
Fonte: www.andrebreton.fr
94
As palavras de Breton merecem citação e comentários à parte. Mais poéticas que
descritivas, estão escritas no seu estilo característico carregado de imagens. Como poderá
verificar o leitor, elas pouco elucidam, salvo em aspectos isolados ou nas metáforas avulsas,
como as que indicam Lam como um artista de grande promessa, não apenas dentro de um país
ou um contexto específico ou reduzido, mas para o devir da arte na arena internacional.
Dentre os elogios a Lam podemos enumerar o de ser intérprete ou porta voz das divindades,
das raças, e da fabricação do mito. Aquele que ―tem a seus pés‖ como um tesouro, ou uma
singela inspiração, um veve ― desenhos esquemáticos realizados com farinha branca sobre o
chão de terra dos centros rituais haitianos de vodu, e que representavam as entidades
invocadas. Breton ainda fala dessa síntese provocada pela luz e pelo contaminante ambiente
edênico do Haiti com suas canoas, sua natureza preciosa, achando surpreendente as brigas de
galos. Tudo era sinônimo de vida à margem da desintegração pelas explosões atômicas.
Menciona os pássaros que tanto o impressionaram e que se tornam um signo constante na
obra do artista, quando adverte ―as gazelas no lago‖ associadas ao sopro de Eleguá, deus das
encruzilhadas.
As diversas representações a este deus, fosse com atributos ou objetos de culto, e
quase nunca de forma realista, que já era domínio de Breton, foi uma presença recorrente nas
obras de Lam. O texto, achamos pertinente seja citado quase na íntegra:
Seria impossível comentar aqui todas e cada uma das 21 obras que compõem a
exposição que nos ocupa30, discursamos então sobre algumas das mais importantes, buscando
exprimir sua unidade como conjunto. Uma primeira coincidência que conforma o grupo
30
De fato, vale dizer que de algumas delas nem sequer se acha registro, pois não figuram no Catalogue
Raisonné.
95
exposto é o ano de criação: quase todas datam do período de 1944-1945. O segundo ponto
onde elas coincidem é no uso de grandes dimensões quase todas mantêm um padrão de mais
de um metro e quase todas as obras são em técnica óleo sobre tela.
L'Harpa Cardinale, (A Harpa Cardinal), 1944, (fig. 37), senão a mais importante, é a
segunda mais importante ao lado de Le Présent éternel. Lam sintetiza nela todos os novos
elementos plásticos que compõem sua obra, como se tratasse de uma revisão da Jungla.
Porém, aqui os elementos parecem seguir uma fórmula que busca a dissolução e a
transparência. Mais que acréscimo de cores, subtração; reflexos em vez de tessituras
compactas. "A transparente densidade", como a chama Fouchet, (1976, p. 23, tradução nossa)
parece também o resultado de um resplendor produzido pelo sol, ofuscando a visão passiva,
na margem dos trópicos. Sensação de torpor sobre os desnudos e apenas silhuetados e
totêmicos corpos africanos.
Figura 37. L’Harpa cardinale, 1944. Óleo sobre tela, 216 x 200cm, 1944. /Figura 38. Presença eterna.
Óleo sobre tela 217 x 197 cm, 1945
96
composição final31. A austeridade além da já comentada negação da cor quanto ―cor local‖,
parece reforçar por um lado a herança cubista, (como na série que Picasso-Léger
desenvolveram em Punta del Ebro) e, de outro, representar o drama que a pintura quer gritar.
Talvez se possa falar de um caráter corrosivo dessa pintura, como equivalente à poesia
corrosiva de Césaire, indócil e alarmante. Note-se ainda que esta obra é uma das poucas que o
artista comenta em detalhe: ―A personagem da esquerda é uma prostituta, sexual, imbecil.
Sente-se ridícula com suas duas bocas. De seu coração surge uma pata de animal. Sua
heterogeneidade evoca a mestiçagem, a degradação da raça‖ (LAM, apud FOUCHET, 1976,
p. 35, tradução nossa). A referência se faz à degradação da raça negra vista na mulata,
indefinida, alienada, e até prostituída, que traduz sua revolta no plano mais real e mais
poético. A seguir comenta: ―A personagem da direita empunha uma faca; é o instrumento da
integridade, mas não o emprega, não luta. Sugere a indecisão do mulato (...) O recipiente
cheio de arroz, do qual brota uma cabeça, representa a religião, os mistérios.‖ (LAM, apud.
FOUCHET, 1976, p. 35, tradução nossa). Por fim, sobre terceiro e último componente da
trìade: ―No centro, a forma com os membros cruzados, aparece representando o sonho‖
(LAM, apud FOUCHET, 1976, p. 35, tradução nossa). Esta figura informe, o sonho, provê a
redenção e a união de ambos, e ainda confirma sua alma surrealista à la Breton. Além disso, a
obra foi dedicada a Alejando García Caturla (1906-1940), genial músico cubano que soube
incorporar como nenhum outro na ilha os ritmos africanos e o folclore dos negros à música
culta. Sua personalidade e estilo musical eram também encantados pela riqueza da música
culta que se nutria da africanidade. Para grande escândalo da sociedade da época, casou-se
com uma afrodescendente. Em Paris, Caturla tinha sido discípulo de Nadia Boulanger e era
amigo próximo de Alejo Carpentier, que como já se disse pertencia ao círculo de amigos de
Lam. Uma de suas composições mais famosas, O diablito baila, é quase uma fuga bachiana
ritmada à velocidade que os ñanigos, também identificados como ―diablitos‖, saltavam e se
retorciam nos ritos Abakuás. Essas danças de homens mascarados sugeriram a exigência do
virtuose presente na composição de Caturla.
Ceux de la porta battante, (fig. 39), quadro também em chave monocromática, mostra
uma progressão de "aparições", como figuras aladas dispostas sobre grandes losangos, e que
culminam na posição vertical, parecendo referências às aves degoladas para o ritual. Também
31
Ver SOTKES SIMS, L. "From de Concept to Style: Lam and the Geography of the Marvelous" in
LAURIN (ORG). Catalogue Raisonné of the Painted Work. Volume I 1923-1960. Paris: Gary Nader fine art,
1996. pp 118-164
97
o título, “Esses da porta batente", alude a Eleguá, orixá das entradas, do começo, dos
caminhos.
Figura 39. Ceux de la porta battante, 1945. Óleo sobre madeira encerada, 127 x 109 cm.
Coq de Caraïbes (Galo dos Caribes) — óleo sobre tela, 41 x 50 cm, 1945, (fig.40).
Esta é outra obra que também faz referência a um elemento muito empregado no repertório do
artista, o galo. Aliás é essa uma figura central e determinante nesta fase cubano-antilhana. É
também o símbolo das brigas, de apostas, presente no folclore do Haiti e de Cuba, geralmente
nos entornos camponeses e periféricos. Sabe-se que Breton e Lam frequentaram durante a
viagem brigas de galo, inclusive este ritual é mencionado no prefácio. O galo luta até sangrar
e até conseguir seus propósitos. Ficou nos imaginários da cultura insular como sinônimo de
virilidade. O fato de não ser apenas um galo, mas, como indicado pelo título, o galo dos
caribes, também designa uma agressividade indócil. Caraïbe ou Caribe, eram esses homens
originários do Mar Caribe que, à diferença dos aruacos, não eram pacíficos, e sim antes
ferozes guerreiros que atemorizavam os colonizadores. E foi este o sinal mobilizado ao
mencionar essa ave. O galo telúrico, com pés robustos apoiados no chão, foi feito de um
pontilhado, evocativo e pulsante gesto que sugere esta obra como um retorno ao primitivo.
98
L' Oiseau au roc (Um pássaro sobre uma roca) 1945, (fig.41). Esta tela exemplifica a
constante menção aos pássaros. Nela, o pássaro emerge do fundo, como num voo
transcendental. O bico aberto traz no âmbito semântico as acepções de canto, grito, música,
alerta, ataque e anúncio libertário. A já comentada série de desenhos realizados no Haiti,
talvez ajude a compreender a preocupação com os elementos envolvidos na composição, onde
o traço implode em múltiplas direções, como raios, como em um gesto primitivo, ou de um
possesso, nada mais que reforçado pelo título.
Figura 40. Coq de Caraïbes, 1945. Óleo sobre tela 41 x 50 cm/ Figura 41. L' Oiseau au roc (Um
pássaro sobre uma roca) óleo sobre tela 1945.
Wifredo Lam foi o primeiro surrealista a fazer das fontes primitivas e étnicas
o centro de sua arte [...] Quadros como Parada Antilhana contêm uma fusão
de referências tão diversas como as figuras de vodu haitiano e as máscaras
africanas. Desde a penumbra dos frondosos bosques de bambu [...] surgem
personagens híbridos cuja presença parece desdobrar-se na própria definição
de flora. Picasso exerceu uma das iniciais e contínuas influências sobre Lam,
e muitos de seus bosques refletem o espaço pouco profundo e a iconografia
híbrida de Les demoiselles, logrando às vezes como em Canto de Osmose
uma transparência e delicadeza que lembram as aquarelas de Cézanne"
(RUBIN, W. 1977 p.171, tradução nossa)
Organizada pelo lìder do grupo, André Breton, a exposição ―Lam‖ não foi um fato
isolado, mas como já comentado, parte do programa da viagem empreendida à capital
99
haitiana. Desses encontros abertos com os intelectuais destaca-se o poeta Maggliore Saint
Aude cuja antologia de poemas póstuma editada em França em 1971 Lam também ilustraria
com uma gravura – junto com os também artistas surrealistas Telemaqui e Camacho.
Tudo ia bem nessa viagem até Breton ministrar ali suas conferências. No começo de
1946, acontece a série de palestras ministradas pelo líder surrealista no Institut Français,
sobre temas literários e pintura, que iriam culminar na desgraça de Mabille. A revolução
haitiana, que teve início em janeiro, finalizando com a derrubada do presidente Lescot,
coincide com essas palestras. Breton que mantivera a plateia lotada de estudantes deixou ao
clero e à burguesia exasperados com as ponderações sobre a herança étnica dos haitianos e a
civilização ocidental. Tudo isso culminou em uma campanha de calúnias que recaiu sobre
Mabille (acusado de ser agente comunista, com ligações com Cuba e México, de contar com a
ajuda da propaganda soviética etc) O fato é que teve que sair às pressas do Haiti. Vai a Cuba
onde o amigo Carpentier dos tempos parisienses lhe oferece alojamento. Mabille faz ali uma
apresentação da exposição de Wifredo Lam. Deixa Cuba, via Estados Unidos em 22 de abril
de 1946, para não regressar mais às Antilhas nem à América.
A figura de Mabille que papel ele teve neste enredo? Tendo chegado ao Haiti nos
finais de 1940, atraído pelas realidades latino-americanas e do Caribe, graças à bio-
bibliografia detalhada de Remy Laville comentada por Irlemar Champi podemos entender o
périplo de Mabille por Haiti, depois México e Cuba. Ele chega a esta ilha do Caribe em 1941
em companhia de Jane, sua segunda esposa. Ali permanece por seis anos exercendo a
medicina. Uma das primeiras personalidades que contata é Price Mars (o autor do clássico
sobre o vodu, Ainsi parla l‟oncle, 1928). Instaura uma amizade com a família do presidente
Lescot, ―que lhe facilita inserir-se na vida cultural, que guardava laços fortes com a tradição
francesa‖ (CHAMPI, 2004, p 188). Sua estância na pequena ilha garante que Mabille fosse
iniciado pelo culto vodu com ajuda do etnólogo e escritor haitiano Jacques Roumain, seu
parceiro na fundação do Institut d‟Ethnologie Haïtien, onde ensina biotipologia e antropologia
fìsica. Mabille também ―viaja pelo paìs, [onde] coleciona instrumentos e pinturas de rituais
utilizadas pelos feiticeiros; faz pesquisas arqueológicas‖ (CHAMPI, 2004, p.189). Retoma a
atividade literária quando ativa contato com membros do grupo surrealista composto pelos
refugiados nos Estados Unidos, como Breton, ou no México, como Wolfgang Paalen e
Benjamin Péret. Em 1943 o casal viaja para o México, fazendo uma escala de três semanas
em Cuba. Hospeda-se com Lydia Cabrera, a grande folclorista que ajuda Mabille nos contatos
com os editores mexicanos e traduz La construction de l‟homme (Arquitectura del Hombre,
100
1944) e Le merveilleux (Lo Maravilloso, 1945). Em Havana encontra-se com Wifredo Lam,
com quem convivera no café Deux Magots, em Paris, e faz uma palestra sobre o Haiti.
Aproveita a ocasião para entrevistar Lam para redigir seu célebre ensaio ― La Manigua‖,
publicado por Cuadernos Americanos em 1944, cujo diretor era Juan Larrea, e que será
comentado a seguir.
Com o fim da guerra, Mabille vai para França (fevereiro e junho de 1945) mas os
estragos no país o impedem de achar trabalho viável. Nomeado adido cultural pelo Ministério
de Relações Exteriores, voltou ao Haiti. Paralelamente às atividades diplomáticas, retomou a
direção do Asile Français e ensinou na Faculdade de Medicina de Port-au- Prince. Instalou o
Institut Français, do qual tornou-se diretor. Tudo correu com o sucesso esperado até convidar
André Breton a fazer umas conferências cujo desenlace foi o afastamento definitivo deste país
pelo que tanto trabalhara.
No entanto, houve um ganho imenso na participação desses intelectuais com um
evento do porte da Exposição de Lam. É preciso, portanto, falar sobre o espaço que promove
a exposição de Lam: o Centre d'Art, (fig. 42- fig. 46). Este lugar traça uma ponte quanto à
institucionalização da arte moderna no caso particular do Haiti. Ainda quando afastado dos
padrões formais de um museu, o Centre d'Art supre nesta primeira etapa os objetivos de
legitimação da arte. O espaço tinha sido criado em meados de 1940 pelo norte-americano
DeWitt Peters, com o apoio de intelectuais haitianos como Albert Mangones, Philippe Thoby-
Marcelin, Georges Remponeau, Maurice Brono e Jean Chenetesse, e também graças ao apoio
de instituições norte-americanas e da Igreja Católica. Sua repercussão chegou a despertar a
curiosidade a nível internacional de diversas personalidades da cultura entre 1949 a 1967.
Esse é o caso de Wifredo Lam e André Breton, e ainda de José Gómez Sicre, advogado,
diplomata e crìtico de arte cubano, além de René d‘Harnoncourt, diretor do Museu de Arte
Moderna de Nova York. O Centre d'Art tinha sido criado como espaço para aprendizado de
pintura e escultura, mas logo abrigaria também a redação daquela que foi à época a única
publicação periódica dedicada às artes plásticas no país, STUDIO n° 3. Da mesma forma, a
existência do Centre seria indispensável para a criação do Musée d' Art Haïtien em anos
posteriores.
101
Figura 42. Entrada do Centre d'Art // Figura 43. Detalhe da placa anunciadora com o slogan "Reconnu
d' utilité publique fondé à 1944" (Reconhecido de utilidade pública fundado em 1944)
102
Figura 44. Detalhe dos espaços ao ar livre no pátio do Centre d'art com aulas de pintura
103
Figura 46 Visitantes apreciando os quadros no Centre d’art dispostos de maneira linear a com espaçamento
regular
32
O seu mentor e diretor do Centre d‟Art, o americano, DeWitt Peters, ele mesmo pintor, tinha se
consagrado como um bom aquarelista. E será com um conjunto de trabalhos realizados com esta técnica que se
dedica a mostra inaugural. Tento sido discípulo do moderno Maurice Stern (1878-1957) ― o primeiro norte-
americano a ganhar uma exposição individual no MoMA, em 1933, Peters viaja a Paris, onde se torna, por um
breve período, discípulo de Fernand Léger. Podemos arriscar a dizer que seria Léger, ou talvez o ambiente
parisiense, inclusive as referências que ele preservava sobre o MoMA, ou ainda, a soma de todos estes fatores,
que daria lugar ao surgimento de tão brilhante ideia. Peters veio inicialmente como professor de inglês, mas não
tardaria perceber o potencial artístico que o circundava, começando uma campanha para a criação de um lugar de
acolhimento, um centro que funcionasse como escola e garimpo de talentos passíveis de se desenvolver como
pintores ou escultores profissionais, ou mesmo aqueles inclinados a ver estas artes como um hobby ou uma
atividade secundária
33
Ver Documentário Centre d‘Art, 1950. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=5Mr1USFY3mY
104
unicamente garantir o alcance do sucesso de seus alunos, o qual tinha como parâmetro as
próprias vendas nas exposições que ali mesmo se celebravam. O diretor do Centre d'Art
conseguiu ainda que a singela estrutura voltada para a formação dos estudantes fosse utilizada
por pintores locais para a produção de um belíssimo afresco instalado na nave principal da
Catedral de Porto Príncipe. Graças a um programa de intercâmbio com os Estados Unidos, se
transformou não apenas no lugar de ensino de arte, mas ao mesmo tempo na instituição que
foi instrumentalizar o fomento e a infraestrutura para o desenvolvimento da arte (moderna)
neste país à margem e economicamente precário.
As manifestações artísticas dos haitianos, as quais o Centre divulga, ganham desde o
início da empreitada um halo primitivo e uma mítica presença africana, característica que
brotava como uma espécie de créole da plasticidade inata de seus discípulos. Os temas típicos
oscilam entre tipologias como paisagem, naturezas mortas etc. Por demais há um elemento de
maior transcendência, nessa década a propósito da fundação do Centre d‟Art em Port-au-
Prince progride culturalmente a chamada "Renascença de Haiti”, uma leva de pintores
populares haitianos que obteve uma projeção considerável34.
Paralelamente à fundação do Centre d‟Art, se fomenta uma estreita relação cultural
institucionalizada entre o governo de Havana de 1940-1944 com o governo do Haiti. Ambos
tinham criado uma frente única antifascista, e tinham propiciado as trocas entre os intelectuais
dos dois países. Por citar alguns exemplos, no fim de 1942, o poeta cubano Nicolás Guillén
viajou a Port-au-Prince, em missão oficial. Jacques Romain e outros escritores haitianos
viajaram a Cuba e ali publicaram. Ainda o governo cubano fundou La Gaceta del Caribe,
revista dirigida por Jorge Mañach, onde saiu a resenha assinada por Angel Augier da edição
cubana de Retorno ao País Natal, ilustrada por Wifredo Lam. E quando o cubano Virgílio
Piñeira publicou seu longo poema La Isla en Peso (A Ilha em Peso), a crítica de arte cubana,
já citada, Mirta Aguirre faz a resenha na mesma publicação associando Piñeira com a visão de
Césaire. É também nesse Centre haitiano que vários pintores cubanos participam de uma
coletiva nos primeiros meses de 1943. Por fim, é graças a essas trocas que Alejo Carpentier
viaja ao Haiti em 1943 onde começa uma pesquisa para redigir o primeiro romance dedicado
à Revolução Haitiana, El Reino de este Mundo, (1949), em cujo prólogo, preanuncia seu
conceito lo real maravilhoso que pouco tempo depois é celebrado como antecedente da
vanguarda literária da década de 1960 que se dá a conhecer como o boom latino-americano.
34
Para a História sobre Centre d‘art na promoção da pintura haitiana, ver RODMAN, Selden.
Renaissance in Haiti: Popular Painters in the Black Republic, 1948, p. 5-10
105
Em suma, todos esses aspectos conformam o espírito da viagem. Ela resulta em uma
empreitada para comparar aspectos referenciais prévios sobre o conceito do primitivo com os
da cultura afro-haitiana. Lam, por exemplo, tinha testemunhado após seu retorno a Cuba, em
1941, manifestações do folclore afro-cubano local que o marcaram profundamente. Tinha
assim estudado e assimilado os ritos e a fusão com outras manifestações de magia de
ascendência asiática, como as praticadas por seu próprio pai, e que ele resgata em suas
memórias. Ou as religiões de origem Lucumí de onde provinha sua madrinha Mantoñica
Wilson, que ele confessa na monografia escrita por Fouchet que começa a treiná-lo em sua
infância para ser um babalaô, ainda que isto não durasse muito porque ele não se considerava
bem-dotado para o exercício da fé. Diante de tais influências, no Haiti era possível aprofundar
mais, buscar pontos de contato com os Abakuá, a complexidade da música, as danças e os
numerosos casos de transe do vodu, traços que acabam contaminando de maneira profunda
sua pintura nos anos posteriores.
Julia Herzberg estuda estas influências na pintura de Lam 35, pontua que a forma de
diamante, dividida em quatro seções e contendo círculos, era uma figura chave na simbologia
dos abakuás que é encontrada nas pinturas de Lam. Herzberg ainda aponta que Lydia Cabrera
foi uma figura pivô para introduzir Lam nos diferentes ritos afro-cubanos. Títulos de obras de
Lam vieram por influência de Cabrera: Amanu, (1943) refere-se a uma flor utilizada no ritual
Lucumí para propósitos medicinais. Ogue Orisa, (1943) é mais uma referência às ervas. Le
sombre Malembo (1943) evoca o deus das encruzilhadas na terminologia afro-haitiana.
Os rituais e a natureza haitiana, por outros vieses, também acabam permeando a obra
de Lam desde a crítica. No número de janeiro de 1945 de Tropiques, Pierre Mabille publica A
Manígua, tradução de Jungla, e cujo significado se refere mais exatamente a noção de um
"mato", ou vegetação densa no jargão cubano. Este texto de doze páginas sobre a obra de Lam
que levava o subtítulo de "De l'importance prise par la critique d'art à l'époque
contemporaine" (Da importância primordial para a crítica de arte na época contemporânea),
mais do que apenas se referir ao maravilhoso, expõe esse conceito de maneira vertical e em
pluralidade de acepções. Vale rever alguns pontos deste texto, que no momento, era o mais
completo ensaio sobre a obra de Lam. Para escrever o texto, Mabille visita Havana, no ano
1944, após Lam realizar o famoso quadro. O ensaio parece ser o perfeito catalisador entre a
35
Ver ampliado em HERZBERG, J. Wifredo Lam. In NOCEDA (org). La cosecha de un brujo, La
Habana: Ed. Letras Cubanas, 2002
106
teoria mabilliana e a prova definitiva de que o artista tinha mimetizado sua plástica com o
mesmo poder transformador evidenciado nos rituais.
Mabille prefacia sua discussão com um extenso texto no qual ele distingue entre a
crítica de arte que atendia a atividades comerciais e aquela dedicada à obra de arte onde são
iluminados ideais comuns para expressar uma familiaridade espiritual. Mabille critica a falta
de tais ideais na sociedade contemporânea, onde egos e objetivos individuais têm preferência.
Talvez ele estivesse refletindo sobre a situação do disperso grupo surrealista. Ele lança uma
acusação à colonização europeia e seus efeitos, especificamente nas Antilhas, que ele designa
como o ―novo Éden‖. Explica que europeus, africanos e asiáticos foram todos transformados
nesse ambiente, ao retomar as memórias de seus respectivos continentes ancestrais. Logo
então Mabille revisita alguns eventos e circunstâncias da vida de Lam. Lembra assim seus
primeiros encontros no Café Deux Magots em Paris, logo após Lam ter entrado em contato
com Picasso e seus destinos entrelaçados em Marselha e na República Dominicana. Quando
Mabille viu Lam em Havana, em seguida de ele ter terminado La Jungla vai ao encontro do
artista, e fica claro que essa pintura era ―o sinal de uma virada decisiva em sua carreira‖
(MABILLE, 2002, p. 400, tradução nossa) Mabille compara a importância dessa pintura com
a descoberta da perspectiva na obra do artista italiano do século XV Paolo Uccello e observa
que La Jungla em seu tratamento formal é uma conquista que influenciará a Arte Ocidental.
Ele continua com uma descrição do ambiente dos ritos do vodu, que o trabalho de Lam
similarmente evoca como ―um universo em que as árvores, flores, frutas e o espìrito coabitam
com uma inter-relação que é como a da dança" (MABILLE, 2002, p.414, tradução nossa).
Este artigo se tornou um protótipo para a abordagem biográfica do trabalho de Lam, como
uma mistura de fatos, do mito e da alusão poética. Ao ser publicado por Cuadernos
americanos contribuiu para a promoção de uma imagem na cultura créole que estava sendo
promovida pelos intelectuais da época. Isto também ajudou consideravelmente com a
aplicação da teoria do maravilhoso de Mabille verificada em um trabalho de artes plásticas.
Por outro lado, vale enfatizar que a teoria do maravilhoso mais tarde revisada por
Carpentier, constituiu um ponto de partida onde vários intelectuais do hemisfério encontraram
um suporte epistemológico iniludível. Como já comentado, da confrontação com este conceito
base surge a tese de Alejo Carpentier sobre o real maravilhoso. Conceito lançado oito anos
mais tarde à aparição de Le Miroir du merveilleux (1940) de Mabille. O estudo de Irlemar
Champi: "Pierre Mabille e Alejo Carpentier: O Surrealismo na Encruzilhada do Caribe"
107
(PERRONE, 2003, p 159-193)36 dá provas exaustivas dessa demarcação. O incontornável de
mencionar é que Lam será um dos pivôs deste processo. A estratégia de Mabille na teoria do
maravilhoso empregada no texto de Lam era alinhar com a sua formação as instâncias das
descobertas científicas e dos conhecimentos de hermetismo para elaborar as fórmulas que
"fabricam" o maravilhoso. Essa discussão guarda uma estreita relação com as inquietações e
averiguações dos surrealistas. Para Mabille, o mérito consistia em esclarecer o problema
imbuído neste conceito, que longe de estar sustentado pelo dom divino, misterioso e pessoal,
alude à diversidade de culturas, que evocam em seus rituais estados do subconsciente e das
mudanças de percepção, por isso o maravilhoso apela também à metáfora da iniciação. ―Uma
das vias de acesso [ao maravilhoso] são os exercícios psíquicos que conduzem à concentração
e ao êxtase, liberação do automatismo mental, as cerimônias mágicas e atitudes
mórbidas"(CHAMPI, 2003 p.163)
Mabille passou a conectar este princípio etnológico e espiritual de organização social
no ritual de vodu com o plano pictórico de Lam, no qual chama à atenção do espectador até
um ponto de enfoque plural. Mabille opõe esse sentido anárquico de percepção à hierarquia da
sociedade fascista que ainda tinha boa parte da Europa sob seus domínios em 1944, quando
escreveu o texto. Tomemos um fragmento como exemplo:
O imenso valor dessa tela de Lam chamada La Manigua está no fato de que
evoca um universo desta espécie, onde as árvores, as flores, os frutos e os
espíritos coabitam graças à dança. Eu por minha parte, encontro uma
oposição absoluta entre esta manigua onde a vida explode por todas partes,
livre, perigosa, surgindo da vegetação mais exuberante e pondo à disposição
todas as misturas, todas as transmutações a todos os pertences, e essa outra
"jungla" sinistra, onde um führer, plantado num pedestal, espia ao longo das
colunatas neo-helénicas de Berlim a marcha das cortes mecanizadas
dispostas, depois de ter destruído todo o vivo que existia, reduzir ao nada,
num paralelismo rigoroso dos cemitérios sem fim. (MABILLE. 1944, p. 414,
tradução nossa)
Por sua parte esta análise, em volta do ―maravilhoso‖ que se produz na ―grande
encruzilhada do Caribe‖, além de tudo fez com que a obra de Lam se tornasse uma chave
indispensável do que poderia vir a ser a fundamentação do teórico francês. Talvez por isso
Lam lhe correspondeu com uma gravura realizada para acompanhar a nova edição, de Le
36
Neste texto a autora aborda como a teoria poética e histórica do real maravilhoso, conceito lançado
por Alejo Carpentier, romancista cubano, muito próximo do círculo de Lam, guardou nexos indiscutíveis com
Mabille, e claramente com este périplo haitiano. Levando em consideração que ambas teorias: o maravilhoso e o
real maravilhoso encontram-se na mesma órbita, e que de fato, para o caso de Carpentier, ao enunciar sua teoria,
em contraposição a Mabille, não significa que não tenha gerado uma ficção de valor inestimável onde o cenário
da única revolução "negra" em nível mundial, lhe serve como pretexto.
108
Miroir du merveilleux, publicado por Gallimard em 1962 (fig. 48). Breton por sua parte
escreveu ―Ponte Levadiça‖, um ensaio onde narrava suas experiências com o vodu. Esse texto
é nada menos que incluído como prólogo na já citada edição do importante livro de Mabille.
Figura 47. Capa do livro Pierre Mabille, Le Miroir du merveilleux, 1962./ Figura 48. Lam. Ilustração de
para Le Miroir du merveilleux, 1962. Gravura em metal.
Fonte: prazza.com
[...] um dos sentidos da pintura de Wifredo Lam, rica como nenhuma outra
detém o gesto do conquistador, significa seu fracasso na epopeia sangrenta
do envilecimento por sua afirmação insólita de que começou a ocorrer
alguma coisa nas Antilhas. Alguma coisa que nada tem a ver com o açúcar, e
o rum, com as emendas feitas às constituições, algo insólito, algo
eminentemente inquietante para as proclamas econômicas e os projetos
políticos e que corre o risco de explodir qualquer ordem que intentara
desconhecê-lo. Ocorre que homens em todas as épocas se debatiam por
dúvidas, por contradições, por incitações incertas, se encontram a força de
tentativas nervosas de incoerências, de resplandores. E que em nome desses
homens, em nome desses sobreviventes do maior naufrágio da história está
falando Wifredo Lam.
[...] em definitiva o que graças a ele está triunfando nas Antilhas é o espírito
de criação. Isto alcança uma importância singular se pensamos que nenhum
sítio nas Antilhas o velho problema da forma e do espírito se tinha
explicitado com maior agudeza. ( 2002, p.201, tradução nossa).
109
Consequentemente, no mesmo texto ele faz sua declaração de que é o espírito primário
em sua obra se projeta e alucina, sendo primeiro nas Antilhas que soube saudar a liberdade
com parentescos que sendo originais nos unem à natureza. Para Césaire a atmosfera poética
era o patamar encarregado de converter o conhecimento em algo plausível, ela mesma era a
arena e receptáculo de parentescos do homem com a natureza. Portanto, dentro dessa
configuração esse imaginário ancestral recriado sobre sua região. África, a qual em princípio,
todos os descendentes de escravos no Novo Mundo poderiam acessar ao inconsciente
coletivo, além de ser um programa idealista, dava uma certa saída para esse afrodescendente
em particular, e todo ser humano em geral, chegar às vias de sua própria descoberta no
sentido ontológico.
Após estas experiências aqui narradas, Lam parece ter ido orientando a sua poética
definitiva em meio a tantos e tão densos deslocamentos. A atmosfera cultural introduzida pelo
surrealismo tinha propiciado que seu próprio mundo, o de sua cultura, fosse manifestando-se
no exercício da modernidade. A chegada a Cuba foi o encontro com essa realidade que
encontra um campo fértil na pintura. Ele tem um deslumbramento diante do Trópico, e o toma
com uma forte dose de pertencimento, que aos poucos se transforma na confirmação e na
descoberta final de sua própria poesis. É um retorno ao país natal no sentido do longo poema
de Césaire, e toda obra que faria a partir daquele momento poderia ser lida pelas testemunhas
– os cadernos ─ desse retorno. Ao indagar sobre o significado de mais uma fonte antilhana, o
pintor se apropria do universo cultural enquanto universo artístico pessoal. Em suma, muitos
foram os desdobramentos desta viagem que rememora a geração surrealista que conflui no
enlace Lam e Césaire.
110
5. Entre a Teoria da Antilhanidade de Édouard Glissant e as produções de
Lam no pós-guerra: ilustrações para La Terre Inquiète (1955)
Este tópico explora a relação, na cena de Paris dos anos cinquenta, de dois importantes
intelectuais caribenhos, Wifredo Lam e Édouard Glissant (1928-2011). Este último foi um
poeta e grande ensaísta de Martinica37, que desde meados dessa década lança sua trilogia
poética com a qual irá dar contornos identitários à região antilhana. Lam, por sua parte, no
pós-guerra mediante a ilustração de livros retoma as parcerias com poetas e com grupos de
vanguarda que gravitavam na sua órbita38. Ora por esta época passa a nutrir-se da relação com
os membros do surrealismo, ora se nutria da relação com a rede artística muito maior e
identificada como PHASES. Certamente em 1955, graças a esses encontros que pulsavam no
cenário de Paris, não tardou em coincidir, na Galerie du Dragon (1955-1995) com o autor de
La Terre Inquiète (1955) Édouard Glissant. Sendo ambos provenientes das Antilhas, Cuba e
Martinica, vão alinhar seu aprendizado: de um lado o altamente ambicioso pensamento
glissantiano, e de outro a maestria artística de Lam. Para falar desta relação é imprescindível
olhar de perto La Terre Inquiète: seus argumentos, seu formato, a editoração feita pela
Éditions du Dragon, o contexto, e do tudo o referente a esse volume do qual tão pouco se tem
escrito. Que pontes, que enlaces permitiriam este encontro? Quais aspectos do livro foram de
maneira decisiva assimilados por Lam? Como a nomenclatura e a intenção poética de Glissant
se refletem na suíte de litografias? Em resposta a todas essas perguntas é que se desenvolve o
texto a seguir.
Contudo voltando à terminologia de Drueker, o livro pode ser considerado uma "zona
de atividade". O livro neste caso não só funcionou como obra literária, senão que ressalta a
37
Édouard Glissant (Martinica, 1928- 2011) estudou Etnologia no Museu do Homem de Paris e
Filosofia na Université Sorbonne, Paris. Fundou na década de sessenta a Revista Acoma e o Instituto de Estudos
Martinicanos. Foi professor na Universidade de Luisiana e na Universidade de Nova York (CUNY). Fundou em
2007 o Institut Tout - Monde, e foi diretor da Revista O Correio da UNESCO. Recebeu o Prêmio Renaudot
(1958) e o Prêmio Roger Callois de poesia (1991), para mencionar alguns. Tem uma vasta obra ensaística, dentre
as quais se destacam Soleil de la Conscience (1955), L'Intention poétique (1969), Poétique de la Relation (1990)
e Philosophie de la Relation (2009), dentre as mais relevantes.
38
Em 1953 Lam lança a litografia Sem título para a revista Derrière le Miroir. Produzida por Galerie
Maeght em Paris, essa publicação se dedicava a tornar a arte mais acessível. Entre 1946 e 1982 ela vendeu
gravuras de artistas famosos como Calder, Miró e Lam por uma fração de seu custo normal de mercado. Neste
mesmo ano, 1953 Lam ilustra com uma suíte de cinco gravuras em metal a obra de René Char Le Rempart de
Brindilles, Paris, Louis Broder. Para finalizar, em 1959 Lam ilustra um livro que é uma coletânea de 19 poemas
Paroles Peintes, junto a outros quatro artistas: Max Ernst, Jacques Hérold, Roberto Matta e Dorothea Tanning.
111
arena colaborativa propiciada pela Galerie du Dragon e permite traçar enlaces com uma
recepção que irá se propagando em várias direções. Um exemplo concreto dessa atividade é
que anos mais tarde Glissant fundaria o Le Musée du Tout Monde (2004) onde este livro de
Lam/ Glissant, ocupa um lugar de destaque. Encontramos algumas das definições desse
museu, sem dúvida um dos maiores legados deixados pelo autor martinicano:
Por tanto, como bem resumem as palavras acima, o Musée du Tout-Monde, onde
cabem obras como o livro de Lam/ Glissant, seria concebido como um lugar de diálogos,
trocas, afinidades e contrastes. Um lugar onde se viabiliza a exposição da rede de articulações
entre Glissant e pintores e escultores de sua geração. Sugerimos aqui uma comparação entre
esse ―museu rizoma‖ e a Galerie du Dragon, o nicho gestor da La Terre Inquiète, 1955.
Essa última, foi uma galeria concebida a meados dos anos 1950 como lugar de trocas
inter-territoriais que tinham em comum sua âncora com o surrealismo. Inclusive foi
declaradamente um ―lugar de encontros transnacionais à margem da abstração.‖ 40Essa ideia
de se converter em um dos hiatos de Paris à margem da abstração, pretendia contestar a
tendência que tinha de súbito dominado o mercado de arte de Europa e Estados Unidos. Neste
espaço Glissant, além de ser promovido com essa edição, tem uma importante atuação como
crítico até o fechamento da galeria.
Já o Tout-Monde, que fora concebido em 2004, isto é cinquenta anos mais tarde, foi
criado para desestabilizar as histórias oficiais e ao rejeitar a cultura como algo hermético,
propondo assim o entrecruzamento de artistas que assimilaram diversas raízes e hibridações.
Ambos o que tinham em comum? As relações entre escritores e poetas estavam garantidas
tanto na Galerie du Dragon, como no museu. Assim, o martinicano que exercia seu papel de
39
―Le Musée de Tout monde & Agora Mundo‖. Disponível em <http://tout-
monde.com/maidelitm1.html> Acessado em 05/10/2020
40
Ver (CAPDEVILLA, 2018, p.1, tradução nossa). Contamos com os estudos preliminares
dedicados à Galeria por Élisa Capdevilla Doutora em História pela Université de Versailles Saint-Quentin-
Yvelines. Rennes
112
crìtico ─ sobretudo dos artistas latino-americanos ─ e vai ao encontro da vanguarda plástica
caribenha, como os cubanos Lam e o escultor Agustín Cárdenas; e dos artistas do cone sul
americano vinculados à escola de Paris como os chilenos Roberto Matta e Zañartu e os
argentinos Alicia Penalba e Antonio Seguí, vai conformando uma coleção pessoal, justamente
composta por esses artistas dos quais escreveu. Portanto, podemos chegar à conclusão que foi
justamente influenciado pelos pluralismos que Glissant chega a essa construção, a esse mapa
de artistas ou rede de colaboradores, que constituem partes, átomos, nichos desse seu
pensamento em arquipélago, e do que ele chamava ―relação poética mundial‖.
Voltando para esse embrião do livro Glissant e Lam: a Galerie du Dragon é
significativo que fosse instalada no número 19 da rua Dragon, no mesmo endereço onde antes
funcionava a galeria Nina Dausset, também uma galeria associada ao surrealismo, antes de
converter-se em epicentro da abstração e a primeira a exibir o astro desse estilo, Jackson
Pollock. No entanto, a diferença de sua predecessora nasceu de uma iniciativa espontânea de
dois pintores latino-americanos, Enrique Zañartu (1921-2000) e Roberto Matta (1911-2002),
que desejam perpetuar este espaço de trocas para eles essencial, e sem as interferências da
abstração como estilo dominante. A existência desta galeria torna a cena artística parisiense
mais complexa pois para o período em questão (1955-1964), existia um combate, ou uma
tensão entre abstração e figuração, entre abstração "quente" e abstração "fria" por outro lado.
Como Capdevilla adverte: ―Ela oferece, na contramão, uma pintura [...] associada ao
surrealismo.‖ (2018, p.3). Do mesmo modo a Galeria destacava-se por acolher e promover
colaborações entre poetas e pintores. A dimensão comercial parece ser secundária (mesmo
que esforços reais tenham sido feitos para trazer diretores de museus europeus para atrair
colecionadores). Conta com o apoio de alguns ricos colecionadores e amantes das artes,
principalmente do belga Joseph Berthold Urvarter e da venezuelana Cecilia Ayala (que se
tornou companheira de Max Clarac-Sérou, e que investia com frequência na galeria)
(CAPDEVILLA, 2018, p.2, tradução nossa). Como diretor, Matta e Zañartu convencem um
jovem poeta que era seu conhecido, Max Clarc-Sérou, a assumir a direção da galeria. Este,
nascido em 1930, é o fundador em 1949 de Rixes (uma revista surrealista que publicará
apenas dois números) com Edouard Jaguer ─ quem mais tarde se tornou o promotor do grupo
PHASES─ e Iaroslav Serpan. Sérou que estreou neste mesmo ano de 1955 converte o espaço
emblemático em uma instituição de trocas culturais que contribuem para dar uma rápida
identidade ao espaço. Como apontado por Capdevilla: ―A aliança entre poesia e pintura/ artes
visuais, sob a égide do surrealismo, formam a identidade da galeria‖ (2018, p.3, tradução
113
nossa). E acrescenta que ―[...] é próxima, no seu funcionamento, de uma galeria-cooperativa,
feita por artistas e para artistas‖. (2018, p.3, tradução nossa). Contudo a Galerie du Dragon
também se apresenta aos observadores como um espaço que reúne pintores de diferentes
gerações que se encontram todos situados num espaço de reconciliação entre as tendências em
tensão. Frequentada por diferentes gerações, permite aos mais novos, sobretudo os de ambos
lados do Atlântico entrar em contato com grandes figuras do movimento surrealista e acolhe
muitos artistas latino-americanos atrelados comumente a um discurso pós-colonial. Atrai
também muitos escritores, em particular Édourd Glissant (1928-2011), muito investido na sua
atividade de escrita para catálogos nos anos 1950-1960 enquanto residia em Paris (Fig. 49).
114
lembrar que o Sérou tinha se dedicado por anos à tradução e edição. Ele de fato, era um
estudioso ávido dos temas poéticos e também um grande conhecedor da arte. Imaginamos que
a ideia do livro tenha surgido consequentemente à atividade de ambos, poeta e artista, em
Paris, em seus respectivos meios autorais incentivados pela proposta de Sérou que era quem
se dedicava às decisões de corte editorial.41.
O livro La Terre de Lam/ Glissant teve uma tiragem de 350 exemplares, portanto,
circulou em um restrito número de pessoas. Uma década depois, em 1965, ocorreu uma nova
edição da Editora du Seuil, que publica a coletânea inteira dedicada às Antilhas em um único
volume. O texto de colofão que nos dá uma medida de que este número quinto da coleção de
―Instance‖, segue um padrão de livro especial como objeto de coleção42.
Para não se perder na diversidade de sentidos propostos por Glissant, que afinal de
contas devem servir para analisar a obra ilustrada La Terre Inquiète, e como se reflete na arte
de Wifredo Lam, partimos de algumas definições sintéticas, que permitem entender a
arquitetura do seu pensamento e que completam seu vínculo com a arte já até aqui em parte
exposta.
Uma destas definições é o rizoma, um conceito que permeia o discurso sobre a
identidade antilhana que primou no conjunto de sua obra. É de Gilles Deleuze e de Félix
Guattari, com quem Glissant coincide no cenário de Paris dos anos setenta que toma
emprestada essa imagem do rizoma (raiz múltipla de uma planta), para qualificar sua
concepção de uma identidade plural que se opõe à identidade de raiz única. Em contraposição
41
Sérou era experto em promover diversos eventos de debate entre as novas promoções de artistas e
escritores na Livrairie du Temps animada também por Nina Duasset e Manou Pouderoux entre 1946-1954.
Jovens poetas, como Edouard Glissant, Alain Jouffroy ou Michel Butor encontram escritores mais velhos, Henri
Michaux ou Ghérasim Luca. Lá encontram-se artistas plásticos, como Giacometti, Matta ou Victor Brauner.
Surgem fortes amizades, entre esses artistas e escritores ao frequentar o local.
42
Justificativa de Tiragem:
Esta obra é a quinta da coleção Instance, editada sob a direção de Max Clarac-Sérou, para as edições du
Dragon, ele tem uma tiragem: 1 exemplar único que contém o manuscrito, um desenho original, sobre papel
Osho, e uma suíte em preto sobre papel Japão Imperial e as litografias em preto. 10 exemplares sobre Vélin
Montval, numerados de A à J, contendendo uma suíte sobre papel Osho e as litografias em preto e branco. 45
exemplares sobre Velin d‘Arshes, numerados de I a XVLV e contendo as litografias em preto. A capa desses 56
exemplares está ornada de uma coberta a cor. Eles são apresentados em uma caixa a duas cores e são assinados
pelo autor e o ilustrador.
350 exemplares sobre Alfama com um desenho em frontispício que foram impressos à parte.
Outros 10 exemplares sobre Velin d‘Arches são reservados ao autor, ao editor e ao ilustrador são
marcados de H.C. I. à H.C.X, 50 exemplares sobre Alfama foram reservados à Prensa. Esta tiragem constitui a
edição original. Foi concluída sua impressão em 31 de dezembro de 1955. (GLISSANT, 1955, s/p, tradução
nossa)
115
ao modelo das culturas atávicas, a figura do rizoma coloca a identidade na capacidade de
desenvolvimento de culturas compostas, por meio da rede de contribuições externas onde a
raiz única se aniquila.
Foi esse tipo de expansão rizomática que transborda na obra do martinicano que Lam
vai dedicar seu esforço à hora de conceber as gravuras. Como anunciado por W.L. T.
Mitchell, todo livro ilustrado costuma mostrar ―umas relações entre as palavras e as imagens
que são flexìveis experimentais e de ‗alta tensão‘‖. (2009, p. 86, tradução nossa). Se de um
lado o livro expõe os tópicos caribenhos fundacionais construídos na obra poética de Glissant,
tanto os que remetem à especificidade cultural das Antilhas, como aos que clamam pelo
verbo, por outro, é a emergência de que uma voz seja configurada buscando abrir o vasto
campo das relações que Lam lhe dedica às gravuras. Motivado incorre como de costume para
esse registro, na síntese de um traço que expõe narrativas, passagens e paisagens. No
entrelaçamento de poesia e verbo com o traço linear de Lam propõe à sua vez novas
estratégias artísticas que são acionadas para estar à altura deste discurso que vai muito além
do enredo da obra literária. Cria semi-abstrações, e cria figurações interconectadas entre si,
como atraído por essa ideia do rizoma.
Escrito no começo dos anos 1950, “La Terre Inquiète” é um livro de poemas
concebido em cinco cantos. Argument (Argumento), Movement loin des rivages (O
movimento longe das margens), La Terre inquiète (A Terra inquieta), Le Retour à la mer (O
retorno ao mar), Envoi (Envio). Esta estrutura do poema em cantos condiz com a ideia de
poemas mais clássicos, o qual aciona uma advertência sobre seu acento pós-moderno, quando
se remete às origens da poesia. Neste sentido em ―Argumento‖ a voz poética realiza um
diálogo filosófico entre o Oceano e a Terra, escritos assim em maiúsculas, para dar uma ideia
de personificação.
43
Esse texto é o correspondente ao verbete Rizome no ―Glossário‖ de Édouard Glissant. Disponìvel em
www.edouardglissant.fr. Acessado em 05/10/2020
116
Ce qui inquiète la Terre devient présence et mouvement de l‘Océan.
Courtisan lassé, il sommeille sur son obscure vérité: la Terre est sombre. Elle
44
a des leurs secrètes, flame la voix, appose sa logique, elle est austère .
De igual modo volta com a fala sobre o Oceano: “L‘Ancêtre parlait de l‘océan et
d‘une race qui lava les continentes avec son voile de souffrance‖45 Com este estreito vínculo
com a paisagem das Antilhas, a miúde personificada, que Glissant expôs a sua preocupação
com as etnias, desde seu pertencimento do local, com sua meteorologia insular, com seu
manto de sofrimento, e o poema vai ditando uma duração dos eventos que povoam o mito.
Reconhecendo essas características Wifredo Lam deve ter concebido a suíte litográfica de três
gravuras, junto com a capa, que ambientam a passagem através do poema. São essas gravuras
correspondentes a uma paisagem personificada similar aquela construída pelos versos de
Glissant.
De igual modo é importante reconhecer a coletânea de poemas Le Champ d‟Iles, La
Terre Inquiète e Les Indes ─ onde o autor alcança como adverte Jean Paris ―uma sìntese
perfeita entre a consciência revolucionária e a demanda por novas poéticas‖. (1965, s/p,
tradução nossa). São essas novas poéticas que Lam reflete totalmente em suas gravuras.
Importante se remeter à coletânea como a definição poética das Antilhas. O primeiro da
coletânea Le Champ d‟Iles (Um Campo de ilhas) dá expressão e voz às Antilhas. Como
adverte o resenhista: ―Terra de contrastes: esplêndida e desprezada, opulenta e pobre,
orgulhosa e submissa. Todo um povo aqui se vê excluído de sua profunda verdade, como se o
velho martírio de sua deportação se houvesse estabelecido para sempre no impossìvel‖ (1965,
s/p, tradução nossa). O segundo La Terre Inquiète nos reporta aos mitos do povo antilhano.
Além das geografias, o terceiro da coletânea, As Índias, representa a própria poesia em seu
eterno conflito com o mundo. Isto bem poderia explicar-se, segundo Édouard Glissant, com o
que ele chama de arquipélago formado pelas Índias Ocidentais cuja definição é não ter
história nem espaço. A operação do tráfico de escravos da ilha de Goree ao longo do Senegal
para as ilhas do Caribe levou a cabo o transbordo de um povo através do mar, cujo transplante
para terras estrangeiras os transformou em outro povo. Privado de todas as raízes, privado de
toda a memória. A história da Martinica existe, mas foi desenvolvida nas consciências por
mimetismo, segundo os princípios da ideologia ocidental. Portanto é essa outra história
44
O que inquieta a Terra é a presença e movimento do Oceano. Cortesão cansado, ele dorme em sua
obscura verdade: A Terra está obscura. Ela tem seus segredos, inflama sua voz, opõe sua lógica, ela é
austera‖(GLISSANT, 1955, p. 11, tradução nossa)
45
O ancestral, falou do Oceano, e de uma raça que lavou os continentes com seu véu de sofrimento
(GLISSANT, 1955, p.19)
117
recomposta, que Glissant mediante a poesia reconstrói na coletânea. Uma história que ele
trabalha como um acúmulo de identidades rizomáticas.
Outras características, além das que nos remetem a essa insularidade aberta, afloram
nas análises encontradas sobre estas obras iniciais de Glissant, publicadas na década de
cinquenta, tanto a poética como a ensaística. A primeira é que como observou Michael Dash
as publicações de 1955 já prefiguram os temas sobre os quais depois se aprofunda na
compilação de ensaios lançada só décadas mais tarde em O Discurso Antilhano (1981). E a
segunda, é que desde o começo na trajetória do autor, a poesia irriga a sua obra46. Daí a
importância de traçar paralelos entre La Terre Inquiète, e sua teoria da antilhanidade, extraída
de sua faceta como ensaísta.
O título do livro La Terre inquiète faz referência ao assalto terra-mar, o qual dá lugar a
outros múltiplos contrastes. Uma terra outrora vista como esplêndida, ou alegre, abre espaço a
uma onde seu passado e mitos advertem sofrimento, lugar de oferendas. Ainda neste livro de
poemas vemos o afloramento de uma consciência do povo das Antilhas. Sua voz poética
torna-se enérgica de um modo que semelha à eletrizante escrita de Césaire, incluso porque
ambos coincidem com a escolha desse lugar mìtico que é o mar Caribe, e suas ―terras sem
espessura‖, como as concebe Glissant. Então, a presença obsessiva do lugar entra para cavar
em sua verdade modos de percepção.
Seduzido por essas primícias do autor, Lam concebe a contracapa do livro (fig. 50)
com uma grande oscilação entre espacialidades. A composição se estrutura em planos de alto
contraste de poucas cores. Nessa cena recriada na capa, podemos dizer grosso modo, que se
manifesta uma pluralidade de signos e códigos que virão à tona quando confrontados com o
46
[...] preocupado com a classificação do real, [o autor] notaria antes de tudo que a poesia irriga tudo o
que é escrito e francamente todo o projeto literário de Édouard Glissant. Sem se preocupar com a distinção entre
os gêneros literários, prefere o vasto canto de uma palavra aberta ao Diverso, onde é a poética [...] o lugar da
realização, e também a fórmula íntima de uma relação com o mundo. Glissant é um poeta em primeiro lugar, e
em primeiro lugar [...] considera o poema como a forma de expressão de maior sucesso [...] a poesia como numa
espécie de precipitado químico se distribui nos outros gêneros: concentra-se aqui uma matriz que você deve
ouvir. Verbete Poesia do ―Glossário‖ de Édouard Glissant. Disponìvel em www.edouardglissant.fr. Acessado em
05/10/2020
118
discurso implícito no poema. Contudo a escolha do artista para a contracapa de uma obra
claramente imbuída de abstração, longe de parecer-se com a tendência fria do estilo abstrato,
guarda uma relação com seus antagônicos provindos da narrativa e graças as figurações que
se percebem submersas. Essa ilustração, sem dúvida a mais imponente da série, parece aludir
a este argumento do canto protagonizado pela Terra e o Oceano. As grandes áreas a simples
vista representam esses dois volumes de paisagem (terra e mar) enchendo toda a superfície.
Em vermelho em um tom argiloso, a representação da Terra, a outra, em negro, assemelha o
Oceano. Como descreve nos versos Glissant: “L‟ancêtre parle, c‟est l‟océan, c‟est une race
qui lavait les continents avec son voile de souffrance”47 e quando refere que há uma ―Terra
escura‖, com ―seus segredos‖, que ―inflama sua voz‖, que ―opõe sua lógica‖, ―ela é austera.‖
Estas duas áreas em um contraponto representam ação e reação dos planos terrosos e aquosos.
Iniciando a leitura desta imagem vemos irromper nessa paisagem de fundo uma linha
ou franja branca em forma de adaga ou espinho que vai de uma extremidade à outra da
composição. Esse espaço em branco, qual fosse uma mera abertura do papel, se assemelha
ainda uma forma vegetal da paisagem árida, cuja forma termina em mão, e cujos dedos
seguram uma pena de escritura. Sugere aqui uma remissão à língua como um todo genérico,
que aponta à necessidade da consciência poética. A imagem inicial imprime assim um caráter
de solenidade. Uma abertura à altura do poema sobre o mito antilhano.
47
O ancestral fala, é o oceano, é uma raça que lavou os continentes com seu véu de sofrimento
(GLISSANT, 1955, p. 11, tradução nossa).
119
Vale à pena abrir um parêntese para comentar a técnica empregada nesta gravura em
litografia, cujas áreas aveludadas e coloridas, não apenas em vermelho e preto, também com
incisivos losangos em amarelo e verde, sugerem a tessitura de uma obra em pastel. Assim
como Picasso usava esta técnica de bom grado, assim como Paul Klee a usa também sobre a
tela; Lam não se privou de fazer um ostensivo uso da técnica em pastel e até ensaia
mimetizar-lá nas gravuras. Muitas vezes ele realizava os trabalhos em pastel e pedia aos
editores para transpô-los a litografia, o qual lhe permitia dar um registro exato à representação
preconcebida. Este método que ele voltou a empregar na década de setenta, é uma espécie de
desvio e lhe valeu algumas críticas por parte dos experts em gravuras48. Muito embora essas
cores vivas de peculiar tessitura transmitem, melhor que nenhuma outra, a aparência telúrica
que Lam preconizava como elemento expressivo para a obra de Glissant.
As outras ilustrações hors-texte de Lam remetem a um desenho simplificado,
correspondendo à concretude das sentenças curtas e a linguagem direta usada por Glissant.
Estas litografias são coloridas com uma paleta reduzida e ténue. Entretanto, elas só saíram
publicadas em branco e preto certamente com o intuito de baratear os gastos de impressão.
Neste caso ressaltam a pureza da linha. Formalmente falando aqui Lam opta em todas as
ilustrações por reforçar o desenho como faz desde os seus primeiros trabalhos.
Outro traço crucial nestas gravuras (fig. 51 - fig 53) é que elas têm uma
―sequencialidade‖, potencializada pelos frames em que estão subdivididas. Essa distribuição
dos planos visuais recria uma sensação de serialidade e multiplicação. Há assim uma
preocupação com a narrativa nos diferentes frames, há personagens que se repetem variando
como de plano ou ponto de vista. Por tudo essa conformação é propulsora de uma
peculiaridade, como aqui propomos, que as converte em imagens rizomáticas.
Em cada um nos frames vemos como Lam se volta sobre o recurso de recriar as cenas
com a paisagem árida nas quais reincide, em todas, a mesma personagem. A posse de tal
figura nos remete a um papel de ―personagem-testemunha‖. Esta testemunha, ganha um
acento de ―coro‖, de ―gentio‖ do ―povo‖ e é representada por uma cabeça corneada e às vezes
retocada com adereços femininos. Paralelamente no poema extenso de Glissant se repete a
locução como frase anafórica que concatena todo o texto: ―Je vous connais, être de rive‖49 .
Portanto, essa reincidência parece replicar a frase que aparece em diversas partes do poema
dando um ritmo ou uma cadência de frase anafórica.
48
Ver ampliado em TONNEAU-RICKELYNCK, D; DRON, 1993, p.3
49
Eu te conheço, você que é da margem (GLISSANT, 1955, p.43, tradução nossa)
120
Figura 51. Wifredo Lam Ilustração II. Para La Terre Inquiète de Édouard Glissant, 1955
121
Figura 52. Wifredo Lam Ilustração III. Para La Terre Inquiète de Édouard Glissant, 1955
122
Figura 53. Wifredo Lam Ilustração IV. Para La Terre Inquiète de Édouard Glissant, 1955
123
Nestes frames assim mesmo se recriam as figurações mencionadas em distintas
posições e planos assimétricos.
O poema aqui nos sugere novamente uma aproximação à condição antilhana: com
―mãos que enraìzam entre sinais seculares‖, ou ―vìtima de tempestades‖. Primeiro somos
compelidos por um concentrado de imagens meteorológicas, depois apelamos à memória,
tanto a do presente, como a mais submersa para desenhar um enredo. Devemos ver as luzes e
a opacidade dessa paisagem como nexo entre todos os capítulos ou cantos do poema.
A última das imagens da série de Lam (fig. 53) corresponde ao último dos cantos,
intitulado Envoi (Envio). ―No limite da Terra e do Mar‖, onde há a procura do enigma. Nesta
última lâmina com totem ao fundo, figuras aéreas se precipitam de um lado a outro,
sobrevoando a femme cheval alada.
A soma entre esta paisagem antilhana, reverberante no texto e o personagem que é o
protagonista das imagens, traduzem um cenário não somente de seres mitológicos,
misteriosos e ágeis, mas também onde coabitam esses seres ― da margem e do mistério‖ que
parece ter uma existência real e concreta. O poema e as litografias entrelaçam uma ideia que
persiste na Relação. Nesta análise parecem estar contidas todas as características que se
vislumbram na série de Lam e que podemos definir mediante uma enumeração um tanto
caótica, como o próprio trópico: na paisagem antilhana interceptada sempre pela própria
escrita poética, a natureza em síntese, a terra, o ar, a soma do real e suas adjacências
imagéticas, os totens africanos, espectadores que mudam de posição e de olhar. Pensamento
sobre um território que recria que provoca um desenho serial.
Por outro lado, à época em que o artista trava contato com Glissant, desenvolve
progressivamente sua obra em gravura. Isso vem a confluir com um interesse pautado pela
interdisciplinaridade das artes, que incluem as produções poéticas e a incursão nas artes
espaciais, tais como a escultura, a cerâmica, murais e instalações. Esta interdisciplinaridade
estaria mais de acordo com a mudança dos tempos do pós-guerra, dos movimentos a serviço
50
Reanimado nesse segredo /Eu te conheço você é da margem / Que acenderam sobre seus amores /
Imperceptíveis vigias // Eles percorrem lugares obscuros / Onde a palavra se adivinha/ E onde as mãos se
enraízam /Entre sinais seculares // Ô lavoura animada e muda/ Você era um talo hierático / Vítima ou broto das
tempestades / Eu te conheço você é do mistério //(GLISSANT, 1955, p. 39)
124
de um novo ideal. Estes marcadores apontam para uma virada na imagética lamiana dos anos
1950 em diante. A obra pictórica stricto sensu, cede o lugar a outras manifestações, como se
verá nas análises correspondentes. Assim, também é esse o momento em que despontou como
prolixo ilustrador de textos literários usando como técnica a gravura51
Lam desde suas primeiras realizações durante o período da segunda guerra tinha
almejado promover uma série de publicações de poesia francesa com as traduções de Helena
Holzer. Esta aspiração, que tinha como objetivos divulgar a jovem poesia e obter uma fonte
de remuneração, após a esporádica colaboração para o poeta Yvan Goll (1891-1950) em 1945
se dissolveu. Ela vem ser continuada sim, nos anos cinquenta, porém sem a participação de
Helena, da qual anuncia sua separação desde 1951. Um outro aspecto a sublinhar é a
preferência de Lam por ilustrar poesia mais do que qualquer outra forma de literatura, como
declarou na entrevista concedida a Hanne Finsen. Isto corresponde a uma fascinação que
sempre manteve pela palavra, ―o mais eloquente elemento que existia‖ (LAM; LLANA, 2002,
p 534); a admiração que o leva em um momento dado a dizer que teria querido ser um
escritor, embora considerasse que não tinha tal dom.
O espírito de Paris nos anos cinquenta contribuiria enormemente para que Lam
retomasse sua ideia de ilustrar poetas com maior assiduidade. Uma vez radicado na França
atendeu a muitos autores e editores que lhe solicitaram suas ilustrações para livros, revistas ou
portfólios coletivos. Ele ficava com o passar do tempo cada vez mais comprometido com
esses trabalhos e convencido de que nunca eram escassos os benefícios, que isto agregava a
suas pesquisas como artista. Assim sua incursão na gravura foi por motivos óbvios, e por
razões que lhe garantiam maior facilidade nas impressões, também evoluindo. A técnica foi
cativando à medida que via prosperar em seu domínio.
A partir de 1947 e até 1952 Lam reparte seu tempo entre Cuba, França e Estados
Unidos. Em 1952 mais uma vez estabelece sua residência permanente na Europa. Durante
estas estâncias ele encontra membros da escola de New York, com os quais começa a ter
familiaridade através de exposições de sua obra na Perls Gallery em 1939 e na Pierre Matisse
Gallery em 1942, 1944, e 1945.
Notas críticas sobre seu trabalho enfatizam seus motivos totêmicos, motivos que
compartilha com Jackson Pollock (1912-1956), Mark Rothko (1903-1970) e William Baziotes
(1912-1963). Seu trabalho ainda é reproduzido em diversas revistas surrealistas publicadas em
New York nos anos 1940, tais como View e VVV em 1945 e Tiger‟s Eye, e Instead em
51
Ver nota 38.
125
194852. Durante esse período Lam encontra os artistas Arshiley Gorky (1904-1948), Isamu
Noguchi (1904-1988), Alexander Calder (1898-1976), o galerista dedicado ao surrealismo
Julien Levy (1906-1981) e o crítico de arte, o grego, Nicolás Calas (1907-1988), figura chave
dentro do círculo surrealista nos Estados Unidos. Por fim, podemos afirmar que o artista no
momento que ilustra a obra de Glissant estava no auge de sua carreira, contrastando com o
autor pouco conhecido naquele momento.
Durante os anos em Cuba Lam tinha se correspondido frequentemente com André
Breton, que se manteve como um intermediário em New York. O papa do surrealismo ainda
incluiu em seu livro Le surréalisme et la peinture o qual foi publicado por Brentano em
194553. Esta publicação discute aspectos da última fase do movimento e inclui comentários
monográficos dos nomes que tinham se filiado ao surrealismo em um segundo momento,
entre os quais estava Lam54. Ele ainda faz exposições como a coletiva de 1953 na recém
fundada galeria L‟Etoile Scellé (A Estrela Selada), cuja direção artística foi designada a
próprio Breton. Participam da mostra além de Lam, os surrealistas de primeira e segunda
geração, Yves Tanguy (1900-1955), Max Ernst (1891-1976), Man Ray (1890-1976), Toyen
(1902-1980) e Wolfan Paalen (1905-1959). Uma vez que se tinha estabelecido em Paris
frequenta as reuniões junto a essa emblemática figura no café da Place Blanche 55, muito
embora ele considerasse que seu envolvimento com seu grupo surrealista carecia do
entusiasmo dos primeiros anos.
Depois Lam ficaria mais vinculado com a jovem geração de artistas, especificamente
com o grupo COBRA que via nele como um mentor artístico. Ainda que esses artistas
viessem da Bélgica, Holanda e Dinamarca eram críticos ao surrealismo do grupo de Breton,
cansados do francocentrismo eles se voltaram ao resto da Europa. Apesar das diferenças, eles
viram a Lam como compatível, sobretudo por trabalhar com os mesmos assuntos de sua
própria investigação que oferecia uma inversão das formas artísticas resgatadas das tradições
nacionais e como se demonstra ao longo desta pesquisa as regionais caribenhas. Lam era
especialmente próximo de Asger Jorn (1914-1973), com quem ele se encontrou em 1948
chegando a compartilhar o estúdio por um breve período em Albissola, Itália. Ele ainda
trabalhou com o grupo na confecção de um mural para o lyceum em Arhus, em Jutland,
52
Ver Wifredo Lam Cronologia. Disponível em www.wifredola.net. Acessado em 12/11/2020.
53
André Breton. Le surréalisme et la peinture. New York: Bretano‘s 1945
54
Figuram também nesta nova edição do livro Wolfang Paalen, Frida Kahlo, Enrico Donati, Roberto
Matta, e Arshile Gorky.
55
Wifredo Lam Cronologia (1950-1960) Disponível em www.wifredolam.net/es/cronologia/1951-
1962.html . Acessado em 05/10/2020
126
Dinamarca56 e sua obra foi incluída na última exibição de COBRA em 1951. A relação de
Lam com COBRA nunca foi dogmática ou sistemática, ainda que possamos ver seu nome em
diferentes aparições do grupo, como nos manifestos da década de cinquenta. Lam continuou
trabalhando nas suas obras seguindo sua própria pesquisa. No entanto estabelecerá fortes
vínculos com toda a constelação de artistas e promotores que lhe sucederam a estes.
Em 1951 é criado o grupo PHASES. Funda-se também uma revista com seu nome em
1954 cuja direção compartilha Édouard Jaguer (1924- 2006), figura chave deste grupo junto a
Anne Ethuin e Jean-Louis Bédoin. A palavra PHASES, advertia sobre a pluralidade de seus
participantes, que incluía escritores e artistas nucleados geralmente em revistas locais e de
menor alcance.57 Entre os artistas Lam se destaca trajando uma certa continuidade com
COBRA, com os movimentos de abstração gestual e o surrealismo. Este movimento, sem
manifesto nem teoria feita, tinha como palavra de ordem a frase tomada de Breton: ―Toda
licença em arte‖58. O programa de publicações e exposições, segundo seus idealizadores, seria
capaz de reunir novamente os elos perdidos das vanguardas de entre guerras. Esta empreitada
de Jaguer, tinha como objetivo refazer os contatos e ao mesmo tempo atender as pautas e
desafios dos diversos grupos de vanguardas afins disseminados em vários países. Já para Lam
essa incursão em PHASES o faz investir em ideais como a democratização da arte e na
expansão de sua obra a registros mais públicos, como a participação em revistas e a realização
de gravuras para álbuns e portfólios que pudessem circular com maior facilidade.
Nas duas décadas de grande desdobramento a alternativa de Jaguer (de 1952 a 1972),
alcançaram visibilidade uma série de artistas como o próprio Lam. Portanto quando ele faz as
ilustrações vai se favorecendo da passagem por esses movimentos onde eram recorrentes as
aproximações e reações ao surrealismo como acima descritas. Isso era comum num artista que
cronologicamente era visto como ponte entre a velha e a nova vanguarda. Contudo o contexto
do pós-guerra parece fornecer-lhe, como outrora o surrealismo, novas fórmulas que lhe
56
Ver Max Pol Fouchet, 1984 p. 219
57
Até o fim da década organizam-se com este mote exposições em Paris, Amsterdam, Bruxelas, Lima,
Buenos Aires, Montevideo, Varsóvia, Milão, Malmöe, (Suécia), dentre outras cidades. Lam participa das
exposições como parte do grupo da Suecia, Imaginist Grouppen. Suécia era a cidade que o artista frequentava
com assiduidade, muito em parte por interesses pessoais, já que tinha ficado noivo de Lou Laurin, e quem
depois, em 1960 se tornaria sua terceira esposa, uma jovem artista sueca, provinda de uma família de
intelectuais, e cujo avô tinha sido fundador do Museu de Estocolmo Estas relações interpessoais explicam todo o
envolvimento de Lam com o movimento nórdico que se completa, uma vez que o artista frequenta os altamente
credenciados gravuristas do Círculo de Amadores da Estampa, junto aos quais desenvolve séries autorais em
grande formato. Ver TONNEAU-RICKELYNCK, D; DRON, P. Wifredo Lam: oeuvre gravé et lithographié:
Catalogue Raisonné. Gravelines: Musée de Gravelines, 1993
58
Wifredo Lam Cronologia (1950-1960) Disponível em www.wifredolam.net/es/cronologia/1951-
1962.html . Acessado em 05/10/2020
127
permitem abraçar novas extensões da atividade plástica. O centro das operações de uma
vanguarda fervilhante e plural, com a qual envolve-se, oscila entre Paris e o povoado da Itália,
Albissola Mare. Este último um ponto de reunião da escultura e da cerâmica onde pulsavam
movimentos artísticos que professavam a interdisciplinaridade da arte como a Nova Bahaus
Imaginística e o Movimento Nucleare. Lam dedica seus esforços a descobrir novas
manifestações artísticas em consonância com o conturbado e fértil cenário artístico.
Contudo, vejamos alguns aspectos de sua pintura por esta época. Abundante em
superfícies ricas em marrons, cinzas e púrpuras frequentemente deixados em tonalidades
próximas, Lam pinta uma paisagem que alude a formas abertas-fechadas, as quais indicam
uma transição e uma maior soltura no domínio da linguagem plástica. As figuras são
incorporadas ao fundo, mas sua existência é indicada ou por seus contornos, ou por marcados
recortes aplicados sobre a superfície. Tomemos como exemplo a pintura de 1950, intitulada
Umbral, (fig. 54), tela com a qual em 1954 participa no Salão de Maio, evento do qual sempre
participa até o ano de seu falecimento em 1982. Nela as figuras se tornaram menos
biomórficas e mais abstratas.
Figura 54. Umbral. 1950. Óleo sobre tela 185 x 170 cm. Coleção Musée National d’Art moderne
Centre Georges Pompidou
As variações figurativas tornam-se cada vez mais complexas Raramente há uma linha
do horizonte para dar referência a número de elementos no interior e as formas parecem
128
sempre estar aí para ancorar-se tanto visual como estruturalmente. Esse tipo de atitude quanto
ao arranjo espacial da figura, onde cada elemento surge do forte contraste entre figura-fundo,
aparece em telas como aquela de sugestivo título: Quand je ne dor me pas, je rêve (Quando eu
não durmo, eu sonho), (fig. 55). Nesta tela há também uma dívida com a simplicidade do
desenho compositivo, e cujas figurações quase beiram com as amorfas, angulares, figuras de
procedência abstrata ou cubista. Já em Au commencement de la nuit [Bonjour monsieur Lam]
(No começo da noite [Olá, Sr. Lam]), 1959, (fig. 56) o tema do quadro parece ter sido
extraído das gravuras para La Terre e sua femme cheval alada.
Figura 55. Wifredo Lam. Quand je ne dor me pas, je rêve (Quando eu não durmo, eu sonho) 1955.
Óleo sobre tela 194 x 216 cm.
Importante é comentar aqui como de fato, a maioria das vezes, as obras desta época
sobre tela e com tinta a óleo, podem muito bem ser desenhos. Lam tinha o hábito de fazer um
desenho base de sua composição em carvão na tela antes de adicionar a pintura. Ao mesmo
tempo, essas superfícies pictóricas mais densamente aplicadas permitem que o esquema de
base apareça ou exista por conta própria como parte da composição final. Esse esforço
artístico de Lam na década de cinquenta visava a exploração da pintura como um apelo às
potencialidades da superfície. Este fenômeno é caracterizado por Max- Pol Fouchet quem há
dito que Lam possuìa uma ―elevada determinação plástica e uma caligrafia dotada de clareza
e dinamismo‖ (FOUCHET, 1984, p. 208, tradução nossa).
129
Figura 56. Wifredo Lam. Au commencement de la nuit [Bonjour monsieur Lam] (No começo da
noite,[Olá, Sr. Lam]), 1959. Óleo sobre papel montado, 75 x 151 cm (29 1/2 x 59 1/2 pol.)
Nas gravuras de Lam para La Terre também há uma incidência nos totens que
trabalhou paralelamente na pintura, como na obra Totem à lune (Totem à lua) (fig. 57). Há
com esta série uma reincidência na nos signos extraídos de seu repertório ou da escultura de
Oceania, ao tempo que faz alusões às viagens ao Cosmos realizadas graças aos avanços
científicos da época.
Figura 57. W. Lam Totem à la lune, 1955. Óleo sobre papel montado em tela. 254 x 67 cm e Lam
pintando a mesmas telas da série
130
Por outro lado, na pintura desta época prima a noção de um retorno à natureza como
estado natural, conceito que preocupava a segmentos da cena artística europeia do pós-guerra.
A inflexão da identidade nacional como reflexo desse retorno foi um dos fatores que acabou
predominando em suas abordagens e temáticas pictóricas. Essa característica atraiu artistas da
geração do pós-vanguardista na Europa para o trabalho de Lam. Conforme a década de 1950
avançou, a metáfora da paisagem caribenha em sua obra foi tomando um corpo, sugerimos
que foi partindo dessa mimese poética que sua obra tornou-se mais ambivalente e
internacionalizada. Uma referência imprescindível dessa paisagem caribenha que prevaleceu
em sua obra é a série La Brousse [La Manigua / La maleza/ mato] 1958 (fig. 58), na qual o
artista deixa imprecisa a fronteira entre o real e o abstrato. Esta série que se resume a várias
composições semelhantes executadas em 1958-1959, e demonstram uma ramificação do
vocabulário de Lam da década de 1950, no qual um elemento de especificidade geográfica é
retido.
Figura 58. Série La Brousse, 1958. Óleo sobre tela, 212 x 291 cm
Sugerimos aqui que há uma relação entres essa série e as gravuras dedicadas a La
Terre... tanto pela opção pela paisagem que se dissolve em multiplicação, como pelo destaque
concedido ao elemento vegetal que se instaura em profusão e repetição assim como ocorre na
série dedicada a Glissant. Por outro lado, as pinturas da série La Brousse podem certamente
ser situadas no contexto de vários modos de abstração gestual na Europa e nos Estados
Unidos da década de 1950. Achille Bonito Oliva apontou que a repetição de Lam do talo da
131
cana é comparável ao vocabulário caligráfico de Franz Kline nos Estados Unidos e Giuseppe
Capogrossi na Itália. (1986. p.117, tradução nossa). Embora este capítulo único na obra de
Lam tenha passado despercebido, seu envolvimento com a escala e o grau de abstração nessas
pinturas, indicam uma ambição pictórica voltada para esse novo parâmetro estilístico (a
abstração) sem precedentes em sua carreira. Lamentavelmente, seus esforços pioneiros para
ativar esse recurso seriam ofuscados pelos estilos mais característicos pelos quais ele se
tornara conhecido.
Resumindo, vejamos o que Lam expressa ao respeito das múltiplas correspondências
que confluem em sua pintura:
Minha pintura é produto de toda uma vida. As lembranças mais remotas que
me vêm à memória são aquelas de me ver extasiado diante da natureza e
suas mil variantes, e o que tem chamado ainda mais minha atenção tem sido
sempre as analogias da forma ainda as mais afastadas de si por sua condição
orgânica e física. Acho que meus quadros refletem essas preocupações, mas
agora fixados plasticamente os elementos anacrônicos e discordantes se
unem em um todo, em uma correspondência espacial e totêmica. Meus
desejos seriam que a pintura não fosse ficção senão a vida mesma para
transformá-la e recriá-la. (LAM apud. XIMENEZ, 1950, p.34)
Esse fascínio, como ele diz pelas correspondências espaciais e totêmicas, permite que
seja vista uma evolução em sua obra que não só transborda esse embate entre abstração e a
nova figuração, senão que ainda recria uma forte conexão entre sua obra pictórica e outras
manifestações às quais se dedicou, como a gravura, e a cerâmica. Sem dúvida sua obra estava,
como se viu anteriormente, permeada das redes de artistas e escritores que encontra nesse
momento especial de sua trajetória. Advertidos dessas relações, em especial a que é travada
com Glissant, corroboramos que essas gravuras estariam apoiadas no pensamento de rede e
anunciadoras do posterior conceito rizomático. No entanto se olharmos de perto a voz crítica
de Glissant, quando este ―inventaria‖ a obra de Lam como a sìntese perfeita do trópico, entre
a paisagem-país, ele alerta sobre quais são essas variáveis que permitem que vejamos tanto ao
artista como ao escritor comprometido com uma obra do enraizamento.
5.3. Outro entrelaçamento possível entre autor e artista: a voz crítica de Glissant e a
teoria da Antilhanidade
Sempre me pareceu que a arte Wifredo Lam estava vinculada com duplo
projeto: servir de referência e magnificar as formas primordiais que tinham
segregado uma realidade bem concreta, a de sua ilha natal, e ao próprio
tempo, sinalizar assim mesmo o passado cultural que estamos vivendo na
atualidade. Porque tendemos, segundo reza a afirmação rigorosa e áspera de
tantas estéticas até ontem menosprezadas, até uma participação de todos na
beleza multiplicada, total e inesperada. (GLISSANT, 2002, p. 493)
Nesta afirmativa estavam contidas as variáveis que para ele funcionavam para
interpretar como um todo a obra de Lam, como projeto de magnificar as formas primordiais
de sua ilha natal: A junção de ―ilha natal‖ e ―formas primordiais‖ indicavam esse teorema da
construção da memória. Quando fala em ―estética menosprezada‖ e de ―participação na beleza
multiplicada, total [...]‖ (GLISSANT, 2002, p.493) está se referindo a sua própria retórica da
história que deveria necessariamente ser (re) contada por esse outro, excluído dos cânones
ocidentais.
Ao traçar nesse mesmo texto correlatos de Lam na literatura, Glissant compara os dois
domìnios, o visual e verbal: ―Os antilhanos não só tinham conservado memória da fala: eram
também portadores da figuração do traço, da presença ocre de tantos espaços recompostos‖.
(GLISSANT, 2002, p.494, tradução nossa). Ao estabelecer esses paralelos entre Lam como
um porta-voz da figura e o traço, prossegue com o resumo do que ele chama ―inventário de
obra [de Lam]" que ele aproxima do que costumava chamar de ―delìrio verbal
consuetudinário‖, transponìvel à poética do artista: ―Por isso, a folha se converte em mulher
que tem um pássaro por coração. Quero dizer com isto que foi necessário surpreender a alma
desse inventário de formas e do que transparece quando a luz se evapora em oferenda.‖
(GLISSANT, 2002, p. 494, tradução nossa). Ao evocar ao artista, Glissant não se abstém de
133
mostrar a autenticidade que prevalecia em esse delírio e nessas obras que já prefiguram sem
dúvidas uma identidade rizomática. Glissant na sua leitura da obra de Lam vem a dar-nos um
exemplo de seu próprio credo que aboga por inventariar o real. Por recompor os espaços
identitários, e inventariar o que caracteriza o ser antilhano. Decantando os signos atávicos dos
signos abertos, esparsos, que tocam a ―inesperada relação mundial‖, Glissant amplifica a
maneira como o artista consegue juntar toda classe de memórias: ―memórias terrosas‖, e
aquelas que em um contraponto transmutam nas alturas: ―Lam, transmutador de altura,
preservou ali nossas memórias terrosas. Mas observe que fez disso a pura delícia de uma
oferenda de onde qualquer brisa, venha de onde venha, se deleita em nos alcançar.‖
(GLISSANT, 2002, p. 495, tradução nossa)
Sabemos que tanto na crítica destinada a Lam, como em grande parte de sua obra um
dos objetivos de trasfondo era definir as Antilhas em termos identitários. Uma tarefa que
emerge da magnânima obra do martiniquense como um projeto sempre inacabado, mas que se
espalha por quase toda sua obra ensaística e literária. De acordo com J. Michel Dash, ―Toda a
obra de Glissant pode se interpretar como um esforço por recuperar a especificidade
antilhana, da alteridade absoluta, generalizada, que parte de um discurso colonialista redutor e
anticolonialista essencialista‖. (DASH, 2010, p. 8, tradução nossa). Geograficamente, se
interroga, que são as Antilhas? No mar Caribe, são as ilhas que progridem formando uma
faixa a partir do norte da América do Sul até o México, sentido oeste (a costa) e a partir da
Venezuela até Cuba pelo Leste. Além das ilhas as terras litorâneas banhadas pelo mar do
Caribe, ainda em território continental, como Barranquilla e Cartagena das Índias, na
Colômbia, Veracruz, no México, por citar algumas. Somente esta indefinição de limites
poderia ser eficiente para abranger algo que não pode ser contornável, diria reiteradamente
Glissant, daì a necessidade de talhar esta tarefa com a medida da ―opacidade‖ necessária, isto
é, supondo que a realidade nunca será totalmente descoberta.
Tem sido oportuno voltar uma e outra vez às referências, os ingredientes deste
importante conceito da antilhanidade com o qual o autor se posiciona com relação a seus
predecessores, sobretudo a vanguarda poética francesa, e mais pontualmente ainda como
relação aos conterrâneos, como o poeta Aimé Césaire e ao pensador Franz Fanon. De este
último, Glissant coloca uma epígrafe no começo do livro Discurso Antillano: ―Tarefa colossal
a de inventariar o real. Acumulamos fatos, os comentamos, mas ante cada linha escrita, ante
cada proposição enunciada, temos uma impressão de insuficiência.‖ (FANON apud.
GLISSANT, 2010, p. 1, tradução nossa). Este inventário do ―real‖, segundo ele, é o único
134
válido. Daí que entrem no campo de pesquisa autores, artistas, anônimos, dedicados a apalpar
o que está à mão, tangível, línguas como o créole, referências amiúde sufocadas pelo
ostracismo. Como aquelas histórias sobre racismo, exilados, músicos de porte menor,
poderiam provocar rachaduras na História, escrita com maiúscula, a saber, ditada pela visão
Ocidental. Glissant aboga por uma visão da história múltipla, com fissuras: ―As histórias
perfuram a História‖ (GLISSANT, 2010, p. 416, tradução nossa).
É importante ver como se posiciona com respeito à vanguarda e ao surrealismo, e em
particular a Aimé Césaire. Glissant reconhecia que Césaire em seu Caderno de um Retorno ao
país natal havia interpretado este país (Martinica) como uma Polinésia acossada pela agonia.
Com muito, esta menção à Polinésia lhe parecia de um lado equiparar-se a Breton, que sempre
considerou o caráter primitivo dessas terras do Pacífico, como uma peça chave de seu
discurso. Quando Breton em sua construção do exótico encontra a Martinica ele a coloca
como uma espécie de substituto dessas outras ilhas e arquipélagos distantes. Assim mesmo,
Césaire e seus companheiros de Tropiques concordam em explorar a flora e a fauna exóticas
de Martinica tanto como possível assemelhada à flora imaginária e à fantasia surrealista. Já
para Glissant era necessário contradizer a metáfora porque descrevia o Caribe em função de
outro arquipélago e menosprezava a complexidade geográfica e histórica do antilhano.
Testemunhamos assim uma dualidade no conceito antilhanidade. O primeiro aspecto é
que ele surge da necessidade de uma especificidade. ―Nem francesas, nem africanas, nem
polinésias, são ilhas dentro do espaço arquipélago do Novo Mundo, não isoladas, senão partes
de um conjunto que constitui um sistema fluído geograficamente cimentado de relações
múltiplas.‖ (DASH, 2010, p. 8, tradução nossa). De outro lado a antilhanidade que convive
com a aspiração do real em pensamento rizomático desconfia das ideologias nacionalistas que
estereotipam e reduzem a heterogeneidade do espaço caribenho com atavismos e a reprodução
do primitivismo anquilosado. Sobre tal condição Glissant expressou:
As ilhas do Caribe, por utópica que possa parecer hoje tal afirmação,
constituem, não obstante, uma entidade no universo das Américas ameaçada
antes de sair à luz, cuja concepção se expressa nos intelectuais, e ainda não
foi assimilada pelos povos. (2010, p. 268, tradução nossa).
O imaginário das Antilhas, e a definição desse grande vácuo ao qual dedicou boa parte
de seu discurso, é uma das constantes do pensamento de Glissant. Até aqui vimos como este
imaginário se mimetiza ou se adverte na obra de Lam. Quais são os pontos de convergência e
qual a ponte entre a poética de um e a obra de outro. Para tanto, verificamos que a obra de
Lam aparece como referência no Discurso Antilhano, dando indícios da aproximação entre
ambos, mediante, novamente, da paisagem. É quando escreve sobre a natureza polissêmica da
136
realidade do novo mundo, realidade que se expressa na paisagem e principalmente na selva,
que Glissant recorre à obra de Lam como exemplo. A selva é uma zona de opacidade que
opõe resistência à nitidez. É particularmente esta zona opaca a que permite que o espaço
insular estabeleça relações com o arquipélago. Mais que a literatura, são a pintura e a
escultura as que manifestam a poética sobre a qual se debruça. Wifredo Lam e Roberto Matta
aparecem como pintores exemplares, por sua linguagem de multiplicidade do simbólico
espaço selvático de Glissant.
Nesta decantação da obra de Lam parecem estar contidas todas as características que
se vislumbram na obra de Lam na época. A paisagem, a natureza em síntese, parece ser a
soma de todo o real manifesto nas adjacências imagéticas que a compõem. A economia
máxima de elementos, os fundos adensados com cores terrosas, que não são senão, um espaço
recomposto para as ilhas entre as duas extremidades continentais. Reforçamos aqui essa
colocação de Glissant que supõe na obra de Lam uma ―dilatação‖, e uma ―pintura do
enraizamento‖, o que bem é transponìvel para uma estética, um desenho e uma gravura
também do enraizamento.
Por fim, no texto já mencionado que Glissant escreve a poucos meses da morte do
artista, quando por fim comenta a obra que o artista intitula La Reunión (A Reunião), (fig.
59), cujo interesse para ele radica em estar condensando signos do real: de um lado elementos,
formas, impulsos soberanos, e também o ‗glamour‘ da festa. Sob a ideia de que a obra de Lam
gravita nas pulsações de nossas identidades dos Trópicos ele assinala esta pintura como uma
―obra-antologia‖ cuja intenção é acumular signos, e conquistar (perfurar) profundidades.
Do mesmo modo que La Jungla é uma obra-manifesto, telas como La Reunión são
obras-antologias. Seu espaço não está perfurado de profundidades: sua intenção é acumular
signos. A partir deles, os dados do verdadeiro, as formas reabilitadas do universo negro
africano, se projetam em todas as direções e se logram, é dizer, se realizam, no inesperado da
enorme relação mundial. (GLISSANT, 2002, p. 494)
Glissant na sua leitura da obra de Lam vem a dar-nos um exemplo de seu próprio
credo, isto é, o de recompor os espaços identitários, e inventariar o que caracteriza o ser
antilhano. Faz ele mesmo uma interpretação da obra do artistas decantando aqueles signos
que tocam a "inesperada relação mundial". Nada mais oportuno que classificar as gravuras de
137
Lam para La Terre Inquiète como formações desse rizoma da cultura que ambos elogiaram
em seus diferentes registros como ecos dessa complexa antilhanidade.
Figura 59. W. Lam. La Reunión, 1945 óleo sobre papel montado sobre tela, 152 x 212 cm
138
6. O realismo mágico autóctone do Caribe e as ilustrações de Wifredo Lam
para El último viaje del Buque Fantasma (1976) de Gabriel García
Márquez
Em 1976 sai em Barcelona pelas Edições Polígrafa El último viaje del buque
fantasma, um conto de García Márquez publicado em edição de luxo. Adquire esse ar de livro
de bibliófilo (fig. 60), sobretudo ao ser ilustrado com doze litografias assinadas por Wifredo
Lam, acomodadas dentro deste álbum intermediando o texto. Tanto pelo grande formato,
como pelo tipo de acomodamento das litografias e do texto em folhas soltas, rememora aos
clássicos do gênero lançados nas primeiras décadas do século vinte pelos editores Ambroise
Vollard, Henry Kahnweiler e Albert Skira, responsáveis pelos mais famosos exemplares do
livro de artista do século vinte59.Seu porte atende não só os padrões dos volumes de coleção,
mas a um público ávido por possuir as gravuras que eventualmente poderiam desmembrar-se
do livro para serem emolduradas, como era habitual já entre os colecionadores de arte
moderna que tinham por foco a gravura.
Fonte: www.prazza.com
59
Ver por exemplo o caso de Matisse para Poesie de Mallarmé, o seu primeiro livro ilustrado, onde o
artista usa esta linguagem, do traço único transbordando a página, aproximando-se à próprio selo do autor, cujos
versos traziam uma visualidade de poético-visual, estabelecendo desde o simbolismo uma ruptura e um salto
dentro do cânon literário francês. Segundo a historiadora que exercerá como curadora da seção de gravuras do
MoMA, Riva Castelman, Ambroise Vollard, Henry Kahnweiler e mais tarde Albert Skira irão patrocinar na
França livros onde ―exitosas suìtes de lâminas eram adicionadas a exemplares especiais de livros‖. (1994, p.108,
tradução nossa)
139
Nesta série litográfica, Lam escolhe um registro sintético e gestual. Por esta época ele
tinha adquirido uma sólida reputação no meio gravurístico tanto em litografia como em metal.
A gravura, que ele por fim tinha conseguido dominar com excepcional desenvoltura, era
ativada com entusiasmo para a realização de inúmeros livros ilustrados, alguns como autor
único, outros em coautoria com artistas do movimento surrealista e do grupo PHASES.60 Este
domínio da técnica lhe permitiria já nos anos 1970 realizar uma série volumosa e bem
sucedida, como esta que aqui se estuda. Lam cria gravuras onde prima o desenho em
harmonia com pinceladas grossas da litografia. Algo, porém, que inquieta nessa série é que se
relaciona especialmente com os diagramas secretos Abakuá e com os veves haitianos. Uma
pesquisa aprofundada desta obra nos permitirá contrabalancear essas e outras escolhas de Lam
a partir de um exame interartístico.
A diferença de outros autores caribenhos aos quais Lam rendeu tributo partilhando um
livro ilustrado, García Márquez não tinha um envolvimento específico com o surrealismo. No
entanto, sua sensibilidade extrema e sua obra o fazem credor de uma das vertentes que surge
no continente americano em literatura como reação ao surrealismo histórico, a saber, o
―realismo mágico‖. El último viaje del buque fantasma, escrito dentro dessa vertente literária
é o escolhido por Lam para ilustrar. Sem dúvida esta eleição se deve muito à temática
garcíamarquiana que aborda uma das lendas caribenhas por excelência, a do navio fantasma61.
Contudo a conexão entre Lam e García Márquez se estabeleceu além desse dado, pelo fato de
que ambos provinham da mesma raiz sincrética onde se misturam de um lado, a herança
africana e chinesa, e de outro, com García Márquez, o gosto pelo sobrenatural, que aprende de
seus avôs galegos. Por outra parte, como se constata no decorrer deste capítulo, ambos, artista
e autor, também celebraram com esta empreitada a relação com a cultura espanhola em geral,
e catalã em particular.
Neste sentido um dado muito relevante para o presente estudo é o contexto em que
este livro é encomendado pela Gráfica Polígrafa na província Catalã, justo preparado em
1975, o ano que coincide com a morte de Franco, momento importantíssimo em que chega a
seu fim uma ditadura que assolou a Espanha por quarenta longos anos. O próprio Lam por
esse tempo seria convidado a residir novamente no país por cuja libertação tinha lutado ao
lado dos republicanos durante a Guerra Civil Espanhola de 1936. Mera coincidência?
Seguramente não é nada casual, o livro parece fruto dessa comemoração pelo fim da tirania.
60
Ver mais sobre este tema do envolvimento de Lam com o grupo PHASES no capítulo 5.
61
Essas lendas fazem parte da idiossincrasia do Caribe.
140
Lam irá expor em Barcelona neste ano de abertura, levando consigo uma bagagem não
apenas em pintura, mas também sobre suporte em papel. A mostra Wifredo Lam: olis,
aiguades i obra gravada (Wifredo Lam: óleos, guaches e obra gravada) é exibida em
novembro de 1976, na galeria, há poucos meses criada Galeria Joan Prats62(fig. 61, 62 e 63)
Nela expõe obras em pintura como, ―Sem tìtulo‖, 1975, (fig. 64).
Figura 61. Fotografia da Galeria Joan Prats durante a Exposição novembro-dezembro de 1976.
Fonte: www.pinterest.de
A galeria que desde então representava um dos mais importantes nichos comerciais
locais da cidade tinha uma forte empatia com a vocação experimental, a qual é indissociável
da arte catalã e sua anarquia endêmica e fervilhante. Por outro lado, esse espaço alavancou a
arte dos anos cinquenta na Catalunha, dita Informal. Esse movimento artístico, que tinha a
Antoni Tapiès (1923-2012) como um dos principais representantes, apelava para a arte
voltada ao processo e ao uso de técnicas como argila, e pigmentos minerais e o resgate do
62
Joan Prats organizou exposições para diversos artistas incluindo Salvador Dalí, Pablo Picasso,
Alexander Calder e Joan Miró. Entre 1932 e 1936 Prats funda junto com o arquiteto Josep Lluis Sert e o
fotógrafo de vanguarda Joaquim Gomis a ADLAN (Amics de L‘Art Nou) (Amigos da Arte Nova). Quando a
Galeria é criada em 1976, se cumpriam seis anos do falecimento de Prats, O nome da galeria é comemorativo
desta figura.
141
gesto artístico no sentido ancestral. Dentro dele incluem-se várias correntes como a pintura
matéria e a arte abstrata não geométrica. O Informalismo também estabelece um enlace com o
primitivo, com a pintura das cavernas que atrairia a atenção de Lam e artistas como o próprio
Tapiès e Joan Miró (1893-1983), também representados em respectivas mostras pela galeria63.
Esses artistas, assim como Lam, eram considerados os principais elos entre a vanguarda da
primeira metade do século vinte e do pós-guerra. É certamente este dado que atraiu Lam à
Galeria Prats.
Figura 62. Fotografia da Galeria Joan Prats durante a Exposição novembro-dezembro de 1976/
Figura 63. Poster da mesma exposição Wifredo Lam: olis, aiguades i obra gravada. Litografia
63
Ver PDF. Galeria Joans Prats, lista de exposições 1976-2019.
142
Madrid teve que esperar até 1936 pela exibição itinerante da obra de Picasso, para ver nas
salas expositivas os ―ismos‖ que tinham aparecido desde o começo do século: Fauvismo,
Cubismo, Expressionismo, Futurismo, como também a abstração e o Dadaísmo. Este último
movimento estava ativo em Barcelona no início da Primeira Guerra Mundial, centralizado ao
redor da revista 391, publicação dadaísta criada por Francis Picabia (1879-1953) com a
colaboração de Gleizes (1881-1953), Gabrielle Buffet, dentre outros. Foi em Barcelona
também onde o surrealismo ou ―suprarrealismo‖, como se empenhou em chamar-lhe o
excêntrico crítico de arte local Sebastià Gasch (1976, p.44), teve sua aparição nas pequenas
galerias comerciais. Foi neste contexto em que começaram a se dar a conhecer figuras como
Dalí e Lorca.
Figura 64. Wifredo Lam.Sem título, 1973. Óleo sobre tela, 25 x 35 cm. Obra Exposta na Galeria Joan
Prats (novembro-dezembro de 1976)
Ainda que estrangeiro, o próprio Lam guardava com gratidão esses anos vividos na
província catalã entre 1935-38. Sem esquecer que, como abordado no capítulo 2, Lam
considerava a Espanha seu país adotivo, e foi nesta região em particular onde se deu seu
recomeço como pintor moderno, graças ao convívio com a arte experimental emergente
durante a Guerra. Nessa época ele produziu a obra A Guerra Civil Espanhola, ca. 1936
(Coleção particular, Caracas), (fig. 65), a grande guache sobre papel (210 x 236), obra muito
143
pouco conhecida, porém de uma complexidade elevada, ―onde Lam redescobre e rememora a
gravura medieval sobre as danças da morte‖ (DAVID, 1992, p. 40). O episódio da guerra que
vivera na Catalunha não só tinha mudado por completo o rumo da história, senão que tinha
revelado a ele um divisor de águas, e novas parcerias com intelectuais das letras e da poesia.
A esta região Lam também deve a cumplicidade entre escritores e artistas plásticos que se
gestava em alguns cafés locais, como foi durante sua permanência nesta província espanhola,
frequentando o café de la Gran Via, que adquiriu uma atração mais prolífera e definitiva pela
poesia de vanguarda.
Figura 65. Wifredo Lam. A Guerra Civil Espanhola, 1937 Guache sobre papel 211 x 236
Por outro lado, não é menos relevante que o artista tivesse fomentado a admiração de
um grupo de colecionadores locais apresentados durante os anos trinta por seu amigo Manolo
Hugué. De fato, deste grupo Lam não só receberia a encomenda da já mencionada obra La
Guerra Civil Espanhola (fig. 65) que resultou na obra com a qual integraria o pavilhão da
Catalunha na Exposição Universal em Paris, 1937, onde expôs ao lado de artistas tão caros
como Julio González. De certa forma todo o antedito circunda a intenção de reunir mediante a
luxuosa edição dois emblemas como Lam e Gabriel García Márquez. Já na altura dos setenta
144
os colecionadores de Barcelona e suas instituições artísticas os reconheceram a ambos pela
consagração crítica que receberam.
Outro dado importante para contextualizar esta dupla realização Lam/ García Márquez
é que a editora Polígrafa, além este livro de edição limitada, simultaneamente edita e lança em
grande escala a monografia Wifredo Lam, 1976, escrita pelo afamado tratadista francês Max
Pol Fouchet. O livro era o resultado de uma extensa investigação que visava sobretudo
catalogar a obra de Lam que a essa altura se encontrava espalhada em coleções nos quatro
cantos do mundo e ainda registrar alguns dos mais valiosos depoimentos de Lam 64. Assim
também sai pela mesma editora esse ano o ensaio em formato trilíngue (espanhol, catalã e
francês) Wifredo Lam a Paris do já mencionado crítico de arte catalão Sebastià Gasch. Isto
prova que o livro de Lam/ García Márquez nasceu de um conjunto de ações comemorativas
tanto pelo fim da ditadura como da presença deste artista cubano em solo catalã.
Ao abordar a posição crítica sobre a obra de Lam, neste período, consideramos que de
modo geral críticos e historiadores da arte têm se mostrado menos entusiasmados com a
pintura tardia de Lam. Em troca as suas séries de gravura dos anos setenta são das mais
aclamadas em exposições. Isso se deve a alguns fatores. Se as pinturas desta época se tornam
mais esquemáticas e simples, onde a maior parte das figuras são literalmente desenhadas em
contorno preto depois trabalhadas com cores de preenchimento, a gravura torna-se mais coesa
e expressiva. A explicação para esse fenômeno é que Lam se encontrava por esta época
passando por uma nova ―regeneração artìstica‖, onde a composição tende a valorizar a linha.
Por outro lado, desde final de 1960 Lam tornou-se cada vez mais preocupado com o trabalho
gráfico. Mesmo colaborando com vários gravadores e impressores, foi provavelmente mais
sua associação com o estúdio Grafica Uno de Giorgio Upiglio em Milão, que resultou no
mais completo florescimento dele como gravador publicadas nas obras como as produzidas
em parceria com o poeta romeno Ghérasim Luca (1913-1994), em 1966, Apostrophs
Apocalypse, e a série Oiseaux Cannibales (Pássaros Canibales, 1969), por só citar alguns
exemplos. No entanto, Upiglio, quem lhe fora muito próximo nessa atividade à época, adverte
que a gravura foi um recurso solícito e que ia amadurecendo para Lam, a medida que
dominava técnica para tornar o processo mais gratificante possível para o artista65. Isso deve
ter sido importante porque, como observou Stanley Hayter, ─ em cujo ateliê Lam
64
O livro contém 163 ilustrações a cor e 14 em preto e branco. Ver FOUCHET, M. Wifredo Lam.
Barcelona. Ed Polígrafa, 1976.
65
Ver Giorgio Upiglio em conversação com Lowery Stokes Sims. Setembro de 1989 apud STOKES
SIMS, L. 1992, p.51
145
experimentara a litografia pela primeira vez em 1951 em Nova York durante a Segunda
Guerra Mundial ─ Lam era ser muito exigente e meticuloso com sua gravura, muitas vezes
recusando-se a fazer impressões de composições que ele achava que não eram bem-sucedidas
em seu desenho66. Perante todas essas exigências e pelo rumo que foi tomando seu trabalho
desde meados da década de 1960, concordamos com Lowery Stokes Sims quando aponta de
um lado que esse interesse pelo desenho e pela gravura foi gradativamente fazendo com que
Lam fosse deixando em um segundo plano a pintura, e de outro, que uma manifestação
irrigava a outra:
Este trabalho com ênfase no desenho, teve uma relação contínua e interativa
com a pintura de Lam. Se é verdade, como afirma Upiglio, que o Lam 1960
estava perdendo o interesse em sua pintura, é claramente por meio de sua
obra gráfica que ele encontrou uma maneira de revitalizar sua abordagem da
pintura. (1992, p.51, tradução nossa)
De fato, após uma revisão de sua obra em gravura, percebemos que esta vai tomando
cada vez mais espaço e nos aproxima da ideia de que Lam via comumente a atividade gráfica
como um meio rico e de exploração. Que ainda lhe permitia realizar o tão procurado desejo de
ilustrar os poetas e autores com os quais ele se identificava de um modo especial. Anteriores a
esta série dedicada a García Márquez datam da década de 1970 as que realiza para ilustrar no
inicio da década com uma litografia El Círculo de piedra (O Círculo de pedra), do cubano
Carlos Franqui (1921-2010), uma coleção de quinze poemas também ilustrada por Erro, Jorn,
Miró, Pignon, Rebeyrolle, Tapiès, Vedova, Calder e Camacho. Em seguida ilustrou o
Croisseur noir (Cruzeiro negro) de Pieyre de Mandiargues (1909-1991), em 1971. Lhe dedica
uma gravura à obra do poeta haitiano Clément Magloire de Sainte Aude (1912-1971),
Dialogues de mes lampes (O diálogo de minhas lâmpadas), 1972, edição póstuma da
antologia do poeta surrealista, que contou com uma ilustração apenas assinada por Lam,
sendo as duas restantes encomendadas a Herve Télémaque e Jorge Camacho. Ainda em 1973
faz o frontispício para o poeta espanhol José Herrera Petere (1909-1977) de sua obra El
Incendio (O Incêndio) e no mesmo ano realiza seis litografias para os poemas de Dominique
Agori, Le regard vertical (O olhar vertical). Em 1975 ilustra a capa e faz sete litografias
coloridas hors-texte para portfólio Orsa Maggiore da poeta egípcia Joyce Mansour (1928-
1986), livro que incluía o poema Pandémonium (Pandemonium) dedicado a Wifredo Lam.
Ainda ilustra de René Char (1907-1988) o extenso poema Contre une Maison Séche (Contra
66
Este depoimento foi dado por Stanley Hyter em entrevista com Lowery Stokes Sims em novembro de
1985. Ver STOKES SIMS, 1992, p51
146
uma Casa Seca) em 1975 onde a suíte de gravuras precede o texto, reverenciando o caráter
único de seu traço. Este trabalho é de todos um dos que mais mereceram o elogio da crítica, e
uma das mais contempladas em exposições.
Lam também descobriu a cerâmica no início da década 1960, a qual retomou com
força em meados do decênio seguinte, quando produziu umas quinhentas peças como Vase II
e Abakuá, (fig. 66 e 67). Segundo o depoimento de Lam narrado no livro de Fouchet (1984,
p.37) ―[o que mais o cativava da cerâmica] era seu caráter espontâneo de ìndole surrealista‖.
Assim ficou motivado pela duração e intensidade da cocção, das reações de cores e das
mutações. Esta extensa produção de Lam em cerâmica ganhou uma mostra no Museu de
Cerâmica de Albisola, e foi dedicada aos artesãos do povoado com quem Lam conversava em
suas horas vagas. Como bem resume Fouchet, (1984, p. 37):
Em vários momentos, esses diferentes meios parecem ter cativado seu interesse mais
do que a pintura. Na obra gráfica, assim como na cerâmica e na escultura, Lam ampliou esse
vocabulário alcançando um desenvolvimento paralelo que assumiu um curso lógico próprio
ao longo do tempo. Ele de fato levou a cerâmica mais a sério quando trabalhou junto ao
ceramista Giovanni Poggi, em 1975, quando produziu centenas de peças. Às vezes ele não
dormia à noite, antecipando ansiosamente quais seriam os resultados de seus esforços. Esses
resultados eram considerados satisfatórios quando atingiam uma boa composição e um traço
linear preciso, como ocorria com o resto do seu trabalho artístico.
Durante os anos 1960 e 1970, as obras de Lam não só em pintura e cerâmica, mas em
suporte gráfico, foram cada vez mais expostas. Entre as mais importantes podemos citar as
exposições na Biblioteca Nacional de Havana (1963, gráficos); o Museo de Bellas Artes de
Caracas (1964, gravuras), o Centre de Recherches Latinoamericaines, Université de Poitiers,
França (1971 desenhos e gravuras); e outras mostras em galerias menores na França, Itália e
Espanha. Duas publicações importantes de desenho saíram em 1965 e 1975 - Wifredo Lam
Dessins, prefácio de Yvon Tailandier (Edições Denoël, Paris) e de Philippe Soupault, Wifredo
Lam ─ Dessins (edições Galilée-Dutrou, Paris), respectivamente.
147
Figura 66. W. Lam. Vase II, 1975. Terracota, altura: 50 cm x diâmetro, 28 cm / Figura 67. W. Lam.
Abakuá I, 1975. Diâmetro: 50 cm.
Fonte: www.wifredolam.net
El último viaje del buque fantasma (1976) é um conto de García Márquez menos
conhecido e menos comentado pela crítica talvez pelas mesmas condições com que saiu à luz
sua publicação. Curiosamente escrito, como afirma um dos biógrafos do escritor colombiano,
depois de ter o privilégio que desencadeia a sua consagração como autor best-seller67 Cem
Anos de Solidão (1969). García Márquez, para contradizer esse clima de sucesso, regressa a
Barcelona para simplesmente se dedicar à escrita. Justo aí é quando escreve este conto El
último viaje del Buque fantasma no ano 1971, inspirado pelo périplo que entre os primeiros
meses do ano tinha realizado por Barranquilla, Colômbia, México e a viagem de observação
pelas Antilhas Menores, Guiana, Suriname, Paramaribo, para ambientar o próximo romance,
O Otono do Patriarca68. Nesta obra o Caribe é mais fácil de definir desde uma combinação de
elementos históricos que se tem misturado para formar um crisol étnico-social
verdadeiramente único. Lam era o artista idôneo para fazer um paralelo desse texto com
imagens.
67
A notoriedade mundial de García Márquez começou quando Cem Anos de Solidão foi publicado em
junho de 1967 e em uma semana ele vendeu 8.000 cópias. Posteriormente, o sucesso foi garantido e o romance
vendia uma nova edição a cada semana, vendendo meio milhão de cópias em três anos. Foi traduzido para mais
de vinte e cinco idiomas e ganhou seis prêmios internacionais. O sucesso finalmente chegou e o escritor tinha
quarenta anos quando o mundo aprendeu seu nome. Ver MARTIN, 2009, p. 11)
68
Tres cuentos que te ayudarán a entender El Otoño del Patriarca, publicado em 06/07/2018.
Disponível em https://centrogabo.org/gabo/contemos-gabo/tres-cuentos-de-garcia-marquez-que-te-ayudaran-
leer-el-otono-del-patriarca. Acessado em 21/12/2020
148
Aliás se por um lado García Márquez se deixou influenciar pelo ambiente do Caribe
que tinha vivido tão intimamente durante toda sua juventude, por outro lado esse espírito
também é captado por Lam em suas gravuras, onde predomina um fascínio pelo sobrenatural,
próprio desta região69. Ao tratar García Márquez somos subjugados por uma realidade insular,
e os ambientes das cidades à beira mar que proliferaram nos diversos enclaves antilhanos,
pode dizer-se que ambos interpelam em seus respectivos meios, visual e verbal, os traços de
sua cultura mestiça. Sendo assim, esses elementos permitem avaliar esta obra Lam-García
Márquez inter-artisticamente, pelo fato que ambos compartilham um interesse marcado pelo
universo regional caribenho.
Trabalhado desde a nomenclatura que alterna realismo com elementos do sobrenatural,
o conto El Buque fantasma apresenta como trama central um homem que a cada ano, na
mesma data, tem a visão de um navio fantasma na baía do povoado costeiro. Quando
abordamos a obra literária somos partícipes dessa prosa em ziguezague entre sua dose de
pragmatismo e de magia, típica garciamarquiana. As gravuras de Lam acompanham essa
narrativa peculiar.
As amplas variações do jogo linear na obra gráfica de Lam dedicada a García Márquez
conferem-lhe uma qualidade especial que lhe permite equiparar-se à narrativa. Na série o
artista procede, grosso modo, com o desenho preto de contorno preenchido por cor vermelha,
como visto na capa. Este desenho de traço preto e graúdo remete comumente a uma escrita ou
um pictograma. Uma vez que o elemento desenho era primordial para o processo gráfico, foi
necessário encontrar meios para permitir a Lam alcançar a qualidade fluida que pode ser
observada nesta série.
A facilidade com que as linhas atravessam, invertem e recortam o espaço é distintiva.
Estas são as marcas de um movimento que emana do braço distinto daquele do pulso. Os
vários recursos usados aqui desafiaram o compromisso de Lam com o desenho levado à
gravura, seu compromisso com essa sua linha característica, que se impunha sobre a
superfície e independentemente do meio. Todo um campo semântico se infere desta linha. O
desenho em si torna-se um gesto.
Lam tinha desenvolvido desde os anos sessenta na gravura uma técnica que lhe
permitia usar o pincel. O artista aplicava uma potente camada de verniz que era trabalhada
com o ácido, dando lugar a uma participação do espírito da pintura: solta, fluida, a traços
69
Vale aclarar, que esta região não se limita às Antilhas, senão que também inclui aqueles povos
costeiros da América Continental, como Barranquilla, na Colômbia, onde o escritor transcorre parte de sua
infância, e onde portanto se tece seu rico imaginário.
149
únicos. Contrariamente à tradição, ele trabalha no pincel encharcado com o solvente para
desenhar suas formas sobre a pedra70. Ao referir o bem-sucedido trabalho gráfico com este
método, os autores como Dominique Tonneau- Ryckelynck e Pascaline Dron remarcam que
há aqui como um entrelaçamento entre a gravura e a pintura. Isto cabe perfeitamente às
gravuras dedicadas a Márquez, onde Lam alcança sem dúvida um resultado completamente
livre e flexível, motivo pelo qual este trabalho seja considerado uma das melhores séries
litográficas de Lam:
Vemos como esse elemento poderia ser ajustado com outra característica que sobressai
na obra literária que é que o conto escrito sem ponto e seguindo, ou seja, a narrativa é
concebida como um parágrafo único. Esta fórmula de escrita persuade ao leitor que o relato
subsequente transcorre como uma passagem fugaz, uma concatenação de elementos que
brotam da memória e desembocam por fim no texto sem interrupções. Este recurso estilístico
de carecer de ponto e seguido sinaliza um método semelhante, ainda que diferenciado do
automatismo apregoado pelo surrealismo. Se este era um deixar-se fluir, aquele que García
Márquez mobiliza está em função do tema do conto, um tema preciso, ainda que com
múltiplos devaneios. Diferentemente daquela que propõe o automatismo original, aqui a
produção literária é um mecanismo consciente e não ao contrário.
Figura 68. Páginas do Livro El Buque Fantasma. Lam/ García Márquez, 1976
Fonte: www.prazza.com
70
Ver. Tonneau-Ryckelynck and Dron. Lam: Oeuvre gravé et Lithographie, Catalogue raisonné.
Gravelines: Edition du Musée de Gravelines, 1993.
150
A proposta daqueles escritores americanos vinculados ao ―realismo mágico‖, como
García Márquez, tinha raízes em outras fontes e outras fórmulas completamente distintas às
do surrealismo. O movimento literário é assim definido por Uslar Pietri: como uma literatura
que se pauta na realidade que era em si mesma por sua mestiçagem, ―alucinatória‖,
―inusitada‖ e até então desdenhada ou ignorada, e que tendia ao ―realismo mágico‖. Pietri
assim define esse importante conceito:
E essa realidade tão estranha para as categorias europeias que havia criado o
novo mundo tão novo em tantas coisas, a fecunda profunda convivência das
três culturas originais em um processo de mistura sem término, que não
podia ajustar-se a nenhum patrão recebido. Não era um jogo da imaginação
senão um realismo que refletia finalmente uma realidade até então não vista,
contraditória e rica em peculiaridades e deformações, que a faziam inusitada
e surpreendente para as categorias da literatura tradicional (USLAR PIETRI,
1949, p.3).
151
todo o tempo no poder do personagem principal. E com um só gesto se nos faz credível graças
às memórias que sobrevivem até hoje no Caribe.
Por outro lado, uma das qualidades mais sobressalentes do livro de Lam e García
Márquez é a quantidade de gravuras litográficas para ambientar o conto. Absorto pela prosa
ficcional, ele se viu incentivado a tratar um mundo caribenho, composto de magia no sentido
do inabitual e o estranho. Para a análise detalhada das ilustrações, as quais são numeradas em
romano da I-XII, achamos propício fazer um agrupamentos em três subconjuntos para nortear
os distintos momentos narrativos, a saber: a) apresentação dos personagens (revelação, e
conflito do homem que testemunha a aparição do buque fantasma diante da descrença); b)
momento da virada, quando vai em busca do navio para desviar seu curso de alto mar até
beira-mar (momento heroico, revolta, a condução do grande navio a sua "viagem última"
quando chega à vista de todos); c) a chegada do grande navio de ferro em plena luz do dia à
praia (navio imaginário, fragmentos, fusões, agitação dos comerciantes e outros componentes
desse povoado típico da região costeira).
Leve-se em consideração como Lam ativa desde o ponto de vista técnico recursos que
lhe permitissem atingir a qualidade lírica fluida, para mimetizar a prosa fluída de García
Márquez. Vemos na série dedicada a ele uma ênfase nestes gestos de verter a tinta sobre o
suporte como se tratando de um gesto primitivo, ou primigênio. Isto que caracteriza a
linguagem da série se enleva como uma reverência à alma artística catalã Informalista, que ele
homenageia. Esta vocação está em perfeita sintonia com a devoção ao gesto dentro da arte de
pós-guerra. Vale lembrar que em meados da década de setenta, paralelamente à realização
destas gravuras, o artista estava cada vez mais seduzido pelo discurso da "liberdade criadora".
Nesta que pode chamar-se sua definitiva imersão no processo, afloram junto com a vocação
adormecida que de súbito recupera, a ontologia do fazer artístico e o próprio gesto. Assim este
deflagrador de sua obra, ecoa como se verá a seguir, nos registros empregados na série.
A lâmina I, (fig. 69) repete a imagem da capa. Essa gravura já prenuncia o registro das
restantes onze ilustrações desta suíte litográfica. O registro escolhido comporta uma figura
onde se impõe uma linha preta firme, mas não totalmente sólida. Uma linha mostrando-nos
propositalmente as imperfeições do traço e o gesto do desenho que também se combinam
nesta série. A linha parece gritar sua dívida com os indícios de um signo original que emerge
dos fundos ancestrais.
Outro aspecto que salta à vista na imagem da capa e que surpreende, é o uso dessa
figura tipicamente lamiana, que mistura a figura humana (tanto homme cheval como femme
152
cheval). Esse rosto constituído com as insígnias de uma máscara africana da qual saem formas
como arabescos e formas dependuradas como badalos. Rememorar seu homme cheval
"mascarado" não é senão uma alusão a essas entidades espirituais que abundam
especificamente no contexto das religiões africanas e nas crenças do Caribe. Este elemento
propicia conectar o leitor com o aspecto simbiótico que subsiste no tema do conto carregado
desses signos autóctones.
Figura 69. Wifredo Lam. Lâmina I das ilustrações da obra El buque fantasma, 1976
As restantes imagens nos transmitem em seu conjunto uma mensagem ágrafa, onde a
figura oscila às vezes com os esquemas característica a dos veves haitianos (fig. 70).
Entretanto, em todo processo de obra aberta encontramos um ponto de partida fixo, um estalo.
Aqui esse estalo é a própria linha do desenho da qual se derivam os grafos, os esquemas
rituais, a mensagem, de um primitivo ritual. No entanto, é fato que a cor como foi empregada
nesta série dá um acabamento mais pictórico, distendendo os limites do próprio meio
gravurístivo.
153
Figura 70. Representações de veves haitianos
Fonte: www.pinterest.com
Diante desse fluxo de imagens que devem ser folheadas dentro do álbum, procedemos
a uma espécie de leitura visual. Por isso propomos aqui, como já se disse, as obras separadas
em três subconjuntos. No primeiro dos subconjuntos dedicado à apresentação dos
personagens, a segunda lâmina (fig. 71), recria o ânimo do protagonista da história, de traços
africanos, de cabeça em losango, e cujas extremidades inferiores em múltiplas projeções
parecem estar em posição de "avançar". Um avançar que, longe de aludir a aspectos realistas,
sugere uma ação hiperbólica. Por outro lado, dotado de uma auréola laranja, com a qual se dá
o carácter de ímpeto inflamado do jovem que teve esta mágica aparição. A cor se introduz em
cada grafismo com um recheio vívido.
A terceira imagem, (fig. 72), mais hierática e enxuta, parece tratar-se propriamente de
uma testemunha. Aqui aparece a figura feme-cheval de perfil. Quer que seja esta presença da
personagem recorrente nas obras tardias de Lam, quer que seja uma divindade, ou uma figura
humana mascarada, com os seios cônicos ela recria um elemento misto e de alta tensão. O
fundo, que é quase imperceptível, a não ser pelas imperfeições do entintado, flutua como um
vasto campo onde se encena o desenho em preto.
Por fim, na quarta imagem deste conjunto (fig. 73) se produz uma fusão entre o rosto
mascarado já transformado do qual se desprende um vetor. Podemos dizer que ela guarda
relação com o relâmpago, que tanto reitera o artista em suas obras. "Fique claro que não
representa o relâmpago, senão que utiliza seu magnetismo, sua decisão elétrica [...]"
(FOUCHET, 1984, p.34, tradução nossa). Esta quarta figura volta a pôr a nota sobre o
irracional, e sobre o aspecto mágico do relato.
154
Figura 71. Wifredo Lam. Lâmina II e Figura: 72. Lâmina III das ilustrações da obra El buque fantasma,
1976
Figura 73. Wifredo Lam. Lâmina IV das ilustrações da obra El buque fantasma, 1976.
155
[...] sobre todo al día siguiente, cuando vio el acuario radiante de la bahía, el
desorden de colores de las barracas de los negros en las colinas del puerto,
las goletas de los contrabandistas de las Guayanas recibiendo su cargamento
de loros inocentes con el buche lleno de diamantes, pensó, me dormí
contando las estrellas y soñé con ese barco enorme, claro, quedó no se lo
contó a nadie ni volvió a acordarse de la visión hasta la misma noche del
marzo siguiente, cuando andaba buscando celajes de delfines en el mar y lo
que encontró fue el trasatlántico ilusorio, sombrío, intermitente, con el
mismo destino equivocado de la primera vez [...] (GARCÍA MÁRQUEZ,
1976, p.1)71
Por fim, no ano seguinte à véspera das aparições, o personagem dos incontáveis
desvarios sobre o navio fantasma rouba um pequeno bote para esperar sua chegada, desta vez,
em mar adentro. De novo o conto intercala fragmentos da realidade costeira, onde se respirava
o ambiente de um porto de antanho: ―um porto negreiro com seu caldo de gentes do Caribe‖,
com suas ―tendas indianas‖, seus ―chineses de marfim talhado‖, ―com negros holandeses de
bicicletas com rodinhas ortopédicos‖ e seus ―malaios de pele de cobra que tinham dado a
volta ao mundo‖. E enquanto remava seu bote roubado, viu aparecer novamente o navio com
seu silêncio, ―seu ar morto‖, ―seu céu vazio‖, ―seu tempo parado‖. Este momento do conto se
corresponde com o segundo subconjunto o qual denota uma mudança na progressão narrativa.
A lâmina V (fig.74) representa uma espécie de totem vertical, semelhante aos totens
realizados em décadas de 1950 dedicados à lua. Aqui, no entanto, nos sugere a presença de
um farol iluminando a baía. Na seguinte imagem deste segundo subconjunto, (fig. 75) tratada
com simples traços lineares, visualizamos uma embarcação diminuta sendo conduzida por
uma figura proporcionalmente pequena. Ambas esquematizadas conforme os símbolos veves
haitianos, onde a seta pode ser traduzida como bote, ou vice-versa. A seta, ou flecha
acentuada, é enquanto símbolo aberto um sinônimo de ação ―ir‖ ―proceder‖, ―percorrer o
trajeto‖. Trajeto que se supõe nos leve até a personagem já preparada para seu propósito de
desviar o grande buque até a baía.
Na lâmina VII (fig. 76) vemos a mesma figura de traços humanos, mas desta vez com
a cabeça aparecendo por cima do próprio totem. Acaso enfrenta assim a própria clarividência?
Por fim a lâmina VIII, (fig. 77), última deste conjunto, mostra em iguais signos esquemáticos
uma espécie de navio com pluralidade de figuras sobre a proa. Na verdade, não há como não a
associar à própria ideia do navio sendo conduzido pelos fantasmas ou pequenos espíritos, que
71
[...] especialmente no dia seguinte, quando viu o aquário radiante da baía, as cores das barracas dos
negros nas colinas do porto, os barcos dos contrabandistas da Guiana recebendo sua carga de papagaios
inocentes com a goela cheia de diamantes, ele pensou, adormeci contando as estrelas e sonhei com aquele
enorme navio [...] é claro, ele não contou a ninguém nem se lembrou da visão novamente até a noite de março
seguinte, [...] foi o transatlântico ilusório, sombrio e intermitente com o mesmo destino errado da primeira vez
[...]
156
o artista deixa mais esquemáticos em seu acabamento. O barco fantasma, no entanto no conto
é descrito com dimensões colossais, que supera vinte vezes a torre e é sete vezes mais
comprido que o povoado, com esta hipérbole mobiliza o exagero e a desmesura das narrativas
tìpicas do Caribe. Muito mais se prosseguido da frase, ―com o nome estampado com letras de
ferro, halalcsillag.‖ Em uma entrevista em março de 1981 à Gazeta da Cultura, García
Márquez afirmou que o nome do navio fantasma é uma palavra húngara que significa ―estrela
da morte‖. O escritor acrescentou que havia escolhido esse idioma porque vinha de uma
região sem litoral72.
Figura 74. Wifredo Lam. Lâmina V / Figura 75. VI das ilustrações da obra El buque fantasma, 1976
72
Tres cuentos que te ayudarán a entender El Otoño del Patriarca, publicado em 06/07/2018.
Disponível em: https://centrogabo.org/gabo/contemos-gabo/tres-cuentos-de-garcia-marquez-que-te-ayudaran-
leer-el-otono-del-patriarca. Acessado em 21/12/2020
73
[...] lo sacó del canal invisible y se lo llevó de cabestro como si fuera un cordero de mar hacia las
luces del pueblo dormido, un barco vivo e invulnerable [...] (GARCÍA MARQUEZ, 1976, p.4)
157
com a consumação do desejo: a chegada triunfal do navio fantasma à vista de todos, no porto
da baía.
Figura 76. Wifredo Lam. Lâmina VII / Figura 77. VIII das ilustrações da obra El buque fantasma, 1976
O artista usa um recurso muito mais abstrato, que é a repetição de uma imagem
quadriforme, (fig. 78). Quadrado que nas duas seguintes lâminas (fig. 79 e 80) vai se
dissolvendo. Esta imagem primeira, mais estática e sólida, parece aludir ao navio qual bloco
de metal que encalha na areia. As setas que dele se desprendem são como âncoras que de
algum modo o fixam, e o fazem se deter. Isto parece, seguindo a lógica da tradução desta
narrativa verbal e visual até aqui empregada, indicar-nos como nos veves haitianos: "a ação
foi concluída".
Na lâmina X (fig. 79) de um plano mórbido, de corpos cadavéricos se desprende outro
eletrificado, e em ambos se percebe um movimento que ativa o traço caligráfico que vem pôr
fim a esta cena. A outra imagem, lâmina XI, (fig. 80) deste conjunto apresenta traços onde as
linhas pretas, são completadas com o splash em vermelho que transbordam o contorno e
funcionam para dar esse efeito de osmose.
158
Figura 78. Wifredo Lam. Lâmina IX das ilustrações da obra El buque fantasma, 1976
Figura 79. Wifredo Lam. Lâmina X das ilustrações da obra El buque fantasma, 1976
Figura 80. Wifredo Lam. Lâmina XI das ilustrações da obra El buque fantasma, 1976
159
Fonte: Catálogo Lam: Gravuras, CAIXA Cultural, 2009
As linhas mais retas que se curvam depois parecem remeter-nos a uma espécie de
escrita ritual. Enquanto as figuras cornudas se multiplicam. Aqueles signos que se devem a
um enigmático universo ideográfico, guardam um paralelo com as características de
amontoamento com que o autor descreve a baía, com seus comerciantes, seu caótico
desempenho diurno, e próprio de um povoado marítimo no Caribe. Essa alternância
inteligente que vêm por momento a calibrar as fulgurações da magia, que também desaparece
de pronto para mostrar a miséria e o descalabro dos portos negreiros, essas reminiscências de
passado, presente e futuro são as que conformam a idiossincrasia caribenha. Essas estruturas
literárias do realismo mágico colocadas em prática são as que melhor ecoam numa imagem
também viva e pulsante. A economia do traçado, onde se produz a surpresa súbita que se
apresenta a olho nu, lhe corresponde.
Por fim, a última estampa, a XII (fig. 81) nos devolve com uma síntese modelada uma
certa equanimidade. Trata-se de um triunfo? Ou do Eiye ororo, o pássaro na cabeça da
iluminação segundo as cosmogonias afro-cubanas. Eis a fusão, eis a memória de todas aquelas
grafias que em infinitas permutações lineares se revelam como um discurso que se reveste de
conclusão. Todas essas pulsações, áreas, flamejantes, narradas conformam uma unidade.
Hierática e multiforme essa figura final transmite uma ideia triunfante. Dela se desprende um
círculo circundado de rendas ao gosto dos esquemas rituais haitianos fixados nos veves.
Enigmático seu traço com a seta aponta a chegada ao fim da própria página.
160
Figura 81. Wifredo Lam. Lâmina XII das ilustrações da obra El buque fantasma, 1976
A modo de conclusão, o livro aqui estudado revela em grande medida como Lam
estava acoplado com grandes nomes da literatura caribenha. Revela como desde as produções
da década de quarenta ele soube dar continuidade, incluso desde a gravura e os livros
ilustrados, ao magnânimo projeto de considerar sua obra como cerceadora da realidade
antilhana e para além de sua identidade cubana. Também este estudo continua a dar indícios
de que as diversas manifestações artísticas (como a gravura e a cerâmica) enriqueceram
sobremaneira seu trabalho nas últimas décadas. Também descortina o esforço de Lam por
captar a arte em seu estado mais tábula rasa que o levaram a produzir trabalhos como este,
onde qualquer olho treinado nas artes pictóricas da pré-história poderia traçar paralelos,
sempre que ajustados ao espírito da absorção e a citação ao passado que já pairava no
ambiente artístico pós-moderno na década de setenta.
Como Philippe Soupault (1975, p. 4) observa ―pode-se descobrir e reconhecer nas
pinturas mais dinâmicas de Lam essa necessidade de compreender antes que mais nada, o
desenho‖. Assim mesmo Catherine David (1992, p.40) descreveu a obra de Lam como
―essencialmente gráfica e se organiza em torno da linha que destila e sugere uma linha que
atingirá com os anos a rapidez e a precisão da caligrafia asiática‖. Por sua vez, Lam
certamente atribuiu uma preferência hierárquica à linha como vinha fazendo em outras séries
161
litográficas. Nos últimos anos de vida isso se acentua, ao ponto que se tende a dizer que as
suas obras em papel, especificamente trabalho gráfico, são os que mostraram os aspectos mais
inventivos de sua carreira tardia. Este elemento junto com a predileção de Lam pelo desenho,
justifica a observação de Catherine David (1992, p.18) de que foi Lam, junto com Alberto
Giacometti, quem ―retificou o desenvolvimento e o destino da linha em pintura‖.
Encontra-se em quase todas as figuras da série algum sinal de veves ou de signos
Abkuás (os losangos, os entrecruzamentos, as terminações em volutas ou setas). Em outras
vemos alguma semelhança nos movimentos aberto-fechados da figuração. Um signo
constante na série vem a ser a cor. O vermelho impera tanto na primeira imagem, a da capa,
como nas ilustrações restantes. A pergunta que vem à tona é por que foi escolhido este
vermelho de maneira tão expressiva? Por sua textura e matiz sugere provir de uma substância
natural, a mais antiga e usada pelo homem na arte da pré-história, das pinturas cavernas de
Altamira, (na Espanha) e de Lascaux (França), o vermelho provindo do óxido de ferro. Quase
impossível dissociar esta série das pictografias que ganharam elogios de Picasso, e que
décadas antes tinham inspirado o ensaio do Georges Bataille, Lascaux ou la naissance de
l‟art, (1955).
Dentro do conjunto de lâminas para o livro de García Márquez, as gravuras do interior
de texto também repetem o mesmo registro de traço preto e a cor reduzida a vermelho. Em
muitas delas interpreta outro dos elementos que acusam a proximidade de Lam com a arte
matérica do informalismo próprios da arte catalã, mostrando um registro e acabamento, e
tratamentos dos fundos, mais próprios da pintura.
Como conclusão até aqui vimos como pode ser frutífera a discussão sobre o poder das
imagens em função de seus usos. A interdisciplinaridade que esta análise supõe nos permitiu
interpelar a obra lamiana em função de sua especificidade artística. Ambos, artista e autor,
estavam preocupados em entrelaçar suas memórias regionais do Caribe. De um lado Lam,
com sua força telúrica, de outro lado García Márquez com sua zigzagueante técnica
descriptiva. Valem-se o autor de uma escrita sem pontos e seguida, como saída de uma voz
interior e de um personagem de povo que transmite sua mensagem com verdadeiro ênfase até
tornar possìvel seu primeiro desejo: ―agora sim, vão ver‖. Enquanto Lam com suas figuras de
novo mobiliza o traço simples e veloz como uma forma de escrita, como um desenhar sobre
um suporte sagrado, à maneira dos pictogramas. A simplicidade torna-se um dos componentes
estilísticos pujantes de sua obra neste momento. É quase um traço único este texto, e uns
quantos traços entrelaçados aos ícones da imagem. Essa paridade de recursos nos permite
162
compreender que o toma lá e cá, de Lam ao render tributo ao Informalismo, em geral, a arte
gestual e primigênia sobrepõe camadas que gritam e vociferam nesta obra, ainda que
submersas. Seja também pelas pulsações contidas na escrita garciamarquiana que nos mantém
em alerta até o personagem eclodir com a credibilidade sobre a cena, que vemos um exemplo
indiscutìvel do ―realismo mágico‖. É por isso que de imediato conseguimos entender a
escolha do artista deste recurso expressivo pautado pelo gesto tangível e completamente livre
e sem ataduras dentro de seu vasto repertório.
García Márquez no momento que escreve o livro tinha estabelecido sua residência em
Barcelona, (entre 1967-1975). Talvez isso guarde relação com o fato que desde 1964 a catalã
Carmen Balcells se converte em sua agente literária geral, tendo sido antes apenas sua gerente
em Barcelona. Pelo fato também de que o local era propício para concluir a escrita
intermitente de El Otoño del Patriarca (O Outono do Patriarca), considerando que era este um
romance sobre a tirania. Ele chega a Barcelona quando a ditadura de Franco se impunha.
Confrontado com o momento em que o movimento literário do Boom começava a tomar mais
força. Dois anos antes de sua chegada a Barcelona sai publicado seu romance magnânimo que
dito movimento o considerou paradigmático, a saber Cien Años de Soledad (Cem Anos de
Solidão) cuja tradução francesa recebe o destaque de ser nomeado o ―Melhor Livro
Estrangeiro na França‖, além de obter o prêmio Chianchiano na Itália, publicado pela Editora
Fratelli, obtendo sua primeira tradução numa língua estrangeira. Já antes disso, em 1968 na
Espanha, Emir Rodríguez Monegal tinha incluído o segundo capítulo desse romance na
prestigiosa revista literária El Mundo Nuevo. Em 1970, o romance ganha uma versão em
inglês, e é escolhido entre os doze livros do ano nos Estados Unidos. Dois anos depois lhe
será concedido o Prêmio Rómulo Gallegos e o Prêmio Neustadt. Assim mesmo em 1971
Mario Vargas Llosa publicou um livro acerca da vida e obra de García Márquez.74
É de supor que não tenham faltado os estímulos para o Lam atender e ilustrar uma
obra de Márquez, então convertido nesse autor universalmente reconhecido. Escolhe para
tanto, uma obra inédita, curta, e cujo manejo escritural faz contínuos elogios ao ambiente do
Caribe. Contudo foi por demais coerente com suas anteriores escolhas, e com o objetivo de
estreitar suas relações com certos escritores que faziam do Caribe seu foco criativo. El Último
74
Ver Cronologia de García Márquez em APULEYO, 1996.
163
Viaje Buque fantasma chama à atenção, no entanto já que é um dos únicos exemplos em que
Lam se coloca como ilustrador de um texto em prosa.
Como chega Lam a Márquez e vice-versa? Antes de se tornar o proeminente
romancista da literatura hispânica e mundial, sua atividade como jornalista na Colômbia,
exercida desde meados da década de cinquenta, o convertem em um dos primeiros e mais
importantes colaboradores colombianos de Prensa Latina, órgão criado por Fidel Castro em
1959 após o início da Revolução Cubana. Da empreitada de Castro, García Márquez seria fiel
partidário até o final da sua vida, inclusive após o caso Padilha, escritor censurado em Cuba e
que racha a oleada de apoiadores da revolução no meio intelectual em fins dos anos setenta75.
Por tanto, García Márquez deve ter ouvido ou lido sobre Lam.
Por outro lado, há algo mais a se ter em conta sobre o envolvimento com Cuba e com
Lam: e é sua faceta como cineasta e roteirista, a qual ganha uma dimensão mais ampla a partir
dos setenta, que o tornaram uma das estrelas da prestigiosa Escola Internacional de Cinema
San Antonio de los Baños, fundada em Havana no primeiro decênio do período
revolucionário. Também ali o escritor foi uma peça chave até o fim da sua vida, formando
uma grande leva de realizadores e impulsionando o chamado "cinema novo latino-
americano". No prefácio de Orlando Senna ao livro Oficina de Roteiro de Gabriel García
Márquez: Como contar um conto fica claro que o envolvimento com cinema deste autor
datava dos anos 1950, quando se aventura a estudar em Roma no Centro Sperimentale di
Cinematografia, bem na época em que Zavattini e Rosellini circulavam pelas salas de aula.
Ali conhece entre seus colegas à tríade de cineastas que seriam peças chaves na eclosão do
Novo Cine (Cinema Novo): os cubanos Tomás Gutiérrez Alea, Julio García Espinosa e o
argentino Fernando Birri. Eles seriam junto a Márquez fundadores deste ambicioso projeto
que foi a Escola de Cinema de Havana. Assim mesmo García Márquez liderou o processo de
implantação da Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano, com sedes em Cuba, México,
Colômbia e Venezuela, com três linhas de atividade: pesquisa, fomento à produção e a
capacitação. Linhas essas que desenvolvia em Cuba a Escuela Internacional de Cine y
Televisión de San Antonio de los Baños. Para fazer possível esse antigo sonho do colombiano
e seus amigos, doou seu prêmio Nobel para a nova Escuela que veio a somar ao apoio oficial
do Estado cubano.
75
Ver Cronología de Gabriel García Márquez. Disponível em www.centrogabo.org acessado em
20/07/2020
164
Nesse momento Lam também partilhava com entusiasmo o ambiente de cinema.
Vejam-se os quatro filmes que lhe foram dedicados à sua obra nessa década. Em 1971 se
rodou Wifredo Lam: A Busca do ponto supremo, de Daniel Lecomte. Em 1973 outro
documentário se realiza sobre sua vida e obra: Wifredo Lam: Ett Konstnärs porträtt, dirigido
por Barbro e Günes Karabuda e realizado pela radiotelevisão sueca. Mario Carbone lhe dedica
um terceiro filme: Lam e o grafismo animado, estreado em 1974, o qual se centra em sua
vivência no ateliê de Albisola e no ateliê do milanês Giorgio Upiglio. Anos mais tarde, em
1978 Humberto Solas inicia um documentário sobre a vida de Lam para a televisão cubana.76
Portanto, é possível que o cinema tenha aproximado a ambos.
Fonte: www.pinterest.com
Pesquisando como foi idealizado este livro ilustrado, nos deparamos com a menção
nas cronologias que Lam foi prestigiado por uma grande exposição de gravuras no Museu de
Bellas Artes de Havana, em junho de 1977 que incluía as gravuras recém realizadas para o
livro El último viaje del buque fantasma. García Márquez e o próprio Lam estiveram
presentes na inauguração (Fig. 82). Enfim, seja mediante o envolvimento de ambos com o
cinema, seja durante as inúmeras visitas do escritor à Havana, ambos tinham firmado uma
amizade, García Márquez referia-se a este com intimidade, "meu amigo o chinês Lam".
76
Ver Cronologia de Wifredo Lam 1962-1977 Disponível em:
https://www.wifredolam.net/es/cronologia/1962-1977.html acessado em: 20/07/2020.
165
7. Processo de parceria Lam-Aimé, revertido: Annonciation (gravuras de
Lam 1969, poemas de Césaire de 1982)
A última grande obra realizada por Lam dentro do gênero do livro ilustrado é o projeto
conjunto com Aimé Césaire que saiu à luz em 1982: Annonciation. Este livro fascinante
contém imagens e poemas pontualmente inspirados na ―temática bìblica‖, ─ como era comum
entre os surrealistas ─ para colocá-la em xeque77. Ao fazê-lo trazem pluralidade de
associações, com advento de divindades de procedência africana e enraizados na região
antilhana, e também sugere, em uma semântica mais aberta, uma associação como um mito
original. O livro nos induz, portanto, a ver os reflexos de enorme alcance do engajamento de
seus autores no discurso anticolonial, partilhado com o surrealismo e com o discurso da
negritude cunhado por Césaire. Pode-se dizer que com esta obra ambos se adscrevem a uma
discussão sobre a revisão dos mitos na construção das identidades encabeçada pela nova
vanguarda.
Outra característica de Annociation é que em lugar de um texto escrito a priori e
completado com as gravuras, trata-se do contrário. Primeiro Lam concebe a série de gravuras
com um tema inerente à história da arte ocidental. Ao concluir a série constatou que deveria
ser completado junto a Aimé Césaire, a quem solicitaria, pouco depois de terminar, que
escrevesse uma série de poemas correspondentes com as gravuras78. Por isso as sete imagens
apresentadas por Lam remetem a um modo não convencional de entrelaçamento entre artista e
poeta em um processo inverso. Convém esclarecer que ainda que esta obra é concluída e posta
em circulação na década de oitenta (1982), quando Césaire conclui os poemas, Lam tinha
concebido a série de gravuras em metal com porte grandioso no ateliê de Giorgio Upiglio em
1969.
Transparece aqui essa visão compartilhada por ambos permeada de questionamentos
diante do eurocentrismo, de revisões históricas, cientes de serem parte de culturas subalternas,
plenas e abertas em direção a um florescimento de suas vozes.
77
Veja-se o caso do cineasta espanhol Luis Buñuel, no filme La Edad de Oro, França, 1930
78
Segundo depoimento de Giorgio Upiglio sabe-se que as sete águas-fortes e águas tintas coloridas
desta série foram criadas para servirem de ponto de partida aos poemas de Césaire a posteriori, e não ao
contrário.
166
Consideramos essa série como um ápice da arte de Lam em gravura, e na década de
noventa e na primeira e segunda dos anos 2000, será muito valorizada surgindo várias
exposições a respeito79. Observamos que sempre abordada muito pontualmente ao debruçar-se
os estudiosos de Lam e Césaire sobre esta obra tardia, o livro é um tema muito rico e que
pode suscitar várias possibilidades ensaísticas.
Podemos, contudo, propor uma abordagem comparativa, resgatando nela a vontade
artística por parte de Lam e a reiteração de um logos por parte de Césaire. Por depoimentos do
artista, conhecemos que as imagens foram concebidas para contemplar uma filosofia
compartilhada por ambos: filosofia e pensamento sobre a alteridade. Como bem apontado por
Upiglio o motivo dessa obra ter sua publicação retardada foi que: ―A edição [de
Annonciation] precisou de anos porque teve também toda uma meditação de Lam sobre a
imagem, e sua filosofia‖. (UPIGLIO, 193, p.8, tradução nossa). Lembremos que em um dos
anteriores livros a este que Lam trabalhou, como Apocalipse‟ Apostroph (1966) em
colaboração com o poeta romeno Ghérasim Luca, levaram vários anos para serem concluídos,
com os textos mudando para se relacionarem com as águas-fortes ou as águas-fortes sendo
retrabalhadas de acordo com os textos80. Então essa suspensão da obra Annonciation no
espaço-tempo, longe de significar um fechamento em si mesmo, se potencializa quando na
década de oitenta é completada com os poemas. A obra se difrata em imagens, em sentidos,
em ideias libertárias, a propósito, desde uma dupla vontade artística, interpretar e ser
interpretado. Reforçando que ambos ─ Lam e Césaire ─ tinham criado um estreito cìrculo
desde meados de 1940, que retomam no pós-guerra.
No momento em que Lam concebe Annonciation estava firmemente consciente do
cenário artístico da Europa. Tinha decidido residir desde 1960 em Albissola Mare, um
povoado da Itália com uma comunidade artística complexa, com artistas vinculados a
79
O singularíssimo trabalho, Annonciation tem sido abordado recentemente por alguns estudiosos
como o já mencionado James Arnold, em atenção ao poemário de Césaire e o livro de 2005 Lam and
International Avant-Garde 1938- 1982, de Lowery Stokes Sims, onde a autora apenas compara uma das gravuras
de anunciação com sua produção pictórica. Destacamos também sua participação desta série em mostras como a
antológica Wifredo Lam, a Retrospective of Works Paper, (Americas Society Art Gallery, Nova York, 1992 e
Fundació ―la Caixa‖, Barcelona,1993) com curadoria de Charles Merewether. Um pouco mais recentemente é
exibida no Brasil a série de Lam-Césaire em sua totalidade na mostra ―Lam: Gravuras‖ (CAIXA Cultural, Rio de
Janeiro, 2009 e Pinacoteca, São Paulo, 2010), com curadoria de Paulo Venâncio e curadoria adjunta nossa. Por
fim participa da Nous nous sommes trouves (Grand Palais, Paris, 2011) – com curadoria de Daniel Maximin,
poeta e ensaísta originário de Guadalupe que naquele ano trabalhava para o Ministério de Cultura francês,
exposição baseada na obra de Picasso, Lam e Césaire, onde fora incluída a série toda. Observamos que pouco
tenham se debruçado os estudiosos de Lam e Césaire sobre esta obra tardia; o livro é um tema muito rico e que
pode suscitar várias possibilidades ensaísticas.
80
Para mais detalhes sobre o livro, consultar. Tonneau-Ryckelynck and Dron. Lam: Oeuvre gravé et
Lithographié, Catalogue Raisonné. Gravelines: Edition du Musée de Gravelines, 1993
167
vertentes como espacialismo e nova Bauhaus Imaginística ou praticantes da cerâmica que
logo fundaram o espacialismo. Como o filho do artista, Eskil Lam descreve:
Foi seu espírito de colaboração e amizade que levou meu pai à cidade
costeira italiana de Albissola, a oeste de Gênova. Na década de 1950, o
artista dinamarquês Asger Jorn mudou-se para lá por motivos de saúde; [...].
Meu pai foi apresentado a ele por André Breton em Paris algum tempo antes
da guerra e gostava muito dele ─ ele era um personagem e tanto, muito
vibrante. Então, no verão de 1954, Jorn convidou meu pai, junto com outros
artistas, incluindo Karel Appel, Corneille, Sergio Dangelo, Lucio Fontana e
Roberto Matta, para participar de um Encontro Internacional de Cerâmica
que ele havia organizado com Enrico Baj no estúdio de ceramista local
Tullio Mazzotti. Wifredo estava em Cuba e recebeu o convite tarde, mas
visitou Albissola cerca de dez dias depois do evento e gostou tanto da cidade
que ele e minha mãe voltaram várias vezes nos anos seguintes, acabando por
comprar uma casa lá em 1961. (LAM Filho, 2016, p.1, tradução nossa)
81
Sobre a rotina do artista e o contexto de Albisola ver STOKES-SIMS, 2002, p. 165
168
partilhava de vespertinas conversas de economia, política e artes. O clima com o movimento
anticolonial contra França, que levou à independência da Argélia não era de modo algum
favorável para os estrangeiros como Lam, e era preciso se posicionar com o fazer artístico.
Foi neste cenário propício de reencontro com Césaire que começou a germinar o projeto
colaborativo.
169
Essa adaptação de Césaire, como a original de Shakespeare, era ambientada numa ilha.
Isto é importante pois esta obra é citada de modo recorrente por parte da intelectualidade da
região do Caribe, ou para se referir e para expressar uma ideologia. A primeira ―Tempestade‖,
tinha sido, a saber, escrita pelo dramaturgo inglês em 1612, e trazia um retrato justamente dos
arquétipos de colonizador e colonizado em uma ilha distante da Europa renascentista. Nela
Shakespeare apresenta um dos personagens, o Calibã/ cannibal, ―um escravo selvagem e
disforme para quem são poucas as injúrias‖ (RETAMAR, 1978, p. 228). Não deixa de ser
curiosa a observação de Shakespeare do Calibã como disforme ao qual Próspero, o europeu,
portador dos saberes Ocidentais, que rouba a ilha, o escraviza e o ensina a falar: ―Me
ensinaste a linguagem e disso obtenho / Saber maldizer. A vermelha praga! / Caia em você,
por tê-lo ensinado!‖ Sumariamente, como adverte o argentino Aníbal Ponce em A tempestade,
se encontrava resumida toda a época do Renascimento e as viagens de navegação para exercer
a dominação sobre as colônias. ―Em aqueles quatro seres já estava toda a época: Próspero é o
tirano ilustrado que o Renascimento ama; Miranda sua linhagem, Calibã, as massas sofridas
[...] Ariel, o gênio do ar, sem ataduras com a vida‖ (PONCE, 1962, p. 83, tradução nossa).
Shakespeare usa uma visão utópica, apresentado ao humanista erudito que verifica duas
básicas maneiras de considerar o americano: como um selvagem torpe e desalmado, qual
Calibã, ou senão o americano identificado com a personagem de Ariel, um poeta ofuscado
pela sua origem que conhecia os mistérios do telúrico, o marítimo e o etéreo 82. No caso de
Césaire, os personagens são os mesmos que os de Shakespeare, mas Ariel é um escravo
mulato, enquanto Calibã, é um escravo negro; ainda intervém ‗Eshú, ―deus diabo negro‖. A
concepção de personagens deixa exposta a intenção do martinicano de mostrar duas
tipologias, de um lado um nativo indócil, que assume a rebeldia, Calibã, e de outro, Ariel, que
pela indecisão e pela sua mestiçagem, acaba esquecendo os teores graves da colonização. É
curioso na obra de Césaire o detalhe do texto de Próspero quando Ariel retorna cheio de
escrúpulos, no fragmento com que se inicia a obra ―Vamos‖, lhe diz Próspero, ―Tua crise!
Sempre é o mesmo com os intelectuais! ‖ (RETAMAR, 1978, p. 229, tradução nossa). A obra
de Shakespeare brindava em suas personagens como arquétipos da relação centro-periferia;
colônia-metrópole; aculturação, transculturação.
82
Esta personagem inspirou o ―Arielismo‖, do mexicano José Vasconcelos quem sinalou em La raza
cósmica (A raça cósmica) em 1925, com a presunção de que na América Latina estava se forjando uma nova
raça, ―feita com o tesouro de todas as anteriores, a raça final, a raça cósmica‖ (VASCONCELOS, 1925 apud
RETAMAR, 1978, p.223)
170
A respeito do Calibã, recriado por Césaire, entendemos claramente que é um
personagem em contraponto com Ariel para discursar sobre consciência de raça ou o conceito
de negritude. Isso produz paralelos com a obra de Lam neste momento. Ambos desde seus
meios artísticos discutem a história do Ocidente através de temas arquetípicos Césaire,
esmiúça o Calibã e o Ariel ─ temas que se convertem em sìmbolos atuais. Lam, ativando
outras narrativas, não já shakespearianas, mas de ascendência bíblica, como a anunciação que
aqui estudamos. Vejamos como essas narrativos para Merewethers se entrelaçam entre si
sobretudo no momento em que Lam usou a figura de sua pintura como um cavalo de Tróia:
Por outro lado, pode-se verificar neste discurso de atração e negação com a
perspectiva do homem branco, como descrito pelo teórico, que com a Adaptação da
Tempestade Césaire proclama a negritude. E o mais importante, se adscreve a uma longa lista
de intelectuais que usaram esse argumento para se posicionar quanto ao temas como a
psicologia da colonização83. Usando essa obra de Shakespeare como metáfora acertada da
situação cultural das ex-colónias, chegamos à conclusão, ―Que é nossa história e nossa cultura
senão a história de Calibã?‖ (RETAMAR, 1980, p.236, tradução nossa).
Por esta época, podemos dizer que o trabalho de Lam se torna profundamente
antropológico e as construções shakespearianas não lhe seriam alheias, ainda que nunca as
empregou. Constatamos em Annonciation e em obras que imediatamente incorrem nesta
exploração dos arquétipos, seu reconhecimento, e em um sentido paradoxal, depois sua
rejeição. Elas descortinam, elas são um espaço limiar do ponto de troca entre o secular e
sagrado. Que personagens eram esses agora apresentados? Não se define pelas imagens
83
As leituras desta obra notável incluem o humanista francês Ernesto Renan com seu ensaio ―Calibã‖
de 1878. Em 1900 o uruguaio Enrique Rodó publica sua mais famosa obra ―Ariel‖. Em 1928 o francês Jean
Guéhenno publica seu ―Calibã/ fala‖. O argentino Anìbal Ponce em 1935 lhe dedica em seu livro ―Humanismo
burguês, humanismo proletário‖, seu terceiro capìtulo a Ariel: ―Ariel ou a agonia de uma obstinada ilusão‖. Em
1950 em Paris se publica de Monnoni ―Psicologia da colonização‖ cuja versão em inglês se intitulará "Próspero
e Calibã: a psicóloga da colonização‖. Franz Fanon o menciona em ―Pele negra, máscaras brancas‖, 1952. Em
1964 o inglês John Wain publica ―O mundo vivo de Shakespeare‖, (Ver ampliado em RETAMAR, 1980, p. 223,
tradução nossa).
171
domesticadas nas tradicionais anunciações com anjos e virgens sagradas. Aqui Lam criou
outros anjos, outras mães, metade fêmeas, metade humanas, anjos telúricos e reais. Uma
imagem na qual as figuras devolvem um olhar de soslaio ao colonizador com ironia.
Há também uma inegável relação entre esta série e a linguagem empregada na Jungla.
Lembremos que esta suíte tinha como objetivo fazer um resumo de sua obra. Césaire não por
acaso em seu poema interroga: ―que estás buscando entre esses bosques de cornos
pontiagudos de asas de cavalos, recitador de macumbas, irmão meu? ‖ (CÉSAIRE, 1982, p.
83, tradução nossa). Como bem apontado por Fouchet, (1976, p.37) nas obras desta época as
descobertas aplicadas na Jungla (1943) são recriadas e atendendo a uma continuidade de
vocabulário ou de linguagem.
173
alegação, fornecem claramente uma ideia de como Lam estava engajado com o ressurgimento
do espírito de vanguarda de sua geração, a favor de uma democratização da arte.
A década de sessenta também é o momento onde a sua atividade como ilustrador de
livros se intensifica já usando como meio a gravura. Durante este período começa a ser
habitual o roteiro entre Albissola e o ateliê de impressão Upiglio em Milão84. É neste
momento onde alcança uma definitiva segurança na criação de seu próprio vocabulário e que
inicia um novo período de experimentação e colaboração especialmente em gravura em metal,
como é o caso da série Annonciation (1969). Começou a produzir livros ilustrados explorando
certos temas e narrativas com escritores pelos quais sentiu simpatia em sua visão poética e da
vida. Lam sente-se motivado a realizar mais uma obra junto a Césaire, mas desta vez como já
foi dito, a palavra deveria corresponder à simbologia oblíqua do artista e ao mesmo tempo à
visão que ambos compartilham em suas respectivas poéticas.
Em Annonciation aparecem em sintonia com a vontade poética de Césaire as imagens
arquétipo novamente correspondentes a um homem híbrido. Já se olharmos a obra de Lam
como um discurso entre colonização/ descolonização, então podemos apreciar a extraordinária
contribuição ao reconhecimento dessas outras culturas não ocidentais. Não há mais a questão
de "o subalterno pode falar", como Gayati Spivac coloca em seu ensaio seminal. “Can the
Subaltern Speak?‖ (1985, p. 7). Há, portanto, uma necessidade de ler a teoria Ocidental para
contestá-la. O interesse de Lam pela cultura caribenha, seu interesse a favor do primitivo e do
ancestral metamorfoseado com os movimentos da natureza, entretanto, ativam a importância
da criação de imagens como meio de articular processos de reconhecimento das identidades
84
Nesta época e até o final de sua vida viajava com frequência a Milão para realizar suas séries de
gravuras junto ao impressor Giorgio Upiglio. O mestre gravador sempre atento às exigências dos artistas
desenvolve uma técnica pensada especialmente para ele. Ver capítulo 6. É pertinente mencionar e comentar
brevemente algumas das mais relevantes produções em gravura desta década. Em 1961 tinha produzido Images
publicada com texto de Marco Valsecchi, uma série de gravuras em metal onde ele canaliza esse espírito que
tinha absorvido desde que operava na Itália. Lam introduziu respingos "acidentais" na superfície das impressões,
às vezes criando um padrão moiré. Ele também produziu um efeito transgressor ao fazer áreas de cor que
pareciam bordas queimadas nos papéis. A inscrição de seus motivos familiares (cabeça arredondada e triangular,
o losango, as aves, etc.) se desvanece na rica mistura textural de papel de jornal, tinta nanquim e impressão em
relevo. Mostra-se a partir daqui um artista aberto à experimentação. Em 1965 realiza para Gherasim Luca, poeta
romeno, de quem ilustra Apostroph Apocalipse, um poema visual dedicado a combater os ciclos e as guerras
atômicas. Uma verdadeira obra prima de livro ilustrado, concebido em seu design para ambientar a hecatombe
explosiva. Também em 1966 do escritor, poeta e ensaísta francês, Alain Jouffroy, ex-membro do surrealismo, e
vinculado nos primeiros anos de carreira a André Breton, ilustra L‟antichambre de la nature (A antecâmara da
natureza), com uma suíte de gravuras em metal. Ilustra ainda a edição póstuma de Antonin Artaud, Le Théâtre et
le dieux (O Teatro e os deuses) e auspiciada por Pierre Loeb. O livro concebido em edição de luxo contemplava
uma das conferências pronunciadas por Artaud no México. Portanto, na década de sessenta Lam mantém uma
atividade extensa com a gravura dedicada aos livros ilustrados, atividade que cada vez ocupa mais espaço em seu
trabalho.
174
eclipsadas, de propor mudança e libertação. Olhar para a série concebida em paralelo com a
obra de Césaire, é ver limiares e pontos de fusão e cruzamentos que ambos estabelecem entre
o que sabemos do Ocidente e do outro, amiúde extirpado de sua cultura.
Até aqui chegamos a definições chaves sobre este livro, o marco do segundo grande
encontro entre Lam e Césaire. A primeira que ambos eram dados a criar personagens,
resgatando uma mitologia própria e seminal. O segundo, é que ambos produziam obras para
se posicionar dentro do movimento da negritude. Se Lam apontava a uma escrita, Césaire
aponta a uma poesia de imagens. E por fim, eles aspiravam produzir uma arte de vanguarda,
que atingisse grande número de pessoas, que interviesse na opinião, desde as camadas mais
intelectualizadas até o povo.
85
[...] pedra angular, hieróglifos, independentemente da constelação abolida.
175
luminosidade, que irrompe desde o fundo, onde o ambiente de soturnidade reforça e emoldura
os personagens centrais. Parece que o encontro entre anjos e seres telúricos se posterga.
Os versos de Césaire por sua parte assim a interpretam:
No momento que esta série foi concebida Lam tinha se desenvolvido com a gravura de
maneira exemplar. O universo humano, animal, ou divino, deixados na cor do papel, tendem a
uma imersão natural no fundo. Tudo isso distende as possibilidades de registros da gravura
86
Pedra angular/ hieróglifos/ independentemente da constelação abolida/ nunca estreito, o aviso
combinatório infinito transborda/ o núcleo fala/ impossível o erro/ dificuldade em vagar/ o chocalho direcional
pende das árvores/ na ponta dos seus dedos/ o losango assiste com os olhos fechados/ aqui começa/retirado dos
animais selvagens
176
em metal. Ao preparar as placas, ele deixou algumas de suas figuras totalmente em branco,
para que, ao serem impressas, o papel brilhasse através delas ─ uma técnica que ele primeiro
explorou em suas pinturas da década de 1940, onde deixa visíveis partes da tela crua com o
fim de destacar suas formas. Esses trabalhos, a saber, são produzidos pela gráfica Uno,
dirigida por Giorgio Upiglio em Milão. Ele criou um método que lhe permitiria satisfazer as
exigências de Lam quanto à precisão da linha e o resultado final. Um método no qual podia
transpor o desenho até a prancha de metal: ―Uma vez concluìdo o desenho, Upliglio
esquentava a lâmina por baixo [...] o desenho ficava perfeitamente fixado na capa de betume.
Faltava somente um banho de ácido para que a gravura se fixasse sobre o cobre‖ (SIMS,
1992, p. 51, tradução nossa). Com ajuda deste método, sua produção como ilustrador
continuaria a crescer.
A segunda estampa ―nouvelle bonté‖, (fig.85), começa da esquerda à direita com uma
figura alada que resguarda a cabeça de uma mulher representada com nitidez, em um
habilidoso escorço. Aqui também reaparecem os três corpos equivalentes às femme-cheval,
onde duas figuras encontram-se dispostas na horizontal e uma terceira em vertical dotada de
um grande rosto. A cena toda parece um ideograma composto de linhas abertas e fechadas e
parecem rememorar o verso de Césaire: ―[...] des chevaux qui n‘ont laissé sur le sol / que
leurs empreintes furieuses / des mufles braqués de sang lapé / le dégainement des couteaux de
87
justice / et des cornes inspirées [...] . (CÉSAIRE, 1982, p. 94, tradução nossa). Neste texto
ele deixa à mostra um discurso que interessava a ambos, que se formulou na década de
quarenta, mas que teve continuidade ao longo dos anos. A imagem por sua parte faz um
balanço da obra como se tratasse de um alfabeto próprio. Os tipos femininos representam a
altamente reconhecível femme cheval que Lam combinou e recombinou continuamente, e
outros elementos característicos vivem permutações e variações infinitas, como letras de um
poema visual, o da Anunciação.
Contudo junto aos versos do martiniquense somos levados por caminhos filiados à
metáfora, que adensa seu poder e seu impacto. Outra grande ousadia é de tê-la completado
como livro no último ano de sua vida em meio a tantas incertezas como as que deparava, esse
outro mapa (a morte). Ambos, poema e imagem são de uma natureza que reflete um estado
limiar, algo do que Lam parecia estar consciente desde a década de sessenta quando a
concebeu. Essas primícias guiam ao leitor e apreciador por um olhar retrospectivo de meio
87
[...]cavalos que não deixaram no chão/ mas que suas pegadas furiosas / focinhos pontiagudos com
sangue lambido/ o desembainhar das facas da justiça/ e chifres inspirados [...]
177
século de carreira poética de ambos intelectuais. A visão que eles tinham sobre suas
respectivas obras como um compêndio, assim o comentário poético de um, e as alegorias do
outro, se arquitetam desde a mesma conjuntura e aponta um balanço de suas carreiras poético-
artísticas. A fórmula não era difícil porque existia uma continuidade entre a obra dos dois
desde 1941, quando se conhecem, passando por esse momento de maturidade que foram os
anos 1960 e concluindo no final da vida de Lam em 1982, quando Césaire escreve.
Figura 85. Lâmina II. nouvelle bonté, para o livro Annonciation, 1969/1982
O encontro entre bestas, figuras aladas e femme cheval, torna a repetir-se na terceira
lâmina ―que l‘on represente son coeur au soleil‖ (que representamos nosso coração ao sol),
(fig.86) é uma das composições mais hieráticas. Desta vez a composição axial prepara como
um preâmbulo o tema da anunciação, organizada em dois grupos de figuras a cada lado da
cena. À esquerda duas mulheres coroadas com cabeça de cavalo, estão muito bem
entrelaçadas, quando entre os interstícios de ambos pares de pés advertimos um ovo que
adquire um destaque na cena a qual novamente nos apresenta um sentido de anunciação e de
gênese. Vejamos a concatenação de signos que oferece o poema:
la Bête au dû ceder sur le sentier de ton dernier défi / bête aux abois / mort
traquée par la mort / de son masque déchu ele s‘arc-boute à son mufle /
178
solaire / l‘oeuf la suit à la piste/l‘aile du tout-à coup jaillit/la victoire est
d‘offrir à la gourde des germes/le sexe frais du temps / sur l‘aube d‘une main
mendiante de fantômes. (CÉSAIRE, 1982, p. 92, tradução nossa)88.
Figura 86. Lâmina III. que l’on represente son coeur au soleil, 1969/1982
Sem ir muito longe, que significa no poema de Césaire todos esses substantivos:
Besta, morte, baía, ovo, máscara, focinho, brotos, fantasmas? São as evocações aos mundos
animal, humano e divino que pairam no cenário antilhano interceptado constantemente por
Lam. Apontemos também o peso concedido ao vocábulo ―solar‖ precedido de ―ovo que segue
ela até a trilha‖. Esse ovo que se desliza aos pés dos dois personagens à esquerda, e depois
reaparece apossado na mão de uma femme-cheval sentada na linha da proporção dourada da
lâmina. E por fim, a evocação aos fantasmas, cobrando vida mediante os diminutos milagres
da vida cotidiana, manobras que se percebem nessa reunião de muitos seres híbridos. Os
fundos irrompem na composição em tonalidades graves e noturnas: marrons mais café, quase
pretos, escuros esverdeados onde o artista alcança nuances que lembram as modulações do
barroco. Para as iluminações usa fundos tingidos de laranja vivo, composições com forte
contraste que dão um ar de teatralidade imensa, dada pelo âmbito da gravura em negativo, os
aveludados fundos e as drásticas relações espaciais.
A lâmina quatro, intitulada ―insolites bâtisseurs‖ (construtores incomuns), (fig.87) é a
que de todas tem uma composição próxima do tema clássico da anunciação e onde a luz
88
a Besta teve que ceder no caminho de seu último desafio / Besta na baía / morte perseguida pela
morte / de sua máscara caída, ela se apoia no focinho / solar / o ovo segue ela até a trilha / a asa surge de repente/
vitória é dar brotos de cabaça / o sexo fresco dos tempos/ no amanhecer de uma mão implorando por fantasmas.
179
laranja agora se intensifica ao centro da lâmina, de onde emerge um sinuoso símbolo. Acaso
representando uma ação e não um biótipo. Talvez como a viu Césaire, ela representa a ação
de ―preservar a fala‖, ―faça frágil a aparência‖, ―captura o segredo de raìzes‖. Depois
prossegue com seu tom de clamor: ―Resistência ressuscita‖, ―autor de alguns fantasmas mais
verdadeiros que sua aparência‖. Aqui parece estar falando propriamente de Lam. A cena
transcorre sim, em função desse símbolo sinuoso, em fuga dessa anunciação.
Figura 87. Lâmina IV. insolites bâtisseurs, para o livro Annonciation, 1969/1982
180
mémoires vivantes [...]89. (CÉSAIRE, 1982, p. 89, tradução nossa). A ―necessidade da
especiação‖, coincide com as figuras e os ovos ao seu redor. Césaire também descreve
transgressões, como as de um indivíduo para o qual a vida concreta transcorre, sem ir ―além
das memórias vivas‖. Essas memórias são lembradas por Césaire quando enumera catástrofes
reais como um ―vulcão‖, ou como ―um cupinzeiro animado‖90:
A cena seguinte, a da lâmina VI, (fig.89), é a mais repleta de imagens e uma das mais
complexas da série. Não é por acaso que o tìtulo ―rebordaille”, vem de um neologismo que
alude ao que transborda, aos excessos, todo o movimento que avistamos na composição.
Vemos correspondência entre o título e a cena, essa aglomeração de imagens. Essa
multiplicidade de seres lembram as danças e as peripécias encenadas em um ritual. Césaire
89
a necessidade de especiação/ sendo aceito apenas na medida /onde legitima as transgressões mais
ousadas/[...] mas não vá além de memórias vivas [...]
90
pensar e muito rápido/de qualquer paisagem mantenha o transe intenso/ da passagem/ passar/ anabase
et diábase/já emerge da desordem à distância/tribulação de um vulcão/a parada de um cupinzeiro animado.
pensar e muito rápido/de qualquer paisagem mantenha o transe intenso/ da passagem/ passar/ anabase et
diábase/já emerge da desordem à distância/tribulação de um vulcão/a parada de um cupinzeiro animado
181
bem contempla essa cena como a frase anafórica ―naquela época‖ e ―um homem‖, de novo
aqui tomando partido por um tempo primigênio:
A sétima e última lâmina intitulada ―connâitre, dit-il‖ (conhecer, disse ele), (fig.88)
não é menos grave. Novamente aparece uma cena noturna em que a composição mostra duas
diferentes situações, à direita um par de femme-cheval, em postura estática, observando, e à
91
naquela época a terra foi juramentada / naquela época o coração do sol não estava explodindo /
(estávamos muito longe do pretexto quinto/ que conhecemos desde então) / naquela época a amizade era uma
promessa / pedra de um sol que agarramos no salto [...] ele era um homem que ficou por muito tempo / entre a
hiena e o abutre / ao pé de uma árvore baobá / um homem vindo / um homem do vento / um homem paravam /
um homem portão / o tempo não é mais um gringo magricelo / Quero dizer um homem rebordaille/ um homem
vindo/ um homem.
182
esquerda uma fame-cheval que emerge mais próxima a nós e outra prestes a erguer-se como
uma imponente figura alada. Entre os dois grupos, um ser cornudo com asas esquemáticas,
preside esses dois momentos. Repete-se nesta lâmina final de novo encontro entre figuras
anunciadoras e figuras receptivas e expectantes. O poema de Césaire interpreta a gravura, que
faz um elogio ao saber, nos seguintes versos:
Em suma a invenção, a abertura e a disposição das figuras nesta suíte gráfica alcançam
um alto grau de dramatismo. Aqui, as formas familiares da femme cheval dobram-se no
espaço. Sua distorção exagerada, e o fato de repetir o mesmo motivo parece às vezes reforçar
a preocupação de Lam com o signo como reiteração conformando uma linguagem.
92
ei, conhecedor de conhecimentos/ pela faca do sexo e o pássaro calau/ dispersor de velas/ Aqui a
garupa das mulheres e o úbere da cabra/ Aqui, Aqui, Aqui, Através de cada crepúsculo, /esfolado de olhos/ O
dedo do que insiste/ como as pegadas da noite [..]
183
Essa série evoca a simbologia genérica de Lam. Sejam estas alusões às imagens
ancestrais, sejam alusões à abordagem sua sobre o significado panóptico da obra de Césaire.
Contudo a característica mais sobressalente da série é sua unidade indivisível, sua proliferação
de figuras características da obra laminana. Ela é como uma somatória de mitos de
anunciações e encontros de culturas diversas.
A descrição de Césaire, do que seria um resumo da obra de Lam, nos remete a um
cenário antilhano onde a grande superfície atlântica rememora o navio negreiro chegando com
sua carga de escravos. Precariamente (―rolando‖) chega na mesma terra fértil onde a obra de
Lam traz sua carga de rebelião. Nessa rebelião, ele descreve como os homens estando cheios
de crinas, asas, em síntese com a natureza. Essa magia faz seu apelo à raça caribenha.
Reproduz também uma raça consciente e pendente dos poderes mágicos telúricos. Em suma,
para Césaire valia acreditar na possibilidade de se opor à visão que manejaram as potências
imperiais que subjugaram o continente, agindo não mais como uma massa humana passiva,
primitiva e inerte que se alimenta da ideologia imperial, senão como um homem fecundado,
explosivo, que celebra a união física do homem e do mundo.
Seguindo esta ordem de ideias Suzanne Césaire93 definiu o que era esse híbrido saído
da invenção surrealista lamiana. Ela apela a seu conceito de ―l‘homme de planta‖ o qual
descreve um indivíduo em equilíbrio com o ritmo de vida do universo encontrado na natureza.
(CÉSAIRE, 1942, p.45). Suzanne Cesaire usa tais conceitos metafóricos para recusar
estereótipos dos antilhanos negros como "indiferente", "inocente" ou "infantil", que estavam
longe da proposta de Lam. A autora afirma que, ao contrário, os ―[negros antilhanos] eram
duplamente fiéis a si mesmos, estando próximos de uma natureza-força vital universal. Como
a paisagem tropical, eles devem ser deixados para encontrar sua própria natureza dentro e fora
de si‖ (CÉSAIRE, 1942, p.45, tradução nossa).
As estampas correspondem a essa fórmula híbrida usada com potência, em diálogo
com as diversas etapas de um processo: o da Anunciação da Antilhanidade. Elas guardam
uma continuidade e um acople tremendo. Acople que nos remete a um confronto entre
personagens, entre os desìgnios do real e o divino, como uma sorte de nova ―especiação‖. Em
ambos os casos, tanto nas imagens quanto na poesia, as formas se subjugam a inervadas
sequências, passagens, visões que povoam o inventário da vida dos vulcões e da terra em sua
idade primeira.
93
Suzane Césaire (1915-1966) foi escritora, membro do grupo Tropiques e casada com Aimé Césaire.
184
Nesse sentido, sobre a obra de Lam Merewether aponta: ―Aqui o artista oscila entre o
sagrado e o segredo. O enigma convincente permanece como antes; revela, mas apenas para
mostrar que também camufla.‖ (1992, p. 15, tradução nossa). Em outras palavras, quando o
tema representa em si mesmo uma resistência ao discurso ocidental, recria uma mimese
dissonante, embebida de um alto teor discursivo.
Outra das constantes que o livro Annunciation nos fornece e uma das mais urgentes é a
reflexão sobre essa simbologia como a femme-cheval que emerge em sua obra por volta dos
anos quarenta e tem reiteradas aparições em sua obra tardia, simbologia que por demais ganha
crivos muito elaborados. Sobre a elaboração desta imagem Lam sobrepõe outra dimensão,
conectando-se diretamente à religião afro-cubana. A femme cheval, ou a imagem da mulher-
cavalo, torna-se uma figura-chave em sua obra. Le cheval, ou cavalo, é uma referência à
prática da Santeria de referir-se ao possuìdo como ―o cavalo‖ literalmente, o orixá monta a
cabeça do possuído. Montar o cavalo é como os orixás se comunicam com os humanos.
Usando a ideia de metamorfose, ele registra realidades duais que vão e vêm
como alguém que sai de si mesmo, como alguém possuído. A metamorfose
como possessão representa mais do que uma figura no diálogo artístico ou
modernista: é a articulação de um sujeito central da cultura afro-cubana.
(MEREWETHER, 1992, p. 23, tradução nossa)
185
sugerir uma esfera de figuras que representam a força mítica identitária. Desta forma, Lam
articulou a cultura afro-antilhana como uma cultura aberta, por se revelar.
Annonciation, de todos os livros é o qual as gravuras são mais monumentais (49 x 65
cm). Das gravuras, nota-se de imediato que ritmo, intensidade, são algumas de suas
qualidades. Mimetismo onde predominam as progressões, onde os personagens se perfilam
por entre os fundos densos, reduz voluntariamente o cromatismo, indo dos tons marrons, e
ocres até reduzir-se à ausência de cor – para mostrar com forte contraste a maleabilidade dos
corpos. Personagens que são os habituais híbridos e polissêmicos: afrocubanos, mestiços,
aruacos94 e os animais, cavalos, morcegos, iguanas. Ela revisita as grandes composições e
reúne um conjunto de imagens que atua como a ―soma do trabalho de vida‖, como cunhado
por Lowery Stokes Sims (1992, p.49, tradução nossa) no trecho a seguir:
Lowery Stoke comenta que nas sete gravuras, Lam reuniu um por um todos os
personagens que aparecem em suas pinturas e desenhos. Assim, para ela, dentro dos matizes
intermediários, há figuras suspensas que, no trabalho de Lam, representam entidades que vão
e voltam entre os reinos físicos e etéreos; entre o primeiro plano e o fundo. Também estão
presentes a garota de cabelos longos – de Fata Morgana o poema de Breton–, a femme cheval
e as aparições aladas que se referem ao encontro de infância de Lam com o morcego, as
criaturas com chifres que sintetizam o orixá afro-cubano Eleguá, também como facas, tigelas,
máscara, etc. A estudiosa norte-americana conclui: ―Abstratas, realistas, horrìveis e
envolventes, são as ‗memórias vivas‘ que Césaire evoca em „passages‟, um dos poemas que
Lam ilustra.‖ (STOKES-SIMS, 2002, p. 203, tradução nossa).
Podemos dizer que essa nova parceria de Césaire e Lam, reitera a crença de ambos e o
esforço em prol de uma necessidade de tramar mediante as imagens verbais e visuais, todo um
ideário. Esse volume ainda que pouco se explique de maneira linear nos invade e nos
persuade com o clima de anunciação que ele condensa, que parece voltar de maneira cíclica e
se explicita como uma verdade impreterível ante o significado dos trópicos, da condição de
antilhanos sempre prestes a se revelar.
94
Aruacos: refere ao povo indígena que povoa a área do Caribe
186
Em Annonciation, série em gravura em metal de porte grandioso, pode se perceber
uma continuidade de linguagem com a pintura. Em meados da década de sessenta sua obra
pictórica continuava em evolução. Por esta época ele acudia às figuras monumentais, ─ ver
por exemplo as obras como O Terceiro Mundo (1969), (fig. 91) e Os Babaloches bailam para
Dambalah, deus da unidade, 1970, (fig. 92) ─, com uma organização prolìfera e dominada
frequentemente por um grafismo. De fato, a pintura guarda semelhança com a série
Annonciation. As figuras individuais ganham destaque entre fundos mais neutros. O fundo
perde a densidade de suas pinturas da década de quarenta, e como já disseram sobre seu
trabalho outros autores: ―tudo se concentra na linha‖ (LAM Filho, 2016, p.2). Percebe-se
como a pintura se retroalimenta da gravura.
Figura 91. O Terceiro Mundo (1966). Óleo sobre tela 251 x 300 cm / Figura 92. Os Babaloches bailam
para Dambalah, deus da unidade, 1970. Óleo sobre tela 213 x 244 cm
Fonte: www.wifredolam.net
187
Lam levou seu esforço quanto possível por distanciar suas obras das convenções do
realismo. O grupo de gravuras e de pinturas são prova inegável dessa afirmativa. O espaço de
todas e cada uma das obras é organizado em um plano unificado no qual figuras híbridas
lutam e se interconectam se expandem no espaço aberto, como são os versos livres de Césaire.
Alguns ensaios críticos sobre os trabalhos de Lam em Cuba avaliam a importância da
origem cultural e multirracial de Lam, destacando a sua descendência metade chinesa e
metade africana. É o caso do texto a ele dedicado pelo intelectual cubano Fernando Ortiz, no
qual o autor contorna a questão do surrealismo, sugerindo alterar categorizações da obra de
Lam para ―metafìsica‖, ―metapsicológica‖ ou ―ultra-real‖. Em última instância, ele localiza
uma natureza primordial da sensibilidade de Lam na ―fase tele plásmica da concepção
mìstica‖, a pré-história do Caribe, quando, segundo Ortiz, ―o maná se concretizou pelo
animismo, quando a imaginação deu a tudo figuração e forma visível, corporificou o
incorpóreo por meios de metáfora artìstica.‖ ( 2002, p. 298, tradução nossa). Essas afirmações
são adequadas para a compreensão do tema da tese por que respaldam a relação que Lam tecia
com a natureza e com o mito, como fonte de saberes primordiais.
Wifredo Lam, se considera um amigo de Césaire de toda a vida desde seu encontro na
Martinica em 1941. Ele ilustrou Cahier du Retour au pay natal, (Retorno al país natal) a
edição de Havana de 1943. Lam por sua vez contribuiu com o frontispício da primeira edição
de Paris do ―Cahier‖, o qual Césaire havia ampliado consideravelmente. Por fim, ambos
produzem o livro Annonciation, que foi o último trabalho que fizeram em parceria e o único
onde o processo de colaboração no qual Césaire foi o intérprete das imagens, em um processo
reverso.
Essa reflexão sobre o poema que Césaire dedica a Lam, nos traz mais uma constatação
da discussão que ambos compartilham quanto à ideia do primitivo. A criação se põe em
função de almejar um mundo sob novos preceitos. Onde em lugar de aculturação, esta é
substituída pela presença do primitivo operacional, de suas dobras e complexidades melhor
apuradas com o tempo. Verdadeiramente essa soma de fatores é um importante precedente da
obra conjunta Annonciation.
Em uma epígrafe introdutória do livro Césaire inclui um poema assinado por Wifredo,
em que faz referência à sua madrinha como mãe de santo:
188
Mantoñica Wilson, ma / marraine, avait le pouvoir / de conjurer les
éléments… / Je l‘ai visitée dans sa maison / remplie d‘idoles africaines / Elle
m‘a donnée la protection / de tous ces dieux: / de Yemanja déesse de la mer /
de Shango. Dieu de la guerre / compagnon d‘Ogun / ferraille dieu du métal/
qui dorait chaque matin le soleil / toujours à côté d‘Olorun, le dieu absolu de
la création.95 (CÉSAIRE, 1982, p.82, tradução nossa)
É no sentido mais amplo uma homenagem à madrinha de Lam, entendida nas religiões
afro-cubanas e quem este rememora com afeto por tê-lo introduzido nesse assunto sobre o
qual se mostrou tão pródigo desde a plástica. A interpretação do Panteão iorubá de Cuba
como essencialmente africano por parte do poeta martiniquense é crucial na relação de
Césaire com Lam.
Quanto ao conjunto de poemas moi, laminaire…, publicado em 1982, que contém os
textos com que colaborou Césaire na série Annonciation de Lam, segundo Arnold (2014,
p.162) ―não tem recebido a mesma atenção crìtica que Cahier devido precisamente a que este
se afastava da visão comprometida com a negritude‖. Tem sido incluso menos comentados, já
que parecem evadir-se completamente dos esquemas tomados como ponto de partida para
analisar a obra poética do antilhano.
Uma breve resenha crítica não assinada e reproduzida no livro moi, laminaire (1982)
cujo trecho citamos a seguir, traz uma valoração sobre esta coletânea de poemas onde
predominam as metáforas e abundam as visões de Césaire como em um balanço de sua
carreira.
Quarenta anos após a erupção do Cahier d'un retour au pays natal, chegou a
hora de Aimé Césaire fazer um balanço, de contar as esperanças ao longo do
caminho percorrido.
[...]
Com um alga laminaire pendurada na rocha, o poeta sai contra o tempo, re-
inventariando as roupas de viagem: a serenidade da planta, a raiva que volta
da montanha, o ardor do cavalo. E ela observa sua história das Antilhas, um
grande rio no crepúsculo entre o Níger e a Amazônia, quebra fronteiras,
funda margens, acusa barragens, e está sujeita aos meandros da terra. E o
que resta das promessas de fontes? Na foz onde ─ todo o horizonte
aplainado pelos manguezais ─ se fundem à podridão e ao lodo, a resignação
e a resistência, o encalhe dos discursos e a subversão de uma palavra final ao
Mar?
[...]
95
Mantoñica Wilson, minha/ madrinha, tinha o poder/ de conjurar os elementos.../ Eu a visitei em sua
casa/ repleta de ídolos africanos. / Ela me deu a proteção/ de todos os deuses:/ de Iemanjá, a deusa do mar, de
Xangô, deus da/ guerra e companheiro de Ogum/ ferreiro deus do metal que doura cada manhã o sol, / sempre ao
lado de Olodum, o deus absoluto da criação.
189
Nesta nova coletânea, composta pelo mesmo ímpeto, decorrente de uma
necessidade implícita desde longa data, nenhum jogo de palavras mascara a
exigência de lucidez perante meio século de ação poética e compromisso
político (CÉSAIRE, 1982, p. 175, tradução nossa).
Algumas chaves aparecem nesta resenha crítica que ajudarão a compreender a suíte de
Lam. A alga laminaire, é uma espécie que abunda no mar Caribe, que ajuda a Césaire a
construir uma voz poética. Esta mimese entre a planta e o poema apontava, não era senão a
eleição de um ponto de vista panóptico. Césaire a escolhe como um sìmbolo de seu ―eu
poético‖ já que ela é majestosa, imponente, e se traslada de costa a costa entre as Antilhas. Ela
guarda consigo os segredos deste mar. Ela assim tem sobretudo o poder de inventariar a
história dos lugares. Ela acusa os vaticínios do mar e da terra. Ela quebra fronteiras, funda
margens, acusa barragens. Como pode se ver a natureza novamente é personificada em função
dos discursos, e da palavra final. A palavra que não mascara, senão dilata, amplifica a
necessidade de um poemário sobre as migrações e viagens que interconectam as ilhas e sobre
o compromisso político contra a colonização.
O poema que se intitula Wifredo Lam... é verso que funciona como um resumo dos
restantes da série Annonciation. Vejamos como a obra e o próprio artista são o alvo da visão
do poeta. Ele trata em particular de uma gênese que sugere os diversos lineamentos
compreendidos na obra de Lam:
96
dar parte nada menos de que/ o reino está sitiado/ o céu é precário/ o relevo iminente e legítimo/ nada
exceto que o ciclo das génesis se apresenta sem prévio aviso/ de explosão e a vida que se entrega sem filiação/ a
bárbara consigna/ nada exceto o desove com escalafrio das formas que se livram/ das relaciones fácies/ e fogem
longe de combinações demasiado prematuras/ mãos implorando/ mãos em oração/ o rosto do horrível não pode
ser melhor assinalado/ que por essas mãos deslumbrantes/ leitor de vísceras e destinos púrpuras recitador de
macumbas/ irmão meu que estás buscando entre esses bosques de cornos pontudos de asas de cavalos/todas as
coisas de um gume todas cosas de dois gumes avatares/ com tudo o de um deus excitado pelo saqueio/ monstros
que empreendem o voo/ tenho reconhecido nos combates justiceiros o raro riso de tuas armas/ enfeitiçadas a
vertigem de teu sangue e a lei de teu nome.
190
O poema Wifredo Lam... escrito em letra minúscula e sem pontos nem vírgulas, como
os restantes do livro, oferece verdadeiras imagens. A falta de maiúscula parece invocar uma
voz íntima. Diante da pergunta imanente sobre que tipo de anunciação nos aguarda, o poeta
responde: ―dar parte nada menos de que o reino está sitiado/ o céu é precário o relevo
iminente e legítimo/ nada exceto que o ciclo da gênese se apresenta sem prévio aviso de
explosão e vida‖. (CÉSAIRE, 1982, p. 83, tradução nossa). A locução ―dar parte‖ se refere
desde começo ao tipo de anunciação terrenal. Por demais ―o céu é precário e o relevo
iminente‖ reforça essa como dilatada espera da anunciação entre celestial e terrena. Ao
parecer este poema descreve a sorte de um desterrado ―que se entrega sem filiação a bárbara
consigna‖. (CÉSAIRE, 1982, p. 83, tradução nossa). Para Césaire o exìlio estava presente
desde o primeiro dia na existência subjetiva desse ente latino-americano e caribenho. Será a
palavra agora a que almeja fundir-se com a obra de Lam e sua retórica sobre as espécies que
povoam a terra. Quando no poema fala sobre essa gênese parece calçar as incertezas: ―nada
exceto o desove com escalafrio das formas que se livram das relaciones fácies e fogem longe
de combinações demasiado prematuras‖ (CÉSAIRE, 1982, p. 83, tradução nossa), transparece
a procriação como primeiras ações para encenar o mito da anunciação. Por fim assevera algo
que não pode ser mais concreto, diante de qualquer notìcia assustadora: ―mãos implorando
mãos em oração o rosto do horrível não pode ser melhor sinalizado que por essas mãos
deslumbrantes‖ (CÉSAIRE, 1982, p. 83, tradução nossa). Depois progride com a sentença
mais indefinida, sobre o destino que predisse Lam em suas águas-fortes ―todas as coisas de
um gume todas as coisas de dois gumes/ avatares, com tudo o de um deus excitado pelo
saqueio/ monstros que empreendem o voo‖. (CÉSAIRE, 1982, p. 14, tradução nossa). Podem-
se detectar os traços das explosões apocalípticas de Césaire neste poema, porém com um
registro bem diferente daquele de sua poesia de 1939 a 1948. Quando lemos ―que o ciclo da
gênese se apresenta sem prévio aviso de explosão‖, (CÉSAIRE, 1982, p. 14, tradução nossa),
o poema deste modo não nos permite predizer nenhuma transformação espiritual de uma
comunidade cultural, como era o caso da poética anterior de Césaire. Sobre este poema, e
sobre este novo tecido contemplado por Césaire, Arnold pondera:
191
Esse ―recitador de macumbas‖ esse epìteto que Césaire cria para Lam advertia, porém,
senão com tom triunfal, a dívida de Lam com a poesia como forma criativa. Ao final, ele era
como um poeta da forma e dos conjuros mágicos. Isto é crucial para entender a relação Lam e
Césaire. Vejamos o que Césaire apontou sobre seu próprio credo criativo em uma conferência
ministrada em Haiti em 1945.
Ao mesmo tempo, Césaire disse acreditar nas imagens que provém do velho fundo
ancestral: ―O que emerge também é o antigo passado ancestral. Imagens hereditárias que só
podem retornar um dia para decifrar a atmosfera poética. Conhecimento milenar enterrado.
(CÉSAIRE, 1994, p 167). Para Césaire a atmosfera poética era o patamar encarregado de
converter o conhecimento em algo plausível, ela mesma era a arena e receptáculo de
parentescos do homem com a natureza. Portanto, dentro dessa configuração esse imaginário
ancestral recriado sobre África e transponível às Antilhas pensadas em sua conformações
genéticas era um saber que em princípio, ao qual todos os descendentes de escravos no Novo
Mundo teriam acesso. Isto seria possível se conscientes disso se dedicassem a acessar ao
inconsciente coletivo, algo que além de ser um programa idealista, dava uma certa saída para
esse afrodescendente em particular, e todo ser humano em geral, aceder às vias de sua própria
descoberta como ser ontológico.
Quando repassamos estas declarações constatamos que o seu imaginário era tomado
de um fundo ancestral, e nisso ele se identificava plenamente com Lam. Portanto podemos
inferir que o elemento que estreita a relação entre artista e poeta, é esse reconhecimento da
imagem arquétipo que se manifesta tanto na poesia como na plástica: para Césaire desde a
visão da alga laminaire, para Lam na confecção de uma alteridade infundida de natureza.
Como chegar a essas imagens identitárias, se não adentrando no velho fundo ancestral? Se o
primitivismo ocidental consistia na projeção de uma definição social construída, na obra de
Lam e Césaire representa-se esse sujeito enigmático outro, aquilo que deveria ser
conquistado, explorado, uma taxonomia tríplice de raça, gênero e terra dobrada uma na outra.
192
Tudo isso formalmente e plasticamente se traduz em uma exploração lenta das imagens que
Lam comumente mobiliza. Na intermediação, nos matizes, nos fundos adensados que se
suspendem aquelas entidades que vão e vêm entre o primeiro plano e o plano de fundo como
presenças do primitivo e do primordial.
193
8. Conclusões
Bem sabemos que não existem conclusões definitivas diante da infinita capacidade da
mente humana de gerar novos saberes. Em um ensaio que contribuiu para a Anthologie du
livre illustré de Skira, Claude Roger-Marx descreveu os livros ilustrados por artistas de alto
reconhecimento como empreendimentos colaborativos únicos, mas destacou as dificuldades
relacionadas à sua venda e circulação. Concentrando-se no ambiente de publicação em Paris
do inìcio do século XX, ele escreveu: ―Os bons livros nascem em segredo. O sucesso é quase
problemático: traz consigo respostas indiferentes, especuladores, plagiadores‖. (MARX, 1925
p. 12). Este pensamento nos leva a detectar uma característica genérica dos livros ilustrados,
que coincide com o que Argan acreditava, que um dos objetivos da história da arte era se
aprofundar nesses objetos, comumente categorizados como uma arte menor, e de circulação
restrita, daí em parte a dificuldade dos historiadores de empreender estudos a esse respeito.
No caso de Lam, essa prática foi registrada e classificada dentro da gravura, fato que não só
exclui uma parcela importante de trabalhos nesse meio realizados em desenho nanquim, senão
que também adia a percepção da obra atrelada aos textos literários. Entretanto ao historiar
essa manifestação consideramos o livro ilustrado como um objeto de longo alcance com seus
próprios apelos e complexidades.
Partindo desses princípios a presente tese foi desenvolvida para demonstrar que os
livros ilustrados por Lam, realizados entre os anos quarenta e até o final da vida em 1982,
com autores caribenhos vinculados de modo direto ou indireto com o surrealismo ─ ainda que
não os únicos, pois numerosos trabalhos foram realizados por ele para autores europeus ─,
foram mais do que meras obras de coleção. Em lugar de ser apenas um meio muito cobiçado
pelo mercado, esse gênero supõe um envolvimento entre artista e autor. O livro ilustrado deu
a Wifredo Lam a oportunidade de realizar experiências que, em alguns casos, eram exclusivas
para o formato do livro e que, em outros, serviram como um contraponto do que ele estava
realizando em outros meios. Foi através de um confronto criativo com textos literários que
Lam estendeu sua própria estética experimentando as possibilidades da página. A estratégia
consistiu em apelar a uma gama de recursos estilísticos ou, inclusive, estruturais e técnicos
para adscrever-se à discussão imagem-palavra. Portanto, podemos concluir que a nossa
principal hipótese se confirma: para Lam os livros ilustrados, longe de serem uma arte menor,
constituem uma zona de interatividade, um meio que lhe permite confrontar os rumos teóricos
de sua arte, com as visões programáticas dos diferentes autores que ilustrou.
194
Ao optarmos por um recorte que aponta à relação particularmente com escritores
caribenhos que tiveram em comum um discurso sobre o ethos antilhano, com exceção de
Breton, comprovamos que seus livros ilustrados por Lam atendem a suas definições em torno
das relações que o Caribe aporta. A região antilhana é em verdade, como apontou Glissant,
uma multirrelação. Na arte desta região, além do geográfico tem se forçado na prática para
nomear a presença interna na cultura de traços de origem africana que sobressai dentre outros
aspectos de sua simbiose cultural. Esta acepção denomina uma etnocultura que povoa o
Caribe e que toma corpo nos diferentes meios artísticos. Alguns como Lam destinaram suas
obras a sistematizar e insistir em seus contornos, lineamentos, e até em recriar os mitos de
base e de origem dessa cultura em sua pluralidade e especificidade. Após a experiência com
Breton, rica e revigorada pela moldura da viagem rumo às Américas, Lam se debruça
mediante o livro ilustrado sobre as problemáticas de sua origem identitária. Desde Retorno al
País Natal, (1943), junto com Aimé Césaire interpreta as Antilhas como um arquipélago
açoitado pela agonia, mas preste a eclodir com um heróico sinal de redenção que alavancava
consigo o termo negritude. Mediante a relação com Glissant aprofunda na especificidade
antilhana e em um pensamento em forma de arquipélago que resulta mais proveitoso que o
pensamento continental monolítico, e que provoca uma imagem aberta e difratadas. Já na
colaboração com García Márquez, apoia-se em uma interpretação da ficção arquitetada no
Caribe. Por fim, sua última obra, realizada novamente junto a Césaire o artista trabalha com
uma forte presença mítica, onde as origens ausentes são substituídas por imagens arquétipos,
herdadas do pensamento cesariano, e mediadas por um retorno a um estado imaginário de
pureza etnocultural.
Contudo a presente tese considera que dessa parcela de sua obra – o livro ilustrado –
não se desenvolveu à margem dos novos enfoques dos estudos culturais, disciplina que desde
suas análises e posicionamento sobre colonialismo, eurocentrismo, aculturação,
transculturação, etc tornaram-se importantes classificações que a história da arte
frequentemente tomou emprestadas. Foi preciso não apenas descrever os fatos, mas explicar
direções e fenômenos que escapam às ortodoxias da história de outrora. Nos estudos culturais
a importante figura de Stuart Hall (1932-2014) terá como foco a crítica a conceitos como
―raça‖, ―identidade‖, e ―cultura‖, os quais tinham no discurso dos seus predecessores
permanecido de algum modo engessados. Quanto ao conceito de ―identidade‖, Hall
argumenta que existem dois tipos: identidade existente (identidade in being), (que oferece um
sentido de unidade e pensamento comum) e existe a identidade como devir (identity
195
becoming) que, longe de ser unificadora, deve ser mais entendida como uma abertura. Nesta
segunda designação, longe das crenças do imutável, mais movediça, imprevisível, possui uma
potente força transformadora e com novos desafios por revelar. Sendo assim as histórias
oficiais de identidade nacional, étnica e histórica não são mais convincentes. A ideia de uma
―cultura‖ hermética e trans-histórica sempre foi problemática, mas hoje essas construções
foram fatalmente enfraquecidas pelo discurso do pluralismo, do qual esses autores que Lam
ilustrou tomaram partido. Desta forma, uma história de mão dupla se estabelece e sobretudo
porque essa ideia da cultura como uma entidade aberta tornou-se uma constante em seu
trabalho. O artista era consciente dos apagamentos e estagnações das vozes da cultura
antilhana e por esse motivo ele trabalhou para que essas vozes tivessem um universo de
pertencimento.
Por outro lado, foi necessário incluir André Breton, ainda sendo este francês. É um
dado relevante que Wifredo Lam foi iniciado na ilustração de livros pela figura máxima do
surrealismo. A experiência com Breton, quem punha de antemão os preceitos técnicos deste
movimento, o leva a reconhecer as possibilidades de suas práticas como intérprete visual do
poema Fata Morgana (1940-1942). A proposta de incluir essa obra na presente pesquisa nos
levou a trabalhar com os enunciados do surrealismo em sua complexidade e como gerador de
técnicas que se desenvolvem tanto na estética como na história das manifestações. O
surrealismo não é um movimento ao qual devemos adicionar uma teoria, ele é um objeto
teórico que produz seus próprios conceitos críticos. Outro elemento importante é que quando
Bretom e Lam realizam a obra ilustrada, encontravam-se a caminho de consolidar suas
residências no Novo Mundo, escapando da Segunda Guerra Mundial. Breton uma vez
radicado nos Estados Unidos, supre o papel de articulador da grande rede surrealista que tinha
se radicado nos quatro cantos do continente americano. Foi graças a ele que o poema Fata
Morgana com os desenhos de Lam alcançou uma ampla circulação em revistas de arte e em
edições bilíngues. Poemas e desenhos que se converteram a pouco tempo de lançado em 1940
em um símbolo da nova circunstância do exílio, já que não só fora apreendido pelo governo
de Vichy que os afugentava de Paris, senão que foi reeditado dois anos mais tarde por Lettres
Françaises por Victoria Ocampo em Buenos Aires. Dois anos depois foi incluído na mostra
marco da chegada dos surrealistas às Américas, a saber a exposição Firts Papers of
Surrealism (American Society, New York, White Chapell, 1942). Ainda nossa pesquisa sobre
Fata Morgana trouxe como resultado algumas considerações sobre os percursos interculturais
que um livro ilustrado pode tomar.
196
Por outro lado, ao trazer como recorte e foco de nosso estudo os livros de autores
antilhanos, foi possível reconstruir uma história da arte desde o balanço crítico da região de
uma maneira mais dilatada. Permitiu confrontar os diferentes livros ilustrados como textos,
como imagem e como crítica, com desdobramentos, contextos, que amiúde foram um
estímulo para Lam. Argumentamos ao longo deste estudo que a produção de livros permite a
Lam manter relações estreitas com uma ampla gama de escritores contemporâneos. A
diversidade deste grupo em sua produção funcionou como um poderoso estímulo à
imaginação do artista e lhe permitiu desenvolver respostas criativas distintas para estilos
literalmente contrastantes. Esses autores ajudaram a desenvolver um quadro teórico para a
abordagem da arte de Lam. Note-se que além de interlocutores importantes na evolução de
sua praxis artística, eles em sua maioria dedicam textos críticos ao artista, que permitiriam
nortear nossa melhor compreensão das afinidades em termos discursivos entre Lam e os
autores. Pudemos constatar que a publicação de livros de edição limitada propiciou um padrão
recíproco de confluências e se tornou um catalisador para a criação de redes que uniram os
campos da arte, literatura e crítica.
Mediante esta tese concluímos que as imagens dos livros ilustrados de Lam servem
como propósitos criativos onde o artista extrai do texto ideias pontuais que performatiza,
nunca de modo imitativo, mas trabalhados como equivalentes plásticos. Contudo foi possível
fazer um balanço de um grande repertório de recursos empregados por Lam em cada obra
ilustrada, a qual é a princípio mista, visual e textual. O que resulta em uma obra desenhística e
gráfica, onde o artista atende com versatilidade de propostas e de estratégias desenvolvidas
em paralelo com os diferentes credos desses escritores. Ao explorar a relação da obra visual
de Lam como equivalente de conceitos tais como automatismo, negritude, antilhanidade e
realismo mágico, chegamos à conclusão que após sua experiência como intérprete desses
autores, o artista assimila e incorpora suas visões programáticas.
Como resultado obtivemos o reconhecimento dos propósitos de cada obra do
ilustrador e do escritor. Em Fata Morgana o tópico da viagem de exílio como um domínio de
incertezas abordado por Breton, faz Lam recorrer às experiências de cadavre exquis realizadas
em Marselha para conseguir uma imagem em mutação.
Ademais o desenho de traço contínuo fora o escolhido por Lam para dar forma ao
complexo conceito da negritude, trabalhado como uma litania no poema de Aimé Césaire
Retorno al País Natal, onde a palavra de ordem foi interpretada por Lam com desenhos que
refletem sobre a autoctonia do antilhano que levanta sua voz sem estigmas. Neste caso o
197
desenho de traço continuo é equiparável ao sentido de metamorfose que é uma das chaves
interpretativas da obra poética. O pintor redescobre o universo cultural em quanto universo
artístico pessoal, que detém uma conexão fecunda, no instante preciso. Fascinado pelo
africano e o primitivo, graças à arte moderna, foi dando saída ao africano e o primitivo que
levava dentro, mas comprometido com romper com as estigmatizações. Em Cuba, diz
Fernando Ortiz, ―o africano está nele próprio, em Lam, e também em todo seu entorno, não é
um sentimento difuso nem um sonho, uma lembrança, ou algo que está no museu.‖ (2002, p.
285). Havia transitado, como diz Carpentier, de um mundo ―fixado‖ a outro de ―sonhos, de
metamorfoses, de transformações vegetais e telúricas.‖ (2002, p. 190). Pode-se dizer que tinha
se convertido no artista intérprete dessa negritude nos moldes que professava Césaire.
Passando por um segundo momento, no pós-guerra, Lam realiza as gravuras para La
Terre Inquiète de Edouard Glissant onde o elemento da antilhanidade, expresso na obra
literária se reflete nas imagens. Os mais caros sinônimos emergem como reflexo da identidade
dos povos que protagonizam as mitopoéticas presentes no poema. Se de um lado Glissant deu
ênfase a imagens sequenciais e simultâneas, e ao símbolo como testemunhas da identidade
antilhana, Lam produz como equivalente gráfico uma série de gravuras que classificamos de
natureza serial e expandida. Um dado importante é que Lam representa a paisagem antilhana
explorando as especificidades do tempo e do espaço. A partir de La Terre Inquiète trata sobre
a construção de um mundo hibridado, onde as ilhas têm vantagens sobre os continentes posto
que se encontram sempre em processo de transformação, em algo diferente ao que já foram.
Desafiando a ideia de identidade unitária a ilha perde seu valor como território exclusivo e
sagrado que ao entrar na esfera de antilhanidade se propõe liberar o espaço insular de uma
particularidade claustrofóbica. Assim a obra de ambos se põe em função de recuperar a
especificidade antilhana dessa outridade generalizada. Para performativizar essas primícias de
definir novos contextos regionais ou hemisféricos, ele concebe as gravuras como uma
multiplicação de frames, concebe assim cada uma como uma procriação entre fauna e flora
embrenhada, uma procriação que está sendo gerada pela mão do artista que guarda um
compromisso com a arte como uma espécie de escrita.
No livro realizado em colaboração com García Márquez outras são as sintaxes das que
Lam toma partido. Nas litografias se reflete uma narrativa que trata sobre um sujeito do povo
que entra em catarse para apresentar o resultado do sonho que se torna tangível, sonho ou
revelação de um navio fantasma que aparece no cenário do Caribe. A imaginação como algo
factual e concreto do ―realismo mágico‖ garciamarquiano encontra a violência das figurações
198
informes de Lam, na interpretação de uma das mais apelativas lendas do Caribe. O livro
contém doze lâminas assinadas por Lam, onde cada figura parece explodir diretamente do
gesto do artista amplificando os significados do texto. A escrita deste também oferece uma
aceleração compulsória. As imagens estão atreladas às ações do personagem central que
realiza uma manobra contra os incrédulos e seus sentidos pouco aguçados. Essa conjunção de
elementos em jogo permite que façamos uma leitura da obra desde traços muito simplificados
e sincréticos que até elencam o registro informal com algumas alusões aos veves haitianos.
Por fim em Annonciation o livro parte das gravuras feitas pelo artista como um resumo
de sua obra em busca de um raciocínio pós-colonial, a suíte de gravuras dá suporte imagético
ao conjunto de poemas elaborados a posteriori por Césaire. O resultado foi uma das mais
belas e elaboradas séries dentro da manifestação. O artista realiza uma obra que resume seu
vocabulário plástico e que são uma interpretação da filosofia e o ideário que compartilha com
o poeta martinicano. De modo que o resultado contém as ideias de anti-colonialismo
cimentadas pela lógica do pós-moderno, onde o antilhanismo aparece mais dilatado,
multiplicado e expandido. Esta obra explora novamente o multiculturalismo do Caribe desde
noções míticas de origem imbricadas com a paisagem. Ambos colocam seus esforços por
difundir uma imagem arquétipo, que segundo acreditavam eram as mais eficazes fontes de
(auto) conhecimento no discurso sobre a identidade. Há reverência à ―anunciação‖ eclipsada e
localizada no ambiente dos Trópicos. Outra vez a flora, a fauna e os elementos divinos são
evocados para mostrar as inquietações do ser que povoa as ilhas, demarcando suas antíteses.
O presente estudo procurou agrupar alguns parâmetros das atividades de leitura de
Lam e nos faz acreditar que se tratam daqueles raros exemplos em que a leitura deixa suas
marcas na obra deste artista. São marcas onde espírito criativo e a crítica continuam a render
resultados novos e inesperados. Ao realizar trabalhos conjuntos com esses escritores
caribenhos contemporâneos, Lam projeta um universo singular sobre as Antilhas. Ao
trabalhar a paisagem, se nega a reproduzir um modelo aprazível, em troca oferece uma obra
onde o inconsciente coletivo da voz antilhana fala mais alto desde a paisagem embrenhada e
pulsante. Convida ―à participação de todos na beleza multiplicada e inesperada‖ (GLISSANT,
2002, p 12).
Wifredo Lam, o artista que sempre vai se posicionar em uma zona onde as histórias
são compartilhadas de um lado atento ao encontro com o maravilhoso e de outro, às forças
utópicas que se projetam mediante a relação com a poesia e a prosa do Caribe. As rígidas
polaridades se substituem por um processo inclusivo da multirrelação antilhana, que faz
199
obsoleto os modelos rígidos de valorização das potencias hegemônicas colonizadoras. Essas
síntese e convergências elevam a obra de Lam como herdeira de um discurso de vanguarda
que suplanta e dá voz às subjetividades segregadas.
200
REFERÊNCIAS
ADES, D. et. al. L’amour fou: photography and surrealism. New York: Abbeville Press,
1985.
ARNOLD, J. Introduction The Original 1939 Notebook of a Return to the Native Land
(Wesleyan P), 2013.
BARR, A. Uma carta. The Museum of Modern Art,New York. In NOCEDA, J.M. (org)
Wifredo Lam: La cosecha de un brujo. Havana: Ed. Letras Cubanas, 2002.
BENITEZ, H. Wifredo and Helena: My Life with Wifredo Lam, 1939-1950. Lausanne:
Acatos, 1999.
BORRAS, M.L. Lam in Spain in. LAURIN, L. (Org.) Catalogue Raisonné of the Painted
Work. Volume I 1923-1960. Paris: Gary Nader fine art, 1996.
BRETON, A. A Great Black Poet. In: Notebook of a Return to the Native Land.
Middletown, CT: Wesleyan University Press. 1979.
201
BRETON, A. La noche en Haití. In: NOCEDA, J.M. (org) Wifredo Lam: La cosecha de un
brujo. Havana: Ed. Letras Cubanas, 2002.
BROWN, K. Matisse's Poets. Critical Performance in the Artist's Book. New York:
Bloomsbury Academic, 2017.
CABRERA, L. Un gran pintor: Wifredo Lam. In NOCEDA, J.M. Wifredo Lam: La cosecha
de un brujo. Havana: Ed. Letras Cubanas, 2002.
CARPENTIER, A. El reino de este mundo.6. ed. México D.F: Ed. CIA General de
Ediciones, 1973. 81p.
CARPENTIER, A. Wifredo Lam en New York. In NOCEDA, J.M (org). Wifredo Lam: La
cosecha de un brujo. La Habana: Ed. Letras Cubanas, 2002. p 184 -186.
CASTELMAN. A Century of Artists's Books. New York: Museum of Modern Art/ Harry N
Abrams, 1994)
CÉSAIRE, A. La Poésie. Editores Daniel Maximin et Gilles Carpentier. Paris: Seuil, 1994.
CÉSAIRE, A; ARNOLD, J. (org) The Original 1939 Notebook of a Return to the Native
Land. Ed. Wesleyan P
CÉSAIRE, A. Retorno al país natal. Trad. Lydia Cabrera. Ilustrações de Wifredo Lam.
Prefácio de Benjamin Péret. Havana: Ed. Molinas y Companhia. Col. Textos Poéticos, 1943.
CÉSAIRE, A Discurso sobre a Negritude. Belo Horizonte: Ed. Nandyala, 2010. 120 p.
202
CÉSAIRE, A. Wifredo Lam. In NOCEDA, J.M (org). Wifredo Lam: La cosecha de um
brujo. Havana: Ed. Letras Cubanas, 2002. p 200-202
DAVID, C. Lam en nuestro siglo. In: NOCEDA, J. (org). Wifredo Lam: La cosecha de un
brujo. Havana: Ed. Letras Cubanas, 2002.
DEPESTRE, R. Bonjour et adieu à la négritude. Paris: Ed. Robert Laffont, 1980.
DRUKER, J. The Century of Artists' Books. New York: Granary Books, 2004.
GARCÍA MÁRQUEZ, G. El último viaje del buque fantasma. Barcelona: Edições Polígrafa,
1976
GLISSANT El Discurso Antillano. La Habana, Fondo Editorial Casa de las Américas, 2010
HERZBERG. J. Wifredo Lam. Scottsdale: Ed. Latin American Art, 1990. p. 206.
203
HUBERT, E. Fata Morgana (Notice) In BRETON, A. Oeuvres Completes. Paris: Gallimard,
1992
KRAUSS, R. Rosalind. The originality of the advant-garde and other modernist myths.
New York: MIT Press, 1985. p. 289.
LAURIN, L. (Org.) Cronology In: Catalogue Raisonné of the Painted Work. Volume I
1923-1960. Paris: Gary Nader fine art, 1996.
LICHTENSTEIN, J. (org) A pintura -vol 7: O paralelo das artes apresentação). São Paulo: Ed.
34, 2005. p.136
MARTIN, G. Gabriel García Márquez: una vida. Nova York: Knopf Doubleday Publishing
Group, 2009.
ORTIZ, F. Wifredo Lam y su obra vista a través de Significados Críticos. In NOCEDA, J.M.
(org) Wifredo Lam: La cosecha de un brujo. Havana: Ed. Letras Cubanas, 2002.
204
PARIS, J. Notice in GLISSANT. Poèmes. Paris, Éditions du Seuil, 1965
PONGE, R. Surrealismo e Novo Mundo. (Org.) Porto Alegre: Ed. Universidade /UFRGS,
1999. p. 335
RETAMAR, R. Calibán. In: Revolución, Letras, Arte (Antología). Havana: Editorial Letras
Cubanas, 1980
RODRIGUEZ SOSA, F. Lam como un laberinto In: NOCEDA, J. (org). Wifredo Lam: La
cosecha de un brujo. Havana: Ed. Letras Cubanas, 2002.
SENNA, O. Oficina de Roteiro de Gabriel García Márquez: Como contar um conto. São
Paulo. Casa Jorge Editorial, 2004
TRABA, M. Wifredo Lam. In: NOCEDA, J. (org). Wifredo Lam: La cosecha de un brujo.
Havana: Ed. Letras Cubanas, 2002.
VALERY, Paul. Le Deux Vertus d' um livre. Oeuvres, vol II. Paris: Gallimard, Bibliothèque
de la Pléiade, 1960
YAU, J. Sírvase esperar junto al guardarropa. In: NOCEDA, J. (org). Wifredo Lam: La
cosecha de un brujo. Havana: Ed. Letras Cubanas, 2002.
CATÁLOGOS
BENITO, X. Wifredo Lam e seu modernismo selvático. In Wifredo Lam: Gravuras, 2010. Rio
de Janeiro: CAIXA Cultural.
205
BONITO OLIVA, A. Italiana, 1950-1986. Madrid, Cimal Internacional, 1986.
DAVID, Catherine. The Invention of the New World: Drawings 1914-1942. In Wifredo Lam
A Retrospective of Works on Paper 1992. New York: America Society; Barcelona: Fundació
La Caixa.
MAURER, E. Dada and Surrealism. In RUBIN, W.(editor). Primitivism in 20th Century Art.
Affinity of the tribal and the modern. New York, 1985, p. 580
STOKES-SIMS. L. Rethinking the Destiny of Line in Painting: The Later Work of Wifredo
Lam. In Wifredo Lam A Retrospective of Works on Paper 1992. New York: America Society;
Barcelona: Fundació La Caixa.
PERIÓDICOS
APÓCRIFO. ―Wifredo Lam, Gouaches at Pierre Matisse‖. Art News, 44, 1945
ARNOLD, A ―África con Aimé Césaire y Wifredo Lam‖. Revista América sin nombre, no 19
(2014).
HEROLD; JOUFFROU. ―Le jeux surrealista. Entretien avec Jacques Herold.‖ XX Siècle.
Nouvelle série XXXVI Année, n 42, juin, 1974.
206
LÓPEZ, M. ―Albisola Mare em Wifredo Lam‖. Granma. 14 Setembro, 1986
MC BRIDE, H. ―Wifredo Lam, Gouaches at Pierre Matisse‖. Art News, 44, 1945
NUÑEZ, J. ―Downloading África. Fata Morgana na obra de Wifredo Lam‖. Revista Islas.
2018
SUAREZ, R. ―Wifredo Lam: Pintor que viene de si, está en sì y vá hacia sì.‖ Diário de la
Marina (enero, 30, 1955) 8, 10 Archives SDO Wifredo Lam, Paris.
MIDIAS
SITIOS WEB
207
Rizome. Glossário de Édouard Glissant. Disponível em www.edouardglissant.fr. Acessado
em 05/10/2020
Tres cuentos que te ayudarán a entender El Otoño del Patriarca, publicado em 06/07/2018.
Disponível em https://centrogabo.org/gabo/contemos-gabo/tres-cuentos-de-garcia-marquez-
que-te-ayudaran-leer-el-otono-del-patriarca. Acessado em 21/12/2020
208