Banalidade Do Mal
Banalidade Do Mal
Banalidade Do Mal
FACULDADE DE FILOSOFIA
Maceió
2020
2
Maceió
2020
3
Bibliografia: f. 34-37.
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BANCA EXAMINADORA
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Dedico este texto a minha mãe e minha esposa, Ana e Kelle, que sempre me deram
apoio e me ajudaram a chegar até aqui.
6
AGRADECIMENTOS
A Prof. Dra. Cristina Amaro Viana Meireles por todo apoio e contribuição acadêmica.
A todas as pessoas que lutaram e lutam por um ensino gratuito, universal e de qualidade.
7
RESUMO
ABSTRACT
The purpose of this monograph is to clarify the concept of trivialization of evil in the work
Eichmann in Jerusalem: an account of the banality of evil by the philosopher Hannah
Arendt. To achieve this purpose, this monograph will first present the general structure of
the text; second, it will present the notions about the problem of evil, aiming, finally, to
clarify the concept of trivialization of evil in Hannah Arendt.
SUMÁRIO
1. Introdução............................................................................................................................... 10
2. Capítulo um: O problema do mal ........................................................................................... 12
2.1 Sobre o mal natural .............................................................................................................. 12
2.2 Sobre o mal metafísico ........................................................................................................ 14
2.3 Sobre o mal moral ............................................................................................................... 17
3. Capítulo dois: o conceito de banalidade do mal em Arendt ................................................... 20
3.1 A autora, a obra e o ator (Eichmann)................................................................................... 20
3.2 O mal banal não possui o elemento da tentação .................................................................. 21
3.3 O mal banal e a burocracia .................................................................................................. 25
3.4 A ausência de reflexão ......................................................................................................... 28
4. Conclusão .................................................................................................................................. 32
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................ 34
10
1. Introdução
Essa monografia terá dois capítulos. Cada capítulo será usado como base, no qual
será tratado um problema que servirá para o capítulo seguinte, conforme explicitado a
seguir:
Vale ressaltar que não é objetivo desta monografia explicar todos os aspectos
acerca da problemática do mal. Seria demasiadamente pretensioso uma monografia se
propor a tal realização. Existem muitas outras abordagens possíveis para a problemática
11
do mal além da banalização do mal, mas, apesar de serem muito válidas, essas
abordagens não serão tratadas nesta monografia.
12
O presente capítulo terá como estrutura geral, primeiramente, uma explicação acerca
do mal natural. Em segundo lugar, abordará o problema do mal metafísico. E por último,
mas não menos importante, a problemática do mal moral. O objetivo do capítulo é
esclarecer as três possíveis abordagens acerca do problema filosófico do mal com o
intuito de auxiliar na compreensão do capítulo dois.
O mal natural (também conhecido como mal físico) refere-se ao mal que vem da
natureza e atinge o homem. Dentro deste campo pode-se enquadrar vários exemplos: as
doenças - sejam elas, sazonais ou pandêmicas1; as catástrofes naturais - furacões2,
terremotos3, etc. Diferentemente do mal moral, o mal natural não tem um agente
intencional, isto é, ele ocorre sem a intervenção humana.
É necessário dizer que o mal, de algum modo, tem causa. O mal é a falta do bem
que naturalmente se deve ter. Ora, que alguma coisa seja privada de sua
disposição devida por natureza, isso não pode provir a são ser de uma causa que
separe de sua disposição. Assim, um corpo pesado não se eleva sem que algo o
impulsione; e um agente não deixa de fazer sua ação senão em razão de um
obstáculo. Ora, ser causa só pode convir a um bem, pois nada poder ser causa
1
Exemplo de doenças sazonais são aquelas que ocorrem periodicamente, como as gripes; e os exemplos
de doenças pandêmicas são as virais de transmissão respiratórias que se espalham muito rapidamente,
como a Covid-19.
2
Um exemplo é o Furacão Katrina que ocorreu em 2005 no sul dos Estados Unidos com uma estimativa
de mais de 1800 mortes e aproximadamente 108 bilhões de dólares em prejuízos financeiros.
3
O Sismo do Haiti, também conhecido como Terremoto do Haiti, foi uma catástrofe natural que ocorreu no
dia 12 de janeiro de 2010 e deixou um saldo de mais de 200 mil mortes.
4
Tomás de Aquino foi um filósofo e teólogo que nasceu no Reino da Sicília (onde hoje localiza-se a Itália),
no ano de 1225 e faleceu no ano de 1274. Sua obra é de grande importância para a filosofia e a religião,
principalmente na tradição conhecida como Escolástica. Além de sua enorme contribuição filosófica e
teológica, ele é venerado pela Igreja Católica como Santo.
13
senão na medida em que é um ente, e todo ente, enquanto tal, é bom. Além disso,
se consideramos as razões específicas das causas, o agente, a forma e o fim
implicam certa perfeição que pertence à razão de bem. Mesmo a matéria,
enquanto é potência para o bem, tem razão de bem. (Tomás de Aquino, 2005, p.
97)
Para provar isso, é preciso saber que o mal é causado de um modo na ação e de
outro no efeito. Na ação o mal é causado pela deficiência de um dos princípios
da ação, ou do agente principal ou do agente instrumental. Por exemplo, a
deficiência de movimento do animal pode acontecer ou pela fraqueza da
faculdade motora, como nas crianças, ou pela inaptidão do instrumento. como
nos coxos. — O mal é causado em uma coisa. não contudo no efeito próprio do
agente. às vezes pelo poder do agente, e às vezes por deficiência do agente ou
da matéria. O mal é produzido pelo poder ou pela perfeição do agente, quanto à
forma buscada pelo agente segue-se necessariamente a privação de outra forma.
Por exemplo, quanto mais perfeita for a potência do togo, tanto mais
perfeitamente imprimirá sua tonna, assim também tanto mais perfeitamente
destruirá seus contrárias. Daí que o mal e a destruição do ar e da água
provenham da perfeição do fogo. Mas isso é produzido por acidente; pois o fogo
não tende a eliminar a forma da água. mas a induzir sua própria forma; entretanto,
fazendo isso, causa aquilo acidentalmente. — Porém, se houver deficiência no
efeito próprio do fogo, por exemplo, que ele não consiga aquecer. isso provém
ou de uma deficiência da ação. que recai na deficiência do princípio da ação,
como se disse. Ou então provém da má disposição da matéria que não recebe a
ação do fogo. Ora, o fato mesmo de ser deficiente é acidental ao bem, ao qual
por si compete o agir. Isso prova que o mal não tem causa senão por acidente. E
é dessa forma que o bem é causa do mal. (Tomás de Aquino, 2005, p. 98 - 99)
O mal natural não surge da ação humana. Ele surge na natureza e atinge o
homem. Por exemplo: a peste bubônica que ocorreu em meados do século XIV na
Europa, quando uma contaminação em massa causada pela bactéria Yersinia pestis,
conhecida como peste bubônica ou peste negra, dizimou um terço (1/3) da população da
Europa, segundo alguns especialistas. Funcionava assim, pulgas de ratos infectadas pela
bactéria, uma vez em contato com seres humanos, infectava essas pessoas e elas iam
infectando umas às outras. Entretanto, há algumas exceções no caso do mal natural:
caso alguém utilize micro-organismos (antraz, varíola etc.) como armas biológicas, nesse
14
Uma das perguntas mais importantes é se "é possível acabar com o mal natural?".
As respostas são diversas pois os tipos de males naturais também são diversos. Com
relação às catástrofes naturais, até o presente momento não há formas de acabar com
esse tipo de mal, simplesmente, o que os especialistas fazem é tentar mitigar os danos
causados por eles; com relação às enfermidades que acometem os homens por micro-
organismos (bactérias, vírus e fungos) algumas têm cura, como a tuberculose, enquanto
outras ainda não, como a AIDS. Por fim, como dizia o filósofo francês Ricoeur5, deve-se
buscar "uma condição humana em que, sendo suprimida a violência, o enigma do
verdadeiro sofrimento, do irredutível sofrimento, seria posto a nu." (Paul Ricoeur, 2005,
p. 34)
O mal metafísico refere-se a um tipo de mal que está além da física. Isto é, uma
substância (ou condição, como na proposta de Leibniz6, em que a criação é a condição
que nos deixa entregues à possibilidade do mal no mundo) não palpável e que seria a
essência e princípio ontológico de todos os tipos de males existente no mundo físico:
tanto o mal natural (também conhecido como mal físico), quanto o mal moral. Alguns
filósofos, principalmente os de tradição cristã, são radicalmente opostos à afirmação de
que existe o mal metafísico.
5
Paul Ricoeur (1913 - 2005) foi um importante filósofo francês do século XX (no período pós Segunda
Guerra Mundial). Desenvolveu muitos estudos em áreas como fenomenologia, hermenêutica, dentre
outras.
6
Gottfried Wilhelm Leibniz (1646 - 1716) foi um filósofo e polímata alemão. Fez contribuições significativas
para a filosofia, além disso foi um grande defensor do racionalismo do século XVII.
15
1980, Livro VII, p. 144). Agostinho afirma que Deus é bom e que criou todas as coisas
boas, e que o mal surge à medida que essas coisas se corrompem, ou seja, a parte
corrompida é o próprio mal. Logo, o mal metafísico não existe, tudo o que existe é bom.
Vi claramente que todas as coisas que se corrompem são boas: não se poderiam
corromper se fossem sumamente boas, nem se poderiam corromper se não
fossem boas. Com efeito, se fossem absolutamente boas, seriam incorruptíveis,
e se não tivessem nenhum bem, nada haveria nelas que se corrompesse.
Caso exista, o mal metafísico tem origem no campo metafísico, isto é, no campo
que está além do mundo físico. Uma vez que esse tipo de mal seja admitido como real,
mesmo como uma experiência de pensamento, ele ganha um estatuto ontologicamente
semelhante ao bem metafísico. Isto é, assim como há um bem metafísico que é causa e
substância para todos os tipos de bens - essa proposta é muito evidente em Agostinho
de Hipona e Tomás de Aquino: afirmar Deus como o próprio bem, e que toda sua criação
é boa, por consequência -, há também um mal metafísico que é causa e substância de
todos os tipos de males - essa segunda proposta é negada por Agostinho de Hipona7,
pois admitir um mal equivalente a um bem, implicaria em duas consequências: (i) dar
substância ao mal, tornando um ser real; (ii) afirmaria uma lógica maniqueísta, tornando
Deus (que é o bem) equivalente ao seu oponente (que é o mal), isto dissolveria a
afirmação de que Deus é onipotente.
7
Vale ressaltar que quando era jovem, Agostinho de Hipona era adepto do maniqueísmo, após a sua
conversão ele recusou essa concepção de mal. Para mais informações consultar o livro História da Filosofia
Volume 2 de Reale e Antiseri das páginas 81 à 116.
16
Do ponto de vista metafísico, o mal não existe, mas existem apenas graus
inferiores de ser em relação a Deus, Sumo Bem.
Leibniz (1646 – 1716), por outro lado, afirma a existência do mal metafísico como
uma condição, mas que isso não contradiz a existência puramente boa de Deus:
Dentre os tipos de mal, o mal metafísico é o mais difícil de ser examinado pois,
além de não ser possível afirmar com certeza que ele exista (por estar além da
experiência humana), toda experiência acaba sendo, em certa medida, contaminada
pelas percepções humanas. As percepções humanas de cada pessoa podem acabar
gerando conclusões diferentes para os mesmos problemas. Por exemplo, Agostinho de
Hipona afirma que o mal existe, mas não como substância, pois tudo que existe é bem e
se o mal existisse ele seria um bem, pois teria substância e como tudo que tem substância
foi criado por Deus, o mal teria sido criado por Deus.
17
O terceiro (e último) tipo de mal tratado nesta monografia é o mal moral. Ele se
refere a todo tipo de mal que é cometido do homem contra o homem, ele pode ser
individual ou coletivo, voluntário ou não. Por ser específico, isto é, ser pontual em cada
ocasião, torna-se mais fácil identificar o seu autor (aquele que comete o mal) e a sua
vítima (aquela que sofre o mal). Enquanto para Agostinho de Hipona a substância do
homem é inerentemente boa (sendo que o mal ocorre quando o caminho natural dessa
substância é corrompido8), para Kant9, há no homem um resquício do mal radical10. Isto
é, ele tem uma propensão/predisposição ao mal. São suas ações individuais que os
levam à prática do mal. Kant, explica:
8
Ver seção anterior sobre o mal metafísico.
9
Immanuel Kant (1724 - 1804) foi um filósofo prussiano. É um dos maiores filósofos da história. Suas
principais contribuições para a filosofia foram nos campos da epistemologia, metafísica e ética.
10
Sobre a definição de mal radical vale à pena ressaltar que “Na filosofia de Kant, a noção de mal radical,
tal como aparece no texto A religião dentro dos limites da simples razão, opera como articulação e
explicação das oscilações no vínculo entre razão e vontade, assim como do conflito entre respeito pela lei
moral e amor-próprio. O mal radical, tal como o concebe Kant, está intimamente relacionado ao problema
da liberdade, mas particularmente também ao que ele julga ser uma predisposição natural do homem a
inclinar-se a ceder às suas apetições.” (Correia, 2005, p. 83)
18
Ao analisar as ações do ponto de vista político, vale ressaltar que, como a própria
Arendt aponta, a culpa acaba quase sempre sendo imputada ao perdedor pelo
vencedor12. Por exemplo, o tribunal que deveria julgar os crimes de guerra acaba por se
tornar o tribunal dos vitoriosos sobre os derrotados, como o caso do tribunal de
Nuremberg, no qual os crimes dos aliados (EUA, França, Inglaterra e URSS) foram
ignorados enquanto que os alemães tiveram seus crimes julgados e os culpados foram
responsabilizados. Além da Arendt, vale apontar o que cita Karl Jaspers no livro A
questão da culpa (1946) no qual ele aponta quatro tipos de culpa: criminal, política, moral
e metafísica.
11
Utilitarismo é uma teoria filosófica fundamentada principalmente por Jeremy Bentham (1748 - 1832) e
John Stuart Mill (1806 - 1873), que alegava que a noção de bem e de mal é caracterizada pela utilidade da
ação; diferentemente da concepção deontológica de Kant que julgava que o mal deve ser evitado, mesmo
que não cause prejuízo a outras pessoas.
12
Aqui o texto sai do campo moral e entra no campo político.
19
pessoas morrerem enquanto você está vivo, no qual você deveria ter tentando ajudá-la,
mesmo que sem sucesso. (Karl Jaspers, 2018, p. 11)
Nos casos em que há um mal moral individual, por ser geralmente pontual (isto é,
ser específico), há duas possibilidades para o seu tratamento. A primeira ocorre depois
do mal cometido, se for em um assassinato premeditado, punindo o assassino
legalmente, se essa medida não acaba com o mal, ao menos para o vitimador, espera-
se que a punição cause uma pena equivalente ao mal causado por ele (o vitimador). A
segunda ocorre antes do mal acontecer, por exemplo, prendendo o futuro assassino15
enquanto ele ainda está premeditando o assassinato; se ainda não é possível o acusar
do mal de um assassinato, ao menos é possível o acusar do mal de planejar um
assassinato. Nesse segundo caso, não há um mal na ação, mas na intenção de cometer
a ação.
13
Além de tratar o mal a partir de sua relação com a intencionalidade, há também a possibilidade de tratar
o mal a partir de sua raiz, como fez Kant. Na qual "A doutrina do mal radical é então uma tentativa de dar
uma fundamentação filosófica adequada à liberdade moral, e ao mesmo tempo, de tornar possível a
concepção da responsabilidade pelos atos não conformes à lei moral". (CORREIA, 2005, p. 85)
14
No livro O livre-arbítrio Agostinho argumenta que não há mal moral sem um homem que livremente
escolha o mal. Para ele, o mal só entra no mundo através do homem. (Ver Capítulo 1)
15
Como ocorre em trabalhos de investigações policiais no qual a polícia consegue prender os criminosos
antes que eles cometam o crime, na fase de planejamento (anterior a execução do crime).
20
"banalização do mal", que ocorre quando uma pessoa, através da incapacidade de refletir
sobre suas ações, torna-se indiferente ao mal que é causado ao outro. Esse conceito
(banalização do mal) será melhor esclarecido mais adiante. Mas, antes disso, é
necessário abrir um parágrafo para esclarecer quem foi Eichmann.
O presente subcapítulo tem o objetivo argumentar que o mal banal, tratado por
Hannah Arendt, não tem o elemento tentador. Nos parágrafos seguintes serão
apresentados os argumentos que Hannah Arendt usou para identificar o mal na esfera
política e coletiva (em oposição da esfera moral e íntima) que sustenta que o mal banal
não tem o elemento da tentação. Além disso, serão apresentados os pontos fortes
(apoiados em comentadores) e as possíveis objeções a esse argumento. Esse processo
de exposição e objeção visa facilitar a compreensão do assunto.
Se, diferentemente de Arendt, for defendido que o mal reside na esfera individual,
isto é, que a prática do mal depende unicamente da ação de cada pessoa, é possível
atribuir algum nível de culpa a Eichmann? Apenas como um exercício de pensamento,
se esse argumento for levado em consideração para analisar as ações de Adolf
Eichmann, é possível que seja correto afirmar que o responsável pelas ações do
Eichmann é ele mesmo. Isso implica que (dentro deste ponto de vista) mesmo que ele
não tivesse poderes para evitar o genocídio do povo judeu, ele tinha o dever moral de
22
não colaborar com este e ainda por cima, de empreender o máximo de esforço possível
para evitá-lo. Olhando por esse ponto de vista e uma vez que esse argumento moral seja
usado para embasar a acusação de Eichmann, é correto afirmar que a condenação dele
foi justa. No entanto, vale ressaltar que este não é o pensamento de Arendt.
Não havia em Adolf Eichmann o desejo perverso de matar nem ao menos ódio
aos judeus. Como ele mesmo dizia "(...) nunca matei um judeu, nem um não-judeu -
23
nunca matei nenhum ser humano. Nunca dei uma ordem para matar, fosse um judeu
fosse um não-judeu (...)" (Arendt, 2018, p. 33). Adolf Eichmann não era a pessoa que se
esperava no julgamento; em um crime de tamanha atrocidade, era esperado um
praticante de tamanha atrocidade. Eichmann era mais parecido com os promotores,
juízes, jurados e testemunhas do que com o personagem que se esperava dele: alguém
fanático que agia de livre e espontânea vontade motivado por um ódio constante ao povo
judeu. "Pior ainda, seu caso evidentemente não era de um ódio insano aos judeus, de
um fanático anti-semitismo (...). "Pessoalmente", ele não tinha nada contra os judeus;"
(Arendt, 2013, p. 37).
Um dos analistas declarou ao analisar Eichmann que "seu perfil psicológico, sua
atitude quanto a esposa e filhos, mãe e pai, irmãos, irmãs e amigos, 'não apenas [era]
normal, mas inteiramente desejável'". (Arendt, 2013, p.37)
Partindo do pressuposto de que Arendt está correta, pode-se afirmar que Adolf
Eichmann é responsável por suas ações, mas que não se trata de uma culpa individual;
24
é importante destacar o papel coletivo na manutenção do mal banal que era gerenciado
pela burocracia nazista. Das ordens que partiam da chancelaria do Führer, Adolf Hitler, a
parte que chegava ao especialista em evacuação forçada, Adolf Eichmann, deveria ser
cumprida sem questionamentos. Isto é, enquanto Eichmann cumpria a ordem de evacuar
forçadamente milhares de pessoas de um ponto A para um ponto B, ele apenas via seu
papel na evacuação, mas não parava para refletir que fazia parte de uma engrenagem
criminosa dentro de um estado criminoso e que suas ações facilitavam o extermínio de
milhares de pessoas.
Por outro lado, é possível argumentar que a banalização do mal pode ser utilizada
como justificativa para inocentar pessoas que cometeram crimes em nome dos seus
Estados, mesmo que Arendt nunca tenha feito tal afirmação. Do ponto de vista dessa
argumentação, uma vez que o indivíduo obediente às leis estava sob as ordens de um
Estado, a culpa pelos crimes é do Estado do qual partiu a ordem e não do indivíduo
praticante que, se não tivesse cumprido as ordens que lhe foram dadas, seria
considerado um criminoso por não cumprir as ordens criminosas que lhe foram dadas.
Apesar desse argumento ser frágil, dada as condições favoráveis, ele pode ser aplicado;
como é caso de Paul Tibbets (1915 - 2017), que no dia 6 de agosto de 1945 lançou sob
a cidade de Hiroshima no Japão a Bomba de Hiroshima matando aproximadamente 90
mil pessoas (em sua grande maioria civis), mas como agia sob ordens de um Estado
(vale ressaltar que se tratava de um dos Estados vencedores, os EUA, isso favorece na
absolvição dos crimes), não foi responsabilizado por suas ações. Adolf Eichmann poderia
ser absolvido com o mesmo argumento se fosse um soldado aliado.
Por fim, espera-se que esse subcapítulo 3.2 tenha esclarecido como, para Hannah
Arendt, o mal banal não depende exclusivamente do indivíduo praticante; que no contexto
de Eichmann havia todo um mecanismo (a burocracia nazista) que garantia a
perpetuação do mal; e que, além disso, dentro desse mecanismo era esperado ao
"cidadão de bem" (cumpridor das leis) executar ordens (contribuir com o extermínio do
povo judeu) que ao resto do mundo eram condenáveis.
25
Quando a promotoria, liderada por Gideon Hausner (1915 - 1990), tentava imputar
a Adolf Eichmann a culpa por todo o genocídio e em certos momentos até a autoria da
Solução Final, ela o fazia por vários motivos. Em parte, por desinformação, em parte pela
necessidade de encontrar um inimigo (bode expiatório) a quem atribuir a culpa e também
por razões políticas. Mas, o que ficou evidente foi que a burocracia nazista era
completamente desconhecida pela promotoria.17 De Hitler à Eichmann, havia uma vasta
hierarquia que exigia o cumprimento cego às ordens. Essas ordens de massa eram
16
Burocracia - Max Weber e o significado de "burocracia". UOL educação. Disponível em:
<https://educacao.uol.com.br/disciplinas/sociologia/burocracia-max-weber-e-o-significado-de-
burocracia.htm> Acesso em: 12 out. 2020
17
Hannah Arendt constantemente aborda a complexidade da máquina burocrática nazista pois, desta
forma é possível entender o contexto no qual Eichmann estava inserido (ainda que esse contexto não
justifique suas ações). A hierarquia que levava a Eichmann era assim disposta: (1) Hitler (Fuhrer); (2)
Himmler (Subordinado a Hitler); (3) Heydrich (no início) e Kaltenbrunner (depois); (4) Müller - chefe da
Seção IV que chefiava os dois grupos: Subseção IV-A (que cuidava de oponentes políticos) e Subseção
IV-B (que cuidava de oponentes religiosos); (5) Chefe da Subseção IV-B (que segundo Arendt, não tinha
importância para a subordinação e contextualização de Eichmann, pois ele (Eichmann), reportava
diretamente a Müller e Heydrich; (6) Eichmann - chefe da Subseção IV-B-4 (que cuidava dos assuntos
judeus).
26
ampliadas à medida em que chegavam às camadas mais baixas. A máquina nazista não
admita desobediência nem questionamentos (as ocorrências eram sempre ofuscadas e
maquiadas), pois, para que houvesse milhões de assassinados era necessário que
houvesse milhares de assassinos. Um exemplo de obediência cega ocorreu em 1941
quando o chefe de Eichmann, Dr. Stahlecker (1900 - 1942), ordenou o fuzilamento de
250 mil judeus (Arendt, 2013, p. 88). Promover a obediência cega era a melhor forma de
fazer milhares de pessoas cumprirem atos tão abomináveis sem questionamentos.
18
Se for recorrer aos quatro tipos de culpa de Jaspers, Eichmann teria culpa política, na qual um povo
inteiro é corresponsável pelo crime cometido pelo seu Estado. Para mais informações ver A questão da
culpa de Jaspers.
27
Será que Hannah Arendt está correta? É possível aceitar que Adolf Eichmann era
incapaz de refletir e que, além disso, havia um mecanismo que normatizava a
banalização do mal? Há algumas razões para afirmar que a autora está correta. Primeiro,
quanto a incapacidade de reflexão, existem algumas ocasiões nas quais ficou evidente o
quanto Eichmann estava disposto a tudo para cumprir suas ordens. Quando os judeus
húngaros acharam que os nazistas que trabalham na evacuação da Hungria seriam
corruptos, assim como os nazistas que trabalharam na evacuação da Eslováquia,
Eichmann aceitou o papel de fingir ser corrupto para poder levar adiante suas ordens:
evacuar forçadamente todos os judeus húngaros (Arendt, 2013, p. 217). Em segundo
lugar, quanto ao mecanismo que normatizava a banalização do mal (a burocracia
nazista), há várias ocasiões que confirmam que, apesar de Eichmann ser um funcionário
competente e muito dedicado às suas funções, ainda assim, ele era apenas um
funcionário dentre milhares, apesar do seu trabalho não ser totalmente ordinário, muitas
outras pessoas poderiam assumir suas funções e fazer o mesmo que Eichmann fazia.
Um exemplo é o oficial Kurt Becher (1909 - 1995), que vendia passes para fuga de judeus
húngaros (Arendt, 2013, p. 160), mas antes disso ele comprava suas empresas a custos
baixíssimos para a SS. Um exemplo contrário ocorreu quando Eichmann participou das
negociações nas quais tentou trocar um milhão de judeus por dez mil caminhões (Arendt,
2013, p. 161). De um lado, as ações de Becher apoiavam a causa nazista, mas tinham
fundamentos egoístas (visavam o enriquecimento próprio); do outro lado, as ações de
Eichmann apoiavam a causa nazista e não tinham fundamentos egoístas (visavam
cumprir a ordem pela necessidade da obediência); mas, o ponto de intersecção entre
ambos é que, por razões egoístas ou não, ambos ajudavam a máquina nazista em seu
projeto criminoso de extermínio do povo judeu. Esse é apenas um dos exemplos que
mostra como Eichmann era descartável. Mesmo que não fosse possível encontrar outra
pessoa com as mesmas motivações de Eichmann, ainda assim, era facilmente possível
encontrar outras pessoas com os mesmos talentos.
atrasar os planos nazistas e quem sabe matar Hitler se tivesse a oportunidade de chegar
perto dele com uma arma, em ações que poderiam ser planejadas individualmente; (iii) e
em última hipótese, ele poderia simplesmente fugir. Entretanto, Adolf Eichmann escolheu
ficar e colaborar com a máquina nazista. Mesmo quando o então o ditador da Hungria,
Almirante Horty (1868 - 1957) ordenou que os nazistas parassem com as deportações,
Eichmann ainda desobedeceu à ordem e conseguiu deportar mais 1500 judeus (Arendt,
2013, p. 221). Vale ressaltar que não é essa a interpretação que Hannah Arendt faz de
Eichmann, mas essa possibilidade das ações de Eichmann terem sido propositais devem
ser mencionadas.
Espera-se que esse subcapítulo tenha mostrado como não havia explicações
simples para a posição de Adolf Eichmann dentro da burocracia nazista; que o sistema
nazista era articulado de uma maneira a tornar seus funcionários, mesmo os mais
dedicados, descartáveis; e que, por fim, a melhor forma de combater esse tipo de estado
criminoso, mesmo que não consiga eliminar, mas pelo menos mitigando seus males, é
agindo de maneira reflexiva (no qual abordaremos mais detalhadamente no próximo
subcapítulo). Isto é, não normatizar crimes coletivos como fora feito na Alemanha nazista.
Adolf Eichmann não era acéfalo e, no entanto, cumpriu ordens que enojam a
consciência humana; ele não tinha problemas mentais e, no entanto, cumpriu ordens que
por escolha própria ele não teria iniciativa de fazer; ele não era perverso nem odioso, e
ainda assim, colaborou com o assassinato de milhões de pessoas. Então, o que explica
o comportamento de Eichmann? Adolf Eichmann tinha ausência de reflexão e estava
inserido em um Estado criminoso (Terceiro Reich). Hannah Arendt afirma que "Ele
simplesmente nunca percebeu o que estava fazendo" (Arendt, 2013, p. 310), que sua
29
[Eichmann] não entrou para o partido por convicção nem jamais se deixou
convencer por ele. [Eichmann] declarou no tribunal, “foi como ser engolido pelo
partido contra todas as expectativas e sem decisão prévia. Aconteceu muito
depressa e repentinamente.” [Eichmann] nunca leu o Mein Kampf. Kaltenbrunner
disse para ele: Por que não se filia à ss? E ele respondeu: Por que não? [...]
[Eichmann] deixou de dizer [...] que ele havia sido um jovem ambicioso que não
agüentava mais o emprego de vendedor [...]. O vento o tinha soprado [...] para
dentro de um Movimento sempre em marcha [...] [no qual ele] ainda poderia
construir uma carreira. [...] [Eichmann preferia] ser enforcado como
Obersturmbannführer a. D. (da reserva) do que viver a vida discreta e normal de
vendedor viajante da Companhia de óleo a vácuo. (Arendt, 2013, p. 44 - 45)
Para a autora a máquina nazista era uma grande engrenagem na qual um sujeito
que não refletia sobre suas ações, como Adolf Eichmann, contribuía para a manutenção
e ampliação de um estado criminoso, e nesse estado o mal se tornou banal, isto é, ele
30
não tinha como origem o ódio ou uma motivação sádica, ele era fruto de ações políticas.
Apesar de não preencher todas as lacunas que compõem uma ditadura, essa definição
mostra como era complicada a situação do indivíduo Eichmann dentro da máquina
nazista. Um dos grandes problemas era que a maioria das pessoas concordavam que o
que ele fazia estava certo, isto é, ele era um "cidadão de bem" construindo uma "boa
sociedade" (Arendt, 2013, p. 142). Como Hitler conseguiu eliminar rapidamente grande
parte de sua oposição, a minoria restante era vista como inimiga dos cidadãos de bem
que queriam construir a sociedade boa. Olhando por um ponto de vista macro: quem
estava certo (a oposição ao regime nazista) era ilegal e quem estava errado (os membros
do regime nazista) era legal. Vale ressaltar que o problema é maior do que uma questão
de legalidade, pois não se trata apenas de uma lei criminosa e sim de um Estado
criminoso.
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Hans Globke (1898 - 1973), foi um advogado alemão e alto funcionário do partido nazista. Ele foi o
formulador da diretiva que exigir que todos deveriam provar que tinham ascendência ariana.
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Wilhelm Stuckart (1902 - 1953), foi um jurista e alto funcionário do partido nazista. Foi ele quem propôs
o programa de esterilização de todos os meio-judeus na conferência de Wannsee, em vez de exterminá-
los.
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Para mais informações consultar o livro Eichmann em Jerusalém, páginas 144 e 145.
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Vale ressaltar que este não é o ponto de vista de Arendt. Essa hipótese foi levantada para mostrar que
havia a possibilidade de Eichmann estar mentindo.
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a autora estava errada, mas a sua existência deve ser citada para abrir a possibilidade
de um outro olhar sobre o tenente-coronel Adolf Eichmann.
Além disso, e se a todos forem creditados à irreflexão, como saber quem está mentindo?
4. Conclusão
Após o genocídio judeu que ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial (1939 -
1945), os nazistas que não foram mortos, fugiram. Um dos que fugiram foi o tenente-
coronel Adolf Eichmann. Ele conseguiu ficar impune durante quinze anos. Em 1960,
membros do Mossad (o serviço de inteligência de Israel) conseguiram capturá-lo em um
subúrbio de Buenos Aires, na Argentina. Após ser anunciado que ele seria julgado em
Israel, seu julgamento tornou-se famoso em todo o mundo. Os maiores veículos de
comunicação enviaram seus representantes para cobrir o julgamento, um desses
representantes foi a filósofa Hannah Arendt, que ao analisar o réu não viu nem um
homem odioso, nem perverso. Hannah na verdade encontrou um homem comum, até
para os homens comuns. E foi sobre o "julgamento de Eichmann" e a "banalidade do mal"
que Arendt escreveu seu livro e que analisamos nesta monografia.
Por fim, a banalização do mal continua sendo um debate caro à filosofia. Arendt
se lançou em um campo novo, disposta a analisar algo inédito na história da humanidade
(a máquina nazista) e sua corajosa busca rendeu frutos para interpretações que vão além
dos clichês. Espera-se que essa monografia tenha sido clara em seus objetivos:
esclarecer os problemas do mal banal tratado por Hannah Arendt. O problema persiste
em aberto e isso possibilitará que a cada lançar de olhos no conceito arendtiano seja
possível manter vivo o debate acerca da banalidade do mal e com isso espera-se evitá-
lo a todo custo.
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REFERÊNCIAS
7 fatos que você precisa saber sobre o Furacão Katrina. Galileu. 24 ago. 2015.
Disponível em: <https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2015/08/7-fatos-que-
voce-precisa-saber-sobre-o-furacao-katrina.html> Acesso em 27 de abril de 2020
Agência Brasil. Terremoto que matou 300 mil no Haiti faz 10 anos. 12 jan. 2020.
Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-01/terremoto-que-
matou-300-mil-no-haiti-faz-10-
anos#:~:text=O%20terremoto%20que%20devastou%20o,milh%C3%A3o%20de%20pes
soas%20ficaram%20desabrigadas> Acesso em 27 de abril de 2020
AQUINO, TOMÁS DE. Suma teológica. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
HIPONA, AGOSTINHO DE. O livre-arbítrio. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo:
Paulus, 1995.
SCHIO, SÔNIA MARIA. Hannah Arendt: o mal banal e o julgar. Revista Veritas. Porto
Alegre, v. 56, n. 1, p. 127-136, jan./abr. 2011.
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