Biografia de Karl Marx - Feita Por Lenin

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Karl Marx

(Breve Esboço Biográfico


Seguido de uma Exposição
do Marxismo)(N1)
V. I. Lénine
Novembro de 1914
Transcrição autorizada

Escrito: Julho a Novembro de 1914


Primeira edição: Em forma abreviada, 1915, no t.28 do Dicionário Enciclopédico
Granat, 7ª Edição, sob a assinatura de V. Iline. O Prefácio foi publicado em 1918 na
brochura: N. Lénine, Karl Marx, Moscovo, Ed. Pribói.
Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Edições "Avante!", 1977, t1, pp 3-27.
Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I.
Lénine, 5.ª ed. em russo, t.26, pp. 43-93.
Transcrição e HTML: Manuel Gouveia
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa
reservados por Edições "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo.

Prefácio
O artigo sobre Karl Marx, que agora aparece impresso
em separado, foi escrito por mim em 1913 (se bem me
lembro) para o dicionário Granat. No final do artigo,
inseria-se uma bibliografia bastante pormenorizada
acerca de Marx, sobretudo de publicações estrangeiras. Não foi incluída
na presente edição. Além disso, a redacção do dicionário, por seu lado,
devido à censura, suprimiu o final do artigo sobre Marx, onde se
expunha a sua táctica revolucionária. Infelizmente, é-me impossível
reproduzir aqui esse final, pois o rascunho ficou entre os meus papéis,
em Cracóvia ou na Suiça. Lembro-me apenas que aí citava, entre
outras coisas, a passagem da carta de Marx a Engels datada de
16.IV.1856 em que escrevia: "Na Alemanha tudo dependerá da
possibilidade de apoiar a revolução proletária com uma espécie de
segunda edição da guerra camponesa. Então tudo correrá
optimamente." É isto que não compreenderam, em 1905, os nossos
mencheviques(N2), que desceram agora até à traição completa ao
socialismo, até à passagem para o lado da burguesia.

Moscovo, 14.V.1918, N. Lénine

Karl Marx nasceu em 5 de Maio de 1818 em Trier (Prússia renana). O


pai, advogado, israelita, converteu-se em 1824 ao protestantismo. A
família, abastada e culta, não era revolucionária. Depois de ter
terminado os seus estudos no liceu de Trier, Marx entrou na
Universidade de Bona e depois na de Berlim; aí estudou direito e,
sobretudo história e filosofia. Em 1841 terminava o curso defendendo
uma tese de doutoramento sobre a filosofia de Epicuro. Eram, então,
as concepções de Marx as de um idealista hegeliano. Em Berlim, aderiu
ao círculo dos "hegelianos de esquerda"(N3) (Bruno Bauer e outros) que
procuravam tirar da filosofia de Hegel conclusões ateias e
revolucionárias.

Ao sair da Universidade, Marx fixou-se em Bona, onde contava tornar-


se professor. Mas a política reacionária de um governo que, em 1832,
tinha tirado a Ludwig Feuerbach a sua cadeira de professor, recusando-
lhe novamente o acesso à Universidade em 1836, e que em 1841
proibira o jovem professor Bruno Bauer de fazer conferências em Bona,
obrigou Marx a renunciar a uma carreira universitária. Nessa época, o
desenvolvimento das ideias do hegelianismo de esquerda fazia, na
Alemanha, rápidos progressos. A partir, sobretudo de 1836, Ludwig
Feuerbach começa a criticar a teologia e a orientar-se para o
materialismo, a que, em 1841, adere completamente (A Essência do
Cristianismo); em 1843 aparecem os seus Princípios da Filosofia do
Futuro. "É preciso (...) ter vivido a influência emancipadora" desses
livros, escreveu mais tarde Engels, a propósito destas obras de
Feuerbach. "Nós", (isto é, os hegelianos de esquerda, entre eles Marx)
"imediatamente nos tornamos feuerbachianos."(N4) Nessa altura os
burgueses radicais da Renânia, que tinham certos pontos de contacto
com os hegelianos de esquerda, fundaram em Colónia um jornal de
oposição, a Gazeta Renana(N5) (que apareceu a partir de 1 de Janeiro
de 1842). Marx e Bruno Bauer foram os seus principais colaboradores
e, em Outubro de 1842, Marx tornou-se o redator-chefe, mudando-se
então de Bona para Colónia. Sob a direcção de Marx, a tendência
democrática revolucionária do jornal acentuou-se cada vez mais e o
governo começou por submetê-lo a uma dupla e mesmo tripla censura
e acabou por ordenar a sua suspensão completa a partir de 1 de Janeiro
de 1843. Por essa altura, Marx viu-se obrigado a deixar o seu posto de
redator, mas a sua saída não salvou o jornal, que foi proibido em Março
de 1843. Entre os artigos mais importantes que Marx publicou
na Gazeta Renana, além dos que indicamos mais adiante
(ver Bibliografia(N6)) Engels cita um sobre a situação dos vinhateiros do
vale do Mosela(N7). A sua actividade de jornalista tinha feito
compreender a Marx que os seus conhecimentos de economia política
eram insuficientes e por isso lançou-se a estudá-la com ardor.

Em 1843, Marx casou-se, em Kreuznach, com Jenny von Westphalen,


amiga de infância, de quem já era noivo desde o tempo de estudante.
A sua mulher pertencia a uma família nobre e reaccionária da Prússia.
O irmão mais velho de Jenny von Westphalen foi ministro do Interior
na Prússia numa das épocas mais reaccionárias, de 1850 a 1858. No
Outono de 1843, Marx foi para Paris para editar no estrangeiro uma
revista radical em colaboração com Arnold Ruge (1802-1880;
hegeliano de esquerda, preso de 1825 a 1830; emigrado depois de
1848 e partidário de Bismarck depois de 1866-1870). Mas só apareceu
o primeiro fascículo desta revista, intitulada Anais Franco-Alemães(N8),
que teve de ser suspensa por causa das dificuldades com a sua difusão
clandestina na Alemanha e de divergências com Ruge. Nos artigos de
Marx publicados pela revista, ele aparece-nos já como um
revolucionário que proclama "a crítica implacável de tudo o que existe"
e, em particular, "a crítica das armas"(N9), e apela para as massas e
o proletariado.

Em Setembro de 1844, Friedrich Engels esteve em Paris por uns dias,


e desde então tornou-se o amigo mais íntimo de Marx. Ambos tomaram
uma parte muito activa na vida agitada da época dos grupos
revolucionários de Paris (especial importância assumia então a
doutrina de Proudhon(N10), que Marx submeteu a uma crítica impiedosa
na sua obra Miséria da Filosofia, publicada em 1847) e, numa árdua
luta contra as diversas doutrinas do socialismo pequeno-burguês,
elaboraram a teoria e a táctica do socialismo
proletário revolucionário ou comunismo (marxismo). Vejam-se as
obras de Marx desta época, 1844-1848, mais adiante na Bibliografia.
Em 1845, a pedido do governo prussiano, Marx foi expulso de Paris
como revolucionário perigoso. Foi para Bruxelas, onde fixou residência.
Na Primavera de 1847, Marx e Engels filiaram-se numa sociedade
secreta de propaganda, a "Liga dos Comunistas"(N11), tiveram papel
destacado no II Congresso desta Liga (Londres, Novembro de 1847) e
por incumbência do Congresso redigiram o célebre Manifesto do
Partido Comunista, publicado em Fevereiro de 1848. Esta obra expõe,
com uma clareza e um vigor geniais, a nova concepção do mundo, o
materialismo consequente aplicado também ao domínio da vida social,
a dialéctica como a doutrina mais vasta e mais profunda do
desenvolvimento, a teoria da luta de classes e do papel revolucionário
histórico universal do proletariado, criador de uma sociedade nova, a
sociedade comunista.

Quando eclodiu a revolução de Fevereiro de 1848(12), Marx foi expulso


da Bélgica. Regressou novamente a Paris, que deixou depois da
revolução de Março(N13) para voltar à Alemanha e fixar-se em Colónia.
Foi aí que apareceu, de 1 de Junho de 1848 até 19 de Maio de 1849,
a Nova Gazeta Renana(N14), de que Marx foi o redator-chefe. A nova
teoria foi brilhantemente confirmada pelo curso dos acontecimentos
revolucionários de 1848-1849 e posteriormente por todos os
movimentos proletários e democráticos em todos os países do mundo.
A contra-revolução vitoriosa arrastou Marx ao tribunal (foi absolvido
em 9 de Fevereiro de 1849) e depois expulsou-o da Alemanha (em 16
de Maio de 1849). Voltou então para Paris, de onde foi igualmente
expulso após a manifestação de 13 de Junho de 1849 (N15), e partiu
depois para Londres, onde viveu até ao fim dos seus dias.

As condições desta vida de emigração eram extremamente penosas,


como o revela com particular vivacidade a correspondência entre Marx
e Engels (editada em 1913). Marx e a família viviam literalmente
esmagados pela miséria; sem o apoio financeiro constante e dedicado
de Engels, Marx não só não teria podido acabar O Capital, como teria
fatalmente sucumbido à miséria. Além disso, as doutrinas e as
correntes predominantes do socialismo pequeno-burguês, do
socialismo não proletário em geral, obrigavam Marx a sustentar uma
luta implacável, incessante e, por vezes, a defender-se mesmo dos
ataques pessoais mais furiosos e mais absurdos (Herr Vogt(N16)).
Conservando-se à margem dos círculos de emigrados, Marx
desenvolveu numa série de trabalhos históricos (ver Bibliografia) a sua
teoria materialista, dedicando-se, sobretudo ao estudo da economia
política. Revolucionou esta ciência (ver a seguir o capítulo acerca
da doutrina de Marx), nas suas obras Contribuição para a Crítica da
Economia Política (1859) e O Capital (t. I, 1867).
A época da reanimação dos movimentos democráticos, no final dos
anos 50 e nos anos 60, levou Marx a voltar ao trabalho prático. Foi em
1864 (em 28 de Setembro) que se fundou em Londres a célebre I
Internacional, a "Associação Internacional dos Trabalhadores". Marx foi
a sua alma, sendo o autor do primeiro "Apelo"(N17) e de um grande
número de resoluções, declarações e manifestos. Unindo o movimento
operário dos diversos países, procurando orientar numa via de
actividade comum as diferentes formas do socialismo não proletário,
pré-marxista (Mazzini, Proudhon, Bakúnine, o trade-unionismo liberal
inglês, as oscilações dos lassallianos para a direita na Alemanha, etc.)
combatendo as teorias de todas estas seitas e escolas, Marx foi
forjando uma táctica única para a luta proletária da classe operária nos
diversos países. Depois da queda da Comuna de Paris (1871) - a qual
Marx analisou (em A Guerra Civil em França, 1871) de uma maneira
tão penetrante, tão justa, tão brilhante, tão eficaz e revolucionária - e
depois da cisão provocada pelos bakuninista(N18), a Internacional não
pôde continuar a subsistir na Europa. Depois do Congresso de 1872
em Haia, Marx conseguiu a transferência do Conselho Geral da
Internacional para Nova lorque. A I Internacional tinha cumprido a sua
missão histórica e dava lugar a uma época de crescimento
infinitamente maior do movimento operário em todos os países do
mundo, caracterizada pelo seu desenvolvimento em extensão, pela
formação de partidos socialistas operários de massas no quadro dos
diversos Estados nacionais.

A sua actividade intensa na Internacional e os seus trabalhos teóricos,


que exigiam esforços ainda maiores, abalaram definitivamente a saúde
de Marx. Prosseguiu a sua obra de transformação da economia política
e de acabamento de O Capital, reunindo uma massa de documentos
novos e estudando várias línguas (o russo, por exemplo), mas a doença
impediu-o de terminar O Capital.

A 2 de Dezembro de 1881, morre a sua mulher. A 14 de Março de


1883, Marx adormecia pacificamente, na sua poltrona, para o último
sono. Foi enterrado junto da sua mulher no cemitério de Highgate, em
Londres. Vários filhos de Marx morreram muito jovens, em Londres,
quando a família atravessava uma grande miséria. Três das suas filhas
casaram com socialistas ingleses e franceses: Eleanor Aveling, Laura
Lafargue e Jenny Longuet; um dos filhos desta última é membro do
Partido Socialista Francês.

A Doutrina de Marx
O marxismo é o sistema das ideias e da doutrina de Marx. Marx
continuou e desenvolveu plena e genialmente as três principais
correntes ideológicas do século XIX, nos três países mais avançados
da humanidade: a filosofia clássica alemã, a economia política clássica
inglesa e o socialismo francês, em ligação com as doutrinas
revolucionárias francesas em geral. O carácter notavelmente coerente
e integral das suas ideias, reconhecido pelos próprios adversários - e
que, no seu conjunto, constituem o materialismo moderno e o
socialismo científico moderno como teoria e programa do movimento
operário de todos os países civilizados -, obriga-nos a fazer preceder a
exposição do conteúdo essencial do marxismo, a doutrina económica
de Marx, de um breve resumo da sua concepção do mundo em geral.

O Materialismo Filosófico

Desde 1844-1845, época em que se formaram as suas ideias, Marx foi


materialista; foi, em particular, partidário de L. Feuerbach, cujo único
lado fraco foi para ele, mesmo mais tarde, a falta de coerência e de
universalidade do seu materialismo. Marx via a importância histórica
mundial de Feuerbach, que "fez época", precisamente na sua ruptura
decisiva com o idealismo de Hegel e na sua afirmação do materialismo
que já desde "o século XVIII e nomeadamente em França não foi
apenas uma luta contra as instituições políticas existentes, assim como
contra a religião e a teologia existentes, mas também ... contra toda a
metafísica" (tomada no sentido de "especulação delirante" por
oposição a uma "filosofia sensata") (A Sagrada Família(N19),
no Literarischer Nachlass). "Para Hegel - escrevia Marx - o processo do
pensamento, que ele personifica mesmo sob o nome de ideia num
sujeito independente, é o demiurgo (o criador) da realidade ... Para
mim, pelo contrário, o ideal não é senão o material transposto e
traduzido no cérebro humano" (O Capital, I, posfácio da segunda
edição). Perfeitamente de acordo com a filosofia materialista de Marx,
F. Engels, expondo-a no Anti-Dühring (ver), que Marx lera ainda em
manuscrito, escrevia: "A unidade do mundo não consiste no seu ser ...
A unidade real do mundo consiste na sua materialidade e esta última
está provada ... por um longo e laborioso desenvolvimento da filosofia
e das ciências naturais ... O movimento é o modo de existência da
matéria. Nunca e em parte alguma houve nem poderá haver matéria
sem movimento ... Matéria sem movimento é impensável do mesmo
modo que movimento sem matéria ... Mas, se se pergunta, depois
disso, o que são o pensamento e a consciência, e donde provêm,
conclui-se que são produtos do cérebro humano e que o próprio
homem é um produto da natureza, o qual se desenvolveu no seu
ambiente e com ele; daí se compreende por si só que os produtos do
cérebro humano que, em última análise, são igualmente produtos da
natureza, não estão em contradição, mas sim em correspondência com
a restante conexão da natureza", "Hegel era idealista, isto é, para ele,
as ideias do seu cérebro não eram reflexos (Abbilder, por vezes Engels
fala de "reproduções") mais ou menos abstratos dos objetos e dos
fenómenos reais, mas, pelo contrário, eram os objetos e o seu
desenvolvimento que eram para ele os reflexos da ideia, que já existia,
não se sabe onde, antes da existência do mundo." No seu Ludwig
Feuerbach, livro onde expõe as suas ideias e as de Marx sobre a
filosofia de Feuerbach e que só mandou imprimir depois de ter lido uma
vez mais o velho manuscrito de 1844-1845, escrito em colaboração
com Marx, sobre Hegel, Feuerbach e a concepção materialista da
história, Engels escreve: "A grande questão fundamental de toda a
filosofia, especialmente da filosofia moderna, é a da relação entre o
pensamento e o ser, entre o espírito e a natureza ... Que é primeiro: o
espírito ou a natureza?... Conforme respondiam de uma maneira ou de
outra a esta questão, os filósofos dividiam-se em dois grandes campos.
Aqueles que afirmavam que o espírito é primeiro em relação à natureza
e que, por conseguinte, admitiam, em última instância, uma criação do
mundo de qualquer espécie ... constituíam o campo do idealismo. Os
outros, que consideravam a natureza como o elemento primordial,
pertenciam às diversas escolas do materialismo." Qualquer outro
emprego dos conceitos de idealismo e de materialismo (no sentido
filosófico), não faz mais do que criar a confusão; Marx repudiou
categoricamente não apenas o idealismo, sempre ligado, de uma
maneira ou de outra, à religião, mas também o ponto de vista,
particularmente difundido nos nossos dias, de Hume e de Kant, o
agnosticismo, o criticismo, o positivismo(N20) sob os seus diferentes
aspectos, considerando esse género de filosofia como uma concessão
"reaccionária" ao idealismo, e, no melhor dos casos, "uma maneira
envergonhada de aceitar o materialismo às escondidas, renegando-a
publicamente". A este respeito, é bom consultar, além das já citadas
obras de Marx e Engels, a carta de Marx a Engels, datada de 12 de
Dezembro de 1866, em que, falando de uma intervenção do célebre
naturalista T. Huxley, que se mostrou "mais materialista" do que
habitualmente e reconheceu que "enquanto observamos e pensamos
realmente nunca podemos sair do materialismo", Marx o critica por ter
"aberto uma porta" ao agnosticismo e à teoria de Hume. É importante,
sobretudo reter a opinião de Marx sobre as relações entre a liberdade
e a necessidade: "A necessidade só é cega enquanto não é
compreendida. A liberdade consiste em conhecer a necessidade." (F.
Engels, Anti-Dühring.) É o reconhecimento das leis objectivas que
regem a natureza e da transformação dialéctica da necessidade em
liberdade (da mesma maneira que a transformação da "coisa em si"
não conhecida mas cognoscível, em "coisa para nós", da "essência das
coisas" em "fenómenos"). O defeito essencial do "velho" materialismo,
incluindo o de Feuerbach (e, com mais forte razão, o do materialismo
"vulgar" de Buchner-Vogt-Moleschott), era para Marx e Engels: 1 - que
este materialismo era "essencialmente mecanicista" e não tomava em
conta os progressos mais recentes da química e da biologia
(actualmente conviria acrescentar ainda a teoria eléctrica da matéria);
2 - que o velho materialismo não tinha um caráter histórico nem
dialéctico (sendo pelo contrário metafísico, no sentido de
antidialéctico) e não aplicava a concepção do desenvolvimento de
forma consequente e sob todos os seus aspectos; 3 - que concebia a
"essência humana" como uma abstração e não como o "conjunto de
todas as relações sociais" (concretamente determinadas pela história),
não fazendo assim mais do que "interpretar" o mundo, enquanto aquilo
de que se tratava era de o "transformar", ou, por outras palavras, não
compreendia a importância da "actividade revolucionária prática".

A dialéctica

Marx e Engels viam na dialéctica de Hegel a doutrina do


desenvolvimento mais vasta, mais rica de conteúdo e mais profunda,
a maior aquisição da filosofia clássica alemã. Consideravam qualquer
outro enunciado do princípio do desenvolvimento, da evolução,
unilateral, pobre, que mutilava e deturpava a marcha real do
desenvolvimento (marcha que muitas vezes se efectua através de
saltos, catástrofes, revoluções) na natureza e na sociedade. "Marx e
eu, fomos seguramente quase os únicos que procuramos salvar" (do
descalabro do idealismo, incluindo o hegelianismo) "a dialéctica
consciente, para a integrar na concepção materialista da natureza". "A
natureza é a comprovação da dialéctica, e devemos dizer que as
ciências modernas da natureza nos forneceram materiais
extremamente númerosos" (e isto foi escrito antes da descoberta do
rádio, dos eletrões, da transformação dos elementos, etc.!) "cujo
volume aumenta dia a dia, provando assim que, em última análise, na
natureza as coisas se passam dialecticamente, e não
metafisicamente."(N21)

"A grande ideia fundamental - escreve Engels - segundo a qual o


mundo não deve ser considerado como um conjunto de coisas
acabadas, mas como um conjunto de processos em que as coisas,
aparentemente estáveis, bem como os seus reflexos mentais no nosso
cérebro, os conceitos, passam por uma série ininterrupta de
transformações, por um processo de génese e de deperecimento, esta
grande ideia fundamental penetrou, desde Hegel, tão profundamente
na consciência corrente que, sob esta forma geral, quase já não
encontra contraditores. Mas reconhece-la em palavras e aplicá-la na
realidade concreta, em cada domínio submetido à investigação, são
duas coisas diferentes." "Nada há de definitivo, de absoluto, de sagrado
para a filosofia dialéctica. Ela mostra a caducidade de todas as coisas
e para ela nada mais existe senão o processo ininterrupto do surgir e
do perecer, da ascensão sem fim do inferior para o superior, de que
ela própria não é senão o simples reflexo no cérebro pensante."
Portanto, para Marx, a dialéctica é "a ciência das leis gerais do
movimento tanto do mundo exterior como do pensamento
humano"(N22)

Foi este aspecto revolucionário da filosofia de Hegel que Marx adoptou


e desenvolveu. O materialismo dialéctica "não necessita de nenhuma
filosofia colocada acima das outras ciências". A única coisa que resta
da filosofia anterior é "a teoria do pensamento e das suas leis, a lógica
formal e a dialéctica"(N23). E a dialéctica compreende, na concepção de
Marx, como na de Hegel, o que hoje se chama a teoria do
conhecimento, ou gnoseologia, ciência que deve considerar o seu
objecto também historicamente, estudando e generalizando a origem
e o desenvolvimento do conhecimento, a passagem do não
conhecimento ao conhecimento.

Actualmente, a ideia do desenvolvimento, da evolução, penetrou quase


completamente na consciência social, mas por outra via que não a da
filosofia de Hegel. No entanto, esta ideia, tal como a formularam Marx
e Engels, apoiando-se em Hegel, é muito mais vasta e rica de conteúdo
do que a ideia corrente da evolução. É um desenvolvimento que parece
repetir etapas já percorridas, mas sob outra forma, numa base mais
elevada ("negação da negação"); um desenvolvimento por assim dizer
em espiral, e não em linha reta; um desenvolvimento por saltos, por
catástrofes, por revoluções; "soluções de continuidade";
transformações da quantidade em qualidade; impulsos internos do
desenvolvimento, provocados pela contradição, pelo choque de forças
e tendências distintas agindo sobre determinado corpo, no quadro de
um determinado fenómeno ou no seio de uma determinada sociedade;
interdependência e ligação estreita, indissolúvel, de todos os aspectos
de cada fenómeno (com a particularidade de que a história faz
constantemente aparecer novos aspectos), ligação que mostra um
processo único universal do movimento, regido por leis; tais são certos
traços da dialéctica, dessa doutrina do desenvolvimento mais rica de
conteúdo do que a doutrina usual. (Ver a carta de Marx a Engels, de 8
de Janeiro de 1868, onde ridiculariza as "tricotomias rígidas" de Stein,
que seria absurdo confundir com a dialéctica materialista.)

A Concepção Materialista da História

Dando-se conta do caráter inconsequente, incompleto e unilateral do


velho materialismo, Marx foi levado à convicção de que era preciso "pôr
a ciência da sociedade de acordo com a base materialista e reconstruir
esta ciência apoiando-se nessa base"(N24). Se, de uma forma geral, o
materialismo explica a consciência pelo ser, e não ao contrário, ele
exige, quando aplicado à vida social da humanidade, que se explique
a consciência social pelo ser social. "A tecnologia, diz Marx (O
Capital, I), revela a atitude activa do homem para com a natureza, o
processo imediato da produção da sua vida e, por conseguinte, das
suas condições sociais de vida e das representações espirituais que
delas derivam."(N25) Uma formulação completa das teses fundamentais
do materialismo aplicado à sociedade humana e à sua história é dada
por Marx no prefácio à sua obra Contribuição para a Crítica da
Economia Política, nestes termos:

"Na produção social da sua existência, os homens entram em relações


determinadas, necessárias, independentes da sua vontade; relações
de produção que correspondem a um dado grau de desenvolvimento
das suas forças produtivas materiais.

"O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura


económica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma
superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas de
consciência social determinadas. O modo de produção da vida material
condiciona o processo da vida social, política e intelectual, em geral.
Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, pelo
contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência. Num
certo estádio do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais
da sociedade entram em contradição com as relações de produção
existentes ou, o que não é senão a expressão jurídica disso, com as
relações de propriedade no seio das quais elas se haviam movido até
então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram,
essas relações tornam-se seus entraves. Abre-se então uma época de
revolução social. A transformação na base económica revoluciona,
mais ou menos rapidamente, toda a enorme superestrutura. Quando
se estudam tais revoluções é preciso distinguir sempre entre as
transformações materiais ocorridas nas condições económicas de
produção - que podem ser verificadas com o rigor próprio das ciências
naturais - e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou
filosóficas, em resumo, as formas ideológicas sob as quais os homens
tomam consciência desse conflito e lutam por resolvê-lo.

"Assim como não se pode julgar um indivíduo pela ideia que ele faz de
si próprio, também se não pode julgar uma tal época de revoluções
pela consciência que ela tem de si mesma. Pelo contrário, é preciso
explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo
conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de
produção ..." "Em traços largos, os modos de produção asiático, antigo,
feudal e burguês moderno, podem ser designados como outras tantas
épocas de progresso na formação económica da sociedade." (Ver a
fórmula sucinta que Marx dá na sua carta a Engels datada de 7 de Julho
de 1866: "A nossa teoria da organização do trabalho determinada pelos
meios de produção.")

A descoberta da concepção materialista da história ou, mais


exactamente, a aplicação, a extensão consequente do materialismo ao
domínio dos fenómenos sociais eliminou os dois defeitos essenciais das
teorias da história anteriores a Marx. Em primeiro lugar, estas
consideravam, no melhor dos casos, os móbiles ideológicos da
actividade histórica dos homens, sem investigar a origem desses
móbiles, sem apreender as leis objectivas que presidem ao
desenvolvimento do sistema das relações sociais e sem descobrir as
raízes dessas relações no grau de desenvolvimento da produção
material. Em segundo lugar, as teorias anteriores não abarcavam
precisamente a acção das massas da população, enquanto o
materialismo histórico permite, pela primeira vez, estudar com a
precisão das ciências naturais as condições sociais da vida das massas
e as modificações dessas condições. A "sociologia" e a historiografia
anteriores a Marx, no melhor dos casos, acumularam factos em bruto,
fragmentariamente recolhidos, e expuseram alguns aspectos do
processo histórico. O marxismo abriu caminho ao estudo universal e
completo do processo do nascimento, desenvolvimento e declínio das
formações económico-sociais, examinando o conjunto das tendências
contraditórias, ligando-as às condições de existência e de produção,
exactamente determináveis, das diversas classes da sociedade,
afastando o subjetivismo e o arbítrio na seleção das diversas ideias
"dominantes" ou na sua interpretação, revelando as raízes de todas
as ideias e todas as diferentes tendências, sem excepção, no estado
das forças produtivas materiais. Os homens são os artífices da sua
própria história, mas, que causas determinam os móbiles dos homens
e, mais precisamente, das massas humanas? Qual é a causa dos
conflitos de ideias e aspirações contraditórias? Que representa o
conjunto destes conflitos na massa das sociedades humanas? Quais
são as condições objectivas da produção da vida material nas quais se
baseia toda a actividade histórica dos homens? Qual é a lei que preside
ao desenvolvimento destas condições? Marx fez incidir a sua atenção
sobre todos estes problemas e traçou o caminho para o estudo
científico da história concebida como um processo único regido por leis,
apesar da sua prodigiosa variedade de aspectos e de todas as suas
contradições.

A Luta de Classes

Toda a gente sabe que, em qualquer sociedade, as aspirações de uns


contrariam as de outros, que a vida social está cheia de contradições,
que a história nos mostra a luta entre povos e sociedades, assim como
no seu próprio seio; que ela nos mostra, além disso, uma sucessão de
períodos de revolução e de reacção, de paz e de guerra, de estagnação
e de progresso rápido ou de decadência. O marxismo deu o fio condutor
que, neste labirinto, neste caos aparente, permite descobrir a
existência de leis: a teoria da luta de classes. Só o estudo do conjunto
das aspirações de todos os membros de uma sociedade ou de um grupo
de sociedades permite definir, com uma precisão científica, o resultado
destas aspirações. Ora, as aspirações contraditórias nascem da
diferença de situação e de condições de vida das classes em que se
divide qualquer sociedade. "A história de toda a sociedade até agora
existente - escreve Marx no Manifesto do Partido
Comunista (exceptuado a história da comunidade primitiva,
acrescentaria Engels mais tarde) - é a história de lutas de classes. O
homem livre e o escravo, o patrício e o plebeu, o barão feudal e o
servo, o mestre de uma corporação e o oficial, em suma, opressores e
oprimidos, estiveram em constante antagonismo entre si, travaram
uma luta ininterrupta, umas vezes oculta, aberta outras, que acabou
sempre com uma transformação revolucionária de toda a sociedade ou
com o declínio comum das classes em conflito... A moderna sociedade
burguesa, saída do declínio da sociedade feudal, não acabou com os
antagonismos de classe. Não fez mais do que colocar novas classes,
novas condições de opressão, novos aspectos da luta no lugar dos
anteriores. A nossa época, a época da burguesia, distingue-se, contudo
por ter simplificado os antagonismos de classe. Toda a sociedade está
a cindir-se cada vez mais em dois grandes campos hostis, em duas
grandes classes em confronto directo: a burguesia e o proletariado."
Após a grande revolução francesa, a história da Europa, em muitos
países, revela com particular evidência o verdadeiro fundo dos
acontecimentos, a luta de classes. Já na época da Restauração(N26) se
vê aparecer em França um certo número de historiadores (Thierry,
Guizot, Mignet, Thiers) que, sintetizando os acontecimentos, não
puderam deixar de reconhecer que a luta de classes é a chave para a
compreensão de toda a história francesa. Ora, a época contemporânea,
a época da vitória completa da burguesia, das instituições
representativas, do sufrágio amplo (quando não universal), da
imprensa diária barata e que chega às massas, etc., a época das
associações operárias e patronais poderosas e cada vez mais vastas,
etc., mostra com mais evidência ainda (embora, por vezes, sob uma
forma unilateral, "pacifica", "constitucional") que a luta de classes é o
motor dos acontecimentos. A seguinte passagem do Manifesto do
Partido Comunista mostra-nos o que Marx exigia da ciência social para
a análise objectiva da situação de cada classe no seio da sociedade
moderna, em ligação com a análise das condições do desenvolvimento
de cada classe: "De todas as classes que hoje em dia defrontam a
burguesia só o proletariado é uma classe realmente revolucionária. As
demais classes vão-se arruinando e soçobram com a grande indústria;
o proletariado é o produto mais característico desta. As camadas
médias, o pequeno industrial, o pequeno comerciante, o artífice, o
camponês, lutam todos contra a burguesia para assegurarem a sua
existência como camadas médias, antes do declínio. Não são pois
revolucionárias, mas conservadoras. Mais ainda, são reacionárias, pois
procuram pôr a andar para trás a roda da história. Se são
revolucionárias, são-no apenas em termos da sua iminente passagem
para o proletariado, o que quer dizer que não defendem os seus
interesses presentes, mas os futuros, o que quer dizer que abandonam
a sua posição social própria e se colocam na do proletariado." Em
numerosas obras históricas (ver Bibliografia), Marx deu exemplos
brilhantes e profundos de historiografia materialista, de análise da
situação de cada classe particular, e, por vezes, dos diversos grupos
ou camadas no seio de uma classe, mostrando, até à evidência, porque
e como "toda a luta de classes é uma luta política". A passagem que
acabamos de citar ilustra claramente como é complexa a rede das
relações sociais e dos graus transitórios de uma classe para outra, do
passado para o futuro, que Marx analisa, para determinar a resultante
do desenvolvimento histórico.

A teoria de Marx encontra a sua confirmação e aplicação mais


profunda, mais completa e mais pormenorizada na sua doutrina
económica.

A Doutrina Económica de Marx

"O objectivo final desta obra, diz Marx no seu prefácio a O Capital, é
descobrir a lei económica do movimento da sociedade moderna", isto
é, da sociedade capitalista, da sociedade burguesa. O estudo das
relações de produção de uma sociedade historicamente determinada e
concreta no seu nascimento, desenvolvimento e declínio, tal é o
conteúdo da doutrina económica de Marx. O que domina na sociedade
capitalista é a produção de mercadorias; por isso a análise de Marx
começa pela análise da mercadoria.

O Valor

A mercadoria é, em primeiro lugar, uma coisa que satisfaz uma


qualquer necessidade do homem; em segundo lugar, é uma coisa que
se pode trocar por outra. A utilidade de uma coisa faz dela um valor
de uso. O valor de troca (ou simplesmente o valor) é, em primeiro
lugar, a relação, a proporção na troca de um certo número de valores
de uso de uma espécie contra um certo número de valores de uso de
outra espécie. A experiência quotidiana mostra-nos que, através de
milhões, de milhares de milhões de trocas deste tipo se comparam
incessantemente os valores de uso mais diversos e mais díspares. Que
há de comum entre estas coisas diferentes, que são tornadas
constantemente equivalentes num determinado sistema de relações
sociais? O que elas têm de comum é serem produtos do trabalho.
Trocando os seus produtos, os homens criam relações de equivalência
entre os mais diferentes géneros de trabalho. A produção das
mercadorias é um sistema de relações sociais no qual os diversos
produtores criam produtos variados (divisão social do trabalho) e em
que todos estes produtos se equiparam uns aos outros na troca. Por
conseguinte, o que é comum a todas as mercadorias não é o trabalho
concreto de um ramo de produção determinado, não é um trabalho de
um género particular, mas o trabalho humano abstrato, o trabalho
humano em geral. Numa dada sociedade, toda a força de trabalho
representada pela soma dos valores de todas as mercadorias constitui
uma só e mesma força de trabalho humano; milhares de milhões de
actos de troca o demonstram. Cada mercadoria considerada
isoladamente não representa portanto senão uma certa parte do tempo
de trabalho socialmente necessário. A grandeza do valor é
determinada pela quantidade de trabalho socialmente necessário ou
pelo tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de
determinada mercadoria, de determinado valor de uso. "Ao equiparar
os seus diversos produtos na troca como valores, os homens
equiparam os seus diversos trabalhos como trabalho humano. Não se
dão conta, mas fazem-no."(N27) O valor é uma relação entre duas
pessoas, disse um velho economista; mas deveria acrescentar: uma
relação entre pessoas escondida sob a envoltura das coisas. Só
partindo do sistema de relações sociais de produção de uma formação
histórica determinada, relações que se manifestam na troca, fenómeno
generalizado que se repete milhares de milhões de vezes, é que se
pode compreender o que é o valor. "Como valores, todas as
mercadorias são apenas quantidades determinadas de tempo de
trabalho cristalizado."(N28) Depois de uma análise detalhada do duplo
carácter do trabalho incorporado nas mercadorias, Marx passa à
análise da forma do valor e do dinheiro. A principal tarefa que Marx
se atribui é investigar a origem da forma dinheiro do valor, estudar
o processo histórico do desenvolvimento da troca, começando pelos
actos de troca particulares e fortuitos (forma simples, particular ou
acidental do valor: uma quantidade determinada de uma mercadoria é
trocada por uma quantidade determinada de outra mercadoria), para
passar à forma geral do valor, quando várias mercadorias diferentes
são trocadas por outra mercadoria determinada e concreta sempre a
mesma, e acabar na forma dinheiro do valor, quando o ouro se torna
esta mercadoria determinada, o equivalente geral. Produto supremo
do desenvolvimento da troca e da produção de mercadorias, o dinheiro
encobre e dissimula o carácter social dos trabalhos parciais, a ligação
social entre diversos produtores unidos uns aos outros pelo mercado.
Marx submete a uma análise extremamente minuciosa as diversas
funções do dinheiro, e é especialmente importante notar que também
aqui (como nos primeiros capítulos de O Capital) a forma abstrata de
exposição que, por vezes, parece puramente dedutiva, reproduz na
realidade uma documentação imensamente rica sobre a história do
desenvolvimento da troca e da produção de mercadorias. "O dinheiro
supõe certo nível de troca de mercadorias. As formas particulares do
dinheiro, simples equivalente de mercadorias, meio de circulação, meio
de pagamento, tesouro ou dinheiro universal, indicam, conforme o
diferente alcance e a preponderância relativa de uma dessas funções,
graus muito diversos do processo social de produção" (O Capital, I)(N29)

A Mais Valia

Num certo grau do desenvolvimento da produção de mercadorias, o


dinheiro transforma-se em capital. A fórmula da circulação de
mercadorias era: M (mercadoria) - D (dinheiro) - M (mercadoria), isto
é, venda de uma mercadoria para a compra de outra. Pelo contrário, a
fórmula geral do capital é: D - M - D, isto é, compra para a venda (com
lucro). E a este acréscimo do valor primitivo do dinheiro posto em
circulação que Marx chama mais-valia. Este "acréscimo" do dinheiro na
circulação capitalista é um facto conhecido de todos. E precisamente
este "acréscimo" que transforma o dinheiro em capital, ou seja, numa
relação social de produção historicamente determinada. A mais-valia
não pode provir da circulação das mercadorias, porque esta só conhece
a troca de equivalentes, nem tão pouco pode provir de um aumento
dos preços porque as perdas e os lucros recíprocos dos compradores e
dos vendedores equilibrar-se-iam; trata-se de um fenómeno social
médio, generalizado, e não de um fenómeno individual. Para obter a
mais-valia "seria preciso que o possuidor do dinheiro descobrisse no
mercado uma mercadoria cujo valor de uso fosse dotado da
propriedade singular de ser fonte de valor"(N30), uma mercadoria cujo
processo de consumo fosse, ao mesmo tempo, um processo de criação
de valor. E esta mercadoria existe: é a força de trabalho humana. O
seu uso é o trabalho, e o trabalho cria valor. O possuidor de dinheiro
compra a força de trabalho pelo seu valor, que, como o de qualquer
outra mercadoria, é determinado pelo tempo de trabalho socialmente
necessário para a sua produção (isto é, pelo custo da manutenção do
operário e da sua família). Tendo comprado a força de trabalho, o
possuidor do dinheiro fica com o direito de a consumir, isto é, de a
obrigar a trabalhar durante um dia inteiro, suponhamos durante doze
horas. Mas em seis horas (tempo de trabalho "necessário"), o operário
cria um produto que cobre as despesas da sua manutenção, e durante
as outras seis horas (tempo de trabalho "suplementar"), cria um
"sobreproduto" não retribuído pelo capitalista, que constitui a mais-
valia. Por conseguinte, do ponto de vista do processo de produção é
necessário distinguir duas partes do capital: o capital constante,
investido nos meios de produção (máquinas, instrumentos de trabalho,
matérias-primas, etc.), cujo valor passa sem modificação (de uma só
vez ou por partes) para o produto acabado, e o capital variável, que é
investido para pagar a força de trabalho. O valor deste capital não se
conserva invariável; antes aumenta no processo do trabalho, criando
mais-valia. Assim, para exprimir o grau de exploração da força de
trabalho pelo capital temos de comparar a mais-valia não com o capital
total, mas unicamente com o capital variável. A taxa de mais-valia,
nome dado por Marx a essa relação, seria, no nosso exemplo, de 6/6
ou de 100%.

A condição histórica para o aparecimento do capital reside, em primeiro


lugar, na acumulação de uma certa soma de dinheiro nas mãos de
certas pessoas num estádio de desenvolvimento da produção de
mercadorias em geral já relativamente elevado; em segundo lugar, na
existência de operários "livres" sob dois aspectos - livres de quaisquer
entraves ou restrições para venderem a sua força de trabalho, e livres
por não terem terras nem meios de produção em geral -, de operários
sem qualquer propriedade, de operários-"proletários" que não podem
subsistir senão vendendo a sua força de trabalho.

O aumento da mais-valia é possível graças a dois processos


fundamentais: o prolongamento da jornada de trabalho ("mais-valia
absoluta") e a redução do tempo de trabalho necessário ("mais-valia
relativa"). Marx, analisando o primeiro processo, traça um quadro
grandioso da luta da classe operária pela redução da jornada de
trabalho e da intervenção do poder de Estado primeiro para a prolongar
(séculos XIV a XVII) e depois para a diminuir (legislação fabril do século
XIX). Depois da publicação de O Capital, a história do movimento
operário, em todos os países civilizados do mundo, forneceu milhares
e milhares de novos factos que ilustram esse quadro.

Na sua análise da produção da mais-valia relativa, Marx estuda as três


etapas históricas fundamentais no processo de intensificação da
produtividade do trabalho pelo capitalismo: 1 - cooperação simples; 2
- a divisão do trabalho e a manufactura; 3 - as máquinas e a grande
indústria. A profundidade com que a análise de Marx revela os traços
fundamentais e típicos do desenvolvimento do capitalismo aparece,
entre outras coisas, no facto de o estudo da chamada indústria
artesanal russa fornecer materiais muito abundantes para ilustrar as
duas primeiras dessas três etapas. Quanto à acção revolucionadora da
grande indústria mecanizada, descrita por Marx em 1867, manifestou-
se, durante o meio século decorrido desde então, em vários países
"novos" (Rússia, Japão, etc.).

Continuemos. O que há de novo e extremamente importante em Marx


é a análise da acumulação do capital, isto é, da transformação de
uma parte da mais-valia em capital e do seu emprego não para
satisfazer as necessidades pessoais ou os caprichos do capitalista, mas
para voltar a produzir. Marx assinalou o erro de toda a economia
política clássica anterior (desde Adam Smith), segundo a qual toda a
mais-valia que se convertia em capital passava a fazer parte do capital
variável. Enquanto, na realidade, ela se decompõe em meios de
produção e em capital variável. O crescimento mais rápido da parte
do capital constante (no montante total do capital) em relação à parte
do capital variável tem, no processo de desenvolvimento do
capitalismo e da sua transformação em socialismo, uma importância
primordial.

Acelerando a substituição dos operários pelas máquinas e criando a


riqueza num pólo e a miséria no outro, a acumulação do capital gera
assim o chamado "exército de reserva do trabalho", o "excedente
relativo" de operários ou "superpopulação capitalista", que se reveste
de formas extremamente variadas e dá ao capital a possibilidade de
ampliar muito rapidamente a produção. Esta possibilidade, combinada
com o crédito e a acumulação de capital em meios de produção, dá-
nos, entre outras coisas, a explicação das crises de superprodução
que aparecem periodicamente nos países capitalistas, a princípio
aproximadamente de dez em dez anos, depois com intervalos menos
próximos e menos fixos. Impõe-se a distinção entre a acumulação do
capital na base do capitalismo e a chamada acumulação primitiva,
quando se desapossa violentamente o trabalhador dos meios de
produção, se expulsa o camponês das suas terras, se roubam as terras
comunais, e imperam o sistema colonial e o sistema das dívidas
públicas, as tarifas alfandegárias proteccionistas, etc. A "acumulação
primitiva" cria, num pólo, o proletário "livre", no outro, o detentor do
dinheiro, o capitalista.
A "tendência histórica da acumulação capitalista" é caracterizada
por Marx nestes termos célebres: "A expropriação dos produtores
directos faz-se com o vandalismo mais impiedoso e sob a pressão das
paixões mais infames, mais ignóbeis, mesquinhas e odiosas. A
propriedade privada, ganha com o trabalho pessoal" (do camponês e
do artesão), "e que o indivíduo livre criou, identificando-se de certo
modo com os instrumentos e as condições do seu trabalho, é
substituída pela propriedade privada capitalista que assenta na
exploração do trabalho de outrem, o qual não tem mais que uma
aparência de liberdade ... O que se trata agora de expropriar não é já
o operário que explora ele próprio a sua própria propriedade, mas o
capitalista que explora numerosos operários. Esta expropriação
efectua-se pelo jogo das leis imanentes da própria produção
capitalista, pela centralização dos capitais. Cada capitalista mata
muitos outros. E paralelamente a esta centralização, isto é, à
expropriação de muitos capitalistas por alguns, desenvolve-se, numa
escala cada vez maior e mais ampla, a forma cooperativa do processo
de trabalho, desenvolve-se a aplicação técnica consciente da ciência, a
exploração sistemática do solo, a transformação dos meios de trabalho
em meios que não podem ser utilizados senão em comum, a economia
de todos os meios de produção pela sua utilização como meios de
produção de um trabalho social combinado, a incorporação de todos os
povos na rede do mercado mundial e, por conseguinte, o carácter
internacional do regime capitalista. À medida que diminui
constantemente o número dos magnatas do capital, que usurpam e
monopolizam todas as vantagens deste processo de transformação,
cresce no seu conjunto a miséria, a opressão, a escravidão, a
degeneração, a exploração; mas também aumenta, ao mesmo tempo,
a revolta da classe operária, que é instruída, unida e organizada pelo
próprio mecanismo do processo de produção capitalista. O monopólio
do capital torna-se o entrave do modo de produção que se desenvolveu
com ele e graças a ele. A centralização dos meios de produção e a
socialização do trabalho chegam a um ponto em que se tornam
incompatíveis com o seu invólucro capitalista, que acaba por rebentar.
Soa a última hora da propriedade privada capitalista. Os
expropriadores são por sua vez expropriados."(O Capital, I (N31)).

Outro ponto extraordinariamente importante e novo é a análise feita


por Marx no tomo II de O Capital da reprodução do capital social
tomado no seu conjunto. Também aqui, ele considera não um
fenómeno individual, mas um fenómeno geral, não uma fracção da
economia social, mas a economia na sua totalidade. Corrigindo o erro
atrás mencionado dos economistas clássicos, Marx divide toda a
produção social em duas grandes secções: (I) produção de meios de
produção e (II) produção de artigos de consumo; e examina em
pormenor, com o apoio de dados numéricos, a circulação do capital
social no seu conjunto, tanto na reprodução simples como na
acumulação. No tomo III de O Capital resolve-se, de acordo com a lei
do valor, o problema da formação da taxa média de lucro. Um imenso
progresso foi alcançado na ciência económica pelo facto de a análise
de Marx partir de fenómenos económicos gerais, do conjunto da
economia social, e não de casos isolados ou das manifestações
superficiais da concorrência, aos quais se limita geralmente a economia
política vulgar ou a moderna "teoria da utilidade marginal" (N32). Marx
analisa primeiro a origem da mais-valia e passa em seguida à sua
decomposição em lucro, juro e renda da terra. O lucro é a relação entre
a mais-valia e o conjunto do capital investido numa empresa. O capital
de "elevada composição orgânica" (isto é, em que o capital constante
ultrapassa o capital variável em proporções superiores à média social)
dá uma taxa de lucro inferior à média. O capital de "baixa composição
orgânica" dá uma taxa de lucro superior à média. A concorrência entre
os capitais, a sua livre passagem de um ramo para outro, reduzem,
em ambos os casos, a taxa de lucro à taxa média. A soma dos valores
de todas as mercadorias numa dada sociedade coincide com a soma
dos preços das mercadorias, mas, em cada empresa e em cada ramo
de produção tomado à parte, sob influência da concorrência, as
mercadorias são vendidas não pelo seu valor, mas pelo preço de
produção, que é igual ao capital investido, mais o lucro médio.

Assim, a diferença entre o preço e o valor e a igualização do lucro,


factos incontestáveis e conhecidos de todos, são perfeitamente
explicados por Marx com base na lei do valor, porque a soma dos
valores de todas as mercadorias coincide com a soma dos seus preços.
Mas a redução do valor (social) aos preços (individuais) não se dá de
forma simples e directa; segue uma via muito complicada; é
absolutamente natural que, numa sociedade de produtores de
mercadorias dispersos, apenas ligados uns aos outros pelo mercado,
as leis que regem essa sociedade não possam exprimir-se senão
através de resultados médios, sociais, gerais, pela compensação
recíproca dos desvios individuais num ou noutro sentido.

O aumento da produtividade do trabalho significa um crescimento mais


rápido do capital constante em relação ao capital variável. Ora, sendo
a mais-valia função apenas do capital variável, compreende-se que a
taxa de lucro (a relação entre a mais-valia e todo o capital, e não
apenas entre a mais-valia e a parte variável do capital) tenha tendência
para baixar. Marx analisa minuciosamente esta tendência, assim como
as diversas circunstâncias que a ocultam ou a contrariam. Sem nos
determos na exposição dos interessantíssimos capítulos do tomo III,
consagrados ao capital usurário, ao capital comercial e ao capital-
dinheiro, abordaremos o essencial: a teoria da renda da terra. Sendo
a superfície do solo limitada e estando, nos países capitalistas,
inteiramente ocupada por proprietários particulares, o custo de
produção dos produtos da terra é determinado pelos gastos de
produção, não nos terrenos de qualidade média, mas nos da pior
qualidade, e pelas condições de transporte (não médias, mas pelas
mais desfavoráveis) dos produtos para o mercado. A diferença entre
este preço e o preço de produção num terreno de qualidade superior
(ou em melhores condições) constitui a renda diferencial. Graças a
uma análise pormenorizada desta renda, em que demonstra que ela
provém da diferença da fertilidade dos terrenos e da diferença dos
capitais investidos na cultura, Marx põe em evidência (ver igualmente
as Teorias da Mais-Valia, onde a crítica a Rodbertus merece uma
atenção particular) o erro de Ricardo ao pretender que a renda
diferencial só se obtém pela conversão gradual dos melhores terrenos
em terrenos de qualidade inferior. Pelo contrário, transformações
inversas produzem-se igualmente: terrenos de uma categoria
transformam-se em terrenos de outra categoria (em virtude do
progresso da técnica agrícola, do crescimento das cidades, etc.) e a
famosa "lei da fertilidade decrescente do solo" é um profundo erro que
atribui à natureza os defeitos, as limitações e as contradições do
capitalismo. Além disso, a igualdade do lucro, em todos os ramos da
indústria e da economia nacional em geral, supõe uma liberdade
completa de concorrência, a liberdade de transferir o capital de um
ramo para outro. Mas a propriedade privada da terra cria um monopólio
que é um obstáculo a essa livre transferência. Devido a esse
monopólio, os produtos de uma agricultura que se distingue por uma
baixa composição orgânica do capital e que, por conseguinte, dá uma
taxa de lucro individual mais elevada, não entram no livre jogo de
igualização da taxa de lucro: o proprietário agrícola, que detém o
monopólio da terra, pode manter o preço acima da média; este preço
de monopólio dá origem à renda absoluta. A renda diferencial não
pode ser abolida em regime capitalista; mas, ao contrário, a renda
absoluta pode sê-lo, por exemplo, com a nacionalização da terra
quando esta passa a propriedade do Estado. Esta passagem da terra
para o Estado significaria a supressão do monopólio dos proprietários
agrícolas, uma liberdade de concorrência mais consequente e mais
completa na agricultura. E por isso que, diz Marx, os burgueses
radicais, mais do que uma vez na história, formularam esta
reivindicação burguesa progressiva da nacionalização da terra que
todavia apavora a maior parte da burguesia, porque "toca" de
demasiado perto um outro monopólio que actualmente é muito mais
importante e "sensível": o monopólio dos meios de produção em geral.
(Esta teoria do lucro médio sobre o capital e da renda absoluta da terra
foi exposta por Marx numa linguagem extraordinariamente popular,
concisa e clara na sua carta a Engels de 2 de Agosto de 1862.
Ver Correspondência, t. III, pp. 77-81. Ver também a sua carta de 9
de Agosto de 1862, ibid, pp. 86-87). Importa igualmente assinalar, na
história da renda da terra, a análise em que Marx demonstra a
transformação da renda em trabalho (quando o camponês,
trabalhando na terra do senhor, cria um sobreproduto) em renda em
produtos ou renda em espécie (quando o camponês cria na sua própria
terra um sobreproduto que entrega ao proprietário em virtude de uma
"coerção extra-económica"), depois em renda em dinheiro (que é a
renda em espécie transformada em dinheiro - na Rússia antiga
o obrok - em virtude do desenvolvimento da produção de mercadorias)
e, finalmente, em renda capitalista quando o camponês é substituído
pelo empresário agrícola, que cultiva a terra com a ajuda do trabalho
assalariado. Relativamente a esta análise da "génese da renda
capitalista da terra", notemos uma série de ideias profundas de Marx
(particularmente importantes para os países atrasados, tais como a
Rússia) sobre a evolução do capitalismo na agricultura. "Com a
transformação da renda em espécie em renda em dinheiro constitui-se
necessariamente, ao mesmo tempo, e mesmo anteriormente, uma
classe de jornaleiros não possuidores que trabalham a troco de um
salário. Enquanto esta classe se constitui e enquanto se manifesta
apenas esporadicamente, os camponeses abastados, sujeitos ao
pagamento de uma renda, adquirem naturalmente o hábito de explorar
por sua própria conta assalariados agrícolas, assim como no regime
feudal os servos abastados tinham por sua vez outros servos ao seu
serviço. Daqui resultou para eles a possibilidade de juntar, pouco a
pouco, uma certa fortuna e de se transformarem em futuros
capitalistas. Entre os antigos possuidores da terra que a exploram
independentemente, cria-se assim um viveiro de rendeiros capitalistas,
cujo desenvolvimento é condicionado pelo desenvolvimento geral da
produção capitalista fora da agricultura” (O Capital, III, p. 332). "A
expropriação e a expulsão da aldeia de uma parte da população
camponesa não só "libertam" para o capital industrial os operários, os
seus meios de subsistência e os seus instrumentos de trabalho, como
lhe criam, além disso, o mercado interno" (O Capital, I, p. 778)(N33). A
pauperização e a ruína da população camponesa influem, por sua vez,
na formação do exército de reserva do trabalho para o capital. Em
todos os países capitalistas, "uma parte da população dos campos está
constantemente em vias de transformar-se em população urbana ou
manufatureira (isto é, não agrícola). Esta fonte de superpopulação
relativa corre continuamente ... Por conseguinte, o operário agrícola
está reduzido ao mínimo de salário e tem sempre um pé no pântano
do pauperismo" (O Capital, I, p. 668)(N34). A propriedade privada do
camponês da terra que ele próprio cultiva constitui a base da pequena
produção, a condição da sua prosperidade e do seu desenvolvimento
na forma clássica. Mas esta pequena produção só é compatível com
um quadro estreito, primitivo, da produção e da sociedade. Em regime
capitalista, "a exploração dos camponeses só pela forma se distingue
da exploração do proletariado industrial. O explorador é o mesmo: o
capital. Os capitalistas tomados isoladamente exploram os camponeses
isoladamente pela hipoteca e a usura. A classe capitalista explora a
classe camponesa por meio dos impostos do Estado" (As Lutas de
Classes em França)(N35). "A parcela do camponês já não é mais do que
o pretexto que permite ao capitalista tirar da terra lucro, juro e renda
e deixar ao próprio camponês a preocupação de arranjar como puder
o seu salário" (O 18 Brumário)(N36). Normalmente, o camponês entrega
mesmo à sociedade capitalista, isto é, à classe capitalista, uma parte
do seu salário e desce assim "ao nível do rendeiro irlandês, tudo isto
sob a aparência de proprietário privado" (As Lutas de Classes em
França)(N37). Qual é "uma das razões que fazem com que, nos países
em que a propriedade parcelaria predomina, o preço do trigo seja
menos elevado que nos países de modo de produção capitalista?” (O
Capital, III, p. 340). É que o camponês entrega gratuitamente à
sociedade (isto é, à classe capitalista) uma parte do sobreproduto.
"Estes baixos preços (do trigo e dos outros produtos agrícolas)
resultam, portanto, da pobreza dos produtores, e não da produtividade
do seu trabalho" (O Capital, t. III, p. 340). Em regime capitalista, a
pequena propriedade agrícola, forma normal da pequena produção,
degrada-se, é destruída e desaparece. "Pela sua natureza, a
propriedade parcelaria é incompatível com o desenvolvimento das
forças produtivas sociais do trabalho, as formas sociais do trabalho, a
concentração social dos capitais, a criação de gado em grande escala,
a utilização progressiva da ciência. A usura e o sistema fiscal arruínam-
na necessariamente em toda à parte. O capital investido na compra da
terra é subtraído ao cultivo." Dispersão infinita dos meios de produção
e disseminação dos próprios produtores. (As cooperativas, isto é, as
associações de pequenos camponeses, que desempenham um
extraordinário papel progressivo burguês, só podem atenuar esta
tendência, sem entretanto a suprimir; é preciso não esquecer também
que estas cooperativas dão muito aos camponeses abastados, mas
muito pouco ou quase nada à massa dos camponeses pobres, e que
tais associações acabam por explorar elas próprias o trabalho
assalariado.) "Desperdício enorme de força humana. A deterioração
progressiva das condições de produção e o encarecimento dos meios
de produção são a lei necessária da propriedade parcelaria."(N38) Na
agricultura como na indústria, a transformação capitalista da produção
produz-se ao preço do "martirológio dos produtores". "A disseminação
dos operários agrícolas em grandes extensões quebra a sua força de
resistência, enquanto a concentração aumenta a dos operários das
cidades. Tal como na indústria moderna, o aumento da força produtiva
e a mais rápida mobilização do trabalho na agricultura capitalista
moderna só se obtêm pela destruição e esgotamento da própria força
de trabalho. Além disso, todo o progresso da agricultura capitalista não
é apenas um progresso da arte de esgotar o operário, mas também de
esgotar o solo ... A produção capitalista não desenvolve portanto a
técnica e a combinação do processo social de produção senão
desgastando, ao mesmo tempo, as fontes de toda a riqueza: a terra e
o operário." (O Capital, I, fim do 13.º capítulo.)

O Socialismo

Pelo exposto, vê-se que Marx conclui pela transformação inevitável da


sociedade capitalista em sociedade socialista a partir única e
exclusivamente da lei económica do movimento da sociedade
moderna. A socialização do trabalho - que avança cada vez mais
rapidamente sob múltiplas formas e que, no meio século decorrido
depois da morte de Marx, se manifesta sobretudo pela extensão da
grande indústria, dos cartéis, dos sindicatos, dos trusts capitalistas e
também pelo aumento imenso das proporções e do poderio do capital
financeiro - , eis a principal base material para o advento inelutável do
socialismo. O motor intelectual e moral, o agente físico desta
transformação, é o proletariado, educado pelo próprio capitalismo. A
sua luta contra a burguesia, revestindo-se de formas diversas e de
conteúdo cada vez mais rico, torna-se inevitavelmente uma luta
política tendente à conquista pelo proletariado do poder político
("ditadura do proletariado"). A socialização da produção não pode
conduzir senão à transformação dos meios de produção em
propriedade social, à "expropriação dos expropriadores". O aumento
enorme da produtividade do trabalho, a redução da jornada de
trabalho, a substituição dos vestígios, das ruínas, da pequena produção
primitiva e disseminada, pelo trabalho coletivo aperfeiçoado, tais são
as consequências directas desta transformação. O capitalismo rompe
definitivamente a ligação da agricultura com a indústria, mas prepara
simultaneamente, pelo seu desenvolvimento a um nível superior,
elementos novos desta ligação, a união da indústria com a agricultura
na base de uma aplicação consciente da ciência, de uma coordenação
do trabalho colectivo, de uma nova distribuição da população (pondo
fim tanto ao isolamento do campo, ao seu estado de abandono e atraso
cultural, como à aglomeração antinatural de uma enorme população
nas grandes cidades). As formas superiores do capitalismo moderno
criam condições para uma nova forma da família, novas condições para
a mulher e para a educação das novas gerações; o trabalho das
mulheres e das crianças, a dissolução da família patriarcal pelo
capitalismo, tomam inevitavelmente, na sociedade moderna, as formas
mais horríveis, mais miseráveis e repugnantes. Contudo, "a grande
indústria, pelo papel decisivo que confere às mulheres, aos jovens e às
crianças dos dois sexos nos processos de produção socialmente
organizadas e fora da esfera familiar, cria uma nova base económica
para uma forma superior da família e das relações entre ambos os
sexos. É, naturalmente, tão absurdo considerar como absoluta a forma
germano-cristã da família como as antigas formas romana, grega ou
oriental, que constituem, de resto, uma só linha de desenvolvimento
histórico. E igualmente evidente que a composição do pessoal operário
por indivíduos de ambos os sexos e de todas as idades - que na sua
forma primária, brutal, capitalista, em que o operário existe para o
processo de produção, e não o processo de produção para o operário,
constitui uma fonte envenenada de ruína e de escravidão - deve
transformar-se, inevitavelmente, em condições adequadas, numa
fonte de progresso humano" (O Capital, fim do 13.º capítulo). O
sistema fabril mostra-nos "o germe da educação do futuro, que unirá,
para todas as crianças acima de certa idade, o trabalho produtivo ao
ensino e à ginástica, não só como método de aumento da produção
social, mas também como único método capaz de produzir homens
desenvolvidos em todos os aspectos" (Ibid.) É sobre a mesma base
histórica que o socialismo de Marx coloca os problemas da
nacionalidade e do Estado, não só para explicar o passado, mas
também para prever ousadamente o futuro e conduzir uma acção
audaciosa para a sua realização. As nações são um produto e uma
forma inevitável da época burguesa do desenvolvimento social. A
classe operária não pode fortalecer-se, amadurecer, formar-se, "sem
se organizar no quadro da nação", sem ser "nacional" ("embora de
nenhuma maneira no sentido burguês da palavra"). Ora, o
desenvolvimento do capitalismo destrói cada vez mais as fronteiras
nacionais, acaba com o isolamento nacional, substitui os antagonismos
nacionais por antagonismos de classe. Por isso, nos países capitalistas
desenvolvidos é perfeitamente verdadeiro que "os operários não têm
pátria" e que a sua "acção unitária, pelo menos nos países civilizados,
é uma das primeiras condições da sua libertação" (Manifesto do Partido
Comunista). O Estado, essa violência organizada, surgiu como algo
inevitável numa determinada fase do desenvolvimento da sociedade,
quando esta, dividida em classes irreconciliáveis, não teria podido
subsistir sem um "poder" aparentemente colocado acima dela e
diferenciado até certo ponto dela. Nascido dos antagonismos de classe,
o Estado torna-se "o Estado da classe mais poderosa, da classe
economicamente dominante, a qual, por meio dele, se torna também
a classe politicamente dominante e adquire assim novos meios para
reprimir e explorar a classe oprimida. Assim, o Estado antigo era,
acima de tudo, o Estado dos escravistas, para manter os escravos
submetidos, o Estado feudal era o órgão de que se valia a nobreza para
sujeitar os camponeses servos, e o moderno Estado representativo é
o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho
assalariado”. (Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e
do Estado, obra em que o autor expõe as suas ideias e as de Marx.)
Mesmo a forma mais livre e progressiva do Estado burguês, a república
democrática, de maneira alguma elimina este facto; ela modifica
apenas a sua forma (ligação do governo com a Bolsa, corrupção directa
e indirecta dos funcionários e da imprensa, etc.). O socialismo,
conduzindo à supressão das classes, conduz por isso mesmo à abolição
do Estado. "O primeiro acto - escreve Engels no seu Anti-Dühring - em
que o Estado atua efectivamente como representante de toda a
sociedade - a expropriação dos meios de produção em nome de toda a
sociedade - é, ao mesmo tempo, o seu último acto independente como
Estado. A intervenção do poder de Estado nas relações sociais tornar-
se-á supérflua num domínio após outro, e cessará então por si mesma.
O governo das pessoas dá lugar à administração das coisas e à direcção
do processo de produção. O Estado não é "abolido", extingue-se." "A
sociedade, que reorganizará a produção na base de uma associação
livre de produtores iguais, enviará toda a máquina do Estado para o
lugar que lhe corresponderá então: o museu de antiguidades, ao lado
da roca de fiar e do machado de bronze." (F. Engels, A Origem da
Família, da Propriedade Privada e do Estado.)

Finalmente, relativamente à posição do socialismo de Marx quanto ao


pequeno camponês, que subsistirá na época da expropriação dos
expropriadores, interessa citar esta passagem de Engels, que exprime
o pensamento de Marx: "Quando nós estivermos na posse do poder de
Estado, não poderemos pensar em expropriar pela violência os
pequenos camponeses (com ou sem indemnização), como seremos
obrigados a fazer com os grandes proprietários. A nossa missão para
com os camponeses consistirá antes de mais nada em encaminhar a
sua produção individual e a sua propriedade privada para um regime
cooperativo, não pela força, mas sim pelo exemplo, oferecendo-lhes
para este efeito a ajuda da sociedade. Teremos então certamente
meios de sobra para apresentar ao pequeno camponês a perspectiva
das vantagens que já hoje lhe têm de ser mostradas." (F. Engels, A
Questão Camponesa na França e na Alemanha, edição de Alexéiev, p.
17. A tradução russa contém erros. Ver o original em Die Neue
Zeit)(N39).

A Táctica da Luta de Classe do Proletariado

Marx, depois de, já em 1844-1845, ter posto a descoberto um dos


defeitos principais do antigo materialismo, que consistia em não
compreender as condições nem apreciar a importância da acção
revolucionária prática, dedicou, durante toda a sua vida, paralelamente
aos trabalhos teóricos, uma atenção contínua às questões da táctica
da luta de classe do proletariado. Todas as obras de Marx fornecem,
a este respeito, uma rica documentação, particularmente a sua
correspondência com Engels, publicada em 4 volumes, em 1913. Esta
correspondência está longe ainda de estar toda recolhida, classificada,
estudada e analisada. Por isso teremos de nos limitar forçosamente
aqui às observações mais gerais e mais breves, acentuando que, para
Marx, o materialismo despojado de este aspecto, era, e com razão,
um materialismo incompleto, unilateral e sem vida. Marx determinou
a tarefa essencial da táctica do proletariado na sua rigorosa
conformidade com todas as premissas da sua concepção materialista-
dialéctica do mundo. Só o conhecimento objectivo do conjunto de
relações de todas as classes, sem excepção, de uma dada sociedade
e, por conseguinte, o conhecimento do grau objectivo de
desenvolvimento desta sociedade e das relações entre ela e as outras
sociedades, pode servir de base a uma táctica justa da classe de
vanguarda. Além disso, todas as classes e países são considerados não
no seu aspecto estático, mas no dinâmico, isto é, não no estado de
imobilidade, mas em movimento (movimento cujas leis derivam das
condições económicas de existência de cada classe). O movimento é,
por sua vez, considerado não só do ponto de vista do passado, mas
também do ponto de vista do futuro, e não segundo a concepção vulgar
dos "evolucionistas", que só vêem lentas transformações, mas de
forma dialéctica. "Nos grandes processos históricos, vinte anos
equivalem a um dia - escrevia Marx a Engels - ainda que em seguida
possam apresentar-se dias que concentram em si vinte anos."
(Correspondência, t. III, p. 127.)(Ñ40) Em cada grau do seu
desenvolvimento, em cada momento, a táctica do proletariado deve
ter em conta esta dialéctica objectivamente inevitável da história da
humanidade: por um lado, utilizando as épocas de estagnação política,
ou da chamada evolução "pacífica", que caminha a passos de
tartaruga, para desenvolver a consciência, a força e a capacidade de
luta da classe de vanguarda; por outro, orientando todo este trabalho
de utilização para o "objectivo final" dessa classe, tornando-a capaz de
resolver praticamente as grandes tarefas ao chegarem os grandes dias
"que concentram em si vinte anos". Duas considerações de Marx
interessam particularmente a este respeito. Uma, na Miséria da
Filosofia, refere-se à luta económica e às organizações económicas do
proletariado; a outra, no Manifesto do Partido Comunista, é relativa às
tarefas políticas do proletariado. A primeira diz assim." A grande
indústria concentra num único local uma multidão de pessoas,
desconhecidas umas das outras. A concorrência divide os seus
interesses. Mas a defesa do salário, este interesse comum que eles têm
contra o patrão, une-os no mesmo pensamento de resistência, de
coalizão ... As coalizões, inicialmente isoladas, constituem-se em
grupos, e, face ao capital sempre unido, a manutenção da associação
torna-se para eles mais importante que a defesa do salário ... Nesta
luta - verdadeira guerra civil - reúnem-se e desenvolvem-se todos os
elementos necessários para a batalha futura. Uma vez chegada a este
ponto, a coalizão toma um caráter político."(N41) Temos aqui o
programa e a táctica da luta económica do movimento sindical para
algumas dezenas de anos, para todo o longo período de preparação
das forças do proletariado para a "batalha futura". Deve-se comparar
isto com os numerosos exemplos extraídos da correspondência de
Marx e Engels e que estes colheram do movimento operário inglês,
mostrando como a "prosperidade" industrial suscita tentativas de
"comprar o proletariado" (Correspondência com Engels, t. p.136)(N42),
de desviá-lo da luta; como esta prosperidade geralmente "desmoraliza
os operários" (III, 218); como o proletariado inglês "se aburguesa",
como "a nação mais burguesa de todas" (a nação inglesa) "parece que
quereria vir a ter, ao lado da burguesia, uma aristocracia burguesa e
um proletariado burguês" (II, 290)(N43); como "a energia
revolucionária" desaparece nele (III, 124); como será preciso esperar
mais ou menos tempo que os operários ingleses "se desembaracem da
sua aparente contaminação burguesa" (III, 127); como "o ardor dos
cartistas"(N44) falta ao movimento operário inglês (1866; III,
305)(N45)como os dirigentes operários ingleses se tornam um tipo
intermédio "entre a burguesia radical e o operariado" (alusão a
Holyoake, IV, 209); como, em virtude do monopólio da Inglaterra e
enquanto esse monopólio subsistir, "não haverá nada a fazer com o
operário inglês" (IV, 433)(N46) A táctica da luta económica em relação
com a marcha geral (e com o resultado) do movimento operário é ai
examinada de uma maneira admiravelmente ampla, universal,
dialéctica e verdadeiramente revolucionária.

O Manifesto do Partido Comunista estabelece o seguinte principio do


marxismo como postulado da táctica da luta política: "Lutam eles [os
comunistas] pela realização de objectivos e de interesses imediatos da
classe operaria, mas representam no movimento presente também o
futuro do movimento".(N47) Por isso, Marx apoiou em 1848, na Polónia,
o partido da "revolução agrária", "o mesmo partido que fomentou a
insurreição de Cracóvia de 1846,"(N48) Em 1848-1849, Marx apoiou na
Alemanha a democracia revolucionária extrema, sem que nunca se
retratasse do que então disse sobre táctica. Considerava a burguesia
alemã como um elemento "inclinado desde o início a trair o povo" (só
a aliança com os camponeses teria permitido à burguesia atingir
inteiramente os seus fins) e "a concluir compromissos com os
representantes coroados da velha sociedade". Eis a análise final dada
por Marx da posição de classe da burguesia alemã na época da
revolução democrática burguesa, análise que é um modelo do
materialismo que encara a sociedade em movimento e, certamente,
não considera unicamente o lado do movimento que olha para trás:
"... sem fé em si mesma, sem fé no povo, resmungando contra os de
cima, tremendo diante dos de baixo; ...espavorida diante da
tempestade mundial; nunca com energia, e sempre com plágio; ... sem
iniciativa; ... um velho maldito, condenado, no seu próprio interesse
senil, a dirigir os primeiros impulsos de um povo jovem e robusto”
(Nova Gazeta Renana, 1848, ver Literarischer Nachlass, (N49)III, p.
212.) Uns vinte anos mais tarde, numa carta a Engels (III, 224), Marx
escrevia que a razão do fracasso da revolução de 1848 foi a burguesia
ter preferido a paz na escravidão à simples perspectiva de combater
pela liberdade. Quando acabou a época revolucionária de 1848-1849,
Marx opôs-se aos que se obstinavam em continuar a jogar à revolução
(luta contra Schapper e Willich), exigindo que se soubesse trabalhar
na nova época que preparava, sob uma "paz" aparente, novas
revoluções. A seguinte apreciação de Marx sobre a situação na
Alemanha nos tempos da mais negra reacção, no ano de 1856, mostra
em que sentido pedia Marx que esse trabalho fosse orientado: "Na
Alemanha tudo dependerá da possibilidade de apoiar a revolução
proletária com uma espécie de segunda edição da guerra camponesa."
(Correspondência, II, 108.)(N50) Enquanto não acabou na Alemanha a
revolução democrática (burguesa), Marx votou toda a atenção, em
matéria de táctica do proletariado socialista, ao desenvolvimento da
energia democrática dos camponeses. Pensava que a actitude de
Lassaíle era "objectivamente uma traição para com o movimento
operário, em benefício da Prússia" (III, 210); entre outras razões
porque ele se mostrava demasiado complacente para com os
latifundiários e para com o nacionalismo prussiano. "Num país agrário,
é uma baixeza - escrevia Engels em 1865, no decurso de uma troca de
opiniões com Marx a propósito de uma projetada declaração comum
para a imprensa - atacar, em nome do proletariado industrial,
unicamente a burguesia, sem mesmo fazer a alusão á patriarcal
"exploração à paulada" a que os operários rurais se vêem submetidos
pela nobreza feudal." (III, 217.)(N51) No período de 1864 a 1870,
quando chegava ao fim a época da revolução democrática burguesa na
Alemanha, a época em que as classes exploradoras da Prússia e da
Áustria disputavam acerca dos meios para terminar esta revolução por
cima, Marx não se limitou a condenar Lassalle pelos seus namoros com
Bismarck, corrigia também Liebknecht, que tinha caído na "austrofilia"
e defendia o particularismo; Marx exigia uma táctica revolucionária que
combatesse tão implacavelmente Bismarck como os "austrófilos", uma
táctica que não se acomodasse ao "vencedor", o junker prussiano, mas
recomeçasse imediatamente a luta revolucionária contra
ele, inclusivamente no terreno criado pelas vitórias militares da
Prússia (Correspondência com Engels, III, pp. 134, 136, 147, 179, 204,
210, 215, 418, 437, 440-441.)(N52) No apelo célebre da Internacional
de 9 de Setembro de 1870, Marx punha em guarda o proletariado
francês contra uma insurreição prematura, mas quando, apesar de
tudo, ela se produziu (1871), saudou com entusiasmo a iniciativa
revolucionária das massas que "tomam o céu de assalto" (carta de
Marx a Kugelmann)(N53). A derrota da acção revolucionária, nesta
situação como em muitas outras, era, do ponto de vista do
materialismo dialéctico em que se situava, um mal menor na marcha
geral e no resultado da luta proletária do que teria sido o abandono
das posições já conquistadas, a capitulação sem combate; uma tal
capitulação teria desmoralizado o proletariado e minado a sua
combatividade. Apreciando em todo o seu justo valor o emprego dos
meios legais de luta em período de estagnação política e de domínio
da legalidade burguesa, Marx condenou vigorosamente, em 1877 e
1878, depois da promulgação da lei de excepção contra os
socialistas(N54),a "frase revolucionária" de um Most; mas combateu com
a mesma energia, se não mais, também o oportunismo que então se
tinha apoderado temporariamente do partido social-democrata oficial,
que não tinha sabido dar imediatas provas de firmeza, de tenacidade,
de espírito revolucionário e de prontidão, em resposta à lei de
excepção, a passar à luta ilegal (Cartas de Marx a Engels, t. IV, pp.
397, 404, 418, 422, 424; ver igualmente as cartas de Marx a
Sorge).(N55)

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Notas de rodapé:

(N1) V.I.Lénine redigiu o artigo Karl Marx (breve nota biográfica com uma exposição
do marxismo) para o Dicionário Enciclopédico Granat, que era na altura o mais
popular na Rússia. No prefácio à edição em separado deste artigo, em 1918, Lénine
citou de memória o ano de 1913 como data em que foi escrito o artigo. Na realidade
começou a prepara-lo na Primavera de 1914, em Porónine. Porém, estando
extremamente ocupado com a direcção da actividade do partido e do jornal Pravda,
Lénine foi obrigado a interromper a preparação do artigo. Somente em Setembro,
tendo mudado para Berna, reiniciou o trabalho com o artigo, tendo-o acabado na
primeira quinzena de Novembro. O artigo Karl Marx foi publicado incompleto em 1915
no t.28 do Dicionário Enciclopédico (7ª Edição), com a assinatura V. Iline. Devido à
censura, a redacção introduziu uma série de alterações no texto e suprimiu dois
capítulos: "O Socialismo" e "A táctica da luta de classe do proletariado". O texto
integral do artigo, em conformidade com o manuscristo, foi publicado pela primeira
vez em 1925 na colectânea de V. I. Lénine Marx, Engels, Marxismo, preparada pelo
Instituto Lénine adjunto ao CC do PCUS. (retornar ao texto)

(N2) Mencheviques: corrente oportunista na social-democracia russa. Em 1903, no


II Congresso do POSDR, os sociais-democratas revolucionários, com Lénine à frente,
obtiveram nas eleições para os órgãos centrais a maioria (em russo bolchinstvó, daí
o nome bolcheviques), enquanto os oportunistas ficaram em minoria (em russo
menchinstvó, daí o nome mencheviques). (retornar ao texto)

(N3) Hegelianos de esquerda ou jovens hegelianos: corrente idealista na filosofia


alemã dos anos 30-40 do século XIX, que procurava tirar conclusões radicais da
filosofia de Hegel e fundamentar a necessidade de transformação burguesa da
Alemanha. O movimento dos jovens hegelianos era representado por D. Strauss, B.
e E.Bauer, M. Stirner e outros. Durante certo tempo, também L. Feuerbach partilhou
as suas ideias, bem com K. Marx e F. Engels na sua juventude, os quais, rompendo
posteriormente com os jovens hegelianos, submeteram à crítica a sua natureza
idealista e pequeno-burguesa em A Sagrada Família (1844) e em A Ideologia Alemã
(1845-1846). (retornar ao texto)

(N4) F. Engels , Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã (retornar ao


texto)

(N5) Rheinische Zeitung für Politik, Handel und Gewerbe (Gazeta Renana de Política,
Comércio e Indústria), diário que se publicou em Colónia entre 1 de Janeiro de 1842
e 31 de Março de 1843. O jornal foi fundado por representantes da Renânia que
tinham uma actitude oposicionista para com o absolutismo prussiano. Também
alguns hegelianos de esquerda foram atraídos para participarem no jornal. A partir
de Abril de 1842, K. Marx colaborou na Gazeta Renana, e a partir de Outubro do
mesmo ano tornou-se um dos seus redatores, passando o jornal a revestir-se de um
caráter democrático revolucionário. Em Janeiro de 1843, o governo da Prússia
decretou o encerramento da Gazeta Renana a partir de 1 de Abril, estabelecendo
entretanto uma censura especialmente rigorosa ao jornal. Devido à decisão dos
acionistas de lhe atribuir um caráter mais moderado, Marx, em 17 de Março de 1843,
declarou que saía da redação. (retornar ao texto)

(N6) Trata-se da lista de obras composta por V.I. Lenine para o artigo Karl Marx (que
não se inclui na presente edição) (retornar ao texto)

(N7) Trata-se do artigo de K. Marx "Justificação do Correspondente do Mosela".


(retornar ao texto)

(N8) Só apareceu o primeiro fascículo duplo, em Fevereiro de 1844. Nele foram


publicadas as obras de K. Marx e F. Engels que marcam a sua passagem definitiva
para o materialismo e o comunismo. (retornar ao texto)

(N9) Na introdução ao artigo Contribuição para a Crítica da Filosofia do Direito de


Hegel, Marx escreve: "A arma da crítica não podia evidentemente substituir a crítica
das armas, porque a força material não pode ser derrubada senão pela força
material; mas, logo que penetra nas massas, a teoria passa a ser, também ela, uma
força material." (retornar ao texto)
(N10) Doutrina de Proudhon: corrente anticientífica, hostil ao marxismo, do
socialismo pequeno-burguês. Criticando a grande propriedade capitalista a partir de
posições pequeno-burguesas, Proudhon sonhava com perpetuar a pequena
propriedade privada, propunha que fossem organizados os bancos "do povo" e de
"troca", que, segundo ele, permitiriam aos operários obter meios de produção
próprios, tornar-se artesões e garantir a venda "justa" dos seus produtos. Proudhon
não compreendia o papel histórico do proletariado, negava a luta de classes, a
revolução proletária e a ditadura do proletariado. Partindo de posições anarquistas,
negava também a necessidade do Estado. (retornar ao texto)

(N11) Liga dos Comunistas: primeira organização internacional comunista do


proletariado, criada sob a direcção de Marx e Engels no início de Junho de 1847, em
Londres em consequência da reorganização da Liga dos Justos, associação secreta
alemã de operários e artesãos, que surgiu na década de 1830. Os princípios
programáticos e de organização da Liga foram elaborados com a participação directa
de Marx e Engels, que redigiram também o documento programático, o Manifesto do
Partido Comunista, publicado em Fevereiro de 1848. A Liga dos Comunistas existiu
até Novembro de 1852 e foi antecessora da Associação Internacional dos
Trabalhadores (I Internacional). Os dirigentes mais eminentes da Liga dos
Comunistas desempenharam mais tarde o papel dirigente na I Internacional.
(retornar ao texto)

(N12) Trata-se da revolução burguesa em França, em Fevereiro de 1848. (retornar


ao texto)

(N13) Trata-se da revolução burguesa na Alemanha e na Áustria, que se iniciou em


Março de 1848. (retornar ao texto)

(N14) A Nova Gazeta Renana (Neue Rheinische Zeitung) publicou-se em Colónia


entre 1 de Junho de 1848 e 19 de Maio de 1849. O jornal foi dirigido por K. Marx e
F. Engels, sendo Marx o redactor-chefe. A Nova Gazeta Renana, apesar de todas as
perseguições e obstáculos por parte da polícia, defendia corajosamente os interesses
da democracia revolucionária, os interesses do proletariado. A expulsão de Marx da
Prússia em Março de 1849 e as perseguições contra os outros redactores da Nova
Gazeta Renana foram a causa da cessação da publicação do jornal. (retornar ao
texto)

(N15) Trata-se da manifestação popular em paris organizada pelo partido da pequena


burguesia ("Montanha") em sinal de protesto contra a infracção, pelo presidente e
pela maioria da Assembleia Legislativa, da ordem constitucional estabelecida pela
revolução de 1848. A manifestação foi dispersa pelo governo. (retornar ao texto)

(N16) Lénine alude ao panfleto de K. Marx Herr Vogt (O Senhor Vogt), escrito em
resposta à brochura caluniosa O Meu Processo contra o "Allgemeine Zeitung", do
agente bonapartista K. Vogt. (retornar ao texto)

(N17) Trata-se do Manifesto Constituinte da Associação Internacional dos


Trabalhadores. (retornar ao texto)
(N18) Bakuninismo: corrente cuja denominação deriva do nome de Bakúnine,
ideólogo do anarquismo, inimigo do marxismo e do socialismo científico. Os
bakininistas travaram uma luta tenaz contra a teoria marxista e contra a táctica do
movimento operário. A tese principal do bakuninismo é a negação de todo o Estado,
incluindo a ditadura do proletariado, e a incompreensão do papel histórico universal
do proletariado. Uma sociedade revolucionária secreta constituída por "destacadas
personalidades" devia, na opinião dos bakuninistas, dirigir revoltas populares. A sua
táctica das conjuras e do terror era aventureira e hostil à doutrina marxista da
insurreição. (retornar ao texto)

(N19) Ver K. Marx e F. Engels, A Sagrada Família, capítulo 6. (retornar ao texto)

(N20) Agnosticismo: doutrina idealista que afirma que o mundo é incognoscível, que
a razão humana é limitada e não pode conhecer nada além das sensações. O
agnosticismo manifesta-se sob formas diferentes: alguns admitem a existência
objectiva do mundo material, mas negam a possibilidade de o conhecer, outros põem
em causa a sua própria existência, alegando que o homem não pode saber se existe
algo além das suas sensações. Criticismo: nome que Kant deu à sua filosofia idealista,
considerando que o seu objectivo principal é a crítica das faculdades cognitivas do
homem. Em consequência dessa "crítica", Kant foi levado à negação da possibilidade
de a razão humana conhecer a essência das coisas. Positivismo: corrente
amplamente difundida na filosofia e sociologia burguesas. Foi fundada por A. Comte
(1798-1857), filósofo e sociólogo francês. Os positivistas negam a possibilidade de
descobrir as necessárias relações internas das coisas, negam o significado da filosofia
como método de conhecimento e transformação do mundo objectivo e reduzem-na
à sistematização dos dados das ciências isoladas, à descrição externa dos resultados
da observação imediata dos factos "positivos". Colocando-se "acima" do materialismo
e do idealismo, o positivismo é de facto uma variedade do idealismo subjetivo.
(retornar ao texto)

(N21) F. Engels, Anti-Dühring. (retornar ao texto)

(N22) F. Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã. (retornar ao


texto)

(N23) F. Engels, Anti-Dühring (retornar ao texto)

(N24) F. Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã. (retornar ao


texto)

(N25) K. Marx, O Capital, t. 1, capítulo XIII. (retornar ao texto)

(N26) Restauração: período da história de França (1814-1830) durante o qual os


Bourbons, derrubados pela Revolução burguesa francesa de 1792, foram reinstalados
no trono. (retornar ao texto)

(N27) K. Marx, O Capital, t. 1, capítulo I.(retornar ao texto)

(N28) K. Marx, Contribuição para a Crítica da Economia Política, capítulo I. (retornar


ao texto)
(N29) Ver K. Marx, O Capital, t. 1, capítulo IV. (retornar ao texto)

(N30) Ver K. Marx, O Capital, t. 1, capítulo IV. (retornar ao texto)

(N31) Ver K. Marx, O Capital, t. 1 capítulo XXIV. (retornar ao texto)

(N32) Teoria da utilidade marginal: teoria económica vulgar apologista da burguesia


que surgiu na década de 70 do século XIX em contraposição à teoria do valor do
trabalho de Marx. Segundo essa teoria, o valor das mercadorias determina-se apenas
pela sua utilidade para os homens e não depende da quantidade do trabalho social
gasto com a sua produção. (retornar ao texto)

(N33) Ver K. Marx, O Capital, t. 1, capítulo XXIV (retornar ao texto)

(N34) Ver K. Marx, O Capital, t. 1, capítulo XXIII. (retornar ao texto)

(N35) Ver K. Marx, As Lutas de Classes em França, capítulo III. (retornar ao texto)

(N36) Ver K. Marx, O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, capítulo VII. (retornar ao


texto)

(N37) Ver K. Marx, As Lutas de Classes em França, capítulo III. (retornar ao texto)

(N38) Ver K. Marx, O Capital, t. III. (retornar ao texto)

(N39) Die Neue Zeit (Os Tempos Novos): revista teórica do Partido Social-Democrata
da Alemanha. Foi publicada em Stuttgart de 1883 a 1923. Na Die Neue Zeit fotam
publicadas pela primeira vez certas obras dos fundadores do marxismo. Engels
ajudava com os seus conselhos a redacção da revista e criticou-a por mais de uma
vez por se desviar do marxismo. A partir da segunda metade dos anos 90, após a
morte de F. Engels, começaram a aparecer sistematicamente na revista artigos dos
revisionistas. Nos anos da primeira guerra mundial a revista adoptou uma posição
centrista, apoiando de facto os sociais-chauvinistas. (retornar ao texto)

(N40) Ver a carta de K. Marx a F. Engels de 9 de abril de 1863. (retornar ao texto)

(N41) Ver K. Marx, Miséria da Filosofia, fim do II capítulo. (retornar ao texto)

(N42) Carta de K. Marx a F. Engels de 5 de Fevereiro de 1851. (retornar ao texto)

(N43) Cartas de F. Engels a K. Marx de 17 de Dezembro de 1857 e de 7 de Outubro


de 1859. (retornar ao texto)

(N44) Cartistas: partidários do primeiro movimento revolucionário de massas na


história da classe operária de Inglaterra nos anos 30-40 do século XIX. Os
participantes no movimento publicaram a Carta do Povo e lutavam pelas
reivindicações nela apresentadas: sufrágio universal, revogação da existência de ser
proprietário de terras para ser eleito deputado ao parlamento, etc. Por todo o país,
durante vários anos, realizaram comícios e manifestações, nos quais participaram
milhões de operários e artesãos. O Parlamento inglês recusou-se a ratificar a Carta
do Povo e rejeitou todas as petições dos cartistas. O governo reprimiu cruelmente os
cartistas e prendeu os seus dirigentes. O movimento foi esmagado, mas a influência
do cartismo sobre o desenvolvimento do movimento operário internacional foi muito
grande. (retornar ao texto)

(N45) Carta de F. Engels a K. Marx de 8 de Abril, e cartas de K. Marx a F. Engels de


9 de Abril de 1863 e de 2 de Abril de 1866. (retornar ao texto)

(N46) Cartas de F. Engels a K. Marx de 19 de Novembro de 1869 e de 11 de Agosto


de 1881. (retornar ao texto)

(N47) K. Marx e F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, capítulo IV. (retornar ao


texto)

(N48) Trata-se da insurreição nacional-libertadora democrática na República de


Cracóvia, república que desde 1815 estava sob o controlo da Áustria, da Prússia e da
Rússia. No decorrer da insurreição os rebeldes criaram um governo nacional que
emitiu um manifesto sobre a abolição das cargas feudais e prometeu entregar as
terras aos camponeses, sem resgate. Em outros manifestos, o governo decretou a
criação das oficinas nacionais, a elevação dos salários nestas, o estabelecimento da
igualdade civil. (retornar ao texto)

(N49) K. Marx, A Burguesia e a Contra-Revolução, fim do II capítulo. (retornar ao


texto)

(N50) Carta de K. Marx a F. Engels de 16 de Abril de 1856. (retornar ao texto)

(N51) Cartas de F. Engels a K. Marx de 27 de Janeiro e de 5 de Fevereiro de 1865.


(retornar ao texto)

(N52) Ver as cartas de F. Engels a K. Marx de 11 de Junho de 1863, 24 de Novembro


de 1863, 4 de Setembro de 1864, 27 de Janeiro de 1865, 22 de Outubro de 1867, 6
de Dezembro de 1867, e as cartas de K. Marx a F. Engels de 12 de Julho de 1864,
10 de Dezembro de 1864, e de Fevereiro de 1865, 17 de Dezembro de 1867.
(retornar ao texto)

(N53) Carta de K. Marx a L. Kugelmann de 12 de Abril de 1871. (retornar ao texto)

(N54) A lei excepção contra os socialistas vigorou na Alemanha de 1878 a 1890. A


lei proibia todas as organizações do partido Social-Democrata, as organizações
operárias, a imprensa operária. Foram confiscadas as publicações socialistas, os
sociais-democratas foram perseguidos e deportados. Mas o partido Social-Democrata
da Alemanha soube organizar o trabalho clandestino, aproveitando ao mesmo tempo
as possibilidades legais para fortalecer laços com a população. Em 1890, sob a
pressão do movimento operário de massas, que se fortalecia cada vez mais, a lei de
excepção contra os socialistas foi revogada. (retornar ao texto)

(N55) Ver as cartas de K. Marx a F. Engels de 23 de Julho e de 1 de Agosto de 1877,


e de 10 de Setembro de 1879, e as cartas de F. Engels a K. Marx de 20 de Agosto e
de 9 de Setembro de 1879. (retornar ao texto)
Fonte

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