Hannah Arendt e A Banalidade Do Mal

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Este livro trata do caminho de Hannah Arendt na direção do

esclarecimento do fenômeno do mal. Tal como ocorreu com outros autores


do nosso século, a reflexão da filosofia tem origem em uma experiência de
espanto e choque. Em 1943, Hannah Arendt tomou conhecimento da
existência dos campos de extermínio. Os anos seguintes, até a publicação de
As origens do totalitarismo (1951), constituem o primeiro momento do seu
empreendimento compreensivo. A obra, um clássico do pensamento
político, descreve o macabro fundamento da maquina totalitária e propõe
aproximá-la do mal absoluto ou do mal radical, tal como Kant havia
formulado.
O segundo passo deste percurso é o da publicação de Eichmann em
Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal (1963). A novidade do
livro reside em que o mal é visto não mais vinculado a algo de absoluto e
com raízes profundas, mas, do ponto de vista do seu agente, em sua
banalidade. Os crimes cometidos por Eichmann foram monstruosos, sua
personalidade era apenas ordinária. Daí a ideia de que o mal nunca é
radical, não possui profundidade nem dimensão demoníaca.
A terrível banalidade da figura de Eichmann manifestava-se ainda na
total incapacidade de pensar. O pensamento é uma abertura pela qual o
mundo se nos afigura e surpreende. Eichmann, ao contrário, recorria, para
lidar com as situações, a comportamentos padronizados e se expressava
usando clichês e frases feitas.
Foi isto que motivou Hannah Arendt a formular a pergunta que abre A
vida do espírito, sua última obra, e que orienta o terceiro passo do percurso:
“Será possível que o problema do bem e do mal esteja conectado com nossa
faculdade de pensar?”
A resposta passa pela desconsideração de todo intelectualismo moral: o
pensamento não produz nenhuma sabedoria prática. Mas é possível, adianta
Hannah Arendt, localizar na própria estrutura dual do pensar implicações
morais. Além disso, tomado em sua natureza estritamente crítica, o
pensamento tem o poder de liberar o caminho para o juízo, a faculdade com
a qual distinguimos o que é certo do que é errado. Neste ponto reside a
importância maior deste livro – apontar para o fato de Hannah Arendt ter
recolocado o problema central da relação entre teoria e prática.

EDUARDO JARDIM DE MORAES

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Hannah Arendt e a banalidade do
mal

Nádia Souki

SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros

SOUKI, N. Hannah Arendt e a banalidade do mal [online]. Belo Horizonte:


Editora UFMG, 1998. Humanitas series ISBN: 978-65-5858-011-9.
https://doi.org/10.7476/9786558580119.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
REITORA Sandra Regina Goulart Almeida
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EDITORA UFMG
DIRETOR Flavio de Lemos Carsalade
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Rodrigo Patto Sá Motta
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Nádia Souki

Hannah Arendt e a banalidade do


mal

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© 1998, A autora
© 1998, Editora UFMG
2006, 1a reimpr.
2019, 2ª reimpr.

Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem
autorização escrita do Editor.

S721h

Souki, Nádia

Hannah Arendt e a banalidade do mal [livro eletrônico] /


Nádia Souki. - Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

3.572 Kb. EPUB - (Humanitas)

Inclui referências
ISBN: 978-65-5858-011-9

1. Ciência política I. Título.

CDD: 111
CDU: 111.84

Elaborada pela Biblioteca Professor Antônio Luiz Paixão –


FAFICH/UFMG

COORDENAÇÃO EDITORIAL Jerônimo Coelho


DIREITOS AUTORAIS Anne Caroline Silva
ASSISTÊNCIA EDITORIAL Eliane Sousa
PREPARAÇÃO DE TEXTO Ana Maria de Moraes
REVISÃO E NORMALIZAÇÃO Maria do Rosário Alves Pereira
REVISÃO DE PROVAS Priscilla Iacomini Felipe e Michel Gannam
PROJETO GRÁFICO Cássio Ribeiro, a partir de Glória Campos - Mangá
FORMATAÇÃO E MONTAGEM DE CAPA Cássio Ribeiro
IMAGEM DE CAPA Extraída de Triumph des Willens, de Helene Bertha
Amalie “Leni” Riefenstahl
PRODUÇÃO GRÁFICA Warren Marilac

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Campus Pampulha – 31270-901 – Belo Horizonte/MG
Tel: + 55 31 3409-4650 – www.editoraufmg.com.br – [email protected]

Versão digital: setembro de 2020.

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Para Júlia e Letícia

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Agradecimentos
Este texto foi apresentado como dissertação para o Curso de Mestrado da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de
Minas Gerais, defendida em setembro de 1995. As pesquisas que
permitiram sua elaboração foram custeadas por bolsas do CNPq e
FAPEMIG.

A orientação do Professor Newton Bignotto foi-me de grande valia, assim


como a orientação, no Capítulo I, do Professor Javier Herrero. A essas
instituições e a esses professores meu agradecimento.

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Table of Contents / Sumário / Tabla
de Contenido
Front Matter / Elementos Pré-textuais / Páginas Iniciales
Introdução
Capítulo I: O mal radical como ponto de partida
A doutrina do mal radical
Os quatro pontos fundamentais
A conversão
O mal radical e a política
Capítulo II: A novidade totalitária
O conceito de novidade
O totalitarismo em questão
Ideologia e terror
Capítulo III: A banalidade do mal: uma invenção contemporânea
A controvérsia
O caso Eichmann
O homem Eichmann
A banalidade do mal – um conceito?
Capítulo IV: O vazio de pensamento
O retorno à filosofia
O pensar
O vazio de pensamento
O mal radical – A banalidade do mal – O vazio de pensamento
Conclusão
Referências

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Introdução
O mal sempre constituiu um desafio à filosofia, chegando, muitas vezes,
a ser considerado um enigma; por isso, tem correspondido a um convite a
não ser pensado. Mas o fato de ignorá-lo, expurgá-lo do pensamento não o
esconjura e nem o retira do universo dos problemas humanos. Por outro
lado, é exatamente esse caráter enigmático do mal que pode representar
uma provocação para que o pensemos melhor ou de forma diferente.
Para Ricœur,1 o que fornece o caráter enigmático ao mal, pelo menos na
tradição judaico-cristã do Ocidente, é a nossa tendência de colocar, numa
primeira abordagem e num mesmo plano, fenômenos díspares como
pecado, sofrimento e morte. De acordo com esse ponto de vista, a nossa
proposta, neste trabalho, é dissociar a noção de mal da de pecado, de
sofrimento e de morte. Tentaremos abordá-lo dentro da perspectiva da ação
que nos conduz a uma abordagem da ética e da política, pois, sendo o mal,
nessa perspectiva, sinônimo de violência, combatê-lo, por meio da ação
ética e política, é diminuí-lo no mundo.
A experiência política do século XX revelou-nos o surgimento de uma
nova modalidade de mal até então desconhecida. A emergência do
fenômeno totalitário obrigou-nos a reavaliar a ação humana e a história, na
medida em que esta revelou novas figurações do homem, inclusive em
algumas de suas formas monstruosas. É, precisamente, no contexto da
reflexão sobre a experiência das sociedades totalitárias do nosso século que
Hannah Arendt retoma a questão do mal na filosofia. Segundo a autora,
quando tentamos compreender o fenômeno totalitário – que nos impõe essa
realidade e que contraria todas as normas que conhecemos – não temos
apoio na experiência da tradição. Para ela, essa falta de apoio se deve tanto
ao fato de a emergência de tal fenômeno constituir algo novo, que não se
ajusta às nossas categorias de pensamento, quanto à constatação de que toda
tradição filosófica se recusa a conceber um mal radical.2 Acrescenta que até
mesmo Kant o recusou. Sobre ele, Hannah Arendt diz que foi “(…) o único
filósofo que, pela denominação que lhe deu, ao menos deve ter suspeitado
de que esse mal existia; embora logo o racionalizasse no conceito de uma
‘perversidade do coração’, que podia ser explicada por motivos
compreensíveis”.3

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Apesar dessa observação, Hannah Arendt passa a seguir a trilha aberta
por Kant, apoiando-se no conceito de mal radical em sua investigação
acerca do surgimento dessa nova forma de violência e do seu alastramento e
plena realização enquanto realidade política. O fio condutor de seu
pensamento é a indagação sobre o mal radical, sobretudo na sua dimensão
ética e política. O pano de fundo é o totalitarismo, visto como um
paradigma da destruição do político. Sobre isso, Hannah Arendt diz:
Pode-se dizer que esse mal radical surgiu em relação a um sistema, no qual todos os
homens se tomaram supérfluos. Os que manipulam esse sistema acreditam na própria
superfluidade tanto quanto na de todos os outros, e os assassinos totalitários são os mais
perigosos, porque não se importam se estão vivos ou mortos; se jamais viveram ou se
nunca nasceram.4

Na sua concepção, o surgimento dessa nova modalidade de mal tem,


como meta, não o domínio despótico dos homens, mas sim, um sistema em
que todos os homens sejam supérfluos. O primeiro passo essencial no
caminho desse domínio total é a destruição da pessoa jurídica do homem. O
passo seguinte é a anulação da individualidade e da espontaneidade, de
forma que seja eliminada a capacidade humana de iniciar algo novo com
seus próprios recursos. O objetivo dessa destruição é a transformação da
pessoa humana em coisa.
Tendo em vista nossa preocupação com a atualidade da ocorrência desse
tipo de mal, somos obrigados a admitir que este risco sobrevive à queda dos
estados totalitários. Nas sociedades burocráticas modernas, os
acontecimentos políticos, sociais e econômicos de toda parte conspiram,
silenciosamente, com os instrumentos totalitários inventados para tornar os
homens supérfluos. Hannah Arendt mostra-nos que o modelo do “cidadão”
das sociedades burocráticas modernas é o homem que atua sob ordens, que
obedece cegamente e é incapaz de pensar por si mesmo, pois essa
supremacia da obediência pressupõe a abolição da espontaneidade do
pensamento. E nessa ausência de pensamento, nessa expressão humana
opaca, nessa rarefação das consciências aparece a tragédia, batizada por
Hannah Arendt de a “banalidade do mal”.
O lugar da formulação do problema do qual pretendemos nos ocupar
neste trabalho é o livro Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a
banalidade do mal (1983). A formulação do problema do mal, nessa obra
de Hannah Arendt, pareceu-nos profundamente atual e pertinente, além de

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instigante e motivadora de pesquisas e de novas leituras. O núcleo da nossa
investigação é o conceito de banalidade do mal, que pensamos estar
revestido de grande importância no quadro da filosofia política, não apenas
por sua atualidade, como se disse, mas também por estar ligado a uma
preocupação ética.
É interessante observar no exame da obra de Hannah Arendt uma
preocupação com o fenômeno do mal norteando toda uma indagação
política, que se inicia em Origens do totalitarismo, passa por Eichmann em
Jerusalém para chegar, finalmente, em A vida do espírito. Esse fio condutor
revela uma continuidade e uma coerência num pensamento que vai sendo
ampliado, reformulado e acrescido, sem que se perca de vista o ponto eleito
como fundamental: a indagação sobre o mal no quadro político
contemporâneo.
É importante lembrar que, apesar da clareza sobre o âmbito de seu
pensamento, Hannah Arendt não se declarava filósofa, mas dizia: “Meu
ofício (…) é a teoria política” (1964).5 Ao final de sua vida, no contexto do
seu último trabalho, A vida do espírito, quando se volta para a vita
contemplativa, Hannah Arendt admitiu seu retorno à filosofia.6 Esse
“retorno” ocorreu devido a dois fatores. Em primeiro lugar, é curioso
observar que, ironicamente, o fenômeno do mal em sua manifestação na
esfera política deve ter-lhe recordado os interesses metafísicos da sua
juventude. Contudo, no momento em que usou na obra Eichmann em
Jerusalém o subtítulo “a banalidade do mal”, ela não pretendeu se referir a
nenhuma teoria filosófica. O conceito foi evocado pelo fato de perceber a
extraordinária inabilidade de Eichmann em pensar. Assim, é ao superficial
Eichmann, em primeira instância, que nós devemos o fato de Hannah
Arendt ter resolvido, ao final da vida, explorar o lado invisível da vita
activa, isto é, a vida do pensamento. Em segundo lugar, está o fato de que,
se, inicialmente, ela via uma incompatibilidade entre a filosofia e a
política,7 esse pensamento foi sendo reformulado ao longo de seu percurso
e aparece resolvido, explicitamente, em seus últimos escritos.
No percurso de seu pensamento político, seus principais guias, conforme
ela mesma declarou, foram Sócrates, Kant e Jaspers. Sócrates era, para ela,
o modelo do puro pensador, talvez o “mais puro pensador do Ocidente”.8
Quanto a Kant, encantou-se pelo seu pensamento desde a adolescência.
Em toda a sua vida, Kant serviu-lhe de mentor e, como dizia
frequentemente, ele parecia ficar atrás de seu ombro, em sua escrivaninha,

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inspirando-a e advertindo-a alternadamente, como um tipo de daimon
socrático. Assim, seu “herói filosófico” foi Kant, e isso se deve
principalmente ao fato de ele ter repudiado a doutrina plalônico-aristotélica
da supremacia do “sábio” sobre o “vulgar”.9 Com isso, a filosofia passa a
falar a língua da Cidade, e o problema da Cidade é um problema filosófico.
Ao abandonar a hierarquia entre biospolitikos e bios téorétikos, Kant faz
desaparecer a contradição entre a filosofia e a política.10
Karl Jaspers, “o único discípulo que Kant teve”,11 foi, para Hannah
Arendt, o único, também, a perceber a dimensão política da obra de seu
mestre. Nesses dois filósofos, a atividade de pensar exigia a solidão, mas
uma solidão que não excluía os demais, pois no centro das obras de Jaspers
se encontram noções como as de comunidade, de amizade, de diálogo e de
pluralidade.
Movida pela indagação sobre o mal radical, que aparece no final de
Origens do totalitarismo, e pelo desejo ardente de compreender o que, para
ela, significava “(…) encarar a realidade sem preconceitos e atenção, e
resistir a ela – qualquer que seja”,12 Hannah Arendt quis ver de perto
Eichmann, o mal encarnado no julgamento em Jerusalém. Até aí, então, sua
expectativa era de se defrontar com um monstro, um perverso ou, no
mínimo, um fanático político. Mas, além de sua expectativa frustrar-se, esse
confrontamento revelou um homem desprovido de qualquer grandeza
maléfica ou qualquer característica peculiar que o diferenciasse dos demais,
a não ser o que ela denominou de um “vazio de pensamento”. É exatamente
a partir dessa experiência de perplexidade e espanto que se dá o percurso do
pensamento arendtiano, da formulação da ideia de banalidade do mal à de
vazio de pensamento. É no bojo dessas reflexões que pretendemos
acompanhar o pensamento de Hannah Arendt.
Portanto, o objeto deste livro é a indagação acerca do mal no percurso do
pensamento político de Hannah Arendt, tendo como centro da questão a
ideia de banalidade do mal.
No Capítulo I, intitulado “O mal radical como ponto de partida”,
tomaremos o conceito kantiano para iniciarmos a reflexão. Inicialmente,
pretendemos situar a doutrina do mal radical em seu contexto histórico,
realçando a polêmica e a resistência que esse conceito suscitou desde a
época em que foi formulado até os nossos dias. A seguir, procuraremos
fundamentar o conceito em seus pontos principais e tratar da possibilidade
da conversão como restabelecimento da lei moral, ferida depois da

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oconência desse tipo de mal. Finalmente, abordaremos o mal radical em sua
dimensão política na qual ele é considerado em sua dinâmica de expansão.
Ao tratarmos de sua expansão, situamos a questão do totalitarismo, da
qual passaremos a tratar no Capítulo II, denominado “A novidade
totalitária”. Começaremos discutindo o conceito de novidade no
pensamento arendtiano, para podermos tratar do fenômeno totalitário como
uma novidade política contemporânea que rompe com um pensamento
situado no quadro de referência dado pela tradição. Para ocuparmos dessa
novidade, seguiremos a trilha traçada por Hannah Arendt na busca das
origens desse fenômeno, que passa pelo antissemitismo e pelo
imperialismo. Finalmente, apoiaremos a reflexão sobre o totalitarismo nos
dois pontos fundamentais que o caracterizam: a ideologia e o terror.
No Capítulo III, “A banalidade do mal - uma invenção contemporânea”,
comentaremos, primeiramente, a polêmica e a repercussão suscitada por
Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, bem como
o significado de tais reações. Depois, trataremos do “caso Eichmann” e as
reflexões desencadeadas com base na forma como esse processo foi
conduzido. Em seguida, refletiremos sobre as teses que Hannah Arendt
rejeitou a propósito do “homem Eichmann” e do espanto que lhe provocou
a observação desse homem “em carne e osso”. Finalmente, trabalharemos,
em seu contexto original, o conceito de “banalidade de mal”, propriamente
dito, tentando captar seu significado articulando-o com o conceito de mal
radical em Kant, até chegarmos ao seu núcleo que aponta para o vazio de
pensamento.
No Capítulo IV, “O vazio de pensamento”, seguiremos os passos de
Hannah Arendt em suas reflexões sobre a faculdade do pensar, em A vida
do espírito. Partiremos da atividade do pensamento, que é cuidadosamente
investigada por Hannah Arendt, dentro do universo filosófico, até
chegarmos ao que ela denominou “vazio de pensamento”, conceito pouco
delimitado em si mesmo, mas o tempo todo associado à atividade de pensar.
Concluindo, tentaremos articular os três conceitos essenciais nesse
percurso de reflexão: o mal radical, a banalidade do mal e o vazio de
pensamento. O objetivo dessa articulação final é tentar chegar,
primeiramente, ao núcleo essencial de cada um desses conceitos, através de
uma análise comparativa entre eles, e, por fim, a uma visão mais ampla do
pensamento arendtiano sobre o mal, visão essa que possa nos apontar novas
direções para a investigação sobre o mal na filosofia.

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Capítulo I
O mal radical como ponto de
partida
A história da natureza começa pelo bem, pois é obra de Deus; a história da liberdade começa
pelo mal, pois é obra do homem.

Kant1

A doutrina do mal radical


A doutrina kantiana do mal radical apareceu, em 1793, na primeira parte
da obra A religião dentro dos limites da simples razão. Nela, Kant situa a
doutrina da igreja em seu sistema já elaborado, e tudo gira em tomo do mal
radical. Aparentemente, o mal radical apresenta-se como um corpo
estranho, embora, de algum modo, já tivesse sido tratado em sua filosofia e
antropologia antes do aparecimento de seu sistema crítico.2 Na verdade, ele
se incorpora profundamente à filosofia kantiana, porque, de fato, já estava
enraizado nela. A teoria do mal radical tornou-se um dos fundamentos da
religião e da moral kantianas, moral que não encontra seu fundamento na
religião, mas que, ao contrário, pode fundar e justificar uma religião.
Essa doutrina apresenta, já no título, uma demanda polémica e, de acordo
com as três críticas, quer sujeitar à razão, o máximo atributo humano, todos
os campos da ciência e também da fé. Nenhuma outra obra de Kant suscitou
tantas críticas, e a tese mais difícil de ser aceita é exatamente a do mal
radical: seu ponto convergente.
A teoria do mal radical apareceu no sistema kantiano como um fato novo
e imprevisto que surpreendeu e, de maneira geral, indignou seus
contemporâneos.
Bruch3 comenta essa reação da época e, também, as críticas que
atravessaram o século XIX até o início do século XX. No contexto
iluminista, a concepção moralizante da religião estava ligada a um
otimismo moral que levava a recalcar o dogma do pecado original. Assim, a

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teoria de Kant teve um efeito de surpresa e escândalo junto aos
contemporâneos esclarecidos que acreditavam conhecer o kantismo e não
suspeitavam que ele pudesse levar a consequências tão contrárias o espírito
da Aufklärung. Assim, essa nova teoria pareceu-lhes uma traição.
Goethe expressa bem a medida de sua indignação quando, em carta a
Herder, diz:
Kant, depois de ter devotado uma longa vida de homem a limpar seu manto filosófico de
todos os tipos de preconceito que o maculavam, sujou-o ignominiosamente com a mancha
vergonhosa do mal radical, a fim de que os cristãos também se sentissem engajados a
tomar seu partido.4

Herder afirma que Kant foi além das escrituras, na afirmação de uma
natureza pecadora do homem. Para ele, o mal radical é o próprio diabo que
reside em nós, condenando o imperativo categórico a ser apenas uma lei
puramente formal, da qual o poder radical do mal tira toda eficácia. Schiller
também acusa a teoria kantiana do mal de se juntar à religião revelada e de
dar à ortodoxia uma garantia filosófica da qual ela se apodera sem se tornar,
contudo, mais esclarecedora.
Ainda, segundo o comentário de Bruch, à indignação ou à reprovação dos
contemporâneos sucederam-se as críticas do século XIX. Segundo
Troeltsch (1904), a teoria do mal radical aparece dentro de um escrito de
circunstância destinado a reencontrar um compromisso entre a filosofia e o
cristianismo. Fittbogen (1924) resume a antipatia da maior parte dos
comentadores deste texto, ao afirmar que esta doutrina é a mais impopular
de toda a filosofia kantiana e que ela soa mal aos ouvidos tanto de ontem
quanto de hoje.
Foram necessários mais de um século e a experiência das guerras do
século XX para que a teoria do mal radical deixasse de escandalizar os
filósofos; estes, juntamente com os teólogos, renunciaram ao
leibnizianismo, não tendo medo de afrontar o mal. Isso nos leva a concluir
que Kant foi, sem dúvida, um precursor, pois conseguiu ver mais longe que
seus contemporâneos e, se ele é um dos filósofos da Aufklárung, é também
um decidido crítico dela. A razão é a instância suprema no homem, mas
essa mesma razão é essencialmente finita. Reconhecer essa limitação é um
dos maiores serviços à própria razão.
Em relação ao termo “mal radical”, Kant o tomou de Baumgarten
(Preleções, 1773). Já o termo radical vem de toda uma tradição

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neoplatônica, agostiniana, sem esquecermos também de Leibniz e toda a
escola que o segue. Radical significa limitatio. O radical é, conforme
Leibniz, a finitude original da criatura.
Segundo Philonenko,5 na imagem da curvatura, que tem origem luterana,
encontramos a primeira manifestação, no pensamento de Kant, do mal
radical (prefigurando esta noção). A curvatura simboliza o egoísmo, o
redobramento do eu sobre si mesmo. Kant diz:
Assim dentro de uma floresta, as árvores, cada uma por si, tentam roubar o ar e o sol umas
das outras e se esforçam, pela inveja, em se ultrapassarem; para, em seguida, crescerem
belas e retas. Mas ao contrário, aquelas que lançam em liberdade seus ramos a seu bel-
prazer, apesar das outras árvores, se tornam retorcidas, tortas e curvadas.6

A interpretação que Philonenko dá a esse texto é a seguinte: através do


jogo das paixões, à insociável sociabilidade do homem se assiste a uma
anulação das paixões, à constituição de uma totalidade moral. Em
compensação, a paixão não refreada, que se desenvolve na solidão, como a
solidão do tirano, não encontra nenhuma compensação: a árvore é torta,
retorcida, curvada. Assim, a solidão é o princípio da tirania e, essa última, o
princípio dos vícios.
Para Lutero, como para Kant, o homem é egoísta; é como um galho que
se curva sobre si mesmo retornando a seu ponto de origem. Por outro lado,
como o mal, a curvatura é radical, mas não é definitiva, desde que os
homens se endireitem no seio do jogo das paixões. Para Kant, o homem é
curvo por natureza, mas pode ser recuperado através da sociabilidade. O
homem é curvo como ponto de partida.7
Mas Kant recusou o escândalo do mal ao situá-lo dentro dos limites da
simples razão e, com isso, rompe com a tradição filosófica ocidental que
definia o mal como negatividade ou ausência de bem (Agostinho, Leibniz).
Já em 1763, no Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandezas
negativas, o autor afirmava que o mal, assim como o vício, não era apenas
uma ausência de bem, não tinha apenas um caráter negativo, mas devia ser
pensado em termos de resistência ao bem como algo que tinha uma
positividade. E a fonte dessa positividade era a nossa própria vontade, algo
ligado à liberdade do homem.
Nesse ensaio, Kant distingue o mal por falta e o mal por privação. O mal
por falta (defectus, absentia) é pura negatividade, pura ausência de bem,
caracterizando, assim, a ausência de um princípio positivo; já o mal por

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privação tem positividade própria, implica um verdadeiro princípio
semelhante ao que lhe é oposto.8 Sobre a positivação do negativo, Kant diz:
Se o bem = a, o que se lhe opõe contraditoriamente é o não-bem. Este é, pois, o resultado
da simples carência de um fundamento do bem = O, ou de um fundamento positivo de seu
contrário = -a. No último caso, o não bem pode chamar-se mal positivo.9

Essa distinção tem, como correlato, outra: a distinção entre oposição


lógica e oposição real. A primeira é a expressão direta do princípio da não
contradição, segundo o qual dois predicados opostos não podem pertencer,
simultaneamente, ao mesmo sujeito; a segunda, oposição real, é aquela que
expressa a efetividade de suas realidades opostas, porém coexistentes no
mesmo sujeito, uma tentando suprimir ou negar a outra, sem que, no
entanto, sejam contraditórias.
Essa diferenciação possibilitou a Kant a ruptura com a tradição filosófica
que considerava o mal apenas como negação. O mal como privação, como
oposição real ao bem, implica um princípio positivo, supõe uma razão
positiva que supera o bem. O mal já não é mais ausência, mas oposição real,
posição; não é um simples fenômeno, um acontecimento que se esvaneceria
com a intuição das coisas, tais como elas são em si. Kant deixa entender,
claramente, que o princípio do mal pertence às coisas em si. Comentando
sobre isso, Weil nos diz: “Kant, neste ponto, é platônico: o mal nasce de
uma decisão pré-temporal, de uma escolha anterior a todas as escolhas,
origem de tudo o que vai querer o indivíduo temporal, fenomenal,
observável.”10
Na Crítica da razão pura, Kant afirmava, veementemente, a realidade
metafísica noumenal do mal moral e sua heterogeneidade ao princípio do
bem. Mais tarde, a reflexão sobre a moral conduziu Kant a uma outra
concepção do noumeno: a obrigação moral nos dá, então, um acesso, não
teórico mas prático, ao mundo noumenal, e o termo noumeno toma aqui um
lugar nitidamente mais positivo: o lugar de inteligível. A lei moral nos
revela, com nossa liberdade, a presença em nós de uma causalidade
tangível, de um caráter inteligível.11 Não conhecemos a nossa liberdade,
mas temos consciência dela através da obrigação da lei moral, esta é a ratio
cognoscendi da liberdade, e esta última a ratio essendi da lei moral. Aqui, é
a causalidade livre que permite a passagem do nível teórico para o prático.
A filosofia prática de Kant rompe, também, com a tradição moral do
Ocidente, ao fundar a moral a partir da razão pura, na medida em que esta,

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enquanto faculdade legisladora, isto é, uma faculdade que dá a si mesma
sua lei, dá, assim, ao homem, uma lei universal (a lei moral), uma lei que
tem a forma de um imperativo categórico. Ao fundar a moral nesses termos,
Kant procura ressaltar a autonomia da vontade. A tarefa da razão prática
será a de encontrar os fundamentos de determinação desta última.
O plano da Religião dentro dos limites da simples razão tem a intenção
de seguir exatamente o desenvolvimento do conflito do bem (determinado
já desde muito tempo pela filosofia prática) e do mal. Esse drama entre o
bem e o mal se torna o fio condutor dessa obra.

Os quatro pontos fundamentais


Para responder o que é a essência do mal radical, Kant apoia seu
argumento em quatro pontos fundamentais, e a discussão desses pontos
passa a construir uma concepção de natureza do homem e de como o mal
está inscrito nela. São eles: a disposição original para o bem na natureza
humana, a propensão para o mal na natureza humana, o homem é mau por
natureza e a origem do mal na natureza humana.
Kant parte da afirmação de uma disposição original para o bem na
natureza humana: “Sob disposição de um ente entendemos tanto as partes
constituintes necessárias como as formas de sua conjugação para ser um tal
ente.”12
Disposição original significa, aqui, predisposição primeira, de origem
anterior, ou melhor dizendo, no início de sua história o homem era bom,
tendia para o bem. Original porque pertence, necessariamente, à
possibilidade da natureza humana. “Natureza” do homem aqui significa o
“fundamento subjetivo do uso de sua liberdade (sob leis morais objetivas)
que antecede toda a ação que cai nos sentidos”.13
Para Kant, existem três elementos de determinação do homem: ele está
disposto à sua animalidade (como ente vivo), à sua humanidade (como ente
vivo e ao mesmo tempo racional) e à sua personalidade (como ente racional
e ao mesmo tempo responsável). Dentre as três disposições, a primeira não
tem qualquer gênero de razão por raiz; a segunda tem, por raiz, a razão
prática, subordinada apenas a outros motivos; só a terceira tem, como raiz, a
razão prática por si mesma, isto é, incondicionalmente legisladora.

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Todas estas disposições no homem não são apenas (negativamente) boas (não se opõem à
lei moral), mas são também disposição para o bem (elas promovem o seguimento do
mesmo). Elas são originais, pois pertencem à possibilidade da natureza humana.14

Kant supõe que haja uma lei moral universal e necessária. Declara, em
seguida, que um princípio suficiente existe de fato (pois o imperativo
categórico não pode ser deduzido), e este não pode ser compreendido da
forma como compreendemos os fatos do mundo da experiência, pois ele é
fato último e fato, não no sentido da experiência sensível, mas “fato da
razão”, presente unicamente à razão, fato noumenal. A lei moral é um fato,
é um dado imediato, a priori e necessário.
A razão é, por si só, legisladora, autônoma e determinante da vontade.
Essa autonomia é a propriedade que a vontade tem de ser, ela própria, a sua
lei (independentemente de qualquer propriedade do querer). É importante
ressaltar que, para Kant, a vontade livre e a vontade submetida à lei moral
são a mesma coisa.
Ele não estabelece o conteúdo da lei, mas apenas esclarece a forma de lei
geral que deve apresentar à infinidade de conteúdos possíveis de nossa
conduta, para que essa seja moral. Esta é a forma do Imperativo categórico:
“Age de tal forma que a máxima de tua ação possa se converter em lei
universal.”
É importante, aqui, diferenciar a vontade legisladora (Wille) da qual
procedem as leis, da vontade arbitrária (Willkuhr) da qual procedem as
máximas. Vontade legisladora e vontade arbitrária são dois aspectos
complementares da vontade humana. Enquanto a primeira é o poder
legislativo, pois se refere à capacidade da vontade de editar as próprias leis,
a segunda é o poder executivo, pois se refere às ações. A vontade é
necessária, o arbítrio é livre para obedecer ou não à lei. É, exatamente,
nessa possibilidade do arbítrio humano que se inscreve o problema do mal
radical.
Como esclarece Weil,15 a crítica funda a moral, mas não a contém, o
imperativo categórico diz o que não fazer, mas nos deixa bem
legitimamente, segundo Kant, na ignorância de nossos deveres positivos.
Deveres que se determinam de acordo com a natureza do homem, e não
segundo a natureza de seus afetos individuais, das tradições de seu grupo,
de seu temperamento etc, mas segundo a relação dessa natureza enquanto
que simples natureza ao dever, enquanto tal.

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Em outros termos, a lei moral é inerente à natureza da razão, mas não à
natureza humana, pois essa, devido à sua finitude, não segue
necessariamente essa lei. Uma tensão atravessa toda a reflexão moral
kantiana: nos seres razoáveis e finitos, a lei editada pela vontade pode ou
não determinar o arbítrio. Se o homem aceita a determinação vinda de fora,
ele está eliminando sua vontade como vontade, isto é, como faculdade do
homem de determinar-se a si mesmo para a ação: em outras palavras, sua
autonomia. Ele está sendo heterônomo, pois heteronomia é toda
determinação da vontade por representações materiais, porque, aqui, a lei,
segundo a qual se produzem os efeitos, é a lei da necessidade da natureza.
Também é heterônoma a moral que prescreve preceitos a realizar, baseados
na ideia de prêmio ou castigo. O móvel da ação também é sensível. Já a
autonomia mostra que o homem tem em si mesmo a possibilidade de ser
dono de si e de ser livre de toda dependência diferente de sua razão. A
vontade humana tem a propriedade de ser, ela própria, a sua lei, e o homem
realiza sua essência quando obedece à lei moral.
O homem, para Kant, é um ser finito e razoável, definição que responde à
quarta questão crítica: “Que é o homem?” Enquanto o animal é determinado
somente pela sensibilidade, o ser divino o é somente pela razão. O ser
humano é um ser híbrido, ao mesmo tempo razoável e sensível: enquanto
ser razoável, ele é dotado de um poder de escolher a sua própria conduta e
de não estar ligado, como os outros animais, a uma conduta única.
Enquanto ser sensível, ele possui uma vontade dotada da faculdade de
escolher uma máxima, em conformidade ou contrária ao princípio moral e
que não é, pois, determinada. O homem, por sua liberdade, pertence ao
mundo inteligível e, por sua natureza, pertence ao mundo sensível: é um só
e o mesmo. Para Kant, o homem é um ser que age livremente, que faz a si
mesmo, ou pode e deve fazê-lo. Por isso, podemos dizer que, em Kant, A
condição humana tem uma essência ambígua e trágica.
É exatamente neste contexto da liberdade que se inscreve o conflito entre
o bem e o mal moral. Liberdade para o bem moral que a confirma e para o
mal moral que acaba por colocá-la em risco. O conceito de bem é
construído mediante uma livre determinação da razão por si mesma, o bem
significando liberdade. Já o de mal nasceria aqui do abandono do ato de
liberdade, de um deixar fluir no nível da satisfação imediata. Mas a
liberdade, no sistema kantiano, permanecerá sempre insondável, não
apreensível totalmente. Por não existir no mundo empírico, a liberdade não

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é um conceito e, portanto, não pode ser conhecida teoricamente, mas apenas
postulada; sua realidade é noumenal, trata-se de um fato da razão prática.
Quando Kant nos fala Da propensão para o mal na natureza humana, ele
nos esclarece que ela é resultado da liberdade, ou seja, é uma propensão
moral e não uma propensão física fundada sobre impulsões sensíveis, pois,
o que é moralmente mau, o mal que é imputável ao homem, diz respeito à
sua própria ação. Por “propensão” Kant entende “o fundamento subjetivo
da possibilidade de uma inclinação (apetite habitual, concupiscentia)
enquanto contingente para a humanidade em geral”.16 Por propensão
entendemos, também, o fundamento subjetivo da possibilidade de desviar-
se das máximas da lei moral, o que só é possível pela determinação do livre
arbítrio. Como esse fundamento tem de ser, já, um ato de liberdade, a
propensão ao mal é vista como o mal e não apenas como seu pressuposto.
Essa propensão é ação porque procede da liberdade, mas, em relação ao ato
que aparece na experiência, é apenas fundamento.
Por “natureza”,17 se entende aqui não o indivíduo isolado, mas o gênero
humano: o mal como uma realidade universal. Ele é inerente à natureza
humana e está “entretecido” e arraigado nela. A propensão ao mal pode,
assim, ser chamada de propensão natural para o mal. Para Kant a propensão
para o mal é inata,18 porque não pode ser extirpada. Para ele, nada nos faz
crer que o progresso técnico, as ciências e mesmo os costumes podem
extirpar esta “perversidade enraizada na natureza humana”. Fica claro que,
aqui, o cristianismo influenciou Kant com sua afirmação do pecado original
em sua universalidade. Kant evoca São Paulo ao afirmar: “Em Adão todos
pecaram”, e acrescenta que os homens “ainda pecam”. 19
A propensão ao mal pode comportar três níveis. O mais baixo é a
Fragilidade (fragilitas) da natureza humana diante da tentação. Num nível
superior, a Impureza (impuritas) do coração, ou a predisposição em misturar
móveis imorais aos morais. Enfim, o terceiro nível, a Maldade (vitiositas,
pravitas) ou Corrupção (corruptio) do coração humano, ou seja, esta
predisposição do livre arbítrio que lhe faz adotar, como máxima, a
subordinação do móvel da lei moral aos outros móveis. Aqui há uma
inversão de móveis e pode se chamar perversidade.
O primeiro grau de propensão trata da fraqueza do homem diante da
tentação exercida pelas inclinações sobre a vontade humana, a qual pode,
no entanto, se deixar influenciar por esses móveis sensíveis. Nas palavras
do próprio Kant:

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(…) acolho o bem (a lei) na máxima de meu arbítrio; mas este bem, que na ideia (in thesi)
é objetivamente um motivo invencível, é subjetivamente (in hypothesi), quando a máxima
deve ser seguida, o mais fraco (em comparação com a inclinação).20

No segundo grau de propensão para o mal na natureza humana, ou seja,


na impureza de móveis na adoção de máximas, a máxima não é puramente
moral, pois não acolhe, nela, apenas a lei moral como móvel suficiente e
recorre, portanto, sempre a outros móveis para determinar, por meio deles, o
que deve ser feito. A impureza do coração humano consiste, então, na
contaminação da vontade: age-se conforme o dever, mas não por dever.
A maldade, corrupção, ou ainda, perversidade do coração humano,
situada por Kant como o terceiro grau de propensão para o mal na natureza
humana, é a propensão do arbítrio para máximas que fazem passar outros
móveis que não os morais como fundamento da ação. Trata-se de uma
inversão da ordem moral: o arbítrio humano adota uma máxima que coloca
a lei moral como móvel subordinado a móveis não morais. Com tal
inversão, as ações más podem até ser conforme à lei; no entanto, em relação
ao modo de pensar, essas ações estão pervertidas “em sua raiz”21 e é por
isso que se diz, então, que o homem é mau. Esse terceiro grau já nos
permite elucidar o que é a essência própria dessa propensão dos móveis que
o homem admite em suas máximas.
Nota-se que os três graus de propensão ao mal constituem, em realidade,
a explicação progressiva dessa propensão. Se considerarmos cada um dos
móveis separadamente, o homem não seria mau, segundo cada um deles. Se
não tivesse inclinações, seguiria a lei moral, seria bom sem luta, porque a
lei moral é imposta à sua disposição pela personalidade. Sem a lei moral, o
homem seguiria, simplesmente, sua disposição natural para a humanidade,
sem ser mau. Tomados em si mesmos, os dois móveis são bons. Logo, o
mal não pode estar em qualquer um deles por si mesmo. A possibilidade do
mal está apenas na forma de relação dos móveis. A vontade é má quando a
satisfação de seu desejo de felicidade é condição do seguimento da lei
moral. É exatamente nessa inversão da relação correta dos dois móveis de
determinação da vontade que reside o verdadeiro mal radical.
É importante, aqui, diferenciar uma ação má de uma ação radicalmente
má. A primeira ocorre quando o móvel da lei moral é subordinado,
ocasionalmente, ao móvel do desejo de felicidade; a segunda, quando há
uma inversão de móveis como fundamento de todas as máximas e ações.
Essa subordinação, em si, da lei moral a interesses egoístas, esta propensão

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a se servir da lei para se justificar no lugar de a servir, constitui a verdadeira
perversão do coração.
Segundo o comentário de Reboul, “uma propensão ao mal pode, muito
bem, se encontrar no coração de um homem exteriormente bom. São estes
fariseus, estes ‘sepulcros caiados’, que se conformam estritamente à lei nos
seus atos mas sem fazer da lei moral seu móvel suficiente”.22 O mal moral
está, aqui, na legalidade tomada pela moralidade. A legalidade é o fato de
seguir a lei por móveis estranhos a ela, como o interesse, medo da polícia
ou do inferno, tornando a vontade heterônoma. A legalidade, em si, não é
má; pelo contrário, ela é excelente para o seu próprio plano, que é o da vida
social. O que é mau é confundir os planos, pois “se eu obedeço à lei moral
pelos móveis que lhe são estranhos, a ambição, o egoísmo, até mesmo a
compaixão, minha obediência cessará com o desaparecimento dos
móveis”.23
Para poder afirmar que o homem é realmente mau é necessário conhecer
não somente seus atos, ou mesmo as máximas, mas a decisão inteligível que
os adota. Ora, este fundamento universal de todas as máximas, somente
Deus pode sondar. O mal moral não está, pois, no ato, mas no agente, mais
precisamente na sua intenção. Toda intenção é, para Kant, qualificável do
ponto de vista moral. A intenção, isto é, o primeiro fundamento subjetivo da
admissão das máximas, só pode ser única e se relacionar, de maneira geral,
à imagem interior da liberdade.
Ao admitir que o homem, mesmo tendo consciência da lei moral, aceita
máximas que, ocasionalmente, o desviam dela, Kant lembra: O homem é
mau por natureza. Isso quer dizer que o gênero humano é dominado pela
maldade. O mal radical é universal, é inerente à natureza humana, contudo
tem seus limites. O supremo fundamento subjetivo da liberdade está
corrompido, mas essa corrupção não é malignidade, não é o mal pelo mal,
mas sim “perversão” do coração, “(…) porque a disposição originária para
o bem permanece no homem em toda a sua pureza”.24 A lei moral é um
dever incondicional que a ação do homem não pode extinguir jamais.
Com base nessa afirmação, fica excluída, para Kant, a malignidade ou as
formas extremas de mal, pois admitir a malignidade pressupõe que a
liberdade corrompe o próprio pressuposto do “dever”, pondo em risco a lei
moral em seu sentido último. Se a vontade se levantasse contra sua lei
interna, seu poder seria, na verdade, um “não poder”, ou melhor, um poder
de destruir a si próprio. Para Kant, o mal não é absoluto, isto é, ele não pode

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destruir a lei moral nem a disposição para o bem. Precisamente porque o
bem é essencial à liberdade, a presença de um contraprincípio, que tenta
destruir essa afinidade, mostra que a liberdade, assim determinada, não é
mais liberdade, mas uma destruição de si mesma. Com isto, Kant elimina as
teorias que situam o mal como originário de uma depravação da razão
legislativa nela mesma, a qual elevaria a oposição à lei a categoria de
motivo supremo e faria do homem um ser diabólico.
Bruch observa que existe, no texto kantiano, uma expressão bastante
matizada da ideia de maldade. Kant afirma que o homem é mau (böse) e
admite a maldade (Bösartigkeit) caracterizando-a como uma corrupção
(Verderbtheit) ou uma perversão do coração (Verkehrtheit des Herzens),
mas ele recusa considerá-la como uma malignidade (Bosheit), no sentido
rigoroso da palavra, o que consistiria em admitir o mal enquanto motivo de
sua máxima e exprimiria uma intenção diabólica.25
Há, pois, um limite que Kant não ultrapassa: o homem, mesmo o mais
malvado, não é um rebelde. Não há uma vontade má simétrica à vontade
boa. Ainda de acordo com Bruch,26 nesse ponto, Kant recusa considerar a
experiência que poderia conduzi-lo às conclusões mais sombrias e, como
observa Delbos, “ele guarda do racionalismo socrático, platônico e
leibniziano essa ideia de que a vontade do homem não pode jamais
deliberadamente perseguir o mal pelo mal”.27 Para Kant, o mal radical está
aderido à nossa existência ordinária, não sendo jamais um abismo de
malignidade. A moral pode admitir o diabo; pelo menos, como hipótese,
mas não que o homem seja diabólico. Para Kant, nossa razão prática não
pode anular sua própria lei; uma vontade má que recusasse deliberadamente
a lei moral seria absurda.
É exatamente aqui, nessa recusa a se considerar a malignidade, que se
inscreve a questão posta por Hannah Arendt,28 em relação à insuficiência
do conceito de mal radical kantiano, para explicar a nova modalidade de
mal que apareceu na experiência totalitária do século XX. Essa questão será
retomada posteriormente, após apresentarmos outros pontos relevantes em
relação ao mal radical.
Ao tratar do quarto ponto, Da origem do mal na natureza humana, Kant
recusa, logo de início, a solução que considera o mal como uma doença
hereditária, incluindo também a que o considera uma dívida transmitida
pelos pais. Kant busca, então, a origem racional de uma ação má no uso
originário do arbítrio humano. Não se trata, pois, de buscar a origem

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temporal de uma ação má, mas apenas a sua origem racional, para
determinar o fundamento subjetivo universal, que nos leva a admitir uma
transgressão em nossa máxima e, se possível, para explicar, segundo essa
origem racional, esse fundamento. No entanto, não é possível chegar à
origem inteligível, tanto do bem quanto do mal. Para Kant, o homem não
pode chegar, por via natural, a uma certeza convincente neste ponto; nem
através de sua consciência imediata, nem apoiando-se em sua forma de vida
até o momento: a profundidade do seu coração é inescrutável para ele
mesmo. Como nos diz Jaspers, este “não saber” de Kant jamais nos
abandona; desconsiderá-lo é impureza e ignorância, e estas são verdadeiras
fontes do mal radical.29
A narração bíblica do pecado original estaria de acordo, para Kant, com
essa origem. Porém, para ele, não se trata de um relato histórico, mas uma
fábula, um mito relatado sob a forma temporal, fora da história e do
encadeamento das causas, um fato universal que se compreende como a
história de Adão: é a história de cada um de nós. Para Reboul:
O mito representa o pecado como um “começo”, o que significa que ele é primeiro
logicamente; ele não é precedido por uma disposição culpável, o que excluiria a
responsabilidade e a liberdade do pecador. Dizendo de outra forma, o mal radical é
contingente; é um surgimento absoluto, para cada um de nós como para Adão, ele destroi
um estado de inocência.30

A história de Adão é a história da humanidade; a diferença é que, para


ele, o mal é precedido de uma inocência absoluta, enquanto que, para nós, o
mal já é inerente à nossa existência de seres conscientes, embora, do ponto
de vista cronológico, ele não tenha um começo. A explicação que se usa
aqui não é cronológica, mas moral: já que nós somos responsáveis pelo mal
cometido, ele é irredutível a seus antecedentes empíricos; sua existência é
radicalmente contingente.
Para Herrero, “aquilo que para a Bíblia é o primeiro pecado, para Kant é
o começo da história humana, a passagem do instinto para a razão”. E o
surgimento da história se dá quando a razão se desprende de sua ligação
com a natureza e com a animalidade, e o homem realiza pela primeira vez
uma ação livre. Daí a célebre frase de Kant: “A história da natureza começa
pelo bem, pois é a obra de Deus; a história da liberdade começa pelo mal,
pois é obra do homem.”31

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A conversão
O ensaio sobre o mal radical termina por um apelo à conversão ao tratar
Do restabelecimento da disposição original para o bem em sua força.
Se o mal consiste em uma inversão dos móveis (a perversão), a
conversão significa não a aparição em nós de um móvel novo, mas o
restabelecimento, em sua pureza, do bom móvel que o mal não destruiu,
mas subjugou e, sem o qual, nenhum melhoramento verdadeiro será
possível. Esse restabelecimento consiste, pois, em remeter ao primeiro lugar
o respeito pela lei moral, ao fazê-lo nosso móvel incondicional. Se a
conversão consiste na adoção do móvel moral – e esse é único – esta só
pode dar-se em ato também único. Por isso Kant a chama de “revolução” na
mentalidade, em oposição a uma “reforma progressiva”. E isso só é possível
através de uma decisão irrevogável, pois é uma transformação do próprio
querer.
Para Kant, o homem deve superar o estado do mal, e esse dever é
concretizado como um dever de todos e não apenas pelo esforço de um
indivíduo. Sem o esforço de todos não existe uma autêntica possibilidade de
superação do mal. Esse dever, portanto, é especial, não de homens diante de
homens, mas do gênero humano diante de si mesmo.
Para combater o mal não é possível enfrentá-lo como a um objeto, mas,
como estamos envolvidos no processo de superá-lo, temos que procurá-lo
dentro de nós mesmos. De acordo com Jaspers, a presença do mal em nós é
uma sã provocação:
O mal no procedimento kantiano se converte em um aguilhão quando eu vejo claramente
em mim, não me deixa um minuto de descanso e me restitui, com pertinaz insistência, às
minhas fontes originárias para que eu não me perca no periférico. Tudo que seja tratar do
mal no mundo com investigações psicológicas ou especulativas de caráter metafísico
distrai.32

O sentido do mal radical kantiano não se limita somente à sua descoberta,


mas também à revelação de sua função positiva. Sua dialética interior, que
mostra apoio sólido, radical, no otimismo histórico de Kant.33 Não é para
desvalorizar o homem, mas para lhe dar a chance de humanização que Kant
fala do mal radical.
Podemos concluir com Weil que

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(…) o bem se desenha sobre o fundo do mal; mas a função do mal é precisamente permitir
ao bem aparecer, aparecer a nós tal qual nós somos, seres finitos e racionais, racionais em
nossa finitude, bons e maus, mas bons em nossa maldade e capazes de progredir, uma vez
que reconhecemos o inimigo em nós.34

Uma questão importante a ser retomada aqui é a da obstinação de Kant


na recusa da admissão da malignidade no homem, quando a oposição à
própria lei moral passa a ser elevada a motivo do arbítrio. Essa posição tem
um caráter inarredável, pois, para ele, “o homem (mesmo o pior) não
renuncia, quaisquer que sejam as máximas, à lei moral, nunca de maneira
rebelde (com recusa da obediência). Esta impõe-se, muito antes, a ele, de
uma maneira irresistível”.35
Fica excluída, definitivamente, a aceitação da malignidade, pois essa
poria em risco a própria lei moral incondicional e, portanto, o próprio
edifício da moral kantiana. Kant não formulou o conceito de uma vontade
maligna; mas o processo de elaboração conceitual que o levou a enunciar
uma tal hipótese tornou possível outra visibilidade quanto ao ser do homem
e às formas de suas racionalidades. O conceito de mal radical é, nesta
perspectiva, um conceito-limite, pois ele fez ver a possibilidade de uma
oposição da liberdade consigo mesma.

O mal radical e a política


É necessário levantar, ainda, uma questão importante no que diz respeito
ao mal radical, quando o consideramos dentro de uma abordagem política.
Como situação-limite, ele está sempre atrelado à história dos homens e
constitui risco maior se considerado na possibilidade de sua dinâmica de
expansão, quando pode ser transformado em autêntica realidade social. Ora,
esse risco, sempre presente, culmina quando o homem, no seu desejo de
realização total, que tem origem na própria razão pura quanto na razão
prática, perverte esse desejo e se lança ao totalitarismo.
Sabemos que a razão é a faculdade da totalidade, do incondicionado, do
absoluto. A totalidade incondicionada do absoluto não é dada à razão
especulativa, mas resta a possibilidade de realizá-la na prática. Porém essa
exigência de totalidade e da incondicionalidade da razão pura não alcança o
real. Por outro lado, há um limite na razão pura prática. Por ser o imperativo
categórico totalmente abrangente e incondicionado, ele nunca pode ser
realizado no fenômeno; sendo assim, a totalidade nunca pode ser

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concretizada. A razão prática expressa, no plano do desejo, a demanda, a
exigência que a razão pura constitui em seu uso especulativo e prático; a
razão exige a totalidade absoluta das condições para um condicionado dado.
O que a vontade quer é chamado por Kant de “objeto inteiro da razão pura
prática”. A ideia de soberano bem é o conceito pelo qual se pensa o
acabamento da vontade que, como sabemos, não é realizado; mas, segundo
Ricœur,36 permanece no plano da esperança. Soberano não é só supremo,
mas também completo e acabado. O requerimento de todo objeto da
vontade é, no fundo, antinômico. O mal nasce no lugar dessa antinomia.
Ora, essa totalidade não nos é dada, mas nós a exigimos. Novamente
recorrendo a Ricœur,37 a vontade está constituída não somente pela relação
entre a arbitrariedade e a lei (pela relação entre Willkür e Wille). Ela está
constituída, de maneira mais fundamental, por um desejo de cumprimento
ou realização total. Se a meta da totalização é, desse modo, a meta da
vontade, não se chega ao fundo do problema do mal, enquanto ele for
mantido dentro dos limites de uma reflexão sobre as relações entre a
arbitrariedade e a lei. Continuando com Ricœur:
O verdadeiro mal, o mal do mal, se mostra com as falsas sínteses, isto é, com as
falsificações contemporâneas das grandes empresas de totalização da experiência cultural,
nas instituições políticas e eclesiásticas. É, então, que o mal mostra seu verdadeiro rosto, o
mal do mal sendo a mentira das sínteses prematuras, das totalizações violentas.38

Nessa perspectiva o mal aparece como perversão inerente à problemática


da realização e da totalização. Em outras palavras, o verdadeiro mal radical
aparece somente no Estado e na Igreja, enquanto instituições de reunião, de
recapitulação, de totalização.
Dentro dessa interpretação, a doutrina do mal radical pode oferecer uma
estrutura de acolhimento a novas figuras de alienação, distintas da ilusão
especulativa ou do desejo de consolo. A alienação dos poderes culturais,
tais como a Igreja e o Estado, pode favorecer, no centro de seus poderes, o
acontecimento de uma expressão falsificada de síntese.
A teoria do mal radical culmina, não com as transgressões, mas com as
sínteses frustradas da esfera política e religiosa. É aí, exatamente, que estão
a pertinência e atualidade deste conceito kantiano que, lançado dentro de
um contexto de preocupação essencialmente moral e religiosa, toma novas
formas e se atualiza numa abordagem política.

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Para se pensar o surgimento de fenômenos históricos inteiramente novos
que revelaram formas inéditas de violência política, é necessário questionar
acerca do mal e do homem, precisamente em sua faculdade de criar regras
para si mesmo.
O conceito de mal radical abarca a explicação acerca destas novas
modalidades de mal que apareceram na história política de nosso século, ou
ele se prova insuficiente? Se a segunda hipótese for verdadeira, é então
necessário criar novos conceitos para se explicar tais fenômenos e, ao
mesmo tempo, formular outra concepção sobre o homem. É exatamente
nessa forma de se interrogar a respeito dessa possibilidade que se inscreve a
questão posta por Hannah Arendt,39 quanto à extensão do conceito de mal
radical.
Para Hannah Arendt, o mal radical, que apareceu no totalitarismo,
transcende os limites do que foi definido por Kant como o mal radical, pois
trata-se de “uma nova espécie de agir humano”, uma forma de violência que
“vai além dos limites da própria solidariedade do pecado humano”, de “um
mal absoluto porque não pode ser atribuído a motivos humanamente
compreensíveis”. O fenômeno totalitário revelou que não existem limites às
deformações da natureza humana e que a organização burocrática de
massas, baseada no terror e nas ideologias, criou novas formas de governo e
dominação, cuja perversidade não se pode medir.
Segundo Hannah Arendt,
(…) nossa tradição filosófica não pode conceber um “mal radical” como também a
teologia cristã que concedeu ao diabo uma origem celestial. Somente Kant, o único
filósofo que, pela denominação que lhe deu, ao menos deve ter suspeitado de que esse mal
existia, embora logo o racionalizasse no conceito de “vontade pervertida” que poderia ser
explicada por motivos compreensíveis.40

Para ela, quando queremos explicar o fenômeno totalitário, não contamos


com apoio para compreender um fenômeno que se apresenta e que contraria
todas as normas que conhecemos. Hannah Arendt explica que o verdadeiro
mal radical surgiu em um sistema onde todos os homens se tornaram
“supérfluos”, isto é, eles se tornaram meios. E essa “superfluidade” atingiu
tanto os que foram manipulados quanto os manipuladores e “os assassinos
totalitários são os mais perigosos, porque não se importam se estão vivos ou
mortos, se jamais viveram ou se nunca nasceram”.41

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Podemos pensar que essa nova modalidade de mal radical aparecerá toda
vez que o homem for transformado em “supérfluo”, e este risco pode muito
bem sobreviver à queda dos regimes totalitários.
A nossa interpretação sobre tal problema posto por Hannah Arendt se
baseia na própria história da trajetória do seu pensamento filosófico. De
1947 a 1951, período em que transcorreu o trabalho de pesquisa, elaboração
e publicação de Origens do totalitarismo, Hannah Arendt, chocada com os
acontecimentos políticos do momento, os horrores da guerca e do
holocausto, tentava encontrar explicações mais no nível moral, dentro da
filosofia, para esses fatos e se sentia “sem apoio” (segundo sua própria
expressão) para compreender tal fenômeno.
Doze anos depois, em 1963, ao assistir ao julgamento de Eichmann, em
Jerusalém, e publicar o seu relato sobre a banalidade do mal,42 sua reflexão
acerca de tal fenômeno já tinha sofrido uma mudança decisiva, pois se
apoiou em outro contexto de reflexão. Antes de ir para o julgamento de
Eichmann, Hannah Arendt tinha o pressuposto de que iria encontrar um
homem, no mínimo perverso ou até mesmo um monstro ou um exemplar de
malignidade humana, como fazia crer a mídia da época. Diante de sua
surpresa ao encontrar um homem absolutamente comum, que apenas podia
ser caracterizado como tendo um “vazio de pensamento”, sua reflexão sobre
o mal ganha outra figura. Eichmann não era um monstro, mas um homem
com extremo grau de heteronomia, um indivíduo que era um produto típico
do Estado totalitário. A questão originária sofre aí um deslocamento radical:
não se trata de explicar o fenômeno focando-se na questão moral ou na
antropológica, mas sim de compreender, num enfoque político, como um
Estado pode ser capaz de produzir agentes heterônomos que funcionam, tão
eficientemente, como agentes reprodutores de seus objetivos.
O problema do mal passa, então, a ser questionado dentro de sua
dimensão política, numa visão original que é a da sua “banalidade”. Com
isso, ocorre uma ampliação do pensamento político de Hannah Arendt. E,
através desse deslocamento, ela pode renovar suas esperanças no homem,
resgatando o papel de agente transformador da história, ou, em outras
palavras, de agente político.
A nosso ver, nesse enfoque político do problema do mal, o argumento
acerca da insuficiência do conceito do mal radical kantiano, proposto em
1951, cai por terra, pois não há incompatibilidade entre tal conceito e o de

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banalidade do mal arendtiano. Este é o ponto de partida para apoiar essa
reflexão sobre o conceito de banalidade do mal.
O conceito de mal radical pode abarcar as novas modalidades do mal que
aparecem no totalitarismo, desde que se parta do princípio de que, para
Kant, o mal pode destruir a legalidade na sua contingência, mas não a
moralidade na sua incondicionalidade.
Em uma obra de 1797, Doutrina da virtude, cinco anos após ter escrito o
Ensaio sobre o mal radical, Kant interroga se é possível o homem mentir
para si mesmo e conclui que isso é fácil de se constatar, mas difícil de
explicar. Este fato nos leva a afirmar que o homem, ser noumenal, pode se
servir de si mesmo como ser fenomenal, assim como de uma simples
máquina que fala, sem colocar sua fala de acordo com seus pensamentos.
Reboul, a esse respeito, nos diz:
É do meu ser empírico que eu me sirvo para enganar a mim mesmo pois essa má-fé é
como a obliteração da consciência nos tempos, pelo hábito e pelo esquecimento; mas o
autor desse logro é o eu inteligível, que se serve de seu eu empírico mas razoável como de
um simples meio, que faz do ser de seu “logos” um instrumento não de comunicação mas
de traição. Mas, como mentir à sua própria consciência se essa é “infalível”? Enquanto
julgamento sobre nossos atos exteriores, ela pode muito bem ser incerta, mas enquanto
“juízo do juízo” em nós, ela não se engana.43

E complementa:
(…) essa “falta de consciência” é a fuga diante de seu veredito inelutável, a recusa de
saber o que se sabe, como diz a expressão: eu não quero o saber. Essa é a falta das faltas, a
mentira a si mesmo, que, ao destruir o princípio de toda a vida moral, a sinceridade, faz o
homem perder todo o caráter, e engendra todas as mentiras e todos os vícios.

Mas Kant, quando usa o exemplo da má-fé, a encontra, em geral, no que


os homens chamam de fé. Ele afirma que aquele que confessa a existência
de um Deus revelado, sem ter consultado o seu foro íntimo para saber se há
verdadeiramente a menor consciência dessa convicção, comete a mentira
mais criminosa, pois tal mentira solapa, pela base, a sinceridade, o
fundamento de toda resolução virtuosa. Não se trata de uma crítica à
religião, mas ele aponta para um ponto crucial sobre o mal radical: o de que
a pior corrupção é a corrupção do melhor. Em outras palavras: o mal é o
farisaísmo, o fato de se crer justificado pelos seus atos, de se tomar sua não
culpabilidade exterior pela inocência.44

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Fazendo um paralelo entre o que acabamos de expor e o conceito
arendtiano de banalidade do mal, encontramos muitos pontos de
convergência, que justificam estabelecermos “o mal radical como ponto de
partida”, tal qual o título desse nosso capítulo. Ponto de partida se refere,
aqui, a fundamento, não no sentido temporal, mas teórico, que vai nos
possibilitar a compreensão, a exploração e, em seguida, uma leitura
contemporânea do conceito. A nosso ver, o mal radical kantiano, pela sua
pertinência e contemporaneidade, se presta a isso.
Além disso, o conceito de mal radical, na sua atualidade, continua sendo
emergente e se prestando sempre a atualizar-se à realidade. E o que é novo,
e essencialmente novo, no pensamento religioso de Kant e no seu conceito
de mal, é sua referência à história e à política. Para Weil, “(…) no campo da
política, assim como em todos os outros campos da reflexão filosófica, Kant
marca uma virada na história da filosofia”.45 Para ele,
a novidade de Kant consiste em que a reflexão política é desenvolvida com relação ao seu
sistema e em função dele. Kant não se interessa tanto pelos problemas políticos quanto
pelo problema da política. É a sua filosofia que o conduz à reflexão sobre a política, e de
tal modo que a sua metafísica e a sua moral ficariam incompletas se elas não dessem uma
resposta ao problema que elas põem e impõem ao filósofo.46

Portanto, é dentro do sistema crítico que se deve compreender a reflexão


de Kant sobre a política e a história. O interesse último de Kant – a moral –
constitui a sua fraqueza, quando ele quer compreender positivamente a
história e a política. Mas, ao mesmo tempo, é isso mesmo que funda a
grandeza do seu pensamento político: os problemas que levantou continuam
sendo ainda hoje os problemas da filosofia política, cujas questões não se
tornam compreensíveis senão no contexto da filosofia. Kant foi o primeiro a
formular esses problemas e a colocar a questão do sentido da história e da
política para o homem:
A política cessa, com Kant, de ser uma preocupação para os filósofos; ela se torna, ao
mesmo tempo que a história, problema filosófico, agindo na, e sobre a totalidade do
pensamento: não se trata mais de compor história e política, trata-se de compreender o seu
sentido comum, o sentido que deve decidir sobre sua composição.47

Para concluir, reafirmando a importância da virada que Kant dá na


história da filosofia e da política, recorremos à expressão de Belaval quando

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diz que, em matéria de filosofia política, “nós somos todos pós-kantianos”.
E essa herança não é uma pura casualidade histórica.48
Depois de apoiar-nos no conceito de mal radical, passaremos a tratar
agora do mal no pensamento político de Hannah Arendt, onde ele é
considerado dentro do quadro do totalitarismo.

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Capítulo II
A novidade totalitária
Quando tudo é permitido, tudo é possível.

Hannah Arendt

O conceito de novidade
O conceito de novidade é um dos pontos mais expressivos de toda a obra
de Hannah Arendt, e a compreensão profunda das implicações disso nos faz
reconhecer a pertinência do conceito de banalidade do mal, no quadro da
filosofia contemporânea. Embora o conceito de novidade não seja tratado
com especificidade, isto não impede que ele perpasse de ponta a ponta todo
o pensamento político da autora. Lembramos que não procedemos a uma
releitura da obra de Hannah Arendt à caça do substantivo em causa, pois ele
nem precisa aparecer, tamanha a força de sua presença. O conceito de
novidade é lançado, pela primeira vez, em Origens do totalitarismo, só
sendo devidamente trabalhado em Entre o passado e o futuro. Aí a inovação
aparece como sinônimo de criação que, por seu lado, se origina do conceito
de ação. Ação e criação estão indissociadas.
Ao comentar a tensão entre filosofia e política,1 Hannah Arendt reflete
sobre o espanto e cita Platão, para quem o início de toda filosofia é
thaumadzein, o espanto maravilhado face a tudo que é como é, “pois do que
o filósofo mais sofre é do espanto, pois não há outro início para a filosofia
senão o espanto (…)” (Teeteto). Thaumadzein, segundo Platão, é um
pathos, algo que se sofre e, como tal, é muito diverso da doxadzein, da
formação de opinião sobre alguma coisa. O espanto que o homem
experimenta ou que o acomete não pode ser relatado em palavras, por ser
geral demais. Tornou-se um axioma que, tanto para Platão quanto para
Aristóteles, esse espanto é o início da filosofia. Diante de tudo o que é
como é jamais se liga a qualquer coisa específica e, por isso, Kierkegaard
interpretou-o como a experiência da coisa-nenhuma, do nada. O choque

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filosófico de que fala Platão permeia todas as grandes filosofias e separa o
filósofo que o experimenta daqueles com quem vive.
A diferença entre os filósofos (que são poucos) e a multidão não consiste,
de modo algum – como Platão já indicara – no fato de que a maioria nada
sabe do pathos do espanto, mas, muito pelo contrário, que ela se recusa a
experimentá-lo. Essa recusa se expressa em doxadzein, na formação de
opiniões a respeito de questões sobre as quais os homens não podem ter
opinião, porque os padrões comuns e normalmente aceitos do senso comum
aí não se aplicam. O filósofo distingue-se dos seus concidadãos não por
possuir alguma verdade especial da qual a multidão esteja excluída, mas por
permanecer sempre pronto para experimentar o pathos do espanto e,
portanto, para evitar o dogmatismo dos que têm suas meras opiniões.
Hannah Arendt conclui que a filosofia, a filosofia política e todos os
demais ramos originam-se do thaumadzein, do espanto diante daquilo que é
como é. Se os filósofos, apesar de seu afastamento necessário do cotidiano
dos assuntos humanos, viessem um dia a alcançar uma filosofia política,
teriam que ter, como objeto de seu thaumadzein, a pluralidade do homem,
da qual surge, em sua grandeza e miséria, todo o domínio dos assuntos
humanos.
Mas, qual o motivo da recusa em experimentar o espanto? Por que o
homem comum, ou o “homem da multidão”, como nos fala Platão, resiste a
essa experiência? Estas são questões que, por hora, ficam sem respostas
mas que, ao mesmo tempo, nos servirão de fio condutor até ao Capítulo III,
quando iremos tratar da banalidade do mal. Por ora é importante observar
que se pode fugir ao pathos do espanto negando-o, através da formação de
opinião, doxadzein, ou evocando, como resposta, algo já conhecido pela
tradição. De qualquer maneira recusando-o na novidade que ele traz, ainda
que de forma emergente. A nosso ver, esta novidade irá se inscrever
exatamente no mesmo estatuto que o espanto ocupa no pensamento
filosófico.
Hannah Arendt levanta2 uma curiosidade a respeito do fato de que tanto a
língua grega quanto a latina, na cultura clássica, possuíam dois verbos para
designar aquilo que chamamos uniformemente de “agir”. As duas palavras
gregas são árkhein: começar, conduzir e governar, e práttein: levar a cabo
alguma coisa. Os verbos latinos correspondentes são agere: pôr alguma
coisa em movimento, e gerere: que exprime a continuação permanente e
sustentadora de atos passados cujos resultados são os atos e eventos que

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chamamos de históricos. Em ambos os casos, a ação ocorre em duas etapas
diferentes: a primeira é um começo através do qual algo de novo vem ao
mundo e a segunda, a continuação dessa ação. A palavra grega árkhein, que
abarca o começar, o conduzir, o governar, ou seja, as qualidades
proeminentes do homem livre, é testemunha de uma experiência em que o
ser livre e a capacidade de começar algo novo coincidem. Aqui, ação e
liberdade coexistem. Se o agir, como vimos, corresponde à faculdade
humana de começar, de empreender, de tomar iniciativa, então agir e
novidade estão em relação estreita.
É significativo o fato de Hannah Arendt invocar a autoridade de Santo
Agostinho para sustentar sua teoria, pois, também em Agostinho, o homem
é livre porque é o começo. No nascimento de cada homem, esse começo é
reafirmado, pois em cada caso vem a um mundo já existente alguma coisa
nova, que continuará a existir depois da morte de cada indivíduo. Porque é
um começo, o homem pode começar; ser homem e ser livre é a mesma
coisa. Para Agostinho, Deus criou o homem para introduzir no mundo a
faculdade de começar: a liberdade.
Consoante a esse pensamento, mesmo nas épocas de petrificação e ruína
inevitável, a faculdade da própria liberdade, normalmente, permanece
intacta, como a pura capacidade de começar que anima e inspira todas as
atividades humanas e que constitui a fonte oculta de todas as coisas grandes
e belas.3 Nesse caso, a fonte da liberdade permanece presente, mesmo
quando a vida política se tornou petrificada e a ação política impotente para
interromper processos automáticos. Mas, enquanto essa fonte permanece
oculta, a liberdade não é uma realidade tangível e concreta; isto é, não é
política. A liberdade parece ser o maior dom que o homem possa ter
recebido, e encontramos sinais e vestígios dela em quase todas as suas
atividades; entretanto só se desenvolve, com plenitude, onde a ação tiver
criado seu próprio espaço concreto, onde possa sair de seu esconderijo e
fazer sua aparição.
No contexto da ideia de liberdade, a criação se encontra na própria
história. Todo agir é uma inovação que imprime uma reviravolta na história,
é uma criação continuada do mundo que sofre suas consequências. A ação
verdadeira é um primeiro movimento sem nenhum outro antecedente senão
o querer humano. Ser livre e agir é uma coisa só. Os processos históricos
são criados e constantemente interrompidos pela iniciativa humana, pelo

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initium que é o homem enquanto ser que age. Por outro lado, o homem é
um início e um iniciador.
Em Hannah Arendt o sentido da história é a atualização do conceito de
liberdade. Mas a criação histórica nos coloca diante da desconcertante
perplexidade vinda da exigência da compreensão dos novos
acontecimentos. E aí nos indagamos: como pensar as novas realidades?
Como se constrói a novidade histórica e qual é o estatuto que a pensa?
Para Hannah Arendt a novidade se constrói dentro da ação política que
constitui o mundo público. A criatividade da ação política é assinalada pelo
exercício contínuo da liberdade pública, que faz avançar e viver as
instituições. O campo da política é o do pensamento plural, é o pensar no
lugar e na posição do outro. Não mais o eu consigo mesmo, mas o diálogo
com os outros com os quais devo chegar a um acordo. Este diálogo requer
um espaço: a política e a ação. Em toda questão de ordem estritamente
política, a importância fundamental do conceito de começo e de origem
deriva do simples fato de que a ação política, como todo outro tipo de ação,
é sempre o começo de qualquer coisa de novo; enquanto tal, este começo é,
em termos de ciência política, a essência mesma da liberdade humana. No
pensamento político grego, os conceitos de começo e de origem ocupam um
lugar central, como o indica a palavra archè, que significa, ao mesmo
tempo, começo e princípio.
A essência de toda ação, em geral, e da ação política em particular, é de
engendrar um novo começo. Por sua vez, a compreensão e a política andam
juntas na medida em que compreender é dar sentido a essa criação, é criar
significados. Mas, diante disso nos encontramos muitas vezes frente a um
impasse: como compreender as criações – na política e na história do
homem – que o colocam forçosamente na perplexidade e na estranheza
diante delas? O homem é um início e um iniciador, e as possibilidades que
ele tem de criar e desencadear formas degeneradas de ação é um fato
incontestável. Fato este que nos incita a compreender, compreender no
sentido arendtiano de nos reconciliar com o real, pois “a compreensão tem
por objetivo nos fazer aceitar o inevogável e nos reconciliar com o
inevitável”.4
É no contexto do conceito de liberdade que fica mais nítida a
identificação do pensamento de Hannah Arendt com o mal radical kantiano,
pois, para Kant, o homem é um ser que age livremente, que faz a si mesmo,
ou pode e deve fazê-lo. A liberdade está na autonomia da vontade, e a

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vontade é “a faculdade de iniciar de forma espontânea uma série no tempo”.
Em ambos os autores, a liberdade se refere à capacidade humana de iniciar,
já que o homem mesmo é o começo. Mas a liberdade introduz sempre o
conflito entre o bem e o mal moral, liberdade para o bem moral que a
confirma e para o mal moral que acaba por colocá-la em risco.
Ao refletir acerca do aparecimento da terrificante originalidade do
totalitarismo e, diante da necessidade irrevogável de compreender essa
novidade, Hannah Arendt diz:
A dominação totalitária como um fato estabelecido, que, em seu ineditismo, não pode ser
compreendido mediante as categorias usuais do pensamento político, e cujos “crimes” não
podem ser julgados por padrões morais tradicionais ou punidos dentro do quadro de
referência legal de nossa civilização, quebrou a continuidade da história ocidental. A
ruptura em nossa tradição é agora um fato acabado. Não é o resultado da escolha
deliberada de ninguém, nem sujeita a decisão ulterior.5

Essa afirmação mostra que há sempre uma tensão entre o acontecimento


novo e o conceito que o pensa. Significa que é necessário criar conceitos
novos, novas categorias de pensamento para se compreender a novidade
totalitária. Compreender não no sentido de combater, pois compreender é
uma atividade sem fim, sempre mutante e variada, pela qual nós nos
ajustamos ao real, reconciliamo-nos com ele e nos esforçamos para estar em
harmonia com o mundo.
Hannah Arendt6 diz que compreender o totalitarismo não é, de forma
alguma, perdoar, mas nos reconciliar com um mundo onde esses
acontecimentos são simplesmente possíveis. Para ela, a maneira mais fácil
de nos enganar a respeito de uma novidade histórica consiste em assimilá-la
a algo já conhecido pela tradição; por exemplo, assimilar o governo
totalitário a um mal bem conhecido do passado como agressividade, tirania,
conspiração etc. A sabedoria do passado se mostra insuficiente no momento
em que nós nos esforçamos em aplicá-la aos problemas políticos
fundamentais de nossa época.
Tudo o que sabemos do totalitarismo prova uma originalidade no horror,
sem que nenhum paralelo histórico aproximativo nos permita atenuar. Não
se pode escapar ao impacto do totalitarismo recusando-se a fixar a atenção
sobre sua verdadeira natureza e se abandonando às semelhanças e
aproximações que certos aspectos da doutrina totalitária oferecem com as
teorias familiares do pensamento ocidental. A terrificante originalidade do
totalitarismo não se refere a uma nova “ideia” que apareceu no mundo, mas

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a atos em ruptura com toda a nossa tradição. Esses atos, literalmente,
pulverizaram nossas categorias políticas e nossos critérios de julgamento
moral. O mais assustador, pois, na ascensão do totalitarismo não é a
novidade do fenômeno, mas o fato de que ele põe em evidência a ruína de
nossas categorias de pensamento e de nossos critérios de julgamento. Sobre
isto, Castoriadis diz:
Está implícito na análise de Arendt o pressuposto de que nós enfrentamos aqui algo que
não apenas transcende as “teorias sobre a história” herdadas, mas transcende qualquer
“teoria”. Na verdade, o totalitarismo é, a esse respeito, o exemplo monstruosamente
privilegiado e extremo daquilo que é verdade para toda a história e para todos os tipos de
sociedade.7

A novidade está no domínio do historiador que, diferentemente do


cientista preocupado com os fatos recorrentes da natureza, estuda o que
aparece somente uma vez. Essa novidade pode ser desfigurada se o
historiador, insistindo sobre a causalidade, pretende explicar os
acontecimentos por um encadeamento causal que o provocou. É ao
historiador que cabe a tarefa de descobrir essa novidade imprevista, de
separá-la das implicações por um período dado e de revelar toda sua força
significante. Mas, na verdade, o historiador só “explica” parcialmente a
história. Na melhor das hipóteses, essas explicações descobrem algumas
conexões muito parciais, fragmentárias e condicionais. A razão disto é que
a história é a criação de significado, e não pode haver “explicação” de uma
criação, apenas um entendimento ex post facto de seu significado. E isso é,
de modo especial, verdadeiro para a criação indiscriminada de significados
originais e irredutíveis, os quais estão no próprio cerne das várias formas de
sociedades e culturas.
Mas Hannah Arendt viu, na percepção de Castoriadis,8 muito claramente
que, com o totalitarismo, nós nos defrontamos com algo diferente: com a
criação do sem significado (meaningless). A história, como tal, não “faz
sentido”: a história não “possui significado”. Ela é o lugar de onde emerge o
significado, onde ele é criado. Os seres humanos criam significados; e eles
são capazes de criar aquilo que é completamente desprovido de significado.
“Ninguém na época das revoluções americana e francesa poderia de alguma
forma ter previsto que a ‘natureza’ do homem, definida e redefinida por
dois mil anos de filosofia, contivesse possibilidades imprevisíveis e
desconhecidas.”9 Tais possibilidades imprevisíveis e desconhecidas

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levariam à criação do absolutamente insignificante, sem sentido, que ela
chamou de mal absoluto. “Quando o impossível foi tornado possível,
acabou se tornando o mal imperdoável, impunível absoluto, o qual não
podia mais ser explicado pelos motivos de interesse pessoal.”10 Isso nos
mostra que o homem cria o sublime, mas pode também criar o monstruoso.
Nesse confronto com o inédito, e com o espanto e a perplexidade que ele
nos inspira, é que Hannah Arendt tenta compreender o fenômeno do
totalitarismo e suas manifestações. Essas são, às vezes, explícitas e, outras
vezes, mais perversas, camufladas sob uma aparência familiar já conhecida,
a ponto de se tornarem transparentes, ao serem atravessadas pelo nosso
olhar desavisado. Os fenômenos totalitários que escapam, daqui em diante,
ao senso comum e desafiam todos os critérios do julgamento “normal” são
os exemplos mais evidentes do desmoronamento desta sabedoria que é
nossa herança comum. Um fato perturbador é o silêncio de nossa imponente
tradição, tão totalmente desprovida de soluções construtivas face ao desafio
das interrogações morais e políticas de nosso tempo.
Ainda segundo Hannah Arendt:
(…) a escolha de um termo inédito indica o acontecimento de uma realidade nova e
decisiva, reconhecida por todos, enquanto que o uso que se faz em seguida – a
identificação de um fato, ao mesmo tempo específico e novo, com uma realidade geral e
familiar – testemunha reticências que se manifestam face aos acontecimentos que saem do
ordinário.11

No caso do totalitarismo, somente a queda definitiva do imperialismo


(Hannah Arendt compreende o imperialismo como a inversão de valores
que dá à economia a prioridade sobre a política, no período entre 1884 e
1914) pode levar a admitir que um novo fenômeno vem substituir o
imperialismo no centro dos problemas políticos de nossos tempos. Se é
verdade que nos confrontamos com uma realidade que aniquilou nossas
categorias de pensamento e critérios de julgamento, a tarefa de
compreender isso se apresenta como imprescindível. É preciso, pois, a
inauguração de novos conceitos para poder se pensar a novidade totalitária
em todas as suas formas expressivas. É preciso a inovação de conceitos e
categorias de pensamento para poder compreendê-las na originalidade de
suas nuanças e para isto é necessária uma forma de pensar que rompa com a
tradição, com uma forma já dada de conhecimento. É neste contexto que irá

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aparecer, posteriormente, na obra de Hannah Arendt, o conceito de
banalidade do mal.
Mas, como dizer então sobre o que não tem nome? Como medir o que
não tem escala? É possível acreditar que se possa produzir um
acontecimento que escape à tomada de nossas ferramentas conceituais?
Para Hannah Arendt, compreensão e julgamento são ligados e imbricados
um ao outro. Podemos descrever os dois como esta atitude de subsumir (o
particular sob uma regra universal) que, para Kant, está na definição mesma
de julgamento e onde a ausência é, magistralmente, qualificada de
“estupidez”, “enfermidade sem remédio”.12 A ausência do julgamento que
demonstraremos ser um ponto fundamental para o conceito de banalidade
do mal será retomada e desenvolvida, posteriormente, no Capítulo IV.

O totalitarismo em questão
Abordemos, então, a questão do totalitarismo no pensamento político de
Hannah Arendt. É importante ressaltar que não nos interessa aqui fazer uma
teoria do totalitarismo, mas apontar para uma ideia do totalitarismo como
novidade, uma vez que esta é essencial para a questão que nos orienta: que
é o conceito de banalidade do mal.
Hannah Arendt trata com especificidade esse tema na obra Origens do
totalitarismo. Na verdade o próprio título é enganoso, pois, de fato, o
totalitarismo é um fenômeno sem precedentes, e nenhuma evolução
histórica, perfeitamente articulada, pode dar conta plenamente de suas
origens.
Trata-se, na verdade, de “uma enquete mais sociológica do que
histórica”,13 pois esse livro não desenvolve uma sequência histórica. É
preferível falar de uma relação de convergências, convergência de
acontecimentos que culmina por “cristalizar-se” em totalitarismo, e
convergência de conceitos que esclarecem esta evolução. Hannah Arendt
não procede a uma enquete histórica a propósito do fato totalitário, porque o
estatuto da novidade radical, aí assinalado, interdita o recurso às sequências
históricas tradicionais e à causalidade linear. Os “elementos” ou “origens”
do totalitarismo não são, pois, as causas no sentido da causalidade histórica
pela qual um acontecimento pode ser sempre explicado por um outro: os
elementos não “causam” nada, eles se “cristalizam” em certas formas
determinadas.

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O antissemitismo, o imperialismo e o totalitarismo têm, em comum, o
rompimento com toda tradição, e os paralelos históricos que bloqueiam o
acesso à sua especificidade devem, pois, ser banidos. Por exemplo, no caso
do antissemitismo moderno, ideologia leiga do século XIX, ele se distingue
radicalmente do antijudaísmo secular de origem religiosa, com o qual a
tradição judaica errou, segundo Hannah Arendt, em confundir.
É, também, em sentido bastante restrito e cronologicamente limitado que
se define o imperialismo, desde que o termo se encontre reservado à
expansão colonial europeia que tomou seu impulso no último terço do
século XIX; os imperialistas modernos não são, pois, os inauguradores do
império no sentido amplo; da mesma forma a expansão não é uma
conquista; o traço específico do fenômeno é a separação mantida entre as
instituições nacionais e a administração colonial. Finalmente, como já foi
observado, o totalitarismo é um tipo distinto de dominação sob uma
roupagem moderna. A dominação total é bastante insólita para se referir às
formas antigas e, embora uma quantidade de fatores lhe sirvam de prelúdio,
é impossível não se reconhecer, em seu advento, um brusco despregamento
que não corresponde à imagem continuísta que se faz, normalmente, da
evolução histórica. Aqui temos uma figura que não é espécie de nenhum
gênero, quer seja o despotismo oriental, a tirania grega, ou ainda a simples
exacerbação do poder do Estado que revela, subitamente, sua verdadeira
face, graças ao apoio da técnica.
Mas, se por um lado, essa dominação não remete a nenhum modelo
conhecido, por outro, o totalitarismo é, para Hannah Arendt, uma fraqueza
momentânea a ser classificada dentro das aberrações políticas:14 ela crê que
não há aqui uma figura durável a acrescentar ao registro das formas de
governo classicamente repertoriadas.
Mas qual o fio que liga os fenômenos do antissemitismo ao imperialismo
e ao totalitarismo? O tema central que une os fios esparsos da obra é, sem
dúvida, a história da dissolução das sociedades nacionais em agregados de
homens supérfluos: “É necessário recolocar o antissemitismo moderno no
quadro mais geral do desenvolvimento do Estado-nação”,15 onde a
desintegração coincide com a investida imperialista e se encontra selada
com o surgimento dos regimes totalitários.
Para Hannah Arendt, o antissemitismo aparece como um fenômeno
moderno que se distingue radicalmente do “ódio aos judeus” de origem
religiosa. Ideologia leiga ligada à história política e social do Estado-nação

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do último século, ela não se inscreve nos prolongamentos de uma
perseguição secular, como também o antissemitismo não polariza um
ressurgimento irracional de barbárie sobre um grupo, vítima emissária,
quase que fortuita, servindo de derivativo de um ressentimento desviado em
ódio racial. Hannah Arendt insiste em compreender o antissemitismo como
um problema político, ligado a uma conjuntura histórica, diferentemente de
todas as teorias que tendem a dissolver a especificidade de um fenômeno na
história transcorrida de milênios, ou, ainda, absolver a violência por
inscrevê-la em uma fatalidade vitimária. Essa posição típica será bastante
comentada, quando tratarmos da controvérsia em torno da obra Eichmann
em Jerusalém.
A autora insiste na ocorrência das relações que, desde a época dos
“judeus da corte”, os judeus tiveram com o aparelho do Estado, a título de
financiadores das transações. Depois, a partir da era do imperialismo, eles
perderam sua situação privilegiada, não fazendo mais parte de nenhuma das
classes de uma sociedade, permanecendo à distância. Eles foram, assim,
constantemente identificados com o poder estatal, e Hannah Arendt tenta
mostrar que a hostilidade em relação aos judeus se confundia com a
hostilidade à estrutura do Estado como alvo de ataque de grupos nacionais.
Este antissemitismo foi atiçado, ainda, pelos escândalos financeiros do fim
do século XIX e pelo ressentimento de uma pequena burguesia, persuadida
da existência de uma força internacional judia manipulando as alavancas da
política mundial. O antissemitismo, que aparece em 1870, se exerce, pois,
em direção a esse grupo que conservou seus privilégios e que depois perdeu
as funções públicas, o poder; seu destino é, segundo Hannah Arendt, ligado
ao declínio do Estado-nação que se quebra sob o avanço imperialista.
Ainda segundo Hannah Arendt, o antissemitismo político se duplica em
antissemitismo social, no qual as causas são exatamente inversas, visto que
ele apareceu justamente quando os judeus, passando do Estado à sociedade,
adquirem a igualdade de condições com os outros grupos sociais. A fim de
ser aceito, o judeu tem que se distinguir, compondo um personagem único,
excêntrico ao máximo possível, e é ao preço de mil extravagâncias
surpreendentes que ele escapa à exclusão que atinge o grupo. O judeu, em
geral, se faz adotar como ser de exceção. Esta condição paradoxal de pária e
de parvenu é profundamente tratada por Hannah Arendt.16
Claude Lefort, em uma análise consagrada a Origens do totalitarismo,
reconhece que é “neste descentramento da história dos judeus, no

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deslocamento do foco da questão, do lugar do antissemitismo ao lugar do
totalitarismo, de uma maneira geral ao lugar do político, que residem a
originalidade e a audácia da tentativa de Hannah Arendt”.17 A nosso ver,
essa originalidade consiste justamente no fato de ela ter captado a novidade
do fenômeno do antissemitismo moderno, ao diferenciá-lo do antigo ódio
religioso antijudaico e de ter-lhe dado o tratamento de um problema político
ligado a uma conjuntura histórica.
Quanto ao imperialismo, ele se reveste de um alcance mais geral. Na
obra Origens do totalitarismo, esse fenômeno, como já foi dito
anteriormente, é interpretado como a inversão dos valores que dá à
economia a prioridade sobre a política, no período entre 1884 e 1914, que
será o prelúdio da devastação da Europa. Resumido no slogan “a expansão
pela expansão”, o imperialismo promove a extensão geográfica apenas em
nome de uma crescente economia que abraça o modelo da acumulação
capitalista, encarregada de um dinamismo infinito, visando partilhar o
planeta. Com a frase de Cecil Rhodes, “Eu anexaria os planetas se o
pudesse”, Hannah Arendt ilustra o princípio dessa lei de expansão, onde se
encontra, sob forma apenas disfarçada, a ideia de processo ilimitado no qual
ela verá o triunfo do totalitarismo.
Uma das teses centrais é que o imperialismo deve ser compreendido
como a primeira fase da dominação política da burguesia, mais do que
como o último estágio do capitalismo, pois ele marca “a emancipação
política da burguesia” cujos interesses privados são camuflados em
princípios políticos, desde que os investimentos têm necessidade de uma
proteção governamental. Os homens de negócios se travestem em políticos,
para os quais a política representa apenas uma força de polícia bem
organizada. O poder apenas seguiu a intendência além das fronteiras, o que
explica que o Estado apenas exportou os instrumentos de coerção –
exército, polícia e burocracia, e que o governo da força ocupou o lugar da
fundação do corpo político.
Os traços distintivos do imperialismo são, segundo ela, as teorias racistas
que substituíram a raça pela nação, como base da estrutura política e da
organização burocrática que serviu de instrumento. Quanto à instituição
burocrática, ela se caracteriza pelo culto da distância e o gosto pelo secreto.
Ela dá a seus agentes o sentimento de embriaguez de servir às forças
superiores e aos vastos desígnios nos quais eles não são eles mesmos, mas
apenas instrumentos tão dóceis quanto irresponsáveis. Esta “política

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infantil” que acreditava no fardo do “homem branco” realizará a ideia de
“massacres administrativos”.18
Ao abordarmos o totalitarismo, não entraremos no mérito da questão
sobre os impasses polêmicos em torno das variações conceituais do
termo,19 nem discutiremos as polêmicas surgidas em torno do tratamento
que Hannah Arendt dá ao tema. Apenas é importante atentar para o ponto
mais contestado de Origens do totalitarismo20 que é precisamente o
paralelo, que se julgou escabroso, entre o nazismo e o stalinismo. Hannah
Arendt se omite de estudar os mecanismos da tomada de poder e de analisar
o recrutamento das elites dirigentes e não pode, por isso, sustentar que
nazismo e stalinismo foram apoiados por constelações de forças diferentes.
O que ela faz é acentuar as similaridades reveladoras de uma essência
totalitária, deixando de lado, na categoria de variações não essenciais, uma
multidão de diferenças bastante significativas. Deste desequilíbrio ela foi
perfeitamente consciente ao admitir, em 1952, que “a falta mais grave de
Origens do totalitarismo é a ausência de uma análise histórica e conceitual
do pano de fundo ideológico do bolchevismo”.21
Na verdade, o totalitarismo permanece uma noção genérica que recobre
uma grande variedade de elementos, daí a impossibilidade de se fornecer
um critério não ambíguo à aplicação deste conceito. Por isso Hannah
Arendt delimita estritamente a extensão do fenômeno “totalitarismo” no
tempo e no espaço, sendo que ele apenas concerne aos regimes de Stalin e
Hitler, já que o nazismo só se tornou autenticamente totalitário em 1938 e o
stalinismo, a partir de 1930. Quanto ao problema da extensão do conceito
de totalitarismo, Bobbio22 faz a mesma opção de Arendt, quando delimita o
campo de aplicação do conceito aos regimes de Hitler e Stalin. Comentando
a opção conceitual de Hannah Arendt, Bobbio diz:
Em Arendt o totalitarismo aparece como uma tendência-limite da ação política na
sociedade de massa, um certo modo extremo de fazer política, caracterizado por um grau
máximo de penetração e de mobilização monopolística da sociedade, que ganha corpo na
presença de determinados elementos constitutivos. O totalitarismo, enquanto tal, assume
diversos aspectos e está associado a diversos fins e diversas metas, conforme o sistema
político particular no qual encarna o relativo ambiente econômico-social.23

Quanto às revisões críticas e aos pontos mais eficazes das teorias do


totalitarismo, Bobbio conclui e resume que o fenômeno pode ser descrito
sinteticamente, com base em sua natureza específica, nos elementos

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constitutivos que contribuem para formá-lo e nas condições que o tornaram
possível em nosso tempo.
É importante situar, no amplo quadro de pesquisa sobre o totalitarismo,
onde se localiza o pensamento político de Hannah Arendt. Para Châtelet,
“essa obra se inscreve no espaço crítico do liberalismo, do qual ela partilha
as principais perspectivas. Todavia ela o ultrapassa a fim de pôr o acento
nessa ‘banalidade do mal’ que ameaça o século XX”. E continua:
“Distinguindo entre o fenômeno totalitário em movimento e o totalitarismo
no poder, Hannah Arendt opera uma análise sistemática da massificação,
ideia já explorada diferentemente pelo ‘liberalismo’.”24
Marxistas e liberais têm conceitos irredutivelmente antagônicos de
totalitarismo. Os marxistas argumentam que o termo totalitário inscreve-se,
inicialmente, num contexto de guerra fria, e é acompanhado pelo projeto,
deliberadamente polêmico, de assimilar nazismo e comunismo. Já o
pensamento liberal coloca nazismo e stalinismo na rubrica de
“totalitarismos”, apoiando a ideia de que o Estado é sempre Estado de
Direito, e que o fenômeno totalitário o dissolve. Por outro lado, as
características reais do termo totalitarismo não estão de modo algum em
oposição à forma de Estado liberal propriamente dita: ao contrário, os
fenômenos reais mascarados por essa ideologia política se encontram na
forma do Estado liberal.
Enquanto uns, como Giovani Sartori e Raymond Aron,25 consideram o
totalitarismo como um acidente superado, outros, como Claude Lefort, já o
veem, em sua atualidade, como um fato político e “nada nos permite dizer
que não reaparecerá no futuro”.26 Conforme Castoriadis: “O totalitarismo
‘clássico’ foi ou destruído externamente, ou exaurido internamente; nenhum
desses dois destinos foi inevitável ou fatal.”27 Todavia uns e outros têm em
comum o fato de verem o totalitarismo como um certo modo extremo de
fazer política na sociedade de massa, bem real e claramente identificável,
que se manifestou em nosso século com conotações de novidade e de
grande relevância histórica.
Enfim, o debate sobre o totalitarismo está em aberto: é um fato atual, de
uma atualidade cujas raízes e marcas devem ser esclarecidas. Trata-se de
um conceito importante que não podemos nem devemos minimizar, porque
denota uma experiência política real, nova e de grande relevo, que deixou
marca indelével na história e na consciência dos homens do século XX.

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Mas, afinal, qual é a diferença de princípio que permite ao governo
totalitário ser uma natureza impossível de se relacionar a um tipo de
governo já existente? Qual é a sua originalidade?

Ideologia e terror
Para Hannah Arendt, o totalitarismo está apoiado em dois pilares:
ideologia e terror. Enquanto a ilegalidade é a essência do governo tirânico,
o terror é a própria essência do domínio totalitário. Tal regime não abole
somente a liberdade pública, mas visa à eliminação total da espontaneidade
nela mesma e, contrariamente à tirania que autoriza ainda a ação motivada
pela crença, o totalitarismo consegue suprimir toda a ação. O isolamento
tirânico que não atinge a esfera da vida privada se opõe à desolação
totalitária, definida como “a experiência absoluta de não pertinência ao
mundo”. Esta desolação é o efeito de uma violência que se difunde do
próprio interior do corpo social, lugar onde se pode analisar o mecanismo
de sua difusão.
Para Hannah Arendt, o primeiro traço da dominação totalitária é a
destruição das redes de comunicação que prendem o homem a um tecido
sociopolítico, a fim de promover a mobilização das massas despolitizadas.
O volume de pessoas, a apatia e o mutismo político são suficientes para
definir essas massas, vindas da atomização social consecutiva à Primeira
Guerra Mundial, ao desemprego e a inflação, os quais esmagaram todas as
distinções, aplainando, assim, o caminho do totalitarismo. Nenhum
interesse comum, seja econômico, social ou político, liga os elementos
desse agregado para fazer deles uma comunidade; mas, ao contrário, é a
atomização e o extremo individualismo que é o princípio da massa não
como formação social, mas como sociabilidade amorfa.
Para ilustrar o sistema de dominação, Hannah Arendt usa a imagem da
“estrutura da cebola”, em oposição ao modelo piramidal autoritário. O
dirigente age, a partir do interior de uma estrutura, composta de muitas
camadas formadas de simpatizantes, adeptos, de membros das formações da
elite ou do núcleo dos iniciados em torno do líder. O estrato mais exterior
tem uma aparência de normalidade, ao mesmo tempo para as massas e para
o estrato imediatamente interior e assim por diante. Essa estrutura permite a
filtragem da realidade, criando um abismo entre a ficção ideológica central
e o mundo periférico, possibilitando sempre desmentir o que transpira daí.

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Assim compreende-se porque a mentalidade totalitária é uma “mistura de
credulidade e cinismo”, credulidade da massa e cinismo dos iniciados,
indiferentes aos fatos e resguardados por uma lealdade suicida em relação
ao chefe.
Esse tipo de organização contribui para extirpar todo espírito de
responsabilidade e reforçar a dominação total do líder, pois o
desdobramento das instâncias de autoridade (partido ou Estado, polícia ou
burocracia) e a proliferação das autoridades concorrentes, entre as quais, o
poder efetivo, se deslocam sem cessar.
Os campos de concentração representam os laboratórios do totalitarismo,
nos quais se verifica a dupla crença de que tudo é possível e de que tudo é
permitido. Permitido, não no sentido das liberdades individuais, mas, ao
contrário, do ponto de vista dos detentores do poder. E, se é verdade que os
campos de concentração são a instituição que caracteriza mais
especificamente o governo totalitário, então, deter-se nos horrores que eles
representam é indispensável para compreender o totalitarismo. Neles, a
invenção imperialista encontra sua realização acabada, pois essa instituição
central de poder totalitário exprime a perfeição de dominação, onde o
objetivo não é o de transformar o mundo, mas de modificar a natureza
humana. Ao extermínio de pessoas se junta o das memórias das vítimas e de
grupos humanos inteiros. Para Hannah Arendt:
Os campos de concentração não são apenas destinados ao extermínio de pessoas e à
degradação de seres humanos: servem também à horrível experiência que consiste em
eliminar, em condições cientificamente controladas, a própria espontaneidade enquanto
expressão do comportamento humano, e em transformar a personalidade humana em
simples coisa, em alguma coisa que nem mesmo os animais possuem.28

É isso que lhe faz compreender por que, tanto na União Soviética quanto
na Alemanha, esses campos não foram estabelecidos tendo-se em vista a
possibilidade de maior produtividade: sua única função econômica foi
financiar a sua aparelhagem. Para além de sua própria inutilidade, persegue-
se um objetivo fundamental: a destruição da pessoa jurídica e moral do
indivíduo até obter, nessa destruição, a cumplicidade entre vítima e
carrasco. Segundo Primo Levi,29 o aspecto mais perverso, o crime mais
demoníaco da experiência do nazismo foi o de ter concebido e organizado
as “equipes especiais”, esta cumplicidade, esta confusão, estrategicamente
fabricada e estruturada entre vítima e carrasco, chamada por ele de “zona

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cinzenta”, com base em sua experiência de sobrevivente de Auschwitz. A
cumplicidade conscientemente organizada de todos os homens, nos crimes
dos regimes totalitários, é estendida às vítimas e, assim, torna-se realmente
total. A linha divisória entre o perseguidor e o perseguido, entre assassino e
vítima, desaparece à medida que os internos dos campos de concentração
eram obrigados, pela SS, a colaborar, forçados a agir como assassinos.
Morta a pessoa moral, esses homens foram transformados em mortos-vivos.
Aqui nos encontramos diante de uma analogia paradoxal entre vítima e
opressor. O nazismo degrada suas vítimas, torna-as semelhantes a ele
mesmo.
Outro aspecto a ser ressaltado sobre os campos de concentração, e que se
situa no quadro das características essenciais do totalitarismo, é o da
atmosfera de irrealidade e seu equivalente clima de ficção e a fluidificação
da consciência. Convém lembrar que os campos são não apenas a sociedade
mais totalitária já realizada,30 mas também o modelo social perfeito para o
domínio total. Os campos constituem a verdadeira instituição central do
poder organizacional totalitário. Da mesma forma como a estabilidade do
regime totalitário depende do isolamento do mundo fictício criado pelo
movimento em relação ao mundo exterior, também a experiência dos
campos de concentração depende de seu fechamento ao mundo de todos os
homens, o mundo dos vivos em geral. Todos os relatos vindos dos campos
de concentração são caracterizados por uma peculiar irrealidade e
incredibilidade, tanto da parte de quem ouve como da parte do autor, que
permanece sempre como uma vítima de dúvidas quanto à sua própria
veracidade, como se pudesse ter confundido um pesadelo com a realidade.31
Essa atmosfera de loucura e irrealidade, criada pela aparente ausência de
propósitos, é a verdadeira cortina de ferro que esconde dos olhos do mundo
todas as formas de campo de concentração.
Vistos de fora, os campos e o que neles acontecem só podem ser
descritos com imagens extraterrenas, como se a vida neles fosse separada
das finalidades deste mundo. Mais do que qualquer barreira material, é a
irrealidade dos detentos que provoca uma crueldade tão incrível que
termina por levar à aceitação do extermínio como solução perfeitamente
normal. Os homens são condicionados para aceitar, não importa o quê, e
eles terminam por não reagir a nada mais. Nem a vida nem a morte lhes
importa mais verdadeiramente, e eles desempenham as tarefas absurdas
com uma resignação absoluta. David Rousset, em seu relato, assinala que as

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condições sociais da vida nos campos transformaram a grande massa de
internos e dos deportados, independentemente de sua antiga posição social e
sua formação, em “uma turba degenerada, inteiramente submetida aos
reflexos primitivos do instinto animal”.32 Esta ideia é corroborada por
outros relatos de sobreviventes que reforçam este aspecto da regressão ao
comportamento humano primitivo entre os prisioneiros.33
Para Hannah Arendt, a experiência dos campos de concentração
demonstra que “os seres humanos podem transformar-se em espécimes do
animal humano, e que a ‘natureza’ do homem só é ‘humana’ na medida em
que dá ao homem a possibilidade de tornar-se algo eminentemente não
natural, isto é, um homem”.34
Se pudermos falar que os campos tinham um objetivo, este seria somente
o de minar a individualidade dos prisioneiros e transformá-los em massa
dócil, da qual não pudesse surgir nenhum ato de resistência individual ou
coletiva. Outro objetivo era espalhar o terror entre o restante da população,
utilizando os prisioneiros tanto como reféns quanto como exemplos de
intimidação do que aconteceria se alguém tentasse reagir. Além do mais, os
campos eram local de treinamento da SS. Lá os guardas eram ensinados a
livrar-se de suas emoções e atitudes anteriores mais humanas, para adotar os
modos mais eficazes de quebrar a resistência de uma população civil
indefesa; assim, os campos tornaram-se um laboratório experimental para
se estudar os meios mais efetivos de fazer o terror.
Vistos fora da perspectiva do terror, o mundo dos campos não tem
objetivo utilitário, é um mundo que funciona sob a ausência de sentido. A
realidade dos campos permanece impenetrável à imaginação e ao
entendimento normais; as descrições dos sobreviventes chocam por sua
característica de irrealidade e ficção, e é precisamente esta atmosfera de
loucura e irrealidade que esconde e protege, como uma rede espessa, a
hedionda realidade dos campos aos olhos do mundo exterior. Dizendo de
outra maneira: os campos têm uma aparência de ficção, pois eles realizam,
efetivamente, o absurdo; e é exatamente este absurdo que os torna
invulneráveis. E, se existe uma instituição que consegue realizar isso, é
porque os homens normais se recusam a acreditar no absurdo e a ignorar
que tudo é possível. Pode-se dizer que, ao se recusar a crer na loucura,
apesar desta ser traduzida em fatos efetivos, o homem normal se torna
cúmplice da demência totalitária; ironicamente torna-se aliado objetivo da
ideologia do mentiroso, e é exatamente aqui que reside a amplitude desse

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poder perverso. Sendo assim, o motivo pelo qual os regimes totalitários
podem ir tão longe na realização de um mundo invertido e fictício é que o
mundo exterior não totalitário só acredita naquilo que quer e foge à
realidade ante a verdadeira loucura. A repugnância do bom senso, diante da
fé no monstruoso, é constantemente fortalecida pela censura das
informações e pela propaganda totalitária. Para Hannah Arendt: “O que
contraria o bom senso não é o princípio niilista de que ‘tudo é permitido’ já
delineado no conceito utilitário de bom senso do século XIX. O que o bom
senso e as ‘pessoas normais’ se recusam a crer é que tudo seja possível.”35
Com o surgimento da sociedade totalitária, de seus crimes imensos e
absurdos, nós nos encontramos diante do surgimento de uma espécie de mal
radical. Hannah Arendt, como grande leitora de Kant, prefere a designação
de “radical” à de “absoluto” para evitar a tentação bastante metafísica de
hipostasiar, em princípio, um fenômeno essencialmente efêmero e instável a
seu ver. O regime totalitário realiza o irreal, faz funcionar efetivamente um
mundo privado de sentido; por consequência, ele é a impossibilidade
existente. E se esta impossibilidade, uma vez atualizada, dá a aparência de
maior solidez que o mundo “normal” dos fatos não manipulados, ela
permanece, não obstante, bastante vulnerável. O mal radical é
essencialmente frágil, e essa fragilidade, ao invés de contradizer a noção,
decorre dela.
Por outro lado, o poder totalitário não poderia ser exercido sem o
contravalor do ideal que lhe é fornecido pela ideologia. Ideologia definida
por Hannah Arendt como sendo “a lógica de uma ideia” e tendo por objeto
“a história, à qual a ideia é aplicada”. O resultado dessa aplicação não é um
conjunto de postulados acerca de algo que é, mas a revelação de um
processo que está em constante mudança. A ideologia trata do
encadeamento dos acontecimentos, como se eles obedecessem à mesma
“lei” adotada na exposição lógica da sua “ideia”. No pensamento ideológico
encontram-se elementos totalitários, pois este pensamento dispõe os fatos
sob a forma de um processo absolutamente lógico que se inicia a partir de
uma premissa aceita axiomaticamente. Tudo mais é deduzido dela,
operando com uma coerência que não existe em parte alguma da realidade.
Essa lógica persuasiva como guia da ação impregna toda a estrutura dos
movimentos e governos totalitários.
O preparo das vítimas e dos carrascos não é através da ideologia em si,
do racismo ou do materialismo dialético, mas através de sua lógica inerente.

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A força coercitiva dessa lógica, segundo Hannah Arendt, emana do nosso
pavor à contradição. Para a mobilização das pessoas, o governante
totalitário conta com a compulsão que as impele para a frente; e essa
compulsão interna alimenta a tirania da lógica, contra a qual nada se pode
erguer senão a grande capacidade humana de começar algo novo. A tirania
da lógica começa com a submissão da mente a ela, como processo sem fim,
no qual o homem se baseia para elaborar os seus pensamentos. Através
dessa submissão ele renuncia à sua liberdade interior, tal como renuncia à
liberdade quando se curva a uma tirania externa.
No contexto da aversão à contradição de que fala Hannah Arendt, a
contribuição de Miklos Vetö36 é magistral. Segundo sua análise sobre o
papel da coerência na ideologia totalitária, é pela mentira política que o
regime estabelece uma grade que permite a organização e a explicação
“coerentes” desse mundo. A iniciativa dessa coerência terrível não provém
somente do alto, do lado dos governantes. O desejo da coerência não
obceca somente os chefes, mas ele é profundamente vivido pelas próprias
massas. Desenraizados, sacudidos em um mundo onde eles não estão mais
organicamente integrados, os homens são privados dessa segurança que lhes
permitiria desembaraçar-se e se reencontrar num universo em mudança
contínua. Daí para frente, incapazes de suportar o caráter acidental,
incompreensível desse mundo em constante reviravolta, esses milhões de
indivíduos, que constituem as massas modernas, não aspiram senão a
escapar em direção a esse paraíso artificial que seria um universo
completamente coerente. Desorientados e aterrorizados diante do
crescimento anárquico que caracteriza a vida das sociedades modernas, é,
seguindo seu instinto de segurança, pelo seu desejo de um mínimo de
respeito a si, que as massas apostam tão fortemente em uma aparência de
racionalidade no mundo e se fiam à coerência totalitária na forma mais
absurdamente fictícia. A imposição de um sistema de explicação lógico-
matemático de coerência no mundo moderno é perniciosa à medida que ela
suprime esses espaços intermediários onde poder-se-iam abrigar a
imaginação, o bom senso e, mesmo, o senso. Para Hannah Arendt, “(…)
cada vez que o senso comum, o sentido político por excelência, deixa de
atender a nossa necessidade de compreensão, é muito provável que
aceitemos a lógica como seu substituto, pois a capacidade de raciocínio
lógico é também comum a todos”.37

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Vetö38 diz que a explicação totalitária tem a particularidade de não se
limitar a uma interpretação teórica, mas age também para que o mundo se
submeta, efetivamente, às suas deduções. A ideologia aplica sobre o mundo
contingente dos homens uma grade de leitura coerente e sem falha e se
previne em relação àqueles que não aceitam docilmente as articulações
fantasmáticas. É próprio dos movimentos totalitários explicar o mundo
(sobretudo as dificuldades que eles encontram) pela atividade secreta e
permanente, e onipresente, dos conspiradores. Contudo a teoria da
conspiração enquanto princípio de explicação do imprevisto, da falta e do
fortuito, marca a mania da perseguição. Hannah Arendt afirma a perfeita
compatibilidade da loucura com um sistema de lógica acabada. A loucura
não é baseada na ausência de coerência no raciocínio; ela se destaca, ao
contrário, (em concordância com Kant) dessa “obstinação lógica” que se
exerce para o indivíduo que perdeu o bom senso humano pelo fato de ser
excluído do mundo pluralista das opiniões e dos fatos concretos. A
propósito da compatibilidade da loucura com a coerência, entendemos que a
paranoia nada mais é do que as deduções sistemáticas efetuadas por um
espírito isolado, por consequência desregrado, a partir de uma premissa
erigida em absoluto.
Também nas ideologias totalitárias, tudo parte de uma premissa a qual
não é senão uma mentira descarada ou uma tese pseudocientífica. No
entanto, a demência dos sistemas totalitários não decorre somente de sua
premissa, mas consiste, sobretudo, na lógica pela qual ela é construída. O
verdadeiro delírio não é a escolha extraviada de um princípio, mas a
confirmação constante dessa escolha pelo fechamento rígido em direção ao
mundo, pela recusa de se recorrer a toda facticidade que poderia se mostrar
dissonante. Para Hannah Arendt, a demência criminosa da explicação
totalitária é ter trocado a liberdade inerente ao pensamento pela “camisa de
força da lógica”.39 A explicação totalitária se quer infalível e, para poder
não ser jamais refutada pelos fatos, ela congela toda espontaneidade
susceptível de deter a sua marcha e líquida, sem piedade, os indivíduos
recalcitrantes a seu movimento.
O que torna a coerência lógica um fator de violência não é a
transparência sem falha do encadeamento de seus movimentos, mas,
sobretudo, a transformação dessa transparência em uma corrente
irresistível. Enegrén40 observa que o totalitarismo pode ser descrito como
uma obsessão de movimento. De fato, o regime vive em um estado de

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requisição permanente, permitindo uma marcha constante para frente, na
qual a cessação significaria o entorpecimento, a esclerose do terror
transformado em simples governo absoluto. Toda tentativa de estabilização
deve ser sufocada na origem. O exemplo disto é a revolução permanente do
stalinismo que tomou nitidamente a forma de depuração e de transferência
de população; no caso do nazismo, tomou a forma de abertura a uma
seleção racial sem trégua. A mobilidade está, pois, na ordem do dia; na
descrição de Hannah Arendt, ela corresponde a uma vertigem gratuita, ao
movimento que entranha a evolução da história naturalizada e da natureza
historicizada: é a história engolida no fluxo da vida e absorvida em
processo invisível.
Eichmann fala, a propósito da organização burocrática nazista, que “(…)
tudo estava em um estado de flutuação permanente, um rio contínuo”41 e
esse rio não tem os meandros de um rio pacífico, mas, sobretudo, de uma
torrente que inunda e destrói. Uma “flexibilidade” extraordinária caracteriza
os regimes totalitários, o que não tem nada a ver com prudência, com o fato
de se submeter aos desejos e aos interesses dos outros ou com uma
autolimitação qualquer. Essa flexibilidade é uma “fluidez” diabólica que
tende, precisamente, a contornar todo limite, a evitar todo constrangimento
que emana do exterior ou de suas próprias profundezas.
No Estado totalitário, o movimento se encontra erigido em princípio
absoluto, enquanto movimento, sem nenhuma articulação estrutural. Ele se
liberta de toda lei e de toda regra positiva, visto que pretende representar
uma legalidade superior a todo preceito particular; e isto em virtude de sua
identidade ao movimento que veicula, de uma maneira infalivelmente
eficaz, o ser-lei da humanidade. Perdendo, então, sua condição normativa e
coincidindo, daí em diante, com o movimento onde antes estava designada
a ser o critério e a regra, a lei passa por estranhas transposições. Ela não tem
a condição formal do universal, nem a positividade concreta do particular,
mas ela é, ao mesmo tempo, indefinida e instantânea, abstrata e fluida.
Daqui em diante é a humanidade como tal que encarna a lei.
Quanto à ideologia totalitária, esta se acha livre da fidelidade a qualquer
coisa de objetivo, pois não está submetida a nenhum fato, mesmo ao fato
fictício, a mentira, que se encontra em seu começo. Ela é livre em relação a
seu próprio conteúdo e até mesmo com relação a todo conteúdo. Por
exemplo: os nazistas jamais levaram a sério seu próprio programa, pois eles
sabiam, com pertinência, que um movimento não deve estar ligado a

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qualquer coisa de imóvel, a uma série de preceitos e princípios. O que
importa é o movimento em si mesmo no sentido físico e biológico do
termo, e a noção de movimento acaba por levar à aparição de um programa.
A lei dos movimentos totalitários é fundada em critérios exteriores e
flutuantes definidos pela direção do movimento, e o sucesso do movimento
totalitário, sua eficácia assustadora, depende, em grande parte, da suprema
liberdade de seu chefe, que não é obrigado a respeitar nenhuma regra fixa,
nem mesmo suas próprias decisões e declarações anteriores. A
extraordinária ausência de lei e de forma, que caracteriza as sociedades
totalitárias, não é um acidente, mas alguma coisa de inerente à dinâmica
mesma do totalitarismo e serve para a destruição desta segurança que
permite ao indivíduo se mover, se deslocar e fazer projetos: em uma
palavra, de estar ao abrigo que é sua personalidade jurídica. Os homens se
ressentem duramente à promulgação de leis crueis e injustas, mas, na
medida em que estas leis definem seus contornos, acabam por se acomodar
a elas. Mas o que não é possível de ser tolerado por eles é a ausência de
toda lei. O assalto permanente contra a identidade jurídica do indivíduo e o
controle absoluto do cidadão é uma política consciente e essencial do
governo totalitário.
A personalidade jurídica e moral é a estrutura do indivíduo, insubstituível
e única, de onde emanam decisões, julgamentos e ações, enfim, de onde
surge toda a novidade no mundo. A eliminação da personalidade visa secar
as fontes da espontaneidade, a fim de permitir ao regime regulamentar,
sempre mais eficazmente, o comportamento dos cidadãos. A destruição dos
direitos do homem, a morte de sua pessoa jurídica, é a condição primordial
para que ele seja inteiramente dominado, e a finalidade do sistema arbitrário
é destruir os direitos civis de toda a população, que se vê, afinal, tão fora da
lei em seu próprio país como os apátridas e refugiados.
Podemos dizer que a propaganda totalitária é a outra face do terror. Mas
isto só é verdadeiro nos estágios iniciais, pois, quando o regime totalitário
detém o poder absoluto, ele substitui a propaganda pela doutrinação, e a
violência não é usada mais com o objetivo de assustar o povo (quando ainda
existe oposição), mas para dar realidade às suas doutrinas ideológicas e às
suas mentiras utilitárias. Quando o terror atinge a perfeição, como nos
campos de concentração, a propaganda desaparece inteiramente. A
propaganda é um instrumento do totalitarismo, possivelmente o mais
importante, para enfrentar o mundo não totalitário, e o seu objetivo não é a

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persuasão, mas a organização (organização é aqui definida como o
“acúmulo de força sem a posse dos meios de violência”).42
A eficácia desse tipo de propaganda evidencia uma das principais
características das massas modernas. Elas não acreditam em nada visível,
nem na realidade da sua própria experiência; não confiam em seus olhos e
ouvidos, mas apenas em sua imaginação que pode ser seduzida por
qualquer coisa ao mesmo tempo universal e congruente em si. O que
convence as massas não são os fatos, mesmo que sejam fatos inventados,
mas apenas a coerência com o sistema do qual esses fatos fazem parte. O
que as massas se recusam a compreender é a fortuidade de que a realidade é
feita. Predispõem-se a todas as ideologias, porque estas explicam os fatos
como simples exemplos de leis e ignoram as coincidências inventando uma
onipotência que a tudo atinge e que, supostamente, está na origem de todo
acaso. A propaganda totalitária prospera nesse clima de ficção, eliminando
tudo o que é fortuito em detrimento da coerência. A propaganda totalitária
cria um mundo fictício capaz de competir com o mundo real, cuja principal
desvantagem é não ser lógico, coerente e organizado.
O solo fértil para o começo do terror totalitário se encontra no
isolamento. Podemos dizer que o isolamento é pré-totalitário, sua
característica é a impotência, na medida em que a força surge quando os
homens trabalham em conjunto; os homens isolados são impotentes por
definição. Nos governos tirânicos os contatos políticos entre os homens são
barrados, mas nem todos os contatos entre eles são interrompidos e nem
todas as capacidades humanas são destruídas. Toda a esfera da vida privada
permanece intacta. Já no terror total, o espaço para essa vida privada é
eliminado, e a autocoerção da lógica totalitária destrói a capacidade humana
de sentir e pensar, tão seguramente como destrói a capacidade de agir. O
domínio totalitário é novo como forma de governo na medida em que não
se contenta com esse isolamento e destrói também a vida privada. Baseia-se
na solidão, na experiência de não se pertencer ao mundo, que é uma das
mais radicais e desesperadas experiências que o homem pode ter.
O desarraigamento e a superfluidade que atormentam as massas
modernas desde o começo da Revolução Industrial,43 tornaram-se cruciais
com o surgimento do imperialismo no fim do século passado e com o
colapso das instituições políticas e tradições sociais do nosso tempo. Na
verdade, as massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada, cuja
estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram

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controladas, apenas, quando se pertencia a uma classe. A principal
característica do homem de massa não é a brutalidade nem a rudeza, mas
seu isolamento e a sua falta de relações sociais normais.44 Os movimentos
totalitários são organizações maciças de indivíduos atomizados e isolados,
distinguem-se dos outros partidos e movimentos pela exigência de lealdade
total, irrestrita, incondicional e inalterável de cada membro individual. Não
se pode esperar essa lealdade a não ser de seres humanos completamente
isolados que, desprovidos de outros laços sociais de família, de amizade e
de camaradagem, só adquirem o sentido de terem lugar neste mundo
quando participam de um movimento, pertencem ao partido.
Não ter raízes significa não ter no mundo um lugar reconhecido e
garantido pelos outros; ser supérfluo significa não pertencer ao mundo de
forma alguma. O desarraigamento pode ser a condição preliminar da
superfluidade, tal como o isolamento é a condição preliminar da solidão. A
solidão, para Hannah Arendt, é, em sua essência (sem atentar para as suas
recentes causas históricas e o seu novo papel na política), ao mesmo tempo,
contrária às necessidades básicas da condição humana e uma das condições
fundamentais de toda vida humana.45 A solidão passou a ser, em nosso
século, a experiência diária das massas cada vez maiores, o que nos ameaça
nas condições em que vivemos hoje no terreno da política. Tal como o
medo e a impotência que vêm do medo são princípios antipolíticos e levam
os homens a uma ação contrária a uma ação política, também a solidão e a
dedução mecânica da lógica ideológica representam uma situação
antissocial e contêm um princípio que pode destruir toda forma de vida
humana em comum.46
O que as ideologias totalitárias visam não é a transformação do mundo
exterior ou a transmutação revolucionária da sociedade, mas a
transformação da própria natureza humana. Para Arendt, o totalitarismo é,
no fundo, o mundo invertido enquanto proclama a destruição de toda ação,
enquanto é inauguração. Monopolização do poder, isolamento de um
individuo totalmente abarcado e privado de ação, amnésia, clandestinidade,
destruição de toda faculdade de julgamento, delírio lógico, vontade de
transformar a natureza humana: eis as características da inversão dos
valores efetuadas pelo universo totalitário onde tudo é possível e nada é
verdadeiro.
É a partir de um movimento que abafa a ação em sua origem e torna os
homens supérfluos que é necessário repensar o político precisamente como

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um antídoto a uma dominação que, rompendo as referências tradicionais
(esquerda-direita, capitalismo-socialismo) impõe um novo critério: a
liberdade.
A questão do totalitarismo é o pano de fundo do pensamento político de
Hannah Arendt. De uma certa maneira, o totalitarismo marca tudo e dá
relevo ao político arendtiano: à obturação radical de uma dominação total,
ela opõe um esquema normativo sem governantes nem governados onde é
reconhecido a cada um o direito de agir, julgar, decidir em comum; ao fluxo
totalitário que desenraíza e arrasa, ela responde por uma reflexão centrada
na estabilidade da lei que rege o poder, e na autoridade como memória
própria a fixar o político na permanência de um mundo diferenciado.
Quando o totalitarismo se remete a uma lógica inflexível, sempre inclinada
a resolver os acontecimentos dentro de uma ordem superior, ela confia no
visível, na opinião e no julgamento que somente permitem enfrentar o
desabamento da tradição.
Segundo Châtelet,47 no amplo quadro de pesquisa sobre o totalitarismo,
Hannah Arendt ultrapassa o espaço crítico do liberalismo, do qual ela
partilha as principais perspectivas. Isto porque, ao pôr o acento nessa
“banalidade do mal”, que ameaça o século XX, ela opera uma análise
sistemática da massificação. Ao dizer que o súdito ideal do reino totalitário
não é nem o nazista convicto nem o comunista convicto, mas sim o homem
desolado, esse homem moderno cuja condição vem sendo preparada desde a
Revolução Industrial, Hannah Arendt mostra que, nessa condição de
homem de massa, o indivíduo perdeu seu status político, foi desindexado da
história real e destituído como sujeito político. A despolitização o
transformou em átomo anônimo entre os átomos anônimos da massa para
transformá-lo em um “homem qualquer”, sem capacidade política, sem
consciência moral, sem vontade, sem julgamento e, assim, capaz de sofrer e
de fazer banalmente o mal.
É sobre essa condição do homem de massa, ainda na esteira do
totalitarismo, que Hannah Arendt persiste na sua reflexão sobre o mal
totalitário. O mal de que ela trata em Eichmann em Jerusalém não tem
brilho particular. Seus praticantes são os pais de família que Péguy
designava como os aventureiros do século XX.48 Ora, não se encontra
aventura alguma no funcionamento da maquinaria do terror totalitário. É,
precisamente, a ausência de tudo que é aventureiro, até mesmo da tentação,
o que torna particularmente lúgubre esse mundo. Poucos homens foram

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responsáveis por tantas mortes quanto Adolf Eichmann, mas, pela repetição
de clichés abstratos, de lugares comuns os mais banais, o expert dos
transportes do Terceiro Reich testemunha sobretudo a “assustadora, a
indizível, a impensável banalidade do mal”. O mal, essa lição que ensina a
história dos terrores nazistas e stalinistas, não é o fruto de uma
espontaneidade transbordante ou de uma busca apaixonada, cheia de
rupturas e transbordamentos dramáticos, mas aparece, sobretudo, sob os
traços de uma assustadora normalidade. A verdade desconcertante é que
não é necessária a existência de uma maldade particular para que se possa
causar um grande mal. Os crimes totalitários não foram cometidos pelos
perversos, mas pelos indivíduos privados de todo motivo particular e que
são, precisamente por essa razão, capazes de um mal infinito. Nas palavras
de Hannah Arendt:
Não estamos aqui interessados na maldade, com a qual a religião e a literatura tentaram
lidar, mas com o mal; não com o pecado e com os grandes vilões, que se tornaram herois
na literatura e normalmente agiram por inveja ou ressentimento, mas com este todo-
mundo que não é perverso, que não tem motivos especiais, e justamente por isso é capaz
de um mal infinito; ao contrário do vilão, ele jamais encontra sua mortal meia-noite.49

O que Hannah Arendt tenta apontar, no seu relato sobre a banalidade do


mal, é que o mal não é fruto do exercício, mas sobretudo do não exercício
da liberdade. O mal, numa escala gigantesca política e social, tem, mais
frequentemente, sua origem na omissão. É nesta concepção arendtiana do
mal que pretendemos apoiar nossa reflexão sobre a banalidade do mal, no
próximo capítulo.

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Capítulo III
A Banalidade do mal: uma
invenção contemporânea
Os homens normais não sabem que tudo é possível.

David Rousset1

A controvérsia
Em carta a Jaspers,2 em 1951, Hannah Arendt diz: “Eu não sei o que é o
mal radical, mas sei que ele tem a ver com este fenômeno: a superfluidade
dos homens enquanto homens.” Essa declaração nos faz pensar em algumas
questões fundamentais acerca desse assunto: primeiro, que ela não deixou
de pensar sobre o mal radical; em suas conclusões,3 no final de Origens do
totalitarismo, essa questão não ficou encerrada, mas, ao contrário,
continuou presente e na pauta de suas preocupações. Em segundo lugar, que
ela não recusa o conceito kantiano de mal radical, como pode revelar uma
análise superficial dessa mesma conclusão, mas ainda o toma como ponto
de partida para pensar o fenômeno do mal. Ao mesmo tempo, com essa
afirmação feita a Jaspers, a autora nos indica a mudança que vai se operar
em sua concepção de mal radical, prenunciando, mesmo de forma
embrionária, seu conceito de banalidade de mal que apareceu dez anos
depois.
A questão esboçada por ela, em Origens do totalitarismo (1951), é
retomada em Eichmann em Jerusalém (1963). Em 1961, Hannah Arendt vai
a Jerusalém a fim de assistir ao processo Eichmann como correspondente
do jornal New Yorker. Retomados no livro Eichmann em Jerusalém, seus
artigos vão desencadear uma tempestade polêmica que contribuirá para a
celebridade da autora, mas não para a compreensão de seu pensamento.
Acusada de pisar em tumbas ainda frescas – por ter posto em causa a
atitude dos conselhos judeus face ao nazismo – ela suspeita de
cumplicidade desses com o carrasco, ao pintar o retrato de um Eichmann

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em nada sádico, somente caracterizado por uma terrificante
“superficialidade”. Por isso, Hannah Arendt foi posta no index por grande
parte da comunidade judaica que quis ver nela uma encarnação
contemporânea do “ódio de ser judeu”, teorizado por Lessing.4
Antes mesmo de abordar os temas essenciais do livro Eichmann em
Jerusalém, é necessário evidenciar a controvérsia que ele suscitou,
principalmente entre alguns setores da comunidade judaica. Essa
controvérsia é significativa para a discussão que aqui faremos, na medida
em que revela a extensão das questões morais levantadas por Hannah
Arendt no livro. Essa discussão durou aproximadamente três anos, desde
sua publicação e continua episodicamente até hoje, enquanto que o livro,
até 1982, nos E.E.U.U., já se encontrava na vigésima edição. Quase todos
os livros que tratam do holocausto, desde 1963, referem-se explícita ou
implicitamente a essa controvérsia e às violentas paixões que ela suscitou.5
Por que as mesmas pessoas que receberam tão bem Origens do
totalitarismo foram tão refratárias em relação a Eichmann em Jerusalém? O
que suscita tantas reações? E qual o seu significado?
A análise dessas questões nos possibilita a compreensão da mudança
decisiva que se opera, durante esse período, no conceito arendtiano de mal e
a radicalidade de suas implicações teóricas e políticas. Por outro lado, essa
polêmica oculta a forma com que Eichmann em Jerusalém estabelece
conexões com Origens do totalitarismo, extraindo daí a lição sobre o crime
funcional e os “massacres administrativos”. Hannah Arendt se encontrava
empenhada, de um lado, no problema dos vestígios do totalitarismo e, de
outro, na sua pesquisa histórica que culminou com as “considerações
morais” que inspiraram A vida do espírito. Um dos pontos de partida de sua
reflexão, que se estendeu por 30 anos, a partir de 1945, foi a constatação da
facilidade com que um povo, na sua grande maioria, cedeu ao apelo do
carrasco.
Em entrevista televisada concedida a Thilo Koch,6 Hannah Arendt
comenta que a controvérsia suscitada por seu livro, infelizmente, gira, em
grande parte, em torno de fatos e não de teses e opiniões; fatos que,
segundo ela, foram disfarçados em teorias a fim de lhes tirar seu caráter de
fatos. Para ela, podemos escapar a essa realidade fatual de muitas maneiras
diferentes: seja negando-a, seja de maneira reativa, ao fazer confissões de
culpabilidade patéticas que não levam a nada e onde tudo que é específico é
destruído; pode-se escapar, igualmente, invocando uma responsabilidade

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coletiva do povo alemão, ou, ainda, afirmando que o que se passou em
Auschwitz não foi apenas a consequência do ódio imemorial aos judeus, o
maior pogrom de todos os tempos. Os fatos, para ela, por mais horríveis que
sejam, devem ser preservados não só para garantirmos sua memória, mas
também para que possamos julgá-los. O preservar e o julgar não justificam
o passado, mas revelam sua significação. Hannah Arendt se persuadiu de
que sua cura posteriori (expressão usada por ela para se referir ao efeito
que lhe trouxe a experiência de ter escrito Eichmann em Jerusalém) lhe
havia ensinado o valor do julgamento e a reconciliação que o ato de julgar
opera.
Mas qual foi o ponto nevrálgico, tocado por Hannah Arendt, que
deflagrou essa controvérsia? Quais foram os fatos relatados que tiveram o
poder de mobilizar tamanha crítica? E quais os principais argumentos para
as acusações feitas ao livro e, até mesmo, para as acusações de cunho
pessoal? Quais setores da comunidade judaica se sentiram agredidos pelo
livro? Essas são algumas questões colocadas para tentarmos a compreensão
dessa controvérsia.
As páginas incriminadas tratam da estranha docilidade com a qual os
conselhos judaicos (Judenräte) cooperaram com as autoridades nazistas,
participando indiretamente do extermínio de seu próprio povo. Hannah
Arendt resume suas próprias conclusões em algumas linhas:
Onde quer que vivessem judeus, havia líderes judaicos reconhecidos, e essa liderança,
quase sem exceção, cooperava de uma maneira ou outra, por uma razão ou outra, com os
nazistas. De fato, a verdade é que se o povo judeu tivesse estado realmente desorganizado
e sem líder, teria havido o caos e muita miséria, porém o número total de vítimas mal teria
chegado de quatro e meio a seis milhões de pessoas.7

Durante o interrogatório de Eichmann ficou claro que os nazistas


encaravam essa cooperação como a pedra angular da sua política judaica, o
que evidencia a afirmação de Hannah Arendt e de outros historiadores8 nos
quais ela se apoia. O sucesso da política nazista não teria sido possível sem
a ascensão de um sistema totalitário e a conjunção da passividade e da
colaboração das vítimas. É necessário acrescentar, também que, de um
ponto a outro da Europa, a atitude das pessoas não foi idêntica.9 Esta
questão da colaboração (que Primo Levi chama de “zona cinzenta”),10
qualquer que seja ela, entre as vítimas, os prisioneiros e os próprios

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conselhos judeus, constitui um fenômeno de importância fundamental para
os historiadores, psicólogos e sociólogos.
A crítica que Hannah Arendt faz aos conselhos judeus trata do seu
comportamento antes da primeira etapa, ou seja, antes que o regime nazista
do terror se tornasse total, quando, em alguns casos pelo menos, uma recusa
de cooperação poderia ter livrado algumas pessoas da hecatombe. Ela não
cobrou uma resistência ou uma recusa à cooperação quando isto era
impossível, pois sabia muito bem o que era possível e o que não era, em
cada etapa. Esses fatos, portanto, não trazem nada de novo, mas foi, sem
dúvida, a apreciação que ela fez dos mesmos que provocou o escândalo.
Não que ela tenha sido categórica ao afirmar sobre os resultados de uma
possível não cooperação, ou de uma desorganização, mas isso é uma
questão que “(…) merece ser retomada, embora não se possa decidir sobre
ela desde que esteja situado no terreno do que os anglo-saxãos chamam a
‘history if’, indefinidamente aberta à argumentação”.11
O ponto mais nevrálgico do livro, que desencadeou mais reações foi, sem
dúvida, a crítica a Leo Baeck, o grande rabino de Berlim, em 1932, e à sua
postura. Segundo Margareth Young-Bruehl,12 aqui Hannah Arendt mistura
o melhor e o pior do seu livro. A crítica a Leo Baeck condensa os aspectos
mais ásperos da polêmica. O grande rabino Leo Baeck tinha sido o chefe
dos judeus berlinenses, presidia o Reichsvereinigung, controlado pelos
nazistas, instância que tinha sucedido ao Reichsvertretung sob controle
exclusivamente judeu, dissolvido em 1939. Os liberais admiravam-no sem
reservas, e Hannah Arendt admirava-o dentro de uma certa medida.
Apoiando-se nas testemunhas do processo e no livro de Raul Hilberg, ela
critica as tomadas de posição de Leo Baeck, quando silenciou informações
a respeito de Auschwitz ao se recusar a fugir, tendo ocasiões para isso,
alegando não poder abandonar seu povo.
Ela critica também a conduta de Baeck durante seus últimos meses em
Berlim, quando negociou com a Gestapo constituindo ele mesmo uma
polícia judia, encarregada de ajudar na deportação de judeus. Isso fica claro
ao afirmar: “Leo Baeck, erudito, de boas maneiras, muito educado, o qual
acreditava que os policiais judeus seriam ‘mais gentis e prestativos’ e
tornariam ‘essa prova tão penosa, mais fácil’ (enquanto na realidade eles
foram os mais brutais).”13 Ela acusa um homem que foi, muitas vezes,
qualificado de “santo”, de ser o “Führer judeu” (expressão usada por Dieter
Wisliceny, o assessor de Eichmann). Young-Bruehl14 fala que, nesse caso, a

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forma de ironia usada por Hannah Arendt não ajudou a esclarecer a
denúncia e, além disso, apesar de ela ter exposto um verdadeiro problema
moral desencorajava a argumentação.
Outro ponto crucial da controvérsia foi a imagem que Hannah Arendt
traça de Eichmann, desfazendo uma imagem bem estabelecida. Ela jamais
recorreu ao recurso das categorias confortáveis de monstro e de mártir,
como também não pactuou com as teorias da culpabilidade ou da inocência
coletivas. À procura de seu próprio julgamento, ela não evitou os
julgamentos difíceis e foi o que ela fez, desde o instante em que viu
Eichmann “em carne e osso”, no tribunal de Jerusalém. Acreditava que esse
julgamento era bem verificável e que ela tinha a responsabilidade de dizer
aquilo que não havia sido dito: seu tom revelava sua própria cólera diante
do que lhe parecia ser uma dissimulação.
De saída duas teses gêmeas, mas contrárias, são rejeitadas por Hannah
Arendt, em relação ao processo: uma oficial (Adenauer), de uma
cumplicidade limitada a raros responsáveis, e outra, amplamente divulgada,
da culpabilidade coletiva.15 Se essa última tese é admitida – a que culpa um
povo em bloco – ninguém se sente realmente culpado. Porque, diluídos nas
entidades coletivas, os crimes reais tornam-se descaracterizados enquanto,
de fato, um abismo separa os atos reais dos crimes potenciais que todos
poderiam ter cometido. Recusando minimizar a responsabilidade alemã,
Hannah Arendt se prende à “mentira”, à denegação que a Alemanha pós-
totalitária oferece do espetáculo, a que ela atribui “uma recusa
semiconsciente ou uma autêntica incapacidade de nada ressentir”, traço
deixado pela mentalidade totalitária que pulveriza a realidade e engendra o
cinismo e a incredulidade.
Num artigo intitulado “A Responsabilidade Coletiva”,16 ela estabelece a
distinção bem nítida entre culpabilidade e responsabilidade. Essa discussão
vai desaguar na questão mais ampla sobre ética, moral e direito, levando-a a
concluir que a única atividade que parece corresponder às proposições
morais seculares e validá-las é o pensamento, que pode ser definido,
segundo Platão, no sentido mais geral e menos especializado do termo,
como um diálogo silencioso de mim comigo mesmo. Em que medida essa
faculdade de pensar, que se exerce na solidão, se estende à esfera puramente
política,17 na qual eu estou sempre com o outro? Essa é outra questão.
Várias instituições judaicas, como o Conselho dos Judeus da Alemanha,
a Liga Antidifamação da B’nai B’rith, e vários representantes da imprensa

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judia americana, como J. Robinson, para citar os mais importantes,
decretaram verdadeira guerra a Hannah Arendt e acusaram-na de lançar
ideias difamatórias sobre o povo judeu. A Liga Antidifamação da B’nai
B’rith se pôs em guarda contra a ideia, de Hannah Arendt, considerada
difamatória, de uma “participação judia no holocausto nazista”, ressaltando
que “não há nenhuma dúvida de que os antissemitas utilizaram o texto de
Arendt como prova de que os judeus não são menos culpados que os outros
quanto ao que aconteceu com seis milhões deles”.18 No livro The Crooked
shall be Made Straigh, (citando a biógrafa Young-Bruehl), J. Robinson
fornece os argumentos mais frequentemente utilizados pela crítica ao
trabalho de Hannah Arendt. Segundo ela, “este foi o front mais duradouro e
o mais complexo de todos desta guerra”.19
Depois de se estender por toda Nova York, das reuniões públicas às
discussões privadas, essa controvérsia culmina com o acontecimento mais
espetacular: o procurador israelense do processo Eichmann, Gideon
Hausner, em sua estada em Nova York para um encontro dos sobreviventes
de Bergen Belsen, declara sua intenção de “responder à bizarra defesa de
Eichmann que Arendt havia feito”.20 Diante de uma assistência de quase
mil pessoas, ao lado de Nahum Goldmann, presidente do Congresso Judeu
Mundial, Gideon declara que Hannah Arendt havia acusado os judeus
europeus de terem se deixado massacrar pelos nazistas e de terem dado
prova de “covardia e ausência de vontade de resistência”.21
Hannah Arendt recusa-se a engajar na controvérsia pública e não
responde aos seus detratores, limitando-se apenas a responder às críticas de
amigos e antigos colaboradores e companheiros. Ao ser aconselhada por um
amigo22 (que veio diretamente de Israel para isso) a interromper a
publicação de seu livro, ela se recusa, mostrando que as críticas dos judeus
podiam fazer de seu livro uma cause célebre, provocando assim mais
erradamente a comunidade judia do que tudo o que ela poderia dizer por si
mesma. Para ela, ficou claro que esse livro, mesmo antes de sua publicação,
se tornou tanto o centro de uma controvérsia quanto o objeto de uma
campanha organizada. Mas tal campanha, levada a efeito com todos os
aperfeiçoados meios criadores-de-imagens e manipuladores-de-opinião,
chamou muito mais a atenção do que a controvérsia, de maneira que esta
última foi engolida e suplantada pelo ruído artificial da primeira. No meio
de tantas críticas inconsistentes, poucas de um nível à altura da dignidade
do assunto suscitaram a necessidade de uma resposta pública, como foi o

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caso da crítica de Gershom Scholem. Depois de tanto elogiar Origens do
totalitarismo, ele se chocou, mais do que com o conteúdo, com o tom de
Hannah Arendt, conforme se vê nas seguintes palavras: “O que eu reprovo
em seu livro é sua insensibilidade e sua falta de herzentakt (tato de
coração).”
Ele acusa Hannah Arendt de não ter Ahabat Israel, amor ao povo judeu.
Ao que ela responde, em carta, afirmando que “o mal feito pelo meu
próprio povo me afeta evidentemente mais que o mal feito por outros
povos”, denunciando a campanha de calúnias lançada pelo “establishment
judeu de Israel e da América”.23
Eichmann em Jerusalém parece ter revelado também um conflito de
geração no seio da comunidade judaica. Este conflito se manifesta
publicamente quando Norman Fruchter divulga “O Eichmann de Arendt e a
Identidade Judaica” em Studies on the Left. Fruchter é o porta-voz dos
jovens judeus radicais que compartilham do pensamento de Hannah Arendt
e encontram, em seu livro, ao mesmo tempo, uma revolta “contra o mito da
vítima”, o qual os judeus tendiam a substituir por sua própria história e uma
análise da “responsabilidade de cidadão necessária dentro de todo o Estado
moderno para prevenir a reaparição de um movimento totalitário análogo
àquele que assolou a Alemanha”.24 No momento em que se escreveram
essas linhas, as comparações entre a Alemanha dos anos de 1930 e os
E.E.U.U. dos anos de 1960 se tornaram correntes nas análises da New Left.
Outros intelectuais fizeram este mesmo paralelo; nesse contexto,
Eichmann se tornou um símbolo. Como tantos militares burocratas
americanos, ele aparece como um homem cujo engajamento ideológico era
muito limitado. No momento em que os Estados Unidos estavam em guerra
com o Vietnã, este símbolo representava todos os homens que organizavam
aquela guerra; aqueles que estudavam os mapas, aqueles que davam as
ordens, aqueles que apertavam os botões e aqueles que contavam os mortos,
como MacNamara, Rusk, Goldberg e o Presidente Jonhson. Eles não eram
moralmente monstruosos, eram todos pessoas honradas. Eles eram todos
“liberais”.
Havia um fosso profundo que separava os jovens judeus radicais e a
geração daqueles que haviam sido marxistas nos anos de 1930 e depois
antimarxistas nos anos de 1950. Esses jovens estavam em desacordo, tanto
com a política seguida pelo Estado de Israel e a sustentação que lhes dava a

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comunidade judaica americana quanto com a evolução da sociedade
americana e seu estado atual.
Por outro lado, os sionistas acusavam Hannah Arendt de antissionista e
esta última facção procurava aliciá-la. Na verdade, ela não compartilhava as
posições de nenhuma dessas facções, pois, por princípio, ela não era hostil
ao Estado de Israel, mas se colocava contra certos aspectos importantes da
política desse Estado. Ela fazia uma crítica ao sionismo, própria de quem
tem “um ideal internacional mais amplo”.
A despeito das acusações injustas e, muitas vezes, ofensivas, essa
controvérsia, além de sua importância como debate político, trouxe a
Hannah Arendt uma grande contribuição. Na intimidade, ela admitiu,
francamente, que seu livro tinha implicações morais que ela não tinha
imaginado. “Foi de uma certa maneira para mim uma cura posteriori
escrever (esse livro); mas o fazendo, eu efetivamente ‘lancei as bases de
uma nova moral política’. Embora isso seja inteiramente exato, não me é
jamais permitido dizê-lo, por modéstia.”25
No esforço de responder a seus detratores, ela despertou, de fato, para a
importância das implicações que suas questões haviam levantado. A partir
de então, essas questões passam a sustentar toda a sua reflexão sobre a
“moral política”, servindo-lhe de fio condutor.

O caso Eichmann
Hannah Arendt diz que o livro sobre Eichmann não contém nenhuma
tese, mas é “(…) um comentário de um processo e não a exposição desta
história” e “(…) um comentário que se limita a expor todos os fatos que
estavam em questão na corte do processo em Jerusalém”.26 E ainda sobre a
controvérsia suscitada por esse livro, ela diz que “(…) gira em grande parte
em torno de fatos e não em torno de teses e opiniões – em torno de fatos
que foram transformados em teoria a fim de lhes tirar o seu caráter de
fatos.”27 Esse livro não é um ensaio nem tem uma motivação teórica
primordial; trata-se, em princípio, de um relato sobre um julgamento.
Em Eichmann em Jerusalém os debates se polarizam em torno de três
questões principais: o retrato que Hannah Arendt fez de Eichmann, como
um indivíduo banal; as notas dela sobre os conselhos judeus europeus e o
papel desses conselhos na solução final nazista; e as discussões, sobretudo
no primeiro e no último capítulos, sobre a condução do processo, as

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questões jurídicas que esse levantou e os interesses políticos que foram
postos em jogo.
O livro trata, inicialmente, da descrição do tribunal, do acusado, de seu
cargo e atribuições; a seguir faz uma descrição do contexto histórico e
político onde se passaram os acontecimentos dos quais fizeram parte os atos
do acusado. Nessa descrição, Hannah Arendt se apoia no esquema seguido
pelo historiador Raul Hilberg,28 sua principal fonte de referências. No
epílogo e no pós-escrito, ela discute criticamente as principais questões
jurídicas levantadas por esse julgamento.
Hannah Arendt começa sua reportagem pela descrição da corte do
tribunal de Jerusalém onde Eichmann foi julgado e opõe aqueles que
serviam a justiça àqueles que serviam a Ben Gurion e ao Estado de Israel.
Os primeiros eram os juízes, os segundos, o procurador Hausner e sua
equipe. Ela procura mostrar como Ben Gurion e o Estado de Israel tentam
usar o processo como uma arma de propaganda, transformando-o em
espetáculo. Por muito tempo, ela tinha criticado os esforços dispensados
tanto pelos judeus quanto pelos não judeus de substituir a psicologia pela
política e sublinha os perigos dessa atitude. Ela se mostra menos crítica do
que poderia ter sido em relação às circunstâncias exteriores que envolveram
o processo e não esclarece que a retórica efetiva mascara um outro motivo
israelense, não público.29 Os leitores judeus ficaram particularmente
chocados com o início do livro, que foi uma carga bastante crítica contra
um dos dirigentes de Israel, dos mais considerados.
Hannah Arendt, ao contrário da posição oficial do Estado de Israel, vê no
processo Eichmann um procedimento que ocorre no interesse da justiça e
do direito, uma questão jurídica na sua simplicidade e profundeza. Isso que
lhe permite, de um lado, evitar o engano de julgar Eichmann uma vítima,
bode expiatório de um regime; e de outro, enfrentar as questões jurídicas do
genocídio, da soberania estatal, da responsabilidade funcional, diante dos
atos concretos de um homem. Nas próprias palavras de Hannah Arendt:
Comparado com esses debates que tanto se estenderam, o livro em si relaciona-se com um
assunto penosamente limitado. O relatório de um julgamento só pode discutir a matéria
que foi tratada no interesse da justiça. Este livro então não se relaciona com a história do
maior infortúnio que jamais caiu sobre o povo judeu, nem tampouco é a narrativa do
totalitarismo ou a história do povo alemão, na época do Terceiro Reich. Finalizando, não
é, também, um tratado sobre a natureza do mal.30

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Também sua postura difere da oficial. Numa forma límpida e isenta, ela
parece refrear sua própria passionalidade ao relatar, com firmeza e
profundidade, como se portaram os líderes judeus e o acusado Adolf
Eichmann, nas tentativas de administrar “bem” as deportações e os
massacres. Aliás, é esta sua postura diante do tema, sua compreensão do
julgamento como o juízo sobre o comportamento de um ser humano, o que
nos permite entender o subtítulo do livro: sobre a banalidade do mal.
O tema nuclear do livro é o julgamento. O processo Eichmann ressaltou a
questão do julgamento, ao mesmo tempo na sua relação com o domínio
público da ação com o pensamento propriamente dito. Este segundo aspecto
é o que veremos especificamente no Capítulo IV. “No ponto central desta
obra está um processo judicial, e nele, um ser de carne e osso, uma pessoa
como outra qualquer, ela e sua circunstância, como diria Ortega y
Gasset”.31 E é claro que, por conta desta “circunstância”, todo o contexto se
torna relevante: o aparelho de dominação burocrática, a ideologia
antissemita, a guerra, a responsabilidade dos estados e dos povos. Mas tudo
isto é, para Hannah Arendt, analisado como circunstância. Ela recusa a
assumir a postura do próprio Estado de Israel que, de certo modo, quis fazer
de Eichmann um acusado-símbolo e, do seu processo, o cenário de um
espetáculo por onde desfilariam, de uma só vez, os piores e os mais
representativos espécimes do totalitarismo nazista. Para ela:
Se o réu for tomado como um símbolo e o julgamento como um pretexto para trazer à tona
assuntos que são, aparentemente, mais interessantes do que a culpa ou inocência de uma
pessoa, então a consistência exige que nos inclinemos diante da afirmativa feita por
Eichmann e seu advogado: que ele foi trazido à cena porque era necessária uma válvula de
escape, não só para a República Federal Alemã, como também para os acontecimentos
como um todo e, para aquilo que os tornou possível – isso é, para o antissemitismo e o
governo totalitário, como para a raça humana e o pecado original.32

Para Hannah Arendt, não há dúvida de que o réu e a natureza de seus


atos, assim como o próprio julgamento, despertam problemas de natureza
geral, que vão muito além dos assuntos considerados em Jerusalém. Mas
nos processos de julgamento e, consequentemente, no seu relatório, tudo
aquilo com o qual o réu não entrou em contato ou que não o influenciou,
habitualmente, deve ser omitido; por isso ela mantém a posição de que este
julgamento deveria se realizar nos interesses da justiça e nada mais.
Sob o aspecto jurídico, o julgamento levantou questões importantes a
serem discutidas, as quais o processo deixou sem resposta plena questões

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que ficaram à sombra, como, por exemplo: qual a responsabilidade do
cidadão por atos cometidos nos quadros da licitude de um Estado soberano
e reconhecido pelos demais? Julgar, condenar, absolver a alguém, em nome
de que parâmetros?
Segundo Errera,33 trata-se de um processo inacabado, exatamente porque
o julgamento, apesar das inumeráveis sessões, não respondeu às questões
fundamentais e nem mesmo as patenteou; por isso, o processo deixa um
sentimento de incompletude e de profunda insatisfação. O autor discute as
questões fundamentais sobre os aspectos jurídicos, históricos e políticos
levantados pelo processo e conclui que nem a acusação, nem os juízes
foram além da acusação do homem Eichmann – acusado de um crime
determinado – e este homem era importante na medida em que ele
remontava ao sistema totalitário, sendo dele um mediador indispensável.
Não se esclareceu como funcionava tal sistema; se, por exemplo, as ordens
recebidas pelos executantes eram bastante precisas quanto ao que tinham de
fazer. Desde que o processo tinha um fim pedagógico, este não foi atingido.
Para Hannah Arendt esse processo foi marcado pela omissão, porque
deixou sem esclarecimentos questões sobre a passividade, a ausência de
resistência e a dolorosa passagem da “colaboração” dos conselheiros
judeus. O processo calou-se particularmente no ponto da colaboração
judaica, e somente Hannah Arendt revela essa omissão voluntária,
criticando-a. Para ela, a reação de horror não é suficiente, e o silêncio
desonra. Por isso deve-se perguntar: não é possível se compreender agora o
que passou, notadamente à luz da história? Ao praticarem a fuga no
silêncio, os juízes de Jerusalém perderam a ocasião única, senão a última,
ao menos a mais importante, de esclarecer a significação dos fatos, até
então conhecidos só por uma minoria. Os juízes se recusaram a se tornar
historiadores, quando omitiram questões sobre a colaboração das vítimas e
sobre a resistência.
Conforme Errera, deve-se perguntar se um tribunal internacional não
estaria mais bem equipado para dar uma plena significação a esse
acontecimento. Pois se é legítimo, em teoria, preferir a universalidade à
particularidade, lastima-se que a evolução do direito internacional não seja
feita ao ritmo da história contemporânea e que um fenômeno, radicalmente
novo, tal qual o genocídio, não tenha suscitado, até hoje, a aparição de
conceitos e de instituições jurídicas que o fazem objeto de um consenso.
Para o autor, parece adequada a explicação segundo a qual os limites

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políticos e jurídicos, atribuídos às instituições judiciárias nos regimes
liberais, tornam muito difícil o êxito total dos processos políticos, na
medida em que se atribui a esses, como fim, além da condenação ou
eliminação dos acusados, um conteúdo pedagógico determinado. Os juízes
dos Estados liberais tendem a jamais satisfazer plenamente aqueles que
acreditam que a justiça possui fins didáticos, isto é, políticos, ao julgar os
processos próprios dos regimes totalitários. Neste sentido, o fracasso do
processo de Jerusalém já está inscrito nos seus princípios.
Na visão de Bruno Bettelheim,34 a obra Eichmann em Jerusalém trata da
incongruência, porque há uma impossibilidade de se julgar o totalitarismo
através de nosso sistema de pensamento, incluindo o sistema legal:
primeiramente, por ser Eichmann um homem “normal”. Foi o que seis
psiquiatras atestaram sobre ele. Um deles espantou-se como seu
comportamento com a família, amigos, irmãos era não somente “normal”
mas também “desejável”. E o pastor que o visitava na prisão relatava que
ele era “um homem com muitas ideias positivas”.
Obviamente, nossos padrões de normalidade não se aplicam a sociedades
totalitárias. É uma incongruência, também, o assassinato de milhões, e um
só homem ser acusado disso tudo. É óbvio que nenhum homem pode
exterminar milhões de outras pessoas. A incongruência está entre os
horrores relatados e esse homem no banco dos réus, pois o que ele fez,
essencialmente, foi escrever memorandos, dar ordens e permanecer por trás
de uma mesa. É esta a incongruência entre nossa concepção de vida e a
burocracia do Estado totalitário.
Em segundo lugar, é uma incongruência entre a imagem de homem que
nós temos, originada do pensamento renascentista e das doutrinas liberais
do século XVIII e as realidades da existência humana no meio de nossa
atual revolução tecnológica. Neste contexto, Eichmann não pode ser
considerado um homem em sua maldade, mas um instrumento de destruição
de milhões. Tudo o que ele e outros fizeram pareceu-lhes perfeitamente
legal; tudo estava de acordo com o quadro de referência do Estado
totalitário. O termo “assassino” não serve para eles, porque diz respeito à
orientação humana. Bettelheim, assim como Hannah Arendt, não se satisfaz
em ver a personalidade de Eichmann como um fenômeno único, mas devota
atenção igual ao sistema, pois para ambos muitas das características do III
Reich são inerentes ao totalitarismo moderno. Bettelheim finaliza
afirmando que a incongruência desse julgamento consiste no fato de nossas

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leis existentes serem incongruentes para lidar com o totalitarismo, e como
nós também somos despreparados, como indivíduos, para enfrentarmos este
desafio. A dificuldade que a maioria das pessoas vivencia em pensar sobre
o processo Eichmann diz respeito a “fazer a punição adaptar ao crime”, pois
não há pena compatível com o crime de Eichmann. A desproporção
existente entre o autor do crime e a ação é um fato inquietante da história
contemporânea – um efeito da tecnologia avançada, como a automação.
Fica evidente, então, que Hannah Arendt se recusa a ocupar um lugar
comum, tanto na sua visão do que possa ser um julgamento quanto na
postura e análise desse julgamento a que estamos nos referindo. Para ela, a
corte vacilou entre julgar um homem e julgar a história. O que estava em
julgamento ultrapassava a responsabilidade individual. Eles julgaram
Eichmann como um destruidor especial; um monstro, um antissemita
especial, e não o sistema nazista. Nenhuma corte do mundo pode julgar
uma ideia (antissemitismo) nem a história do antissemitismo. Para
Bettelheim, assim como para Hannah Arendt, este não foi o último capítulo
do antissemitismo, mas, principalmente, o primeiro capítulo do
totalitarismo moderno, e por isso seria necessário que Eichmann fosse
julgado em um tribunal internacional. Pode-se pensar, pois, que a real
monstruosidade dos acontecimentos fica “atenuada” diante de um tribunal
que representa apenas uma nação.
Jean-Claude Eslin comenta a respeito do método de Hannah Arendt nesse
julgamento:
O caráter fora do comum, perigoso, do seu método brilha quando ela trata do caso
Eichmann, em que ela não foi compreendida. Eis uma judia que comenta o processo
Eichmann como se comentasse qualquer outro processo, e o trata como um caso de crime
contra a humanidade, sem pathos, sem indulgência, como pareceu aos judeus (…).35

O autor nos convida a compreender e admirar o rigor que ela usa para
distinguir os conceitos, mostrando como esse rigor é, para ela, um ato de fé.
À luz da razão não se consegue analisar os crimes humanos mais
incompreensíveis. Uma tal precisão jurídica vale mais que o pathos, a
piedade e, sobretudo, a imprecisão perigosa, pois “aquilo que é sem
precedente, uma vez surgido, pode se tornar um precedente para o
futuro”.36 Ela explica que o povo judeu não pode crer em si mesmo; ou bem
crê em Deus, se isto é possível, ou bem crê em uma lei, mas uma lei que
valha para todos. Uma lei que valha para a humanidade.

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Para Eslin, a conclusão do livro Eichmann em Jerusalém ressalta a recusa
da confusão entre afetividade e razão. Por outro lado, para Hannah Arendt,
a afetividade deve ser usada na relação com as pessoas; e o rigor jurídico,
na discriminação dos conceitos. Esta confusão de domínios obscurece o
sentido da responsabilidade individual. A glória de Deus e o amor ao povo
– mais do que a mística ou o fervor – se atestam, nestes tempos, pela
precisão conceitual e pela vontade de uma linguagem clara.
Segundo Enegrén,37 Hannah Arendt, a despeito de sua preocupação ética,
é uma autora que recusou toda “política do coração”, pois para ela “a
bondade absoluta é apenas menos perigosa que o mal absoluto”. Ela
denuncia a virtude que, estimulada por um amor paranoico pela
humanidade, cede à “furiosa tentação de ser bom”. Criticando a compaixão,
ela vê nessa paixão uma insistência na desigualdade, sugerindo que cada
um é, ou deveria ser, mais do que conseguiu fazer ou realizar; enquanto a
justiça exige a igualdade de todos. A compaixão é a face pública de um
humanitarismo que, voltado para o interior, se torna um sentimentalismo.
Por este gênero de introversão, Hannah Arendt não tinha simpatia alguma;
ela admirava, tanto quanto outra virtude, a que consiste em não se apiedar
de si mesmo. Hannah Arendt representou uma crítica dura aos escritores
que falam de “deformação psicológica, de tortura social, de frustração
pessoal e de desilusão generalizada”, os quais não eram mesmo nem dignos
do título de niilistas. Estes escritores “não foram muito longe – por estarem
muito preocupados com eles mesmos – para verem as verdadeiras questões;
eles se lembraram de tudo e esqueceram o essencial”.38
Para Hannah Arendt esse julgamento escapou à realidade de várias
maneiras, assumindo como argumentos as seguintes teses a respeito do caso
Eichmann: primeiramente vendo-o como um episódio do antigo
antissemitismo, do imemorial ódio aos judeus, o maior pogrom de todos os
tempos, argumento este que já discutimos no Capítulo II. Em segundo
lugar, com a tese de que se trata de uma reflexão universal sobre o homem,
um modelo shakespeareano da maldade na sua grandiosidade mesquinha.
Ela nos leva a reconhecer no acusado um homem banal, sem grandes
motivações ideológicas nem engajamento político, apenas um homem
comum.
Mas, como isso pode ser possível? Como pode um homem comum ser
responsável pelo massacre de milhões de pessoas? É esse espanto que nos
põe a pensar diante do ineditismo da novidade totalitária. No julgamento de

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Eichmann ela nos propõe a pensar os fatos como se estivéssemos frente a
uma novidade: o que aconteceu ao povo judeu não foi um momento de um
processo que começou em 1939, mas o primeiro capítulo do totalitarismo
moderno; diferentemente de Scholem e de todos os que protestaram contra
essa tese da novidade. A propósito, é bom lembrar, mais uma vez, o que
citamos anteriormente: “(…) aquilo que é sem precedente, uma vez surgido,
pode-se tornar um precedente para o futuro.”

O homem Eichmann
Interessa-nos agora tratar, sobretudo, das teses que Hannah Arendt
rejeitou a respeito do homem Eichmann, que possibilitaram a construção da
ideia de uma banalidade do mal.
Para ela, é intolerável tanto a tese de Eichmann como peça da
engrenagem, quanto a da culpa coletiva,39 esta última servindo para
encobrir os verdadeiros culpados como também a ideia de um “Eichmann
no fundo de nós”. É como se cada um, pelo simples fato de ser homem,
encobrisse inelutavelmente um “Eichmann” em si.40
Em sua volta à Alemanha após a guerra, Hannah Arendt espantou-se com
a assustadora indiferença das pessoas, como se nada ou quase nada tivesse
se passado. Para ela, a aceitação destas teses exime o povo alemão da
responsabilidade política. E, por outro lado, a tese oposta, “nós somos todos
culpados”, serve, de muitas formas, para encobrir os verdadeiros culpados;
com estas posições não se pode efetivamente descobrir o crime perpetrado.
É intolerável, para ela, encontrar os bodes expiatórios cujo preço eximiria o
povo alemão da culpa. Este povo deve assumir, de uma vez, de maneira
política, a responsabilidade dos crimes perpetrados em seu nome e pelos
membros de sua nação. Até hoje, somente uma pequena minoria foi capaz
de fazê-lo.41 Essas teses oscilam entre a acusação total e o inocentamento
total; de qualquer forma indicam uma dificuldade em se exercer o
julgamento do caso Eichmann. Na verdade, essas três teses estão
profundamente entrelaçadas e, a nosso ver, fundamentadas em uma outra
que é a do “homem demoníaco”.
Hannah Arendt é incisiva ao tirar de Eichmann seu caráter demoníaco.
Para ela “é justamente este caráter, por assim dizer, demoníaco do Mal, do
qual pode ainda por tal razão lembrar a lenda de Lúcifer, o anjo decaído,
que exerce uma força de atração tão extraordinária sobre os homens”.42 Ela

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relembra aqui os versos de Stefan George no poema “O Culpado”: “Aquele
que jamais considerou no seu irmão o lugar do golpe de punhal/ Quão pobre
é sua vida e fraco o seu pensamento.”43
Hannah Arendt nega a malignidade, quando ela admite que é
precisamente porque os criminosos não são movidos por móveis maus e
assassinos – eles mataram não por matar, mas porque isto fazia parte do
métier – e que isto não é fácil de compreender. Pelo desconforto em
confrontar-se com o absurdo, é mais fácil invocar os demônios (a propósito
desta infelicidade), ou descobrir uma significação histórica sobre ela. Nas
suas próprias palavras:
Eu confesso que é mais fácil ser vítima de um diabo com forma humana ou, no sentido do
procurador da corte do processo Eichmann, de uma lei que existe historicamente desde
Pharaon e Haarmann, que ser a vítima de um princípio metafísico, e mesmo de um
palhaço qualquer que não é nem um louco nem um homem particularmente mau. O que
nenhum de nós chega a superar no passado não é tanto o número de vítimas, mas,
sobretudo, a mesquinharia desse assassinato coletivo sem consciência da culpabilidade e
da mediocridade desprovida de pensamento de seu pretendido ideal.44

Hannah Arendt não foi quem tirou o caráter demoníaco de Eichmann,


mas ele próprio, e com tal obstinação, que a situação chegou ao limite da
mais pura comicidade. Ela leu o interrogatório de polícia de 3.600 páginas e
diz que, de sua parte, ficou efetivamente convencida de que ele era um
palhaço, e mais, que não saberia dizer quantas vezes ela riu, riu às
gargalhadas. Não havia nele nenhuma grandeza satânica, mas simplesmente
uma horrorosa e burguesa banalidade. Estas são exatamente as reações que
as pessoas interpretaram mal, pois é precisamente o tom irônico de Hannah
Arendt que choca. Mas ela assume, de bom grado, sua ironia quando diz
que “quanto a isso não posso fazer nada”,45 pois para ela o tom, nesse caso,
é efetivamente indissociável de sua pessoa.
Segundo Hannah Arendt, o interrogatório policial de Eichmann “constitui
uma verdadeira mina de ouro para um psicólogo – desde que ele seja
suficientemente hábil para perceber que o ‘horrível’ pode ser não apenas
cômico mas também muito divertido”.46 Não é nosso objetivo aqui fazer
uma análise da personalidade do indivíduo Eichmann, apesar de sermos
tentados pela atração que isto exerce e pela quantidade de material
disponível. Porém, é importante marcar alguns traços de sua personalidade,
que são fundamentais para se compreender como o horrível pode estar
associado ao cômico, ou seja, como o mal pode se tornar banal.

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O homem Eichmann era o perfeito instrumento para levar a cabo a
“solução final”: organizado, regular e eficiente tal qual a empreitada de que
ele estava encarregado. Na sua função de encarregado do transporte, ele era
normal e medíocre e, no entanto, perfeitamente adaptado a seu trabalho que
consistia em “fazer as rodas deslizarem suavemente”, no sentido literal e no
figurativo. Sua função era tornar a “solução final”, normal. Com sua
vaidade e exibicionismo e seus clichês pretensiosos, ele era, ao mesmo
tempo, ridículo e ordinário. Eichmann representava o melhor exemplo de
um assassino de massa que era, ao mesmo tempo, um perfeito homem de
família. Chamar alguém de monstro não o torna mais culpado, da mesma
forma que chamá-lo de besta ou demônio. Eichmann não era um monstro,
embora seus atos fossem monstruosos. Sua personalidade destacava-se
unicamente por uma extraordinária superficialidade. Por mais
extraordinários que fossem os atos, neste caso, o agente não era nem
monstruoso, nem demoníaco; a única característica específica que se podia
detectar em seu passado, bem como em seu comportamento, durante o
julgamento e o inquérito policial que o precedeu, afigurava-se como algo
totalmente negativo: não se tratava de estupidez, mas de uma curiosa e
bastante autêntica incapacidade de pensar.
Eichmann não era um insano que odiava os judeus ou adepto fanático do
antissemitismo ou de qualquer outro tipo de doutrinação. Para ele, o
conteúdo da ideologia nazista e sua lógica destrutiva eram menos
importantes que a “família” que ele tinha encontrado no movimento nazista.
Na verdade, segundo mostram suas notas biográficas, sua principal
motivação era a ascensão na carreira; ele era um jovem ambicioso, que
estava farto do seu trabalho de vendedor ambulante. Filiou-se à S.S. por
oferecimento de um amigo do pai. Não conhecia o programa do partido e
nunca leu Mein Kampf. Como ele salientou na corte, “era como ser
engolido pelo partido contra todas as expectativas e sem decisão prévia.
Aconteceu tão rápida e inesperadamente.”47
Na corte, ele deu a impressão de um membro típico da baixa classe
média, e essa impressão foi comprovada em cada sentença que falou ou
escreveu, enquanto esteve na prisão. Ele era, na verdade, o filho déclassé de
uma sólida família de classe média, e essa situação era indicativa da sua
descida no status social. Ele nunca deixou de ser tratado pela elite da S.S.
como pessoa socialmente inferior e nunca conseguia falar de sua mágoa em
relação aos “cavalheiros” da alta classe média, apesar de conseguir mandar

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milhões de pessoas para a morte. Era impressionante o apego de Eichmann
à educação e às regras de bom comportamento, mostrando vergonha e
constrangimento face à lembrança de pequenos deslizes sociais cometidos
no seu passado, o que é um dado inteiramente contraditório no contexto de
seus atos.48
Sobre o que representava para ele o seu novo papel, como membro da
S.S., Hannah Arendt assim comenta:
De uma vida vulgar, sem significado e consequência, o vento o fizera voar para dentro da
História, como ele a compreendia, a saber, um movimento contínuo e no qual, alguém
como ele – um fracasso total aos olhos da sua classe social, da sua família, e daí, até aos
seus próprios olhos – poderia começar do marco zero e ainda fazer uma carreira.49

O que Eichmann almejou até o fim foi o sucesso, o principal estandarte


da “boa sociedade”, como ele bem o sabia. Ele comenta, através de sua
genuína, ilimitada e imoderada admiração por Hitler – o homem que
ascendera “de lanceiro a chanceler do Reich”:
(…) ele pode ter errado em toda linha, mas uma coisa é fora de dúvida: o homem teve
capacidade para abrir seu caminho, de cabo de esquadra do exército alemão a Führer de
um povo de quase oitenta milhões de pessoas. Somente esse sucesso já provara que eu
deveria submeter-me a ele.50

Dentre as características mais chocantes da personalidade de Eichmann


está a sua linguagem. A linguagem administrativa era a única que conhecia,
pois ele era incapaz de pronunciar uma só frase que não fosse um clichê.
Quando conseguia formar uma frase que exercia algum efeito, ele a repetia
até que se transformasse em frase feita. Parece que a fraqueza de Eichmann
por frases bombásticas sem sentido real era anterior ao julgamento em
Jerusalém. Ele jamais se preocupava com qualquer “inconsistência” no que
dizia. Em um exemplo brilhante isto fica claro: em sua mente não havia
contradição entre as seguintes frases: “Eu pularei, rindo, para dentro da
minha cova, se souber que consegui mandar para a morte quatro milhões de
judeus” própria do fim da guerra, e “Eu me enforcarei alegremente, em
público, como advertência para todos os antissemitas desta terra”
pronunciada, posteriormente, na prisão. Frases que, em circunstâncias tão
diferentes, o auxiliaram de igual maneira.51 Para ele, isso era apenas
questão de mudança de humor e, enquanto conseguisse encontrar em sua
memória um chavão para dar as suas respostas, ou mesmo criá-los de

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improviso, ele se sentia satisfeito, mesmo que seu fraseado característico se
tornasse incompatível com o momento. Como vimos, esse horrível dom de
se consolar com clichês não o abandonou, nem mesmo na hora de sua
morte. Não há um exemplo melhor para isso do que a grotesca tolice de
suas últimas palavras antes de ser enforcado: ele começou afirmando que
era um Gottglaubiger (termo nazista para aqueles que romperam com o
cristianismo), para em seguida expressar, à moda comum nazista, que ele
não era cristão e não acreditava na vida após a morte. Então prosseguiu:
“Dentro de pouco tempo, cavalheiros, todos vamos nos encontrar outra vez.
Esse é o destino de todos os homens. Viva a Alemanha, viva a Argentina,
viva a Áustria. Eu não as esquecerei.”52 Ele emitiu clichês próprios de
discurso funerário, esquecendo-se que ali o “eleito” era ele mesmo. Isso
mostra como a banalidade do mal desafia palavra e pensamento.
A grande sensibilidade de Eichmann para captar palavras e chavões,
combinada com sua incapacidade para a fala comum, tornou-se,
naturalmente, um meio ideal para guardar “regras de linguagem” que se
constituíam de mentiras sobre a realidade. A linguagem de Eichmann é o
tipo perfeito do que se pode chamar de “linguagem burocrática”, aquela
cuja função fundamental é criar uma apaziguadora ilusão para os
executantes e para os executados, pois estes últimos nem de longe
entendem o significado dessas palavras.
Refletindo sobre as consequências do uso desse tipo de linguagem, Vidal-
Naquet levanta as seguintes questões:
Quem pode dizer quantas vítimas fizeram as expressões como “tratamento especial” para
designar a morte? Quantos franceses foram tranquilizados sobre os campos soviéticos,
simplesmente porque eles eram chamados “campos de reeducação”; simplesmente porque
eles adequaram as palavras, às simples palavras com aspas?53

Fica claro que é, de fato, um traço essencial do totalitarismo este uso


mistificante da linguagem; sua função é criar e manter o afastamento da
realidade, e ela é criada não só para o uso da polícia, mas passa também a
ser uma linguagem comum imposta a todos.
No decorrer do processo, e através de uma atenção curiosa e análise
aguda do que via e ouvia de Eichmann, Hannah Arendt parece ter chegado
ao ponto nodal de suas observações quando concluiu: “Quanto mais se o
ouvia, mais claro se tornava que sua inabilidade de falar estava intimamente
relacionada com a sua inabilidade de pensar, especialmente de pensar em

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relação ao ponto de vista de outras pessoas.”54 E o que era mais chocante, e
parecia ser uma decorrência dessa incapacidade de pensar, do qual dava
prova este personagem, era a impossibilidade de se comunicar com ele
devido às barreiras que ele mesmo levantava, “(…) não porque mentisse,
mas porque estava ‘fechado’ às palavras e à presença de terceiros e,
portanto, à realidade como tal”.55
Chegamos aqui a um ponto concludente, onde podemos dizer que o
personagem Eichmann, encarnando a “banalidade do mal”, associa
claramente “inconsciência”, “afastamento da realidade” e “obediência”.
“Ele apenas”, segundo Hannah Arendt, “nunca compreendeu o que estava
fazendo”.56 Essa incapacidade de pensar, potencializada pelo afastamento
da realidade, gerava tal inconsciência. Quanto à obediência, o próprio
Eichmann falou de kadavergehorsam57 (obediência dos cadáveres); este
termo já existia antes de Hitler e foi tomado do exército imperial prussiano.
Isto era esperado de todo soldado alemão e considerado uma das suas
principais virtudes. Eichmann não somente escolheu tal flagrante negação
de qualquer coisa humana, mas também impôs isto aos outros. Ele fala que
teria mandado até seu próprio pai à morte, se isso lhe tivesse sido ordenado;
com isso, ele mostrava como estava sujeito às ordens e pronto a obedecê-
las, mas também evidenciava que espécie de “idealista” sempre fora. Para
ele, o perfeito “idealista”, como todo mundo, tinha sentimentos e emoções
pessoais, mas ele nunca permitiria que elas interferissem nos seus atos ou
conflitassem com sua “ideia”.58
Outro ponto, que nos parece ser de essencial importância, é a confusão
que Eichmann fazia entre ordem e lei, embora ele parecesse ter uma vaga
ideia de que havia uma diferença importante nisso. Ele disse ter lido a
Crítica da razão prática e ter vivido toda sua vida de acordo com os
preceitos morais de Kant e com a definição kantiana do dever, mas apesar
disso, no momento em que foi encarregado da “solução final”, ele parou de
viver, segundo os princípios de Kant, e consolou-se em pensar que não era
mais “senhor de seus atos” e que, portanto, ele não poderia “nada mudar”.59
Quando interrogado, ele soube inclusive dar uma fórmula aproximada do
imperativo categórico: “Na minha observação sobre Kant, eu quis ressaltar
que o princípio da minha vontade deve ser sempre de tal modo que possa
transformar-se em princípios de leis gerais.”60 Isso foi uma afronta diante
dos fatos, incompreensível, uma vez que a filosofia moral de Kant está

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intimamente ligada à faculdade de julgamento do homem e não aprova a
obediência cega. Na verdade, ele não disse que, além de ter se afastado da
fórmula kantiana, ele também a pervertera para: “Age de tal maneira que se
o Führer soubesse da sua ação a aprovaria”, fórmula conhecida como o
“imperativo categórico do Terceiro Reich”, formulado por Hans Frank.61
Kant jamais pretendeu dizer isso; para ele, cada homem era um legislador
e, a partir do momento em que começasse a agir, usando sua razão prática, o
homem encontraria os princípios que poderiam e deveriam ser os princípios
da lei. A fonte de onde surge a lei, para Kant, é a razão prática; para
Eichmann, era a vontade do Führer. Em momento algum Eichmann se
perguntou sobre o “princípio de sua vontade” ou a máxima na qual
fundamentava sua ação. Ele aceitou a determinação vinda de fora, eliminou
sua vontade como vontade, isto é, como faculdade do homem de
determinar-se a si mesmo para a ação: em outras palavras, sua autonomia.
Sua vontade foi heterônoma, porque determinada por representações
materiais, nas quais a lei é a da necessidade da natureza, onde o móvel da
ação é o sensível.
Para Kant, como já discutimos anteriormente no Capítulo I, a vontade
humana tem a propriedade de ser, ela própria, a sua lei, e o homem realiza
sua essência, quando obedece à lei moral. Concluímos, então, que, a partir
do instante em que o princípio dos atos de Eichmann não se enraizava mais
na sua vontade, mas na do Führer, isto significava que ele estava dedicado
a exterminar, em si mesmo, a sua própria vontade, e assim, por conseguinte,
sua própria humanidade.
Ora, para que esta servilidade permaneça ignorante de sua degradação, é
necessário conjugá-la com a “inconsciência”. Inconsciência aí não no
sentido de uma ignorância sobre os atos e suas consequências, mas no
sentido de um afastamento da realidade. Pois quanto à sua consciência,
Eichmann se lembrava, perfeitamente bem, de que só teria tido má
consciência se não tivesse feito o que lhe ordenavam.62 E, conforme ele
mesmo admitiu, “naquele momento” (na reunião onde se decidiu sobre a
“solução final”) “eu tive uma espécie de sensação de Pôncio Pilatos, pois
sentia-me livre de qualquer culpa”.63 Sobre isto Hannah Arendt diz:
Que se possa estar a este ponto afastado da realidade, a este ponto inconsciente; que o
inconsciente possa fazer mais mal do que todos os instintos destruidores reunidos; que
talvez sejam inerentes ao homem – eis uma das lições que se pode tirar do caso
Eichmann.64

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E esta lição, que não pretende servir de explicação ao fenômeno, nem de
teoria a seu respeito, não implica, evidentemente, que aquele que se deixa
levar por uma tal inconsciência não seja responsável.
O grande problema que se coloca com Eichmann é que “havia muitos
iguais a ele e que a maioria não era nem perversa nem sádica, era e ainda é
terrível e aterradoramente normal”.65 Isto implica que “este tipo de
criminoso, que na realidade é hostis generis humani, comete seus crimes
sob circunstâncias tais que se torna quase impossível, para ele, saber ou
sentir que está agindo mal”.66
Se, para Hannah Arendt, a pessoa do acusado ocupa o centro do seu
livro, e do processo, é porque Eichmann é um paradigma do homem de
massa, e é este homem que precisa ser conhecido. Eichmann é o paradigma
do homem contemporâneo, este homem que é prisioneiro da necessidade, é
o animal laborans que tem apenas uma vida social “gregária”, pois perde
toda noção de pertinência a um mundo que é o lugar onde, outrora, a
palavra e a atividade livres dos homens se conjugavam. A vida social “de
massa”, mas “sem mundo” devora, ao mesmo tempo, a vida privada e a
vida política estreitada desse homem, até apagar todo espaço político. O
homem da modernidade conhece, assim, o isolamento, que é o impasse para
o qual são conduzidos os homens, a partir do momento em que a esfera
política de sua vida comum é destruída. Soma-se a isso o desenraizamento,
que cria a desagregação das relações humanas. Ora, o que vai constituir o
sujeito ideal do totalitarismo é precisamente esse homem desolado,
desagregado, que não se religa mais aos outros homens. Este sujeito
destituído como sujeito político, transformado em átomo anônimo entre os
átomos anônimos da massa, um homem qualquer, sem capacidade política,
sem consciência moral, sem vontade, sem julgamento – e, por essa razão,
capaz de seguir ou de fazer banalmente o mal.
Desde que esse homem se torna um ser supérfluo, ele não é mais um fim
em si mesmo, e o seu valor como homem se encontra relativizado; ele passa
a ser, ao mesmo tempo, a vítima e o agente desse mal banal. Ao admitir “Eu
não sei o que é o mal radical, mas eu sei que ele tem a ver com esse
fenômeno: a superfluidade dos homens enquanto homens”,67 Hannah
Arendt está exatamente se acercando do núcleo do conceito do mal radical
kantiano, onde ela parece ancorar, a nosso ver, o seu pensamento sobre o
mal na política.

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A banalidade do mal – um conceito?
É no estatuto da novidade, que rege a compreensão do totalitarismo, que
Hannah Arendt lança a ideia da banalidade do mal. Sabe-se que é dentro do
relato do caso Eichmann que ela fez, pela primeira vez, menção à
“banalidade do mal”, a fim de designar “a falta de profundidade evidente”
que caracterizou o culpado, de forma que o mal inegável e extremo, ao qual
organizou seus atos, não podia ser atribuído nem às suas convicções
ideológicas sólidas, nem às suas motivações especificamente malignas.
No prefácio de seu último livro A vida do espírito, ela fala que, através
dessa expressão, não sustenta nenhuma tese ou doutrina, “ainda que fosse
confusamente consciente de que ia contra nossa tradição de pensamento
literário, teológico ou filosófico – sobre o fenômeno do mal”.68 Falar da
banalidade do mal interdita, de fato, toda dimensão demoníaca, toda
maldade essencial, toda maldade inata e, mais amplamente, todo móvel
ancorado na depravação, na cobiça e em outras paixões obscuras.
Para ela, falar de banalidade do mal é falar sobre “(…) algo bastante
fatual, o fenômeno dos atos maus cometidos em proporções gigantescas –
atos cuja raiz não iremos encontrar em uma espécie de maldade, patologia
ou convicção ideológica do agente”.69
Segundo Scholem,70 se Hannah Arendt jamais tirou da banalidade do mal
um conceito susceptível de “encontrar seu lugar em filosofia moral ou em
ética política”, por outro lado, ela recusa a ideia de que se trata de um
slogan ou um refrão. Scholem convidou Hannah Arendt a atribuir ao que
era apenas um slogan a consistência de um “conceito que encontra seu lugar
em filosofia moral ou em ética política”. Ao responder-lhe “ninguém, que
eu saiba, utilizou esta expressão antes de mim”,71 ela ainda admitiu que isso
era sem importância. Também Jaspers reconhecia que a noção era
esclarecedora e até mesmo percuciente, mas alertou Hannah Arendt para
que ela elucidasse verdadeiramente a questão filosófica subjacente a essa
“fórmula”.72
De fato, Hannah Arendt jamais reelaborou o conceito de “banalidade do
mal”, apenas concluiu sobre a falta de “profundidade” e a ausência de
enraizamento das razões e das intenções do indivíduo Eichmann, ao recusar
o caráter “radical” do mal.

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Na verdade, uma reelaboração teria exigido, segundo Myriam R.
D’Allones,73 uma análise bem mais aprofundada da doutrina kantiana do
mal radical e de suas implicações: inescrutabilidade da origem, exclusão da
perversidade diabólica, indeterminação do sujeito moral.
Além de estarmos de acordo com a autora acima citada, pensamos
também que existem outras leituras particulares do conceito de mal radical
kantiano no pensamento de Hannah Arendt. Essas leituras se referem a
questões sobre o mal radical já discutidas no Capítulo I e que serão
retomadas nesse contexto. Tomaremos um exemplo bastante significativo,
onde elas aparecem de maneira condensada: quando Scholem a critica por
ter mudado de opinião por não falar mais de “mal radical”, ela concorda,
afirmando: “Atualmente, minha opinião é que o mal não é jamais ‘radical’,
que ele é somente extremo, e não possui nem profundidade nem dimensão
demoníaca.”74 Ao afirmar que “o mal não é jamais radical”, ela está usando
radical no sentido de essencial, absoluto e total, sentido que não
corresponde absolutamente ao do conceito kantiano, pervertendo, assim,
inteiramente, seu significado verdadeiro. Um reexame do conceito de
“radical”, diretamente no pensamento kantiano, evitaria esta leitura. Com
isso se evitaria a confusão, que parece-nos ser feita não só por Hannah
Arendt mas também entre alguns de seus comentadores75 e, certamente,
entre muitos de seus leitores.
No tocante à “dimensão demoníaca”, aparece um outro preconceito que
está associado ao primeiro, sendo inclusive uma decorrência desse. É
preconceito, pois Kant é categórico em relação à recusa da malignidade; e é
uma decorrência, pois se o radical significasse absoluto, o homem seria, de
fato, demoníaco. E esse não é jamais o homem na concepção iluminista de
Kant; se, para ele, o homem é finito, ele é, ao mesmo tempo, razoável. Isso
significa que, se o homem tem uma propensão para o mal, isto não exclui o
fato de que ele tenha uma disposição original para o bem. O bem e o mal
coexistem no contexto da liberdade sob a forma de um conflito sempre
presente. E isso faz com que, em Kant, o homem tenha uma essência
ambígua e trágica, embora jamais demoníaca. É interessante observar que,
em relação à recusa da malignidade, o pensamento de Hannah Arendt está
inteiramente consistente com o mal radical kantiano, embora ela pareça não
ter percebido isso.
Hannah Arendt pressupõe que o mal, embora não sendo radical, possa
ser, contudo, extremo. Se, para ela, radical e extremo estão em relação de

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exclusão, para Kant o conceito de mal radical não exclui as formas
extremas de mal. Quando Kant admite a possibilidade de uma dinâmica de
expansão do mal radical, ele está, exatamente, levando isso em conta.
Embora ele não se refira a isso de forma explícita, a ideia de um mal
extremo aparece quando ele se refere a um “estado ético natural”, descrito
como “um combate público mútuo contra os princípios da virtude e um
estado de carência interna de moralidade”.76 O “estado ético natural” não
significa ausência de lei, mas arbitrariedade, na qual cada um se dá a sua
própria lei. Pode-se pensar, também, na possibilidade dessa arbitrariedade ir
além do plano individual, atingir grupos e culminar no Estado, quando ele
se encontra revestido de características totalitárias. Esse é um ponto
bastante significativo, pois se refere ao mal radical exatamente na sua
dimensão política. Mais uma vez o pensamento de Hannah Arendt sobre a
banalidade do mal parece convergir para o de mal radical kantiano, sem
que, contudo, ela tenha se dado conta disso. Sobre essa dimensão política
do mal, em sua dinâmica de alastramento, Hannah Arendt assim se refere:
“Ele pode invadir tudo e assolar o mundo inteiro precisamente porque
propaga-se como um fungo.”77
Para finalizar essa questão, vale relembrar o fato curioso, já mencionado
anteriormente, no Capítulo I, referente aos preconceitos que o mal radical
enfrentou, em sua época, ao atravessar o século XIX e chegar até os nossos
dias. Embora seja uma questão que mereça ser mais amplamente discutida,
não é nosso objetivo aqui fazê-lo.
Passaremos, agora, a tratar de confusões que podem ser feitas a respeito
do uso do termo banal, no contexto da discussão sobre a banalidade do mal.
Sobre isso, Hannah Arendt esclarece:
Nada está tão distante do meu propósito que o de minimizar o maior sofrimento do nosso
século. O que é banal não é por consequência nem uma bagatela, nem qualquer coisa que
se produz frequentemente. Eu posso achar um pensamento ou um sentimento “banal”
mesmo se ninguém não o exprimiu desta maneira até então, e mesmo se as consequências
conduzem a uma catástrofe.78

Hannah Arendt cita, como exemplo, o fato de Tocqueville que reagiu, no


meio do século passado, às teorias raciais de Gobineau, nas quais, na época,
passavam ainda inteiramente como originais, mas, simultaneamente, tanto
“nefastas” quanto superficiais. A catástrofe teve consequências pesadas.
Mas teria ela, portanto, significação pesada? “Que alguma coisa possa sair,

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por assim dizer do riacho, sem corrente profunda, e ganhar poder sobre
quase todos os homens, é precisamente isto que é assustador no
fenômeno.”79
Ao recusar o mal radical, ela crê estar recusando uma interpretação em
profundidade, pois vê, na banalidade do mal, não um absoluto, um
escondido ou uma essência: “(…) o mal não possui nem profundidade nem
dimensão demoníaca (…)”, e “(…) essa é sua ‘banalidade’. Somente o bem
tem profundidade e pode ser radical.”80 Ela se opõe a uma ideia de
profundidade do mal e propõe uma curiosa interpretação em superfície. Mas
essa interpretação cria um impasse à medida que o mal “(…) ‘desafia o
pensamento’, porque o pensamento tenta atingir a profundidade, tocar as
raízes, e no momento em que se ocupa do mal, ele se frustra porque não
encontra nada. Eis sua ‘banalidade’.”81 Pode-se concluir que: a aporia do
mal é precisamente seu efeito de superfície, sua própria banalidade.
Outro esclarecimento se faz necessário em relação a uma certa confusão
gerada pelo uso do termo banal; falar de uma banalidade do mal não é
afirmar sobre sua essência, pois o mal, se é possível considerá-lo do ponto
de vista ontológico, não é jamais banal. Juntamente com Paul Ricœur,82
pensamos que ele é sempre um escândalo. O banal aí se refere à sua
aparência, enquanto fenômeno que se dá a aparecer. Essa questão nos
remete a Hannah Arendt, quando ela diz que as aparências não só revelam;
elas também ocultam, ao citar Merleau-Ponty: “Nenhuma coisa, nenhum
lado de uma coisa mostra-se sem que ativamente oculte os demais.” Para
ela, “as aparências expõem e também protegem da exposição e, exatamente
porque se trata do que está por trás delas, a proteção pode ser sua mais
importante função”.83
Isto significa que a aparência de banalidade tem justamente a função de
ocultar o verdadeiro escândalo do mal. Podemos dizer, portanto, que o mal
pode ser banalizado por determinadas contingências históricas, o que
significa que o mal cometido pelo homem pode-se mostrar banal, não que,
por si mesmo, seja banal. A questão do mal não é, assim, uma questão
ontológica, uma vez que não se apreende uma essência do mal, mas uma
questão da ética e da política.
Quando conclui que Eichmann é um “homem banal”, como muitos
torturadores, Hannah Arendt retira-lhe o caráter demoníaco fazendo um
verdadeiro deslocamento em sua questão sobre o mal. O problema do mal
sai, verdadeiramente, dos âmbitos teológico, sociológico e psicológico e

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passa a ser focado na sua dimensão política. A nosso ver, é exatamente no
momento em que ela, respondendo a Scholem, diz: “De fato você tem
razão: eu mudei de opinião e não falo mais de mal radical”84 que, na
verdade, está mais próxima do pensamento de Kant sobre o mal. Tendo
admitido anteriormente “eu não sei o que é o mal radical, mas eu sei que ele
tem a ver com esse fenômeno: a superfluidade dos homens enquanto
homens”,85 ela mostra, de forma transparente, que está inteiramente
identificada com o núcleo do pensamento kantiano, pois o mal radical
surge, exatamente, quando o homem deixa de ser considerado como um fim
em si mesmo.
Podemos afirmar que o “conceito de banalidade do mal”, iluminado pelo
de “mal radical”, possibilita a Hannah Arendt fazer uma releitura política de
Kant, pois o mal radical é a própria destruição do político. Embora ela não
explicite isto em momento algum, é o que parece estar contido na sua
reflexão. O relato sobre a “banalidade do mal” põe para Hannah Arendt o
desafio de escrever sua moral política, embora saibamos que não estava
dentro de seu estilo escrever “um tratado de moral”. O que ela aspirou fazer
foi “uma crítica do julgamento político”, pois para ela as regras morais
estritas não poderiam prestar nenhuma ajuda.86
Podemos dizer que o conceito de mal radical de Kant abarca o de
banalidade do mal e, ainda mais: que a banalidade do mal é uma roupagem
contemporânea do mal radical. A banalidade do mal não seria uma
novidade enquanto essência, mas seria uma novidade enquanto fenômeno
(aparência).
Na verdade, o “conceito” de banalidade do mal, apesar de todo o seu
valor polêmico, parece não ter sido devidamente delimitado, não deixando,
por isso, de ter valor filosófico. Ele parece estar em uma posição particular
na obra da autora e, por sua fertilidade e valor polêmico, se mostra mais
provocador de reflexão e definidor de questões fundamentais do que
propriamente um conceito formalizado. A nosso ver, esta particularidade
não diminui o valor do conceito, mas o ressalta na sua fecundidade.
A partir de agora, interessa-nos tratar a banalidade do mal enquanto
fenômeno humano que transcende a essa situação contingente do
julgamento de Eichmann. É claro que esse fenômeno da banalidade do mal,
na condição do homem moderno, alimenta-se de temas diversos, que devem
ser analisados, de uma tal forma que superem, ao mesmo tempo, os
argumentos da fatalidade e do acaso.

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No esforço desta análise, são interessantes os três parâmetros usados por
Chalier,87 para pensar como a banalidade do mal se organiza: “a
necessidade, a irrealidade e a ausência do pensamento”. Em primeiro lugar,
a necessidade seria, no caso de Eichmann, a da existência de um sistema
que intima cada um a aderir, através de sua função ou de seu posto, um
ponto tal que implicaria a perda da identidade pessoal e de toda a
possibilidade de reivindicar a responsabilidade de seus atos. Nas histórias
de Kafka, tão admiravelmente comentadas por Hannah Arendt, “(…) os
encarregados, os empregados, os trabalhadores e os funcionários agem na
hipótese de uma eficácia sobre-humana (…)” que é “(…) o motor
escondido que serve à maquinaria da destruição” (…) “responsável pelo
desenvolvimento sem choque daquilo que por si é insensato”.88 Os atores
da sociedade nazista se conformaram, de corpo e alma, às regras desastrosas
de um jogo fundado sobre os princípios criminais, os quais ninguém parecia
fazer parar. Esta necessidade não provém somente do reino da técnica,
como na filosofia de Heidegger. Hannah Arendt não concorda com essa
visão puramente técnica da prepotência nazista que se torna cega a seus
componentes essenciais: o antissemitismo e o crime.
É de fato o crime, e o crime antissemita, que seria o princípio do Estado
nazista. E jamais os autores dos tormentos, os mais sórdidos que este
Estado comandou, perceberam-se como criminosos. Para Hannah Arendt,
eles “(…) se limitaram a obedecer às ordens e fiados em sua fria eficácia,
apareciam de maneira inquietante, como os instrumentos ‘inocentes’ dos
acontecimentos impessoais e desumanos”.89 A extremidade do mal seria
atingida nesta plena adesão à necessidade da pavorosa norma “Tu matarás”,
nesta total submissão a uma heteronomia extrema, que não permite que o
tremor de um escrúpulo venha fazer hesitar o braço levantado e pronto a
abater, que não permite, ainda, se lançar um olhar sobre o rosto dos seres
entregues à mais absoluta desorientação. A exaltação da lei, no Estado
nazista, transformou os homens ordinários em criminosos, abolindo esse
olhar, o único que poderia ainda ter possibilitado o rasgo da memória do
antigo preceito que proíbe o assassinato aos assassinos.
Quanto à irrealidade, podemos dizer que a ignorância deliberada das
solicitações da realidade dispensa respostas. Os clichês, as frases prontas, os
códigos de expressão padronizados e convencionais servem para proteger
os indivíduos da realidade90 levando-os a viver e agir em um mundo
totalmente irreal. É precisamente a isto que os sistemas totalitários visam.

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Os indivíduos mostram a necessidade de se submeterem aos princípios
superiores e tentam modelar a realidade à imagem destes. Pouco importa
que sejam as “leis da história” ou as “leis da natureza”. A partir daí, a
realidade deve se adaptar a esta necessidade, pois “os fatos dependem
inteiramente do poder daqueles que os podem fabricar”.91 O que
caracteriza, então, esses indivíduos, cegos por esta propaganda,
aterrorizados também por sua prática, é não mais suportar o que não cabe
no quadro da ideologia dominante e, através dela, fugir ainda mais da
realidade.
O que as massas recusam reconhecer é o caráter fortuito que banha a realidade; elas são
predispostas a todas as ideologias porque explicam os fatos como sendo simples exemplos
de leis e eliminam as coincidências ao inventar um poder supremo e universal que é
reputado ser a origem de todos os acidentes.92

O abandono à necessidade e o afastamento da realidade se reforçam um


ao outro e preparam o caminho para o mal tão banal e tão abominável que
será cometido pelos indivíduos mais comuns. A ausência de pensamento
desses indivíduos vem ainda facilitar sua sujeição, tornando-os incapazes da
menor resistência ao mundo que a ideologia constrói. Esse estado de não
pensar ensina as pessoas a se agarrarem solidamente às regras de conduta
(quaisquer que elas sejam) de uma sociedade e de uma época dadas. O que
elas se habituam, então, é a obediência às regras sem o exame rigoroso de
seus conteúdos. Conclui-se que a análise da banalidade do mal se articula
em torno destes três polos essenciais: a necessidade, a irrealidade e a
ausência de pensamento. Podemos considerar, portanto, que a ausência do
pensar é uma decorrência dos outros dois pontos, decorrência psicológica
ou ideológica da condição política deste homem de massa, tão bem descrito
em sua alienação por Hannah Arendt.
É exatamente nessa “ausência de pensar”, articulada à questão da
banalidade do mal, o ponto do qual Hannah Arendt parte prosseguindo sua
indagação. Indagação essa agora retomada em uma dimensão mais política.
Nesse mesmo ponto pretendemos apoiar nossa reflexão no próximo
capítulo.

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Capítulo IV
O vazio de pensamento
Nunca um homem está mais ativo do que quando nada faz, nunca está menos só do que
quando a sós consigo mesmo.

Catão

O retorno à filosofia
Na epígrafe de seu último livro A vida do espírito, na qual também nos
inspiramos, Hannah Arendt retoma a última frase de A condição humana.1
É necessário ver, nesse gesto, não uma escolha arbitrária, mas uma
continuidade subjacente, reaparecida após todos esses anos consagrados à
filosofia política e onde a expressão se tornou urgente pelo sentimento de
aproximação da morte. Ela confessa a Hans Jonas: “Em política, eu fiz o
que eu tinha a fazer; a partir de agora, durante o tempo que me resta, eu me
consagrarei ao que está além da política” (a filosofia).2
A filosofia foi o ponto de partida e de chegada de Hannah Arendt.
Começando com sua tese de doutorado, em 1929, sobre o conceito de amor
em Santo Agostinho, seu percurso intelectual e pessoal fez um longo mas
explicável desvio pela reflexão política, instigado pelos tempos sombrios
que sua geração foi obrigada a viver e compreender; ao fim de sua
existência, no entanto, retornou à reflexão filosófica – à vita contemplativa.
Nessa volta, não deixa de lado a preocupação com a política; ao contrário,
esta permanece no seu horizonte como estímulo poderoso à reflexão. Se no
fim de seu percurso intelectual Hannah Arendt retorna ao seu começo – a
filosofia –, não se trata de um movimento em círculo fechado, mas sim em
espiral, porque chega a uma filosofia enriquecida e problematizada por uma
experiência histórica incontornável que revelou os limites da filosofia como
simples busca do cognoscível.
A vida do espírito, que marca o retorno de Hannah Arendt à filosofia, é
composto de três partes: O Pensar, O Querer e O Julgar?3 Esta tripartição
arendtiana tem como horizonte inspirador as três críticas kantianas e

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representa o contraponto à reflexão sobre o labor, o trabalho e a ação,
discutidas em A condição humana. O conceito de espírito que aparece nessa
obra não é nem no sentido psicológico, nem no espiritualista, muito menos
no sentido hegeliano ou no sentido positivista de processador de estímulos
externos. Este mind nos remete não a uma unidade passiva de uma alma,
mas à pluralidade ativa de uma faculdade, antes de tudo marcada pela
espontaneidade. Nessa ótica, a atividade do pensamento, a iniciativa da
vontade, a imparcialidade do julgamento não são submetidas às
engrenagens do intelecto, às pulsões dos desejos, às regras da lógica; e o
espírito arendtiano é a articulação destes três poderes. Por outro lado,
Hannah Arendt toma o cuidado de não hierarquizar esses três poderes que
têm suas próprias leis.4
É impressionante constatar que, desde as primeiras linhas do livro A vida
do espírito, Hannah Arendt retoma a referência a Eichmann e o tema da
banalidade do mal, como se esse fosse a fonte mesma, jamais esgotada, de
sua reflexão. Esse é o problema que a perseguiu e, além disso, é sempre
retomado em toda sua força e assustadora simplicidade. Segundo ela, sua
preocupação com o pensar ou com “as atividades espirituais” teve origem
em duas fontes bastante distintas. O impulso imediato veio quando assistiu
ao julgamento de Eichmann, em Jerusalém, pois foi este processo que a fez
interessar pelo tema, e suas dúvidas se renovaram, então, a partir daquele
momento.
Aquilo com que me defrontei, entretanto, era inteiramente diferente e, no entanto,
inegavelmente factual. O que me deixou aturdida foi que a conspícua superficialidade do
agente tornava impossível retraçar o mal incontestável de seus atos, em suas raízes ou
motivos, em quaisquer níveis mais profundos. Os atos eram monstruosos, mas o agente –
ao menos aquele que estava agora em julgamento – era bastante comum, banal, e não
demoníaco ou monstruoso. Nele não se encontrava sinal de firmes convicções ideológicas
ou de motivações especificamente más, e a única característica notória que se podia
perceber, tanto em seu comportamento anterior quanto durante o próprio julgamento e o
sumário da culpa que o antecedeu, era algo de inteiramente negativo: não era estupidez,
mas irreflexão.5

Segundo ela, foi essa falta de pensamento, “uma experiência tão comum
em nossa vida cotidiana, em que dificilmente temos tempo e muito menos
desejo de parar e pensar”, que despertou seu interesse. Diante disso, ela
passa a levantar as questões que guiam todo o seu pensamento, ao escrever
A vida do espírito. São elas:

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Será o fazer-o-mal (pecados por ação e omissão) possível não apenas na ausência de
“motivos torpes” (como a lei os denomina), mas de quaisquer outros motivos, na ausência
de qualquer estímulo particular ao interesse ou volição? Será que a maldade – como quer
que se defina este estar “determinado a ser vilão” – não é uma condição necessária para o
fazer-o-mal? Será possível que o problema do bem e do mal, o problema de nossa
faculdade para distinguir o que é certo do que é errado, esteja conectado com nossa
faculdade de pensar? Seria possível que as atividades do pensamento como tal – o hábito
de examinar o que quer que aconteça ou chame a atenção independentemente de
resultados e conteúdo específico – estivessem dentro das condições que levam os homens
a se absterem de fazer o mal, ou mesmo que ela os “condicione” contra ele?6

Além do julgamento de Eichmann, uma outra questão inspirou-lhe o


interesse pelo tema. É o que se vê em:
Essas questões morais que têm origem na experiência real e se chocam com a sabedoria de
todas as épocas – não só com as várias respostas tradicionais que a “ética”, um ramo da
filosofia, ofereceu para o problema do mal, mas também com as respostas muito mais
amplas que a filosofia tem, prontas, para a questão menos urgente “O que é o pensar?”7

Este questionamento renovou, em Hannah Arendt, certas dúvidas que ela


diz ter desde que terminou A condição humana onde ela faz uma
investigação sobre a vita activa (termo cunhado por homens dedicados a um
modo de vida contemplativo). Enquanto a vita activa representa o modo
laborioso dos homens, a vita contemplativa se refere à pura quietude,
devotada à visão de Deus. E essa ideia de contemplação como o mais alto
estado de espírito é tão antiga quanto a filosofia ocidental.
A partir dessas reflexões sobre “o pensar” que constituem a primeira
parte de A vida do espírito, pretendemos acompanhar o desenvolvimento do
pensamento de Hannah Arendt sobre essa atividade do espírito e, então,
prosseguiremos até chegarmos ao que ela batizou de “vazio de
pensamento”, expressão bastante usada em sua reflexão sobre a banalidade
do mal, mas que não se encontra localizada em um lugar específico de sua
obra, tampouco está demarcada como “o pensar”. O “vazio de pensamento”
é mencionado por ela em diversos contextos sem estar, contudo, delimitado
como um conceito. Através de suas referências, sobre “o pensar”, como um
positivo, tentaremos chegar ao que poderia ser o “vazio de pensamento”,
por oposição, seu negativo. Nossa reflexão, portanto, se localizará em torno
da primeira parte de A vida do espírito.

O pensar

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Hannah Arendt inicia sua reflexão sobre o pensar recorrendo à história da
filosofia e fazendo, através dela, o rastreamento do conceito desta atividade
do espírito. Ela começa com Platão, para quem a atividade do pensamento é
o diálogo silencioso que cada um mantém consigo mesmo – servindo
apenas para abrir os olhos do espírito.
Por outro lado, o nous aristotélico é um órgão para ver e contemplar a
verdade. O pensamento visa à contemplação e nela termina, e a própria
contemplação não é uma atividade, mas uma passividade; é o ponto em que
as atividades espirituais entram em repouso. Na tradição cristã o pensar
estava relacionado à meditação e, por seu lado, era uma contemplação, o
estado abençoado da alma em que o espírito não se esforça para conhecer a
verdade. Nessa tradição, a filosofia tornou-se serva da teologia. Na era
moderna o pensamento tornou-se servo da ciência, do conhecimento
organizado.
Uma das teses principais do seu livro é a que diferencia os processos do
pensamento (derivados da Vernunft kantiana) que buscam o sentido das
coisas e daquelas provenientes do interesse pela cognição (derivados da
Verstand) que almejam o conhecimento de alguma verdade. Para Hannah
Arendt, seguindo a trilha aberta pela distinção de Kant, o pensamento é a
expressão de uma necessidade do espírito humano de pensar para além da
possibilidade de todo conhecimento, pois os homens têm uma inclinação,
talvez uma necessidade de pensar para além desse limite e de fazer dessa
habilidade algo mais do que um instrumento para conhecer e agir. Segundo
ela, devemos a Kant a distinção entre pensar e conhecer, entre a razão, vista
com a premência de pensar e de entender, e o intelecto, que almeja o
conhecimento certo e verificável. Segundo esse autor, a necessidade urgente
da razão é “mais do que a mera busca e o desejo de conhecimento”, pois o
homem tem uma necessidade de pensar além dos limites do conhecimento,
de fazer com suas habilidades intelectuais, sua potência cerebral, algo além
de um instrumento para conhecer e agir. Kant não negou o conhecimento,
mas distinguiu o conhecer do pensar, abrindo espaço para o pensamento.
Hannah Arendt nota que todas as questões que se tornam os temas
principais da filosofia surgem das experiências ordinárias do senso comum;
da “necessidade da razão”, isto é, da busca de significado que instiga o
homem a perguntar. A necessidade da razão (invocada por Kant para a
justificação da impossibilidade da indagação da metafísica) não é inspirada
pela busca da verdade, mas pela busca do significado. E verdade e

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significado não são a mesma coisa. Por isso, ela diz que a mais importante
falácia da metafísica é interpretar o significado dentro do modelo da
verdade. Ela observa que, quando Kant disse ser necessário negar o
conhecimento para dar espaço à fé, na verdade ele não estava negando o
conhecimento de coisas que não eram passíveis de ser conhecidas e dando
lugar à fé. Ao contrário, dava lugar ao pensamento. O lamentável, observa
Hannah Arendt, é que o idealismo alemão não soube aproveitar a herança
kantiana, pois seguiu Descartes, procurando a certeza e confundindo de
novo essa linha de demarcação.8
No entanto, é necessário marcar, aqui, que existe uma certa relação
dialética entre significado e verdade, já que nós percebemos uma constante
interação entre pensar e conhecer. A busca do intelecto pela verdade dos
fatos tem o poder de alterar nossa interpretação da realidade, a cada estágio
de nossas vidas. E isso é dificilmente menos radical em seus efeitos sobre
nós do que a capacidade de pensar em quebrar todas as regras e doutrinas
convencionais. Apesar da busca da verdade ser diferente da procura do
significado, uma suporta a outra e, para avançar em cada uma, nós
continuamente fazemos o movimento de ir e vir entre elas, descobrindo, na
verdade, uma na outra. A qualidade do nosso pensamento é modificada pela
nossa compreensão de assuntos concretos e essa última, por seu lado, pela
atividade de interpretação. Nessa relação dialética entre pensamento e
conhecimento há uma mutualidade e uma sutil reciprocidade.9
Hannah Arendt observa que uma das falácias da metafísica é a de
priorizar a verdade sobre o significado, como já afirmamos anteriormente; a
outra é a de não valorizar o fenômeno e, sim, o que ele oculta, que, segundo
a crença dos filósofos, é onde está o ser. O pressuposto de que a causa deve
ocupar um lugar mais elevado do que o efeito encontra-se entre as mais
antigas falácias metafísicas; ela se fundamenta na falácia lógica elementar
que se apoia em uma dicotomia entre o ser e a aparência. Segundo o sofista
Górgias: “O Ser não é manifesto, já que não aparece; o parecer é fraco, já
que não consegue ser.”10
Ao comentar sobre a morte da metafísica, tão propalada pelos “filósofos
profissionais”, ela se posiciona, afirmando que o que chegou ao fim não foi
a metafísica, mas a distinção básica entre sensorial e suprassensorial,
juntamente com a noção de que tudo o que não seja dado aos sentidos –
Deus, ou o Ser, ou as Ideias – é mais real, mais verdadeiro, mais
significativo do que aquilo que aparece, que não está apenas além da

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percepção sensorial, mas acima do mundo dos sentidos. O que “morreu”
não foi apenas a localização de tais “verdades eternas”, mas a própria
distinção. Hannah Arendt se apoia aqui, como Merleau-Ponty, nas teses do
biólogo antifuncionalista A. Portmann que denuncia o preconceito
metafísico no qual “o essencial se encontra por baixo da superfície e a
superfície é ‘superficial’”.11
A propósito disso Hannah Arendt observa: “Neste mundo em que
chegamos e aparecemos vindos de lugar nenhum, e do qual desaparecemos
em lugar nenhum, Ser e Aparecer coincidem.”12 Não há ser além do que
aparece, nada o dissimula “por trás” das manifestações do mundo, mesmo
A vida do espírito é derivada daí, e nada a condiciona aos bastidores.
Por isso, Hannah Arendt diz que o ponto de partida para o pensar é o
senso comum, que ela toma da definição de São Tomás como “um sentido
interno” que funciona como a “raiz comum e o princípio dos sentidos
exteriores”.13 Esse sexto sentido – através do qual o homem reúne em uma
coisa, em um mesmo objeto, as diversas sensações heterogêneas que vêm
dos diferentes órgãos sensoriais – é que torna possível o compartilhamento
de um mundo comum; é um sexto sentido necessário à coesão dos outros
cinco. O pensar significa, antes de mais nada, abandonar momentaneamente
o terreno do senso comum, praticando, espontaneamente, a epoché, ao pôr-
se diante do que aparece. Através do senso comum nós podemos confiar na
imediaticidade de nossa experiência sensível, pois ele dá acesso ao real, e
nosso senso do real depende inteiramente da aparência. Por seu lado, o
espaço da aparência é o nosso mundo comum, ou a realidade ou o espaço
político. Humanamente e politicamente, a realidade não se distingue da
aparência, pois a realidade do mundo é garantida aos homens pela presença
do outro; e o que aparece a todos é o que nós nomeamos o ser. O pensar,
que é o que permite ao espírito tomar distância do mundo, é um poder
paradoxal, pois o homem é do mundo e não pode sair dele ou transcendê-lo.
Para Hannah Arendt, a retirada (deliberada e sempre momentânea) do
mundo e a solidão caracterizam a atividade de pensar.
Ao perguntar: “o que o pensamento faz?”, Hannah Arendt responde: ele
descobre ou cria “significado”. Mas, por seu lado, “significado”, quando
vislumbrado, não é uma resposta segura, uma vez que a atividade de pensar
não deixa nada de tangível para trás de si. Vista da perspectiva do mundo
das aparências e das atividades por ele condicionadas, a principal
característica das atividades espirituais é a sua invisibilidade. Elas nunca

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aparecem, embora se manifestem para o ego pensante, volitivo ou
judicativo, percebendo-se ativo, embora lhe falte a habilidade ou a urgência
para aparecer como tal.
Sócrates usa a metáfora do vento para explicar a atividade de pensar: “Os
ventos são eles mesmos invisíveis, mas o que eles fazem mostra-se a nós e,
de certa maneira, sentimos quando eles se aproximam.” Para Hannah
Arendt, Sócrates é o modelo do puro pensador – talvez o mais puro do
Ocidente, como M. Heidegger uma vez o chamou. A razão disso é que,
durante toda a vida e mesmo na morte, este filósofo expôs aos ventos do
pensamento e não buscou para si nenhum refugio das tempestades fortes.14
Aliás, para Lebrun, essa reabilitação do socratismo constitui o centro do
livro A vida do espírito, e é em função dessa que Hannah Arendt delimita o
conceito de “pensamento” de que necessita para sua demonstração.15
Três coisas fascinaram Hannah Arendt na semelhança socrática do vento
com o pensamento.
Primeiro: é a aparente inutilidade do pensamento no sentido de que ele
não tem resultados. A esse respeito, ele é bem distante da prática. O
pensamento é como a teia de Penélope, tecida durante toda a noite para
desmanchar na manhã seguinte. Esse pensamento do tipo meditativo – para
Hannah Arendt paradigmático – em contraste com o do tipo deliberativo e o
calculista nunca chega a lugar nenhum. O exercício do pensamento
constitui para si o seu próprio fim: o pensamento não produz nenhum
resultado final que sobreviva à atividade. Assim, a sua melhor imagem não
é o movimento retilíneo, que termina em algum ponto – mas o círculo e o
movimento circular, sem começo nem fim.
Segundo: o que a meditação faz, por outro lado, é paralisar-nos
temporariamente, fazendo parar qualquer coisa que estivermos fazendo para
agir sobre nós, segundo a metáfora socrática,16 como a arraia-elétrica que
paralisa seus interlocutores e a si mesma por levantar simples questões que
nenhum deles poderia responder sem autocontradição. A paralisia induzida
pelo pensamento é dupla: ela é inerente ao parar para pensar, interrompendo
todas as atividades e pode ter também um efeito atordoante; depois que a
deixamos, sentimo-nos inseguros sobre o que nos parecia acima de qualquer
dúvida. No entanto, aquilo que, do lado de fora, é visto como paralisia (do
ponto de vista da aparência) é sentido como o mais alto grau de atividade.
Terceiro: a despeito da falta de resultados e da paralisia por ele induzida,
o pensamento exerce um efeito na vida interior que é momentâneo, embora

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perigoso. Aqueles que se engajam nisto são transportados – do mundo das
aparências – para o mundo invisível das ideias, onde as fidelidades prévias
a códigos de conduta são gradualmente dissolvidas, e todas as coisas
estáveis são postas em movimento, abrindo as questões.
Em suma, o pensamento nos faz cientes de outra ordem da realidade
diferente daquela que tínhamos antes de pensar, tomada da experiência
sensível e de nossos semelhantes. Ele desestabiliza todos os critérios
estabelecidos, valores e medidas de bem e de mal, pois ele tem o poder de
dissolver toda certeza. Por isso Hannah Arendt diz: “Não há pensamentos
perigosos; o próprio pensamento é perigoso”,17 “e este perigo surge do
desejo de encontrar resultados que dispensariam o pensar. Seu aspecto mais
perigoso, do ponto de vista do senso comum, é que o que era significativo
durante a atividade do pensamento dissolve-se no momento em que se tenta
aplicá-lo à vida cotidiana.
Se, “na prática, pensar significa que temos que tomar novas decisões
cada vez que somos confrontados com alguma dificuldade”,18 o pensar
significa, então, sempre um novo começo, um apropriar-se, do homem, de
sua própria essência que é a do initium (Agostinho). Se o pensar é sempre
um início, o produto do pensamento é, então, sempre uma novidade. Fica
aqui patente como a ideia de novidade, que percorre todo o pensamento
arendtiano sobre a ação humana, atinge também, dessa forma, A vida do
espírito.
Onde nós estamos quando pensamos? Para Hannah Arendt, o lugar do
homem que pensa é oposto ao do homem que age. A retirada deliberada do
mundo das aparências, do mundo do senso comum, é a condição subjetiva
para pensar. Mas a retirada do mundo das aparências é acompanhada por
um retorno em direção a si mesmo. Assim, faz parte da herança humana
comum essa condição paradoxal do ser humano que pode se isolar desse
mundo de aparências sem, contudo, ser capaz de deixá-lo ou transcendê-lo.
A estranha invisibilidade do pensamento se opõe à eminente e
resplandecente visibilidade da ação. Hannah Arendt observa que,
historicamente, esse tipo de retirada do agir é a mais antiga condição
postulada para A vida do espírito; em sua forma original, funda-se na
descoberta de que somente o espectador, e nunca o ator, pode conhecer e
compreender o que quer que se ofereça corno espetáculo.19
E qual é o lugar do ego pensante? Hannah Arendt responde que, da
perspectiva do mundo cotidiano das aparências, é em lugar nenhum. Se

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respondida, na perspectiva do tempo, a resposta é: na lacuna entre o
passado e o futuro, e essa lacuna só se abre na reflexão, cujo tema é aquilo
mesmo que está ausente – ou porque já desapareceu ou porque ainda não
apareceu. A reflexão traz essas regiões ausentes à presença do espírito,
porque todo ato mental repousa sobre a faculdade que o espírito tem de ter
em sua presença o que está ausente para os sentidos. A representação
também caracteriza A vida do espírito; e o pensar tem uma prioridade sobre
os outros atos mentais: ele deve preparar os dados oferecidos aos sentidos a
fim de que esse seja capaz de os considerar em sua ausência. A
representação deve “dessensorializá-los”. A primeira etapa do processo de
“dessensorialização” se refere à imaginação, à “capacidade para transformar
objetos sensíveis em imagens”20 ou à “faculdade das intuições fora da
presença dos objetos”,21 segundo a definição kantiana. Sem essa faculdade,
que torna presente o que está ausente, não se processa nenhum pensamento.
Mas o pensamento, que está além da privacidade de cada um, só pode ser
conhecido através de sua expressão na linguagem. As atividades mentais
invisíveis e ocupadas com o invisível tornam-se manifestas somente através
da palavra, pois, “seres pensantes têm o ímpeto de falar, seres falantes têm o
ímpeto de pensar”.22 Implícita no ímpeto da fala está a busca de significado
e não, necessariamente, a busca da verdade. O pensar tem o objetivo de
comunicar consigo mesmo, e comunicação é ação no mundo. Ninguém
negará a retirada do pensamento do mundo das aparências e o retorno em
direção a si mesmo; mas o contramovimento visível, a expressão oral,
pertence a ele por natureza.
Para Kant, a linguagem metafórica é o único modo pelo qual a razão
especulativa, que aqui chamamos pensamento, pode se manifestar.23 A
metáfora fornece ao pensamento “abstrato” e sem imagens uma intuição
colhida do mundo das aparências, cuja função é a de “estabelecer a
realidade de nossos conceitos”, como que desfazendo a retirada do mundo,
pré-condição para as atividades do espírito. A metáfora faz a ponte invisível
sobre o abismo do invisível e o mundo das aparências. Para Hannah Arendt,
“todos os termos filosóficos são metáforas, analogias congeladas, cujo
verdadeiro significado se desvela quando dissolvemos o termo em seu
contexto original (…)”.24 Continuando, “a linguagem, prestando-se ao uso
metafórico, torna-nos capazes de pensar, isto é, de ter trânsito em assuntos
não sensíveis, pois permite uma transferência (METAPHEREIN) de nossas
experiências sensíveis”.25

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Se por um lado nós nos encontramos retirados e na solidão quando
pensamos, por outro, não estamos isolados. Como sabemos, Hannah Arendt
adotou a famosa definição de Platão sobre o pensamento: “O diálogo
silencioso de mim comigo mesmo.” Mas essa definição foi compreendida
por ela em termos da experiência de Sócrates – da estranha divisão em sua
vida interna – no fato de ele ser, paradoxalmente, um “dois-em-um”, que é,
para ele, a essência do pensamento. Sócrates era ciente da diferença entre
consciência e ego pensante, pois ele percebia que o pensamento introduz
uma dualidade na identidade. Se lhe perguntássemos: de que serve pensar
em alguma coisa? Ele diria que era, simplesmente, para tentar não se
contradizer, para manter-se em consonância com o espectador (ou o juiz)
que nele residia, com “o parceiro que aparece quando estamos sós”.26
Existencialmente, o pensamento é um “estar só”, mas não é solidão; o
estar só é a situação em que me faço companhia. Já a solidão ocorre quando
estou sozinho, mas incapaz de dividir-me no dois-em-um, incapaz de fazer-
me companhia. Para Hannah Arendt,
o fato de que o estar só, enquanto dura a atividade do pensar, transforma a mera
consciência de si – que provavelmente compartilhamos com os animais superiores – em
uma dualidade é talvez a indicação mais convincente de que os homens existem
essencialmente no plural. E é essa dualidade do eu comigo mesmo que faz do pensamento
uma verdadeira atividade na qual sou ao mesmo tempo quem pergunta e quem
responde.27

A realização, especificamente humana, da consciência no diálogo


pensante de mim comigo mesmo sugere que a diferença e a alteridade,
características tão destacadas do mundo das aparências tal como é dado ao
homem, seu habitat em meio a uma pluralidade de coisas, são também as
mesmas condições da existência do ego mental do homem, já que ele só
existe na dualidade. O pensar não é diálogo silencioso, mas um diálogo
antecipado com os outros, e esta é a razão de ser essencialmente polêmico.
Essa forma de pensamento dialógico não necessita “(…) de pilares ou
arrimos, padrões ou tradições, para se mover livre e sem muletas por
terrenos desconhecidos”.28
A consciência não é o mesmo que o pensamento; os atos da consciência
têm em comum com a experiência dos sentidos o fato de serem atos
“intencionais” e, portanto, cognitivos, ao passo que o ego pensante não
pensa alguma coisa, mas sobre alguma coisa e este ato é dialético: ele se
desenrola sob a forma de um diálogo silencioso. Sem a consciência, no

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sentido da consciência de si mesmo, o pensamento seria impossível. “Do
mesmo modo que a metáfora preenche a lacuna entre o mundo das
aparências e as atividades do espírito que ocorrem dentro dele, o dois-em-
um socrático cura o estar só do pensamento; sua dualidade inerente deixa
entrever a infinita pluralidade que é a lei da Terra.”29
O critério do diálogo espiritual não é a verdade; o único critério do
pensamento socrático é a conformidade, o ser consistente consigo mesmo.
O seu oposto, o estar em contradição consigo mesmo, de fato significa
tornar-se seu próprio adversário. Para Sócrates, a dualidade do dois-em-um
significa apenas que quem quer pensar precisa tomar cuidado para que os
parceiros do diálogo estejam em bons termos, para que eles sejam amigos.
Hannah Arendt recorre aqui a um diálogo socrático onde há uma afirmação
clara, que ilustra bem o dois-em-um.30 Sócrates diz a Hípias que, ao voltar
para casa, é aguardado por um sujeito muito irritante que vive a interrogá-
lo. Ele diz: “Ele é meu parente próximo e vive na mesma casa.” Já Hípias é
um sujeito afortunado porque, quando volta para casa, permanece um, pois
embora viva só, não busca fazer-se companhia. Não é que, certamente,
Hípias perca a consciência, só que ele não costuma exercitá-la. Quando
Sócrates vai para casa, ele não está solitário, está junto a si mesmo.
Evidentemente, Sócrates tem que entrar em alguma espécie de acordo com
o sujeito que o espera, já que eles vivem sob o mesmo teto. O que Sócrates
descobriu é que podemos ter interação com nós mesmos, bem como com os
outros, e os dois tipos de interação estão de alguma maneira relacionados.
Para Hannah Arendt, o pensamento pode tornar-se “dialético e crítico”
justamente porque consiste nesse diálogo rápido e silencioso de pergunta e
resposta entre “amigos”, cuja única regra é a “regra da coerência”, a
exigência de que o pensador não seja contraditório. Essa é a chave para a
compreensão das implicações práticas do pensamento que não se referem
àquilo que se pensa, mas ao próprio caráter dialógico da atividade de
pensar: para que se possa pensar, é preciso cuidar “para que os parceiros do
diálogo estejam em bons termos”.31
A consciência moral, tal como a entendemos em assuntos morais ou
legais, observa Hannah Arendt, “(…) está, supostamente, sempre presente
em nós, assim como a mera consciência. E essa consciência moral
supostamente nos diz o que fazer e do que se arrepender; antes de se tornar
o lumen naturale, ou a razão prática de Kant, ela era a voz de Deus”.32

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A autora identifica este acordo de uma pessoa consigo mesma com o
imperativo categórico de Kant. Pois, subjacente ao imperativo – “Aja
apenas segundo uma máxima tal que você possa ao mesmo tempo querer
que ela se torne uma lei universal” – está a ordem “não se contradiga”.33
Devemos concluir, daí, que Hannah Arendt reduz o “pensamento” à
consciência da lei moral? Não. De acordo com Lebrun, é antes à fonte da lei
moral que ela pretende fazer-nos remontar – à exigência solitária e
espontânea que desabrochará na Moralität. Assim, para este último, “(…) o
pensamento é a condição, em cada pessoa, para o exercício da razão prática:
bastará viver este pensamento no dia-a-dia, humildemente, ironicamente,
assim tornando manifesta a sua finalidade prática”.34
O pensamento, em seu sentido não cognitivo, como uma necessidade
natural da vida humana, como a realização da diferença dada na
consciência, não é uma prerrogativa de poucos, mas uma faculdade sempre
presente em todo mundo; do mesmo modo, a inabilidade de pensar não é
uma imperfeição daqueles muitos a quem falta inteligência, mas uma
possibilidade sempre presente para todos – incluindo aí os cientistas, os
eruditos e outros especialistas em tarefas do espírito. Todos podemos vir a
nos esquivar daquela interação com nós mesmos, cuja possibilidade
concreta e cuja importância Sócrates foi o primeiro a descobrir. O
pensamento acompanha a vida e é ele mesmo a essência desmaterializada
do estar vivo. Uma vida sem pensamento é possível, mas “(…) ela fracassa
em fazer desabrochar a sua própria essência – ela não é apenas sem sentido;
ela não é totalmente viva. Homens que não pensam são como
sonâmbulos”.35
Depois de termos visto como o pensamento é abordado, na concepção
arendtiana, passaremos a tratar, agora, da possibilidade de sua não
utilização dentro da experiência humana e as implicações éticas e políticas
advindas desse fato. Referimo-nos à não utilização, pois seria inadequado
falar em ausência ou privação de pensamento, desde que essa faculdade,
como já marcamos anteriormente, não é prerrogativa de alguns, mas um
atributo essencial do ser humano. Tal qual a faculdade de pensar está
sempre presente em todos, também a inabilidade de pensar não é
prerrogativa de alguns, mas sim a possibilidade, sempre presente em todos,
de esquivar-se da interação consigo mesmo.

O vazio de pensamento

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Duas questões se colocam como ponto de partida na discussão sobre o
que Hannah Arendt batizou como “vazio de pensamento”. Primeiramente,
para poder se pensar o “vazio de pensamento”, é necessário interrogarmos
sobre seu significado. Em seguida, sobre suas implicações éticas e políticas.
Para respondermos à primeira questão, é importante observar que o termo
“vazio de pensamento” não se encontra suficientemente delimitado e nem
localizado especificamente na obra de Hannah Arendt. Mas ele pode ser
destacado sempre apresentando as seguintes características: encontra-se
salpicado em diversos pontos de sua reflexão sobre o mal com os nomes de
“ausência de pensamento”, “superficialidade” e “irreflexão” e se acha
sempre associado à banalidade do mal. Além disso, como um vazio, um
negativo, ele não é definido por si, mas a partir de seu positivo: o pensar. Já
que o que temos em mãos são essas três características, passaremos então a
segui-las como pistas para se chegar a uma possível descrição do fenômeno.
Com isso não queremos, evidentemente, esgotar a significação do conceito
arendtiano mas, sim, fazer uma leitura particular desse conceito dentro do
contexto em que ele sempre aparece: o da banalidade do mal.
Mas o que é exatamente esse vazio? Como o “vazio de pensamento” se
associa à “banalidade do mal”?
Pensar sobre um “vazio de pensamento” implica pensar sobre uma falta,
um não ser. Mas não é nosso objetivo perguntar sobre sua realidade
ontológica, mas sobre o seu significado. A propósito disso, Hannah Arendt
observa que Sócrates36 (em quem ela parece se apoiar) não trata
explicitamente do mal. Em seus diálogos, o feio e o mal excluem-se,
embora possam, de vez em quando, surgir como deficiências, como falta de
beleza, de justiça e como mal, na qualidade de falta de bem. Isso significa
que, para o filósofo, esses temas não têm raízes em si, não apresentam
nenhuma essência que o pensamento possa apreender. Também para
Hannah Arendt, o mal não pode ser feito voluntariamente, em função de seu
estatuto ontológico; mas consiste em uma ausência, em algo que não é. Se o
pensamento dissolve conceitos normais e positivos até encontrar seu sentido
original, o mesmo processo dissolve conceitos negativos (como o mal, a
feiura) até encontrar sua falta de sentido original, até o nada. A propósito,
essa opinião de que o mal não passa de privação, negação ou exceção à
regra não é exclusiva de Sócrates; trata-se de uma opinião quase unânime
entre os pensadores (Agostinho, Leibniz, Hegel).

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Uma segunda consideração deve ser feita sobre o vazio. Se o pensar é
uma atividade própria do homem, de qualquer um e não uma prerrogativa
de poucos, não existe, por isso, a possibilidade de um não pensar absoluto;
deve-se considerar, então, o não pensar como relativo, contingencial.
Também não se pode considerar um não pensar natural, como algo que se
dá na espontaneidade do homem, já que o espontâneo é, exatamente, a
atividade de pensar. Assim, o não pensar é uma experiência humana
artificial, algo forjado pelas contingências. Por isso é mais adequado
perguntar: a quais contingências pode-se atribuir o “vazio de pensamento”?
e qual é o seu significado nesse contexto?
Retomemos, então, a reflexão arendtiana, quando esta nos aponta a
faculdade de pensar como uma atividade que está sempre presente em todos
nós. Segundo ela, “para o filósofo, (…) o homem é muito naturalmente não
apenas verbo, mas pensamento feito carne, a encarnação sempre misteriosa,
nunca totalmente elucidada da capacidade do pensamento”.37 Em
decorrência disso, Hannah Arendt nos remete a Kant quando este se refere à
necessidade da razão e lhe faz um elogio, pois, segundo ela, Kant,
diferentemente de todos os filósofos, aborrecia-se com a opinião corrente de
que a filosofia é apenas para uns poucos, principalmente pelas implicações
morais dessa ideia.38
Ainda dentro do mesmo argumento, se o pensamento é uma atividade que
tem seu fim em si mesmo, e se a única metáfora da nossa experiência
sensorial comum que a ele se adequa é a sensação de estar vivo, então “(…)
pensar e estar completamente vivo são a mesma coisa, e isto implica que o
pensamento tem sempre que começar de novo; é uma atividade que
acompanha a vida (…)”.39 O que se pode dizer, a partir disso, é que uma
vida sem pensamento seria uma vida sem sentido. Sobre isso, Hannah
Arendt cita Sócrates, quando ele afirma: “Não vale a pena viver uma vida
sem reflexão” e conclui: “O pensar acompanha o viver.”40 Sócrates dá a
essa busca o nome de Eros, um tipo de amor que é, antes de tudo, uma falta
– deseja o que não possui. Se o pensar é uma atividade inerente à vida
humana e lhe confere sentido, concluímos então que a possibilidade do
“vazio de pensamento” seria, logo de início, uma ação humana moralmente
degenerada, pois desrespeitaria a própria necessidade humana.
Diante dessa conclusão o “vazio de pensamento” é uma atividade
humana pervertida. Voltamos a nos interrogar a respeito das implicações
éticas e políticas dessa questão. Quais as contingências históricas e políticas

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que possibilitam a experiência humana do “vazio de pensamento”?
Baseados nas reflexões que fizemos até aqui, ao tentarmos seguir a
trajetória do pensamento arendtiano, resgataremos os pontos que nos
parecem significativos para o reconhecimento dessa experiência. É
importante relembrarmos que o pano de fundo dessa reflexão é o
totalitarismo, e o “ponto de conexão” é a banalidade do mal. Articularemos,
então, essa reflexão em torno de dois parâmetros: a perda do senso comum
e a ideologia do movimento.
Vimos, anteriormente, que a principal característica do “homem de
massa”, e sobre a qual o totalitarismo se apoia elegendo-a como condição
sine qua non do seu sucesso, é o isolamento e a falta de relações sociais
normais. O totalitarismo, apoiando-se em uma massa atomizada, procura
torná-la sempre mais atomizada e amorfa; massa de indivíduos isolados,
anônimos, sem interesses pessoais, sem poder, pois homens isolados sem
interesses em comum não têm nenhum poder. Nesse contexto, o senso
comum é uma categoria capital para a reflexão sobre o fato político, porque
ele é, precisamente, o contrário do isolamento que age sobre a via da
aniquilação da esfera política. Aqui o senso comum se caracteriza como o
sentido do real, condicionando o indivíduo a se relacionar com a realidade
do mundo em que vive, a dominá-la, julgá-la, a se adaptar, a modificá-la,
enfim, de ser ele. Assim, a dominação totalitária passa pela destruição desse
sentido da realidade, dessa faculdade que se apoia na presença do outro.
Por outro lado, a propaganda totalitária explora o desejo de escapar da
realidade que as massas têm, pois elas são desenraizadas, desorientadas, e o
mundo em torno parece-lhes incompreensível, sem sentido. Por isso o
“homem de massa” foge da realidade. A propaganda totalitária pode-se
permitir insultar o senso comum tirando-lhe o valor, pois sua força repousa
sobre a capacidade de interditar às massas o real. E essa total separação da
realidade, vivida pelas massas, só é possível porque elas creem,
simultaneamente, em tudo e em nada, porque pensam que “tudo é possível,
e nada é verdadeiro”. O homem isolado na massa, privado do sentido do
real por causa desse isolamento, não tem mais a medida para julgar um
discurso; no interior do movimento totalitário, as palavras do Chefe “não
podem ser desmentidas pela realidade”. Em suma, o objetivo do movimento
totalitário é eliminar a capacidade de distinguir a verdade da falsidade, a
realidade da ficção, ou seja, abolir a capacidade de “sentir em comum e
pensar por si mesmo”.41

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O senso comum é o que nos dá acesso ao real, e a realidade apreendida
por nossos sentidos é garantida pela segurança constante com que os outros
percebem e manipulam os mesmos objetos, num mundo em que nos
percebemos em comum. Sem essa garantia o real se esvanece, dá lugar à
ficção e dá espaço à crença de que tudo é possível. Somente o senso comum
vivaz, a percepção e a ação em comum num mundo compartilhado podem
resistir a essa eliminação da objetividade do mundo real.
Para Hannah Arendt, o senso comum ocupa o lugar mais elevado na
hierarquia das qualidades políticas, porque ele é a única característica que
nos permite medir a realidade, sendo comum a todos. Numa coletividade
dada, uma diminuição notável do senso comum é, pois, um sinal quase
infalível de alienação em relação ao mundo. É importante notar que essa
atrofia do senso comum, no século XX, não se atribui somente ao
totalitarismo, mas ela se enraíza mais profundamente na tradição ocidental.
Em A condição humana, Hannah Arendt mostra como a alienação em
relação ao mundo e o “desaparecimento do senso comum” caracterizam a
modernidade.42
Se o senso comum é o ponto de partida para a realização do pensamento,
a sua eliminação já traz, de início, a impossibilidade do pensar. O
pensamento se retira do mundo das aparências, do mundo do senso comum,
momentânea e deliberadamente, e retorna a ele para julgar os dados
concretos, recuperando o senso comum, a realidade de um mundo
compartilhado pela pluralidade dos homens. Enquanto o pensamento é a
atividade que busca o significado, que dá sentido ao mundo no qual nós
aparecemos, o julgamento opera o retorno aos objetos dos sentidos que se
referem ao mundo real. Ele ancora o pensamento ao real. O senso comum é,
então, ponto de partida e ponto de chegada do pensamento.
Finalmente, podemos dizer que é através da desvalorização do senso
comum (o senso do real) – estimulada pela propaganda totalitária e
possibilitada pela condição de isolamento do homem de massa – que o
“vazio de pensamento” se torna uma realidade.
Passemos então à análise do segundo parâmetro, para se pensar as
contingências em que se dá o “vazio de pensamento”: a ideologia do
movimento. O totalitarismo é uma ideologia em que tudo é movimento e
em que tudo é possível. O regime totalitário pode ser descrito como uma
obsessão de movimento. De fato, esse regime vive em estado de requisição
permanente, forçando uma marcha constante para a frente, e toda tentativa

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de estabilização deve ser sufocada na origem. Como já vimos no Capítulo
II, no Estado totalitário o movimento se encontra erigido como princípio
absoluto. Voltemos então a Eichmann – nosso paradigma para se pensar o
“homem de massa”. Ao se referir à organização burocrática nazista, assim
se expressa: “(…) tudo estava sempre em um estado de contínuo fluxo, uma
corrente constante”.43 Se todo pensar exige um “pare-e-pense”, tal
movimento permanente é incompatível com a atividade de pensar. Nessa
pausa onde o homem pode suspender, provisoriamente, seus juízos de valor
e suas certezas prévias, “parar-para-pensar” é o primeiro ato de resistência a
uma imposição externa, a uma exigência de obediência. É exatamente nessa
parada, momentânea mas decisiva, que o homem pode começar a realizar
sua autonomia. E esse fluxo contínuo, que interdita qualquer parada,
qualquer pensamento, tem como objetivo, exatamente, o automatismo em
que os homens deixam de interrogar para, prontamente, obedecer.
Em decorrência disso, como o pensar não produz resultados práticos, ele
passa a ser desprezado, pois a multidão quer ver resultados imediatos. Além
de não produzir resultados, o pensamento faz dissolver todas as verdades
previamente estabelecidas, por isso se diz que ele é perigoso. O pensamento
é “fora de ordem” não só porque interrompe todas as demais atividades
necessárias para os assuntos vitais e para a manutenção da vida, mas
também porque inverte todas as relações habituais. Disso resulta que a
ausência de pensamento, ao proteger os indivíduos contra os perigos da
investigação, ensina-os a aderir rapidamente a tudo o que as regras de
conduta possam prescrever em determinada época para uma determinada
sociedade – essa ausência induz ao conformismo. Essas são contingências
que obrigam o homem a não pensar e, ao mesmo tempo, a se submeter.
Pensemos então como estes pontos – aqui arrolados –, organizados
sucessivamente, interditam, a cada passo, a espontaneidade do homem na
atividade de pensar. Primeiramente, há uma supressão do senso comum
interditando o contato com a realidade; a seguir, uma impossibilidade de se
“parar-para-pensar”, engolida por uma ideologia do movimento e,
finalmente, a indução ao conformismo. Com a experiência desse percurso, o
homem passa à condição de “ser que não pensa”, a um autômato, sem
memória, sem identidade e sem responsabilidade. Nesse contexto de
deterioração humana, dissolvem-se os parâmetros de bem e de mal, de certo
e de errado, de justo e injusto; o homem não pensa e não julga, só age,
indiferentemente, como um “instrumento do mal”, como nos fala Kant.44

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Nessa situação extrema e perversa o homem é, ao mesmo tempo, vítima e
instrumento desse mal.
Este é, pois, o contexto no qual aparece a banalidade do mal. E o Estado
totalitário favorece o vazio… de pensamento, na medida em que tenta
preencher este vazio – forjado artificialmente com a sua ideologia. Na
verdade, é um falso vazio, porque está recoberto com o pensamento
ideológico. Este esvaziamento do pensar, operado pela ideologia, produz a
indiferença ao mal, permitindo aos governantes totalitários, além da
transmutação das percepções históricas de bem e mal, a inversão total do
quadro de valores de uma sociedade. Hannah Arendt nos lembra que esses
governantes conseguiram inverter os mandamentos básicos da moral
ocidental: “Não matarás”, no caso da Alemanha de Hitler e “Não levantarás
falso testemunho”, na Rússia de Stalin.45
Mais outra consideração se faz necessária ao se analisar a atividade de
pensar, na sua implicação ética e política. Podemos questionar se a
faculdade de distinguir o que é bom e o que é mal – estando em relação
com nossa capacidade de pensar – seria a condição suficiente para a
garantia de não se fazer o mal.
Inicialmente, podemos afirmar que é condição necessária, mas não
suficiente. Isso porque o pensamento não cria valores, ele não pode
descobrir o que é “o bem” e não confirma as regras aceitas de conduta; mas,
antes, dissolve-as. Se há algo no pensamento que possa impedir os homens
de fazer o mal, esse algo é alguma propriedade inerente à própria atividade,
independentemente dos seus objetos.
Hannah Arendt nos adverte mostrando que ao transcendermos os limites
do próprio tempo de vida e começarmos a refletir sobre o passado
(julgando-o) e sobre o futuro (formando projetos da vontade), o pensamento
deixa de ser uma atividade politicamente marginal. E essas reflexões
surgem sempre em emergências políticas, quando aqueles que pensam são
forçados a mostrar-se e, com isso, se diferenciam daqueles que se deixam
levar, impensadamente, pelos outros. Nessas circunstâncias, a recusa em
aderir torna-se patente e, por isso, passa a ser um tipo de ação. Em tais
emergências, entra em jogo o elemento depurador do pensamento (a
maiêutica socrática) que é necessariamente político.
Para Hannah Arendt, esse elemento traz à tona as implicações de
opiniões não examinadas e, portanto, as destrói – valores, doutrinas, teorias
e até mesmo convicções. Essa destruição tem um efeito liberador sobre

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outra faculdade – a faculdade do juízo – que podemos chamar de a mais
política das capacidades espirituais humanas. Ela é a capacidade que julga
particulares sem subsumi-los a regras gerais.
Essa faculdade, tal como foi revelada por Kant, não é igual à faculdade
de pensar. Enquanto o pensamento lida com invisíveis, com representações
de coisas que estão ausentes, o juízo sempre se ocupa com particulares e
coisas que estão próximas. Apesar de distintas, as duas faculdades estão
interrelacionadas, do mesmo modo como a consciência moral e a
consciência. O juízo é o derivado do efeito liberador do pensamento. Ele
realiza o próprio pensamento, tornando-o manifesto no mundo das
aparências. A manifestação da invisibilidade do pensamento não é o
conhecimento, mas a habilidade de distinguir o certo do errado, o belo do
feio.46
Através do julgamento, resgata-se o senso comum, a realidade de um
mundo partilhado pela pluralidade dos homens. O julgamento, ao contrário
do pensamento, é imparcial, mas não é independente do ponto de vista dos
outros. Através do que Kant chama de “mentalidade alargada”, o
julgamento leva em conta o que o “outro” pensa. Pensar com a mentalidade
alargada significa treinar a imaginação para visitar os outros, ou seja,
mover-se em um espaço potencialmente público.
Aqui está, pois, a ligação entre a faculdade de pensar e a atitude de
distinguir o bem do mal, a mesma que havia sugerido a ausência conjunta
dessas duas capacidades em Eichmann. O julgamento é o que reconcilia
pensamento e senso comum. Inseparáveis, senso comum e julgamento
constituem a dobradiça que articula a vida ativa e a vida espiritual do
homem, sua vida política e sua vida solitária. “Faculdade do espírito e
somente através dela a ação tem sentido por um lado, sentido que permite
ancorar o pensamento ao real, por outro lado.”47
Concluímos que existe uma ordem de prioridades entre as atividades do
espírito. O pensar, “(…) embora incapaz de mover a vontade ou de prover o
juízo com regras gerais, deve preparar os particulares dados aos sentidos de
tal modo que o espírito seja capaz de lidar com eles na sua ausência, ele
deve dessensorializá-los”.48 A faculdade de julgar que é apenas a
capacidade que tem o pensar por si mesmo – e, como tal, é atividade
solitária, apoiada nos objetos invisíveis – de retomar, enriquecido por seu
momento de isolamento do mundo comum, aos objetos e acontecimentos

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próximos, sensíveis, isto é, presentes a cada um. Julgar é relacionar seu
pensamento aos objetos do senso comum.
Por outro lado, Hannah Arendt observa que a filosofia não se ocupa com
particulares, nem com as coisas dadas aos sentidos, mas com universais,
com coisas que não podem ser localizadas. Seria um grande erro procurar
tais universais em assuntos político-práticos que sempre tratam de
particulares. A ação se exerce sobre particulares e apenas afirmações
particulares podem ser válidas no campo da ética ou da política.49 É nesse
quadro de referência que o tema do juízo pode ser visto como sendo de
essencial importância para o pensamento arendtiano, já que é uma questão
filosófica de implicações políticas imediatas.
Embora não seja nosso objetivo discorrer aqui sobre o tema do juízo,
desde que nossa prioridade é o tema do pensamento, não podemos deixar de
marcar sua importância no pensamento político arendtiano. O julgar, como
culminância do pensamento arendtiano sobre as atividades do espírito, iria
constituir a última parte de A vida do espírito, se Hannah Arendt pudesse
tê-la concluído. Sobre esse tema ficaram algumas notas50 que apontam
direções importantes e decisivas para seu pensamento. Trata-se de uma
abordagem política da terceira crítica de Kant, em que “(…) sua concepção
de político se alarga progressivamente a ponto de se tornar um analagon do
estético”.51
Também o tema da vontade, apesar de concluído e de constituir a
segunda parte de A vida do espírito, não será abordado aqui; no entanto, é
importante assinalar que “o querer” é considerado, por Hannah Arendt, num
contexto político, como espontaneidade, ruptura da ordem das razões,
liberdade verdadeira que está na raiz do agir: a vontade não é livre arbítrio
que escolhe entre os objetos e delibera sobre os meios, mas o poder de
começar aparecendo como a assinatura da liberdade em nós. A vontade é
faculdade de originar, faculdade de introduzir uma brecha no curso dos
acontecimentos, faculdade de revolução.52
Finalizando, podemos reafirmar que o pensamento, reflexão sobre o
significado das coisas, é uma condição necessária, mas não suficiente para
se resistir ao mal; e somente em sua relação com o juízo, que é uma
faculdade própria, ele pode efetivar sua plena realização como capacidade
de autonomia, em contraposição ao conformismo de todos os tipos.

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O mal radical – A banalidade do mal – O vazio de
pensamento
Tomaremos como fio condutor, para a conclusão deste capítulo, o nexo
entre mal radical, banalidade do mal e o vazio de pensamento, na sua
gravitação em torno das questões éticas e políticas. A banalidade do mal
será o conceito central, nosso elemento de conexão, que irá estabelecer
relações, por um lado, com o mal radical e, por outro, com o vazio de
pensamento.
Como os três conceitos enunciados são instrumentos para se pensar a
questão do mal, questionaremos então: como o conceito kantiano pode se
articular com os conceitos arendtianos? ou seja, quais os pontos de conexão
entre eles? Tentaremos, assim, estabelecer relações de semelhança e de
diferença entre os pensamentos de Kant e de Hannah Arendt com relação a
esse tema.
Retomaremos uma afirmação de Hannah Arendt sobre o mal radical, a
nosso ver extremamente significativa para esta discussão. Ela diz, em carta
a Jaspers: “Eu não sei o que é o mal radical, mas sei que ele tem a ver com
esse fenômeno: a superfluidade dos homens enquanto homens.”53 Embora
esta afirmação se apresente sob a forma de uma confissão de um não saber,
ela nos parece ter uma concentração muita alta de compreensão e síntese.
Podemos pensar que esse “não saber” revela não um desconhecimento ou
incompreensão do tema, mas, muito mais, uma identificação com a
afirmação socrática do “apenas sei que nada sei”. Não estaria aí,
exatamente, a confirmação da identificação de Hannah Arendt com aquele
que ela elegeu como o modelo de pensador?
Quando ela aponta a “superfluidade dos homens enquanto homens” como
o núcleo do significado do mal radical, está reconhecendo, primeiramente,
que a referência kantiana para se pensar o problema do mal é a dignidade
humana. Em segundo lugar, está se identificando com o conceito kantiano,
na formulação do seu conceito de banalidade do mal, na medida em que
esse último tem, como núcleo, exatamente, a experiência contemporânea da
destruição da dignidade humana através da transformação do homem em
ser supérfluo.
Passemos agora a examinar, nesse contexto, a significação do termo
“supérfluo”. O mal se realiza tanto para Kant quanto para Hannah Arendt,

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quando o homem deixa de ser um fim em si mesmo, quando ele deixa de ter
a primazia sobre tudo mais e torna-se um meio, um instrumento. Sua
existência já não se justifica por si mesma, mas se torna condicionada a um
valor utilitário, a um valor relativo às necessidades definidas pelas
contingências históricas e políticas. Nessa relativização de valor a vida
humana perde, também, seu significado, deixando de ser necessária e
essencial, para ser inconsequente e banal. Aí, onde o homem é destruído em
sua humanidade, a ação humana, consequentemente, se degenera. A ação
humana, que é essencialmente caracterizada pela espontaneidade e pela
possibilidade de sempre poder iniciar, poder perene de começar e de fundar
a novidade, é interditada em sua própria fonte: a liberdade.
Tanto o tema da liberdade como o da igualdade são pontos de referência
em comum para se pensar o problema do mal, em Kant e em Arendt. Se a
concepção de igualdade é central para a dignidade humana tanto na filosofia
clássica quanto na moderna, vamos tomá-la como referência para se
examinar a concepção de homem nesses dois autores.
Para Kant, o ser humano realmente é igual com respeito ao mais
fundamental, que é o acesso à lei moral. O ponto de vista de Kant é que
todo ser racional tem, em princípio, acesso igual à apreensão da lei moral; e
porque todas as outras facetas da experiência humana são infinitamente
insignificantes em relação à grandeza da lei moral, os seres humanos são
realmente iguais em relação ao mais fundamental.
Já para Hannah Arendt, o ser humano deve compensar suas várias
desigualdades inatas através da igualdade artificial oferecida pela cidadania
política. O que ela diz é que a experiência da isonomia54 contribui
poderosamente para a perspectiva da dignidade humana na medida em que,
através dela, os seres humanos podem compensar suas desigualdades inatas.
A igualdade é um trabalho do artífice humano, motivada pelo amor à
liberdade política. Isto fornece uma discrepância substancial entre os
argumentos de Hannah Arendt e Kant. Contudo, as duas posições não são
simplesmente contraditórias como pode parecer (isto é, os seres humanos
são ou não são iguais por natureza). Embora Hannah Arendt, certamente,
não situe a ênfase na lei moral que Kant claramente faz, sua noção de que
todo ser humano tem um igual apelo à dignidade humana, aperfeiçoada na
cidadania isonômica, equivale à reafirmação do igualitarismo moral de
Kant.

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Para Hannah Arendt, o que impulsiona a afirmação da política e da
cidadania ativa não é romantismo nem utopismo, mas temor e medo.55 A
partir de suas reflexões sobre o totalitarismo, ela vê que o homem moderno
tem uma capacidade, sem precedentes, de ser como carneiro, facilmente
pastoreado por pastores cruéis, ou de se tornar burocrata com “vazios de
pensamento”, como Eichmann. Para Hannah Arendt, a vida moderna, em si
mesma, é um assalto à dignidade humana: atomizada, massificada e
desenraizada. Toda a sua reflexão, subsequente à do fenômeno totalitário, é
sobre as possibilidades de uma ação coletiva como uma resposta a essa
terrível perspectiva – com o objetivo de identificar os meios pelos quais os
seres humanos, na Idade Moderna, possam recuperar um sentido de eficácia
e autorespeito.
Liberdade e igualdade são, pois, os pontos de referência comuns a
Hannah Arendt e Kant para se pensar o homem. Contudo, o homem de Kant
é pensado, originalmente, em sua moralidade e o de Arendt, em sua ação
política.
Passemos, então, ao segundo ponto a ser destacado nesta reflexão acerca
do pensamento de Kant e Hannah Arendt, sobre o problema do mal. Ao
eleger o “vazio de pensamento” como o núcleo do problema da banalidade
do mal, Hannah Arendt toma, como referência, o vazio, a falta, a ausência,
enfim, uma negatividade, para se pensar acerca do mal. Ela se refere ao
pensamento de Sócrates, em quem parece se apoiar, mais uma vez, ao
refletir sobre esse tema. Comentando Sócrates, diz:
Os objetos do pensamento só podem ser coisas merecedoras de amor – beleza, sabedoria,
justiça etc. O mal e a feiura, quase por definição, estão excluídos da consideração do
pensamento. Eles podem apresentar-se como deficiências, consistindo a feiura na ausência
de beleza e o mal, kakia, na ausência de bem. Em si, não têm raízes próprias nem
essenciais onde o pensamento possa se firmar. Se o pensamento dissolve conceitos
positivos até o seu significado original, então o mesmo processo tem que dissolver estes
conceitos “negativos” até a sua ausência de significado original, isto é, até o nada (…).56

Na conclusão, aponta que “o mal não tem estatuto ontológico: ele


consiste em uma ausência, um algo que não é”.57 Esse argumento é
corroborado por outro, usado noutro contexto, afirmando: “Somente o bem
tem profundeza e pode ser radical.”58
Se, para Hannah Arendt, o mal é apenas uma negatividade, para Kant, ele
não é apenas uma negatividade, mas sobretudo uma positividade. Em Kant,
o mal nasceria tanto do abandono do ato de liberdade – quando o homem

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entrega-se no nível da satisfação imediata – não sendo aí senão ausência,
falta de uma determinação positiva, como também nasceria de uma ação de
confrontação com o bem, colocando-se como a sua negação, isto é, uma
posição.
Neste segundo caso, da inversão das máximas, não se trata somente de
uma inversão de conteúdo, mas de um ato de transgressão da forma da lei,
de tal modo que o conceito de mal radical designa essa sujeição que se
introduz na liberdade. Neste sentido, passamos de uma determinação do
mal, como falta ou ausência, não proveniente de nenhum princípio positivo,
a uma segunda significação: o fato de que o mal tem um princípio
verdadeiro, cria uma posição, sendo essencialmente positivo, enquanto se
opõe realmente àquilo que lhe faz face. No entanto, este princípio positivo
do qual o mal é portador não recebe, por isso, um estatuto originário, pois
ele jamais poderia definir, segundo Kant, uma qualidade de caráter do
homem. Se assim fosse, ele seria elevado para o nível formal de um
verdadeiro princípio, de uma origem: o mal seria diabólico.59
É neste último aspecto que reside, exatamente, o ponto de convergência
do pensamento de Hannah Arendt e de Kant, pois em ambos o mal não tem
um estatuto ontológico. A hipótese da existência de um princípio originário
do mal no homem seria contraditória a um conjunto de proposições que o
definem e colocaria em jogo tanto a lei moral, em Kant, quanto a ideia de
ação, em Hannah Arendt.
Concluindo, levantaremos uma questão que pensamos ser de fundamental
importância na consideração desta abordagem do problema do mal, como,
apenas, negatividade. Quais as consequências teóricas e práticas de se
considerar o mal apenas como vazio ou falta?
Pensamos que considerar o mal apenas como uma negatividade, como
“falta de” seria uma referência questionável. Isso porque, se o ser humano é
finito, ele é, a princípio, o ser da falta, da incompletude; sendo assim, o mal,
considerado apenas como “uma falta de”, estaria inscrito em sua essência e
desta forma seria justificado. O mal, neste contexto, seria um destino do
homem e, diante desta noção trágica, seríamos obrigados a aceitar o
argumento que Hannah Arendt tanto repudiou: o do “Eichmann no fundo de
cada um de nós”.
Do ponto de vista prático, essa restrição na visão do mal traz, como
consequência, importantes implicações éticas e políticas, isto porque
teríamos que justificar toda a violência da ação humana como necessária,

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pois estaria inscrita na própria natureza do homem. E se a violência é
necessária e não contingente, como ficaria, então, a questão da
responsabilidade?
Ora, se admitimos que o mal não é uma contingência em A condição
humana, então já não podemos tratá-lo dentro do contexto da política, que é
o reino da contingência na qual ele está inscrito no estatuto da liberdade. É
exatamente neste deslocamento da questão do mal considerado como
simples negatividade, para a possibilidade de abordá-lo, sobretudo, como
uma positividade, como um ato de liberdade humana, que está a relevância
e o vigor do conceito de mal radical.
O pensamento kantiano da moralidade permitiu-nos passar a um
pensamento político do homem na história que, por sua vez, criou conceitos
que se abrem para outra visibilidade sobre o homem. O conceito de mal
radical, que deu um passo a mais na filosofia moderna, continua sendo um
instrumento atual e pertinente para se pensar o problema do mal na ética e
na política no mundo contemporâneo. Podemos dizer, assim, que partimos
do mal radical para a ele retornarmos ao fim deste trabalho.

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Conclusão
Mas ninguém deve cantar vitória antes do tempo: ainda está fecundo o ventre de onde surgiu
a coisa imunda.

B. Brecht

Ao final deste percurso, em que tentamos acompanhar o pensamento


arendtiano em seus desdobramentos na investigação acerca da questão do
mal na política, queremos destacar alguns pontos deste, antes de passarmos
às conclusões específicas. É importante assinalar que a banalidade do mal
foi eleita ponto de ancoragem do percurso. Nela nos apoiamos, permitindo-
nos, simultaneamente, o deslocamento constante e a volta ao ponto de
referência na exploração desse pensamento.
Impressiona a persistente preocupação de Hannah Arendt com o
problema do mal no quadro político contemporâneo, desencadeada, ao que
parece, já no prenúncio do fenômeno totalitário.1 A constância desse
envolvimento é semelhante a um fio que a conduz e a orienta em sua obra,
ao longo de vinte e quatro anos; a fidelidade a essa questão permitiu-lhe
avaliar, reformular e ampliar seu pensamento, de forma que nunca perdesse
a continuidade e a coerência.
A questão do mal foi explicitada pela primeira vez em 1951, no final de
Origens do totalitarismo, quando ela indagou a respeito do mal extremo
que apareceu no final do terror totalitário e questionou a suficiência do
conceito kantiano de mal radical, na explicação de tal fenômeno. Doze anos
depois, em 1963, retomou o assunto em Eichmann em Jerusalém, quando
lançou a ideia de banalidade do mal. Essa ideia, em sua fecundidade,
vitalizou sua pergunta original sobre o problema do mal e, ao mesmo
tempo, desencadeou uma série de novas e atualizadas colocações sobre a
questão. Ao final da recolocação, formulou a ideia de um vazio de
pensamento instalado no bojo do problema do fenômeno da banalidade do
mal. Com isso, inaugurou uma outra abordagem sobre a questão que, assim
situada, foi responsável pelo seu retorno à filosofia.
Nos anos que se seguiram ao julgamento de Eichmann, duas questões,
derivadas da ideia de banalidade do mal, passaram a ocupar,
obstinadamente, a sua atenção: as atividades de pensar e de julgar. A

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pergunta que motivou essa preocupação foi a seguinte: será que a atividade
de pensar e a de julgar têm algum componente que possa impedir a prática
do mal? Essa indagação, que é explorada na primeira parte de A vida do
espírito, ao ser ampliada, exigiu, em sua continuidade, a investigação sobre
o querer e o julgar, que marcou o seu trabalho até 1975, final de sua vida.
Quando Hannah Arendt escreveu Lições sobre a filosofia de Kant, a ideia
que norteou sua investigação foi essa vigorosa reflexão voltada para a
elucidação das condições das possibilidades do juízo crítico. A discussão
das implicações desse ato de julgar os eventos políticos perpassa e alinhava
sua obra do começo ao fim, remetendo-nos ao próprio âmago de sua
reflexão: a sua indagação sobre o mal.
Observamos, nitidamente, que o fio que costura o pensamento político de
Hannah Arendt é o problema do mal, recolocado e renovado o tempo todo,
mas sempre dentro do contexto de uma preocupação ética e política.
Pergunta-se: por que o mal?
Pensamos que o mal foi escolhido por Hannah Arendt porque ele sempre
nos remete à referência oposta que é, em seu pensamento, a ideia de
liberdade. Hannah Arendt sempre trabalhou, pari passu, o mal e a
liberdade. Para ela, a ideia de liberdade foi inspirada em Santo Agostinho,
para quem o initium significa que, para cada homem, há um começo
relativo, o nascimento. O conceito de natalidade e a importância do
nascimento – fundamentais para Hannah Arendt – fazem com que a
natalidade seja a categoria central da política, em contraposição à morte que
é a categoria central da metafísica. São, em suma, a natalidade e o initium
que permitem a liberdade de criação no mundo das aparências, das coisas
novas.
Essa contraposição de ideias, aliás, parece ser uma característica do
pensamento arendtiano e se faz notar em diversos momentos de sua obra:
totalitarismo versus revolução; quebra da tradição versus brecha entre o
passado e futuro; vazio de pensamento versus o pensar. Contudo, não é uma
simples contraposição; ela sempre tentou dar uma consistência aos dois
lados. No entanto, é nessa característica do pensamento arendtiano que
podemos compreender o porquê de ela não chegar a tratar explicitamente de
conceitos chaves como o de banalidade do mal ou do vazio de pensamento
– as referências do mal. Observamos que os temas mais recorrentes em
Hannah Arendt não são tratados em sua individualidade e especificidade; ao
contrário, ela investiga o seu oposto. Por exemplo, o pensar e o julgar são

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abordados como os antídotos do mal, aquilo que evitaria a banalidade do
mal. Ela inaugura, enuncia, aponta uma ideia, mas não a trabalha
explicitamente, de forma a estabelecer seus contornos definidos; ela não as
esgota. No entanto, essa característica, longe de desvalorizar o pensamento
arendtiano, confirma a coerência de quem tem, como preocupação
primordial, a liberdade de começar, o novo e a experiência inicial do
pensamento, que é o espanto, o thaumadzein reforçado na sua concepção de
política.2
Como sabemos, Hannah Arendt não deixou escola; deixou questões a
serem trabalhadas, questões em aberto que permitem a continuidade de suas
investigações e, ao mesmo tempo, a inovação, a criação de novas categorias
de pensamento.
Foi consistente com essa valorização da inovação a forma como ela
sempre recorreu à filosofia de Kant. No percurso do pensamento
arendtiano, Kant foi a referência, porque sempre foi ele quem a guiou em
sua concepção de política. Principalmente porque nele desaparece a
contradição entre filosofia e política. Para Arendt, Kant não concebia a
política a partir dos preconceitos tradicionais, pois, para ele, “o filósofo
permanece um homem como vocês e eu, vivendo entre seus companheiros e
não entre filósofos”.3
Essa ideia de uma “igualdade” fundamental entre os homens revelou em
Kant um estilo de pensamento aberto às preocupações políticas. É por isso
que Kant não dissocia suas preocupações filosóficas das questões e
preocupações políticas. No entanto, constatamos que Hannah Arendt fez
uma leitura muito particular de Kant, na medida em que sua interpretação
autonomiza-se em relação ao texto kantiano, tomado por ela mais como
ponto de partida para suas próprias reflexões. Hannah Arendt não faz uma
leitura de Kant ao pé da letra, pois não lê Kant em termos de história da
filosofia, mas de reapropriação hermenêutica.4 Essa forma de leitura se
justifica na crença arendtiana de que o gesto filosófico, com relação à
tradição, não é o de revocar as velhas verdades para, ilusoriamente,
solucionar os novos questionamentos, mas sim de fazer um certo uso do
pensamento fundado sobre uma ideia do contato do filósofo com a política.
Aqui, é importante lembrar que uma interpretação vale pelo que ela sugere,
não pelo que reproduz.
Passemos, então, às conclusões a que chegamos em nossa pesquisa,
relativamente ao pensamento arendtiano sobre o mal em seus pontos

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fundamentais. Observamos que, no que concerne ao mal, há uma nítida
aproximação entre o pensamento arendtiano e o kantiano. Além de não
haver divergência entre banalidade do mal e mal radical, observam-se
convergências importantes no que diz respeito às referências que esses dois
pensadores utilizam para se pensar sobre esse problema.
O primeiro ponto de convergência é o da recusa da malignidade no
homem. Em ambos, o mal não é abordado como um princípio original no
homem, como algo que faz parte de sua natureza sensível. Se assim fosse, o
mal seria necessário, e o homem, então, teria uma essência maligna. Ao
contrário, o mal é considerado como uma possibilidade humana, uma
contingência e, sendo assim, acha-se inscrito na sua liberdade. O bem e o
mal são possibilidades humanas radicais, isto é, enraizadas na liberdade do
homem, na liberdade radical que é o fundo de sua vida. Por essa razão, a
abordagem que ambos fazem do mal não é ontológica, pois não se trata de
perguntar sobre a sua essência. Mas o que lhes interessa são as
contingências em que aparece o mal: por isso ele é objeto da ética e da
política.
O segundo ponto de convergência diz respeito à referência que se opõe
ao mal: a dignidade humana. Em ambos, a dignidade humana é garantida
quando o homem é livre, isto é, quando ele é considerado como um fim em
si mesmo. Essa garantia é alcançada em Kant através da lei moral, e em
Arendt, pela ação, notadamente a ação política. Nos dois pensadores,
paralela à ideia de liberdade, encontra-se a de igualdade. Em ambos, todo
ser humano tem um apelo igual à dignidade humana, que se faz em Kant,
pelo igualitarismo moral e é aperfeiçoada, em Arendt, pela cidadania
isonômica. Liberdade e igualdade são, pois, os pontos de referência comuns
para se pensar a dignidade humana. Contudo, em Kant, o homem é
pensado, originalmente, em sua moralidade e, em Arendt, em sua ação
política.
Finalmente, devemos considerar o ponto no qual divergem esses dois
pensamentos. Vimos que Hannah Arendt elegeu o “vazio de pensamento”
como sendo o núcleo do problema da “banalidade do mal”, o que significa
que ela toma, como referência, o vazio, a falta, enfim um negativo, para se
pensar o mal. Em Kant, o mal não é apenas uma falta de determinação
positiva, mas sobretudo uma afirmação de oposição ao bem, ou à lei moral.
Entretanto, esse princípio positivo do qual o mal é portador não tem um

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estatuto originário, ele não representa uma qualidade de caráter do homem
e, por isso, não põe em risco a lei moral.
Para concluir, podemos entender que Hannah Arendt distancia-se de Kant
muito mais em razão de sua interpretação contemporânea do problema do
mal do que em decorrência de diferenças estruturais entre o pensamento de
ambos. Em Hannah Arendt, vimos o interesse pela aparência,5 donde se
pode inferir que ela faz uma política do fenômeno. Por isso, ao realçar o
vazio, aponta para a presença dessa dimensão no mundo contemporâneo – a
“era do vazio”6 – que se caracteriza por marcas inconfundíveis: a
dissolução do espaço político, a diminuição do senso comum (o senso do
real), o esvaziamento da tradição e o vazio de pensamento.
Em meio à bruma dessa sociedade de massa esvaziada de valores,
Hannah Arendt lança um foco de luz sobre a questão do mal
contemporâneo, definindo-o como um tipo de esvaziamento que se produz
na ação e no pensamento humanos. É aí, precisamente, que reside o caráter
pontual de um pensamento que se preocupa em compreender e desvelar a
novidade do nosso tempo.
Estes são os pontos fundamentais que se puderam, aqui, ser descritos.
Nossa abordagem certamente não esgotou a questão sobre o mal na obra de
Hannah Arendt. Se fomos capazes de identificar as direções que o
pensamento arendtiano apontou e a fecunctidade de seus caminhos, já
atingimos o nosso objetivo, principalmente num momento em que o tema
do mal e, sobretudo, o da “banalidade do mal” estão longe de serem
questões superadas.

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Referências
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Outros

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política.
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ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 1983.
ENRIQUEZ, Eugène. Da horda ao Estado: psicanálise do vínculo social.
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Ceschia. São Paulo: Loyola, 1991.
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Trad. Rufino J. Pena. Madrid: Gredos, 1972. p. 141-164: El mal radical
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Tânia M. Bernkopt. São Paulo: Abril, 1974.
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_____. Crítica da razão prática. Trad. Afonso Bertagnoli. Rio de Janeiro:
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LESSING, Theodor. La haine de soi, le refus d’être juif. Paris: Berg
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LIPOVETSKY, Gilles. La era del vacío: ensayos sobre el individualismo
contemporâneo. Trad. J. Vinyoli e M. Pendanx. Barcelona: Anagrama,
1986.
PERINE, Marcelo S. J. Filosofia e violência. São Paulo: Loyola, 1987.
PHILONENKO, Alex. Études kantiennes. Paris: J. Vrin, 1982. p. 52-75:
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POLIAKOV, Leon. Le breviaire de la haine: le III Reich et les juifs. Paris:
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REBOUL, Olivier. Kant et le problème du mal. Montreal: Les Presses de
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Notes
Introdução
1. RICŒUR. O mal. Um desafio à filosofia e à teologia.

2. ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 510.

3. Idem.

4. Idem.

5. Em ABRANCHES. Só permanece a língua materna, p. 123.

6. JONAS. Social Research, n. 1, p. 25-43.

7. Em ABRANCHES. Filosofia e política, p. 91-115.

8. GLENN GRAY. Social Research, n. 1, p. 44-62.

9. BEINER. Political Theory, v. 18, n. 2, p. 238-254.

10. TASSIN. Les Cahiers de Philosophie, n. 4, p. 81-114.

11. Idem.

12. ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 12.

Capítulo I. O mal radical como ponto de partida


1. KANT, citado por HERRERO. Religião e história em Kant, p. 85.

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2. WEIL. Problèmes kantiens, p. 114.

3. BRUCH. La philosophie religieuse de Kant, p. 75-77.

4. Carta a Herder de 7-6-1793, citada por BRUCH, em La philosophie
religieuse de Kant, de onde retiramos também as reações de Schiller,
Herder, Troeltsch e Fittbogen.

5. PHILONENKO. Études kantiennes, p. 64.

6. KANT, citado por PHILONENKO. Études kantiennes, p. 64. A
propósito da imagem da curvatura, ela se encontra em muitos textos de
Kant: As reflexões sobre a educação, A religião dentro dos limites da
simples razão, e na Doutrina do direito. Não se trata, pois, de uma
imagem fortuita, mas de imagem essencial para a compreensão da obra
de Kant.

7. Essa ideia se opõe decididamente à de Rousseau na qual o homem é
direito por natureza e se curva à sociedade. A oposição dos dois
filósofos é flagrante.

8. ROSENFIELD. Do mal. Para introduzir em filosofia o conceito de
mal, p. 57.

9. KANT. A religião dentro dos limites da simples razão, p. 369.

10. WEIL. Problèmes kantiens, p. 166.

11. PHILONENKO. Études kantiennes, p. 159. Cita Hermann Cohen:
“Pode-se dizer com lógica, que o caráter inteligível não significa a
causa, mas unicamente como ideia, como da causalidade fenomenal.”

12. KANT. A religião dentro dos limites da simples razão, p. 373.

13. Ibidem, p. 368.

14. KANT. A religião dentro dos limites da simples razão, p. 373.

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15. WEIL. Problèmes kantiens, p. 152.

16. KANT. A religião dentro dos limites da simples razão, p. 373.

17. Kant faz três usos diferentes do conceito de natureza: 1) Na Crítica da
razão pura, a natureza se refere à “existência das coisas enquanto esta
é determinada segundo as leis universais do entendimento”. Aqui a
natureza é a soma dos objetos possíveis da experiência. 2) Na filosofia
da história, a natureza tem uma finalidade. Kant pressupõe uma
natureza teleológica, ativa, que age segundo uma intenção e que
persegue essa intenção própria na história do homem, pois sua
finalidade é realizar o soberano bem. A natureza engloba tanto o
mundo fora do homem como a natureza sensível desse. Ambas são
vistas como unidade final. 3) Em A religião dentro dos limites da
simples razão, Kant chama de natureza do homem “o fundamento
subjetivo do uso de sua liberdade [sob leis morais objetivas] que
antecede toda ação que cai nos sentidos”. Natureza aqui se refere, não
ao indivíduo isolado, mas ao gênero humano. Conforme Herrero, em
Kant as expressões “natural” e “inata” se revezam, mas expressam o
mesmo conteúdo.

18. HERRERO. Religião e história em Kant, p. 80.

19. KANT. A religião dentro dos limites da simples razão, p. 383.

20. KANT. A religião dentro dos limites da simples razão, p. 374.

21. KANT. A religião dentro dos limites da simples razão, p. 374.

22. REBOUL. Kant et le problème du mal, p. 86.

23. Ibidem, p. 103.

24. HERRERO. Religião e história em Kant, p. 82.

25. BRUCH. La philosophie religieuse de Kant, p. 69.

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26. Ibidem, p. 70.

27. DELBOS. La religion dans les limites de la simple raison, p. 618.

28. ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 510.

29. JASPERS. El mal radical según Kant, p. 153.

30. REBOUL. Kant et leproblème du mal, p. 106.

31. HERRERO. Religião e história em Kant, p. 85.

32. JASPERS. El mal radical según Kant, p. 148.

33. Sobre o otimismo de Kant, o comentário de Bruch (La philosophie
religieuse de Kant, p. 56) é que há uma ambivalência constante no
pensamento de Kant sobre o mal, e a dificuldade que experimentam
seus comentadores ao considerá-lo como otimista ou pessimista. Kant
é, ao mesmo tempo, um Aufklärer confiando no progresso da espécie
humana, e um luterano convencido do caráter radical e universal do
mal. O pessimismo moral de Kant contrasta fortemente com sua
confiança no progresso da sociedade, onde a orientação otimista do seu
pensamento moral se encontra confirmada. E mesmo o seu pessimismo
dogmático se encontra entre parênteses; pois ele contribui para provar
que, mesmo dentro dos casos-limites, onde todas as ações seriam más,
a ideia do dever subsiste e se impõe sempre.

34. WEIL. Problèmes kantiens, p. 174.

35. KANT. A religião dentro dos limites da simples razão, p. 378.

36. RICŒUR. Introducción a la simbólica del mal, p. 164

37. Ibidem, p. 156.

38. Ibidem, p. 164.

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39. ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 510.

40. Idem.

41. ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 510.

42. ARENDT. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
mal.

43. REBOUL. Kant et le problème du mal, p. 102.

44. KANT. A religião dentro dos limites da simples razão, p. 374.

45. WEIL. Problèmes kantiens, p. 109.

46. WEIL. Problèmes kantiens, p. 111.

47. Ibidem, p. 140.

48. PERINE. Filosofia e violência, p. 88.

Capítulo II. A novidade totalitária


1. Em ABRANCHES. Filosofia e política, p. 110.

2. ARENDT. Entre o passado e o futuro, p. 214.

3. Ibidem, p. 218.

4. ARENDT. Esprit, n. 6, p. 78.

5. ARENDT. Entre o passado e o futuro, p. 54.

6. ARENDT. Esprit, n. 6, p. 66.

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7. CASTORIADIS. Os destinos do totalitarismo, p. 8.

8. CASTORIADIS. Os destinos do totalitarismo, p. 8.

9. ARENDT, citada por CASTORIADIS. Os destinos do totalitarismo, p.
9.

10. Idem.

11. ARENDT. Esprit, n. 6, p. 70.

12. ARENDT. Esprit, n. 6, p. 71.

13. ENEGRÉN. La pensée politique de Hannah Arendt, p. 191.

14. Essa ideia é bastante discutível na atualidade. A nosso ver, a partir da
experiência dos regimes totalitários, subsistiram elementos totalitários
que, os quais parece, vieram para ficar. A própria Hannah Arendt
(Esprit, p. 67) admite isso em 1953, quando afirma que elementos do
pensamento totalitário hoje existem em todas as sociedades livres.
Antonio Abranches sobre isso diz: “Quanto ao totalitarismo, não se
trata de um passado que já passou, do desvio acidental de um projeto
histórico inacabado, ou de um peso morto que o tempo, por si mesmo,
relegará ao esquecimento. A sobrevivência de ‘elementos’ totalitários
em regimes não totalitários continua a ser uma ameaça tão mais
poderosa quanto mais recoberta estiver pelo esquecimento e pela
subsequente paralisação de um pensamento que se encontra impedido
de começar a pensar.” (ABRANCHES. Introdução – uma herança sem
testamento, p. 13) E Castoriadis, em 1985, falando sobre o regime
russo: “Na verdade, o totalitarismo tem sido ‘digerido’ como uma
coisa do passado, um assunto para sucessos de televisão ou exploração
literária. A comercialização do passado serve, por assim dizer, para
empurrar para o passado as possibilidades do monstruoso e para fugir
da monstruosidade com que nos confrontamos hoje em dia.”
(CASTORIADIS. Os destinos do totalitarismo, p. 9.)

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15. ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 29.

16. Veja a história de Benjamin Disraeli em ARENDT. O poderoso
mágico, p. 91-101.

17. LEFORT, citado por ENEGRÉN. La pensée politique de Hannah
Arendt, p. 195.

18. ENEGRÉN. La pensée politique de Hannah Arendt, p. 197-198.

19. Sobre isto ver CHÂTELET, PISIER-KOUCHNER. As concepções
políticas do século XX - história do pensamento político, p. 575-586.

20. ENEGRÉN, op. cit., p. 203-207.

21. YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt, p. 276.

22. BOBBIO, MATTEUCCI, PASQUINO. Dicionário de política, p.
1255.

23. Ibidem, p. 1254.

24. CHÂTELET, PISIER-KOUCHNER. As concepções políticas do
século XX – história do pensamento político, p. 587.

25. Ibidem, p. 580.

26. LEFORT. Hannah Arendt e a questão do político, p. 27.

27. CASTORIADIS. Os destinos do totalitarismo, p. 23.

28. ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 506.

29. LEVI. Les naufragés et les rescapés - quarante ans après Auschwitz.
Trata-se de um romance autobiográfico, onde o autor faz um relato

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sobre o contato criado entre os opressores e os oprimidos e as técnicas
produzidas para aniquilar a personalidade de um indivíduo.

30. ROUSSET. Les jours de notre mort. Romance sobre o universo
concentracionário, suas regras, seus personagens e o processo de
aviltamento do homem.

31. BETTELHEIM. O coração informado - autonomia na era da
massificação. Este livro trata da vivência humana dentro de situações
extremas.

32. ROUSSET. Les jours de notre mort, p. 226.

33. LEVI. Les naufragés et les rescapés - quarante ans après Auschwitz, p.
39.

34. ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 506.

35. ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 491.

36. VETÖ. Archives de Philosophie, p. 549-584.

37. ARENDT. Esprit, n. 6, p. 74.

38. VETÖ. Archives de Philosophie, p. 572.

39. ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 522.

40. ENEGRÉN. La pensée politique de Hannah Arendt, p. 207.

41. ARENDT, citada por VETÖ. Archives de Philosophie, p. 573.

42. ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 455.

43. Sobre isto ver ARENDT. A vita activa e a Era Moderna.

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44. Vindas da sociedade do Estado-nação, que era dominada por classes
cujas fissuras haviam sido cimentadas pelo sentimento nacionalista,
essas massas, no primeiro desamparo de sua existência, tenderam para
um nacionalismo especialmente violento, que os líderes aceitavam por
motivos puramente demagógicos. Sobre isso ver ARENDT. Origens
do totalitarismo, p. 367.

45. O isolamento e a solidão não são a mesma coisa: enquanto o
isolamento se refere ao terreno político da vida, a solidão se refere à
vida humana como um todo. Isto é bastante discutido em Origens do
totalitarismo, p. 528-529. Em qual medida a faculdade de pensar, que
se exerce na solidão, se estenderia à esfera puramente política onde eu
estou sempre com outros; é uma questão que Hannah Arendt irá
desenvolver em A vida do espírito, sua última obra.

46. A questão da solidão nas sociedades contemporâneas é discutida, de
forma pertinente, por David Riesman. O autor faz uma análise dos
problemas que defronta o indivíduo em toda parte onde a moderna
civilização industrial e de massas instalou seu ritmo e seus processos.
(RIESMAN. A multidão solitária).

47. CHÂTELET, PISIER-KOUCHNER. As concepções políticas do
século XX - história do pensamento político, p. 587.

48. ARENDT, citada por VETÖ. Archives de Philosophie, p. 580.

49. Em ABRANCHES. Pensamento e considerações morais, p. 167.

Capítulo III. A banalidade do mal: uma invenção


contemporânea
1. ROUSSET, citado por ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 487.

2. ARENDT, citada por YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt, p. 332.

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3. ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 510.

4. A acusação sobre “o ódio de ser judeu” foi feita a Hannah Arendt por
Pinhas Rosen e se refere ao livro de T. Lessing, publicado em Berlim
em 1930, no qual ele coloca a questão: “Como se explica o fato de que
todos os povos amem a si mesmos e os Judeus sejam os únicos a se
odiarem?” (LESSING. La haine de soi, le refus dêtre juif, p. 45. Trad.
francesa em 1990.)

5. YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt, p. 444.

6. KOCH. Le “Cas Eichmann” et les allemands, p. 169-173.

7. ARENDT. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
mal, p. 139.

8. Hannah Arendt se apoia principalmente em HILBERG. La destruction
des juifs d’Europe, ROUSSET. Les jours de notre mort;
BETTELHEIM. O coração informado - autonomia na era da
massificação; e POLIAKOV. Le bréviaire de la haine: le III Reich et
les juifs; que não desconhecem também esses fatos.

9. YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt, p. 455-465.

10. LEVI. Les naufragés et les rescapés – quarante ans après Auschwitz.

11. ENEGRÉN. La pensée politique de Hannah Arendt, p. 213.

12. YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt, p. 475.

13. ARENDT. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
mal, p. 133.

14. YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt, p. 477.

15. ARENDT. La responsabilité collective, p. 175-184.

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16. Ibidem, p. 175.

17. É mister lembrar que, na concepção de Hannah Arendt “o pensamento
político é representativo. Formo uma opinião considerando um dado
tema de diferentes pontos de vista, fazendo presente em minha mente
as posições dos que estão ausentes; isto é, eu os represento.”
(ARENDT. Entre o passado e o futuro, p. 299.)

18. YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt, p. 456.

19. Ibidem, p. 457.

20. Ibidem, p. 458.

21. Ibidem, p. 458.

22. Ibidem, p. 457.

23. SCHOLEM. Le procès Eichmann: un débat avec Hannah Arendt, p.
213-228.

24. YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt, p. 473.

25. ARENDT, citada por YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt, p. 491.

26. ARENDT. Le “Cas Eichmann” et les allemands, p. 169-173.

27. Idem.

28. HILBERG. La destruction des juifs d’Europe.

29. Ver esclarecimento sobre os motivos de Ben Gurion em YOUNG-
BRUEHL. Hannah Arendt, p. 447-448.

30. ARENDT. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
mal, p. 293.

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31. FERRAZ JR. Apresentação, em ARENDT. Eichmann em Jerusalém:
um relato sobre a banalidade do mal, p. 8.

32. ARENDT. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
mal, p. 294.

33. ERRERA. Critique, n. XXI, mars 1965, toma como referência os
estudos de Poliakov, sob o ponto de vista da História, o de Pottecher,
sob o aspecto jurídico e, sobretudo, o de Hannah Arendt, sob o aspecto
da Política. Para ele somente Hannah Arendt apresenta um julgamento
bastante crítico do caso, pois sua obra se inscreve, sem precedentes
reflexões de filosofia política, e levanta questões fundamentais
jurídicas, históricas e políticas.

34. BETTELHEIM. The New Republic, p. 22-33, 15 June 1963.

35. ESLIN. Esprit, n. 6, p. 43.

36. ARENDT. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
mal, p. 282.

37. ENEGRÉN. Esprit, n. 42, p. 30-40.

38. ARENDT, citada por YOUNG-BRUHEL. Les Cahiers du Grif, n. 33,
p. 37-42.

39. ARENDT. Le “Cas Eichmann” et les allemands, p. 169. Sobre o
argumento da “peça de engrenagem”, sabe-se que este argumento que
impressionou a tantos, nos julgamentos de Nuremberg, não pareceu a
Hannah Arendt e aos juízes, em Jerusalém, um ponto significativo. Por
mais que uma burocracia aja e execute funções como uma máquina,
perante o tribunal, ela teria de transformar-se em gente de carne e osso
e seus atos não poderiam ser documentos, cópias, mas
comportamentos comissivos ou omissivos e, como tais, seriam
julgados.

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40. ARENDT. Le “Cas Eichmann” et les allemands, p. 173.

41. Sobre isto ver a conferência “La responsabilité collective”, onde
Hannah Arendt distingue bem a culpabilidade da responsabilidade. “A
culpabilidade, contrariamente à responsabilidade, é o fato de um
indivíduo: ela é estritamente pessoal. Ela se refere a um ato, não às
intenções ou às virtualidades”. Já “a responsabilidade coletiva é mais
um termo da categoria política do que jurídica ou moral”. E “(…) os
critérios jurídicos e morais se reportam sempre à pessoa e a seu ato”.
Ela reflete sobre as consequências morais e políticas destas distinções
e, paralelamente, faz também a distinção entre a Ética, Moral e Direito.

42. ARENDT. Le “Cas Eichmann” et les allemands, p. 172.

43. Idem.

44. Idem.

45. GAUS. Seule demeure la langue maternelle. Entrevista a Hannah
Arendt, publicada em Esprit, n. 6, p. 19-40.

46. ARENDT. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
mal, p. 64

47. ARENDT. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
mal, p. 49.

48. Ibidem, p. 48.

49. Ibidem, p. 49.

50. ARENDT. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
mal, p. 140.

51. Ibidem, p. 69.

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52. ARENDT. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
mal, p. 261.

53. VIDAL-NAQUET. Le Monde, n. 13, jan. 1967.

54. ARENDT, op. cit., p. 65.

55. ARENDT. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
mal, p. 65.

56. Ibidem, p. 295.

57. Ibidem, p. 148.

58. Ibidem, p. 158.

59. Ibidem, p. 148.

60. ARENDT. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
mal, p. 148.

61. HANS FRANK, citado por ARENDT. Eichmann em Jerusalém: um
relato sobre a banalidade do mal, p. 149.

62. ARENDT. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
mal, p. 261.

63. VIDAL-NAQUET. Le Monde, n. 13, jan. 1967.

64. ARENDT, op. cit., p. 65.

65. HANS FRANK, citado por ARENDT. Eichmann em Jerusalém: um
relato sobre a banalidade do mal, p. 285.

66. Idem.

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67. ARENDT, citada por YOUNG-BRUHEL. Hannah Arendt, p. 332.

68. ARENDT. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, p. 5.

69. Em ABRANCHES. Pensamento e considerações morais, p. 146.

70. SCHOLEM. Le procès Eichmann: un débat avec Hannah Arendt, p.
221.

71. Ibidem, p. 228.

72. YOUNG-BRUHEL. Hannah Arendt, p. 466.

73. REVAULT d’ALLONNES. Esprit, n. 11, p. 49-61.

74. SCHOLEM. Le procès Eichmann: un débat avec Hannah Arendt, p.
228.

75. Citemos, por exemplo, Christine BUCI-GLUCKSMANN (La
troisième critique d’Hannah Arendt, p. 192) quando diz: “A banalidade
do mal é um deslocamento de acento e de conceito, que se explica pela
vontade de Hannah Arendt de afastar os equívocos de um mal radical
que poderia ser interpretado como vontade perversa e demoníaca.”
Mas, se podemos admitir a tese desta autora, aí está um viés tanto de
Hannah Arendt, como dela própria, pois, uma interpretação correta do
mal radical kantiano mostraria que a malignidade nele está excluída.
Um outro exemplo é o de Catherine CHALIER (Radicalité et banalité
du mal, p. 250) que usa radical como sinônimo de absoluto.

76. HERRERO. Religião e história em Kant, p. 81.

77. SCHOLEM. Le procès Eichmann: un débat avec Hannah Arendt, p.
288.

78. ARENDT. Le “Cas Eichmann” et les allemands, p. 171.

79. ARENDT. Le “Cas Eichmann” et les allemands, p. 172.

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80. SCHOLEM. Le procès Eichmann: un débat avec Hannah Arendt, p.
228.

81. Idem.

82. RICŒUR. Les Nouveaux Cahiers, n. 85, p. 57-63.

83. ARENDT. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, p. 21.

84. SCHOLEM. Le procès Eichmann: un débat avec Hannah Arendt, p.
228.

85. ARENDT, citada por YOUNG-BRUHEL. Hannah Arendt, p. 332.

86. YOUNG-BRUHEL. Hannah Arendt, p. 482.

87. CHALIER. Radicalité et banalité du mal, p. 237-256.

88. ARENDT, citada por CHALIER. Radicalité et banalité du mal, p. 246.

89. Idem.

90. Sobre estereotipia ver os estudos de ADORNO et al. El pensar en
rótulos y la personalización de la política, p. 621-628. Estes autores
tentaram construir uma escala de medida das tendências
antidemocráticas e no estudo qualitativo das ideologias levantaram os
componentes formais do pensamento político. Para eles, o pensar em
rótulos, ou a estereotipia “ajuda a organizar aquilo que o ignorante vê
como caótico: quanto menos capaz é de entrar em um processo
realmente cognitivo tanto mais obstinadamente se aferra a certas
pautas, pois o crer nelas evita-lhe o trabalho de aprofundar
verdadeiramente nas coisas”.

91. CHALIER. Radicalité et banalité du mal, p. 247.

92. ARENDT, citada por CHALIER. Radicalité et banalité du mal, p. 247.

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Capítulo IV. O vazio de pensamento


1. ARENDT. A condição humana, p. 338.

2. JONAS. Social Research, n. 1, p. 25-43.

3. O texto do livro se origina de conferências preparadas para as “Gifford
Lectures”, da Universidade de Aberdeen, na Escócia. As conferências
sobre “o pensar” foram proferidas na primavera de 1973; aquelas sobre
“o querer”, iniciadas no ano seguinte, mas interrompidas em virtude de
um ataque cardíaco da autora. Hannah Arendt faleceu em 1975, antes
de poder, como pretendia, retomá-las em 1976, tendo, no entanto,
preparado e revisto as duas séries. O livro A vida do espírito inclui as
duas séries e ainda um apêndice com alguns trechos de suas aulas na
Universidade de Chicago e na New School for Social Research de
Nova York sobre a filosofia política de Kant, nas quais, ao discutir a
Crítica do juízo, tratava do julgar. Não constituem um trabalho
acabado, mas são importantes para o mapeamento do que deveria ter
sido a conclusão de The life of the mind. Os textos disponíveis destas
aulas foram também publicados em 1982 sob os cuidados de Ronald
Beiner com o título Lições sobre a filosofia política de Kant.

4. ENEGRÉN. Esprit, n. 42, p. 30-40.

5. ARENDT. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, p. 5-6.

6. Ibidem, p. 6.

7. ARENDT. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, p. 6.

8. ARENDT. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, p. 7-8.

9. GLENN GRAY. Social Research, n. 1, p. 44-62.

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10. ARENDT. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, p. 22.

11. ARENDT. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, p. 23.

12. Ibidem, p. 17. Conforme Enegrén, “Arendt é uma fenomenalista
estrita: a questão da verdade se apoia nas manifestações das quais não
se pode assinalar o fundamento transcendente ou somente
transcendental vindo sub-repticiamente unificar o diverso e
providencialmente racionalizar o real. Certamente não se trata da
fenomenologia husserliana à qual o primado da consciência, sempre
sereno em sua intenção teórica, confere uma virada exageradamente
egológica, nem mesmo a fenomenologia aparentemente mais grega de
Heidegger que abandona rapidamente a pluralidade do mundo pela
‘vigília’ do ser.” (…) “A apologia arendtiana da manifestação se revela
sobretudo bem vizinha da fenomenologia dos últimos escritos de
Merleau-Ponty, promovido no ‘O pensar’ ao lugar de intercessor
privilegiado.” (ENEGRÉN. La pensée politique de Hannah Arendt, p.
60-61.)

13. Ibidem, p. 62.

14. ARENDT. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, p. 131.

15. LEBRUN. Hannah Arendt: um testamento socrático, p. 60-66.

16. ARENDT. A vida do espírito-, o pensar, o querer, o julgar, p. 130.
Segundo Platão, alguém chamou Sócrates de “arraia-elétrica”, um
peixe que paralisa e torna os outros adormecidos ao seu contato.

17. Ibidem, p. 132.

18. ARENDT. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, p. 133.

19. Sobre a analogia entre o papel do espectador e o do filósofo, Hannah
Arendt cita a parábola atribuída a Pitágoras: “A vida é como um
festival; assim como alguns vêm ao festival para competir, outros, para
exercer os seus negócios, mas os melhores vêm como espectadores;

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assim também na vida os homens servis saem à caça da fama ou do
lucro, e os filósofos à caça da verdade.” (ARENDT. A vida do espírito:
o pensar, o querer, o julgar, p. 72.)

20. ARENDT. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, p. 66.

21. Ibidem, p. 60.

22. Ibidem, p. 77.

23. Ibidem, p. 80.

24. Idem.

25. Ibidem, p. 84.

26. LEBRUN. Hannah Arendt: um testamento socrático, p. 62.

27. ARENDT. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, p. 139.

28. ARENDT. Homens em tempos sombrios, p. 19.

29. ARENDT. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, p. 141.

30. Idem.

31. ARENDT. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, p. 141.

32. ARENDT. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, p. 143.
Sobre a palavra consciência, Hannah Arendt observa que “muito
tempo se passou antes que a língua separasse a palavra ‘consciência’
(consciousness) da ‘consciência moral’ (conscience); e em algumas
línguas, como o francês” (como é o caso também do português), “essa
separação nunca foi feita”.

33. Ibidem, p. 141.

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34. LEBRUN. Hannah Arendt: um testamento socrático, p. 62.

35. ARENDT. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, p. 141.

36. Em ABRANCHES. Pensamento e considerações morais, p. 160.

37. ARENDT. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, p. 37.

38. Ibidem, p. 12.

39. Ibidem, p. 134.

40. Em ABRANCHES. Pensamento e considerações morais, p. 160.

41. LORIES. Études Phénoménologiques, n. 2, p. 55-91.

42. ARENDT. A vita activa e a Era Moderna, p. 260-338.

43. ARENDT. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
mal, p. 164.

44. KANT. La religión dentro de los limites de la mera razón, p. 97.

45. Em ABRANCHES. Pensamento e considerações morais, p. 159.

46. ARENDT. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, p. 144.

47. LORIES. Études Phénoménologiques, n. 2, p. 84.

48. ARENDT. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, p. 60.

49. Ibidem, p. 151.

50. As notas que foram reunidas e organizadas por Ronald Beiner
aparecem, em português, sob o título de Lições sobre a filosofia

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política de Kant.

51. MONGIN. Esprit, n. 6, p. 100. O estético aqui significa que o espírito
político reata o seu acesso sensível e visa o acordo (ou o desacordo) de
muitos, que está no horizonte do diálogo, na encruzilhada das opiniões
que se enraízam no ser, na sua relação com o mundo.

52. ENEGRÉN. La pensée politique de Hannah Arendt, p. 242.

53. ARENDT, citada por YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt, p. 332.

54. Ronald Beiner observa que Hannah Arendt tenta extrapolar da
experiência política clássica a noção de isonomia – igualdade política
– e que ela interpreta a noção de isonomia em contraposição à de
igualdade natural, usada pela filosofia política moderna (Hobbes,
Locke, Rousseau). Para ela é precisamente porque o homem não é
igual, por natureza, que ele “precisa de uma instituição artificial, a
polis, que em virtude de seu nomos poderia fazê-lo igual. A igualdade
existe somente, em sua especificidade, no reino político, onde os
homens encontram uns aos outros como cidadãos e não como pessoas
privadas (…) A igualdade da polis grega, sua isonomia, foi um atributo
da polis e não do homem que recebeu sua igualdade em virtude de sua
cidadania e não em virtude de seu nascimento.” (ARENDT, citada por
BEINER. Political Theory, v. 18, n. 2, p. 238-254.)

55. Nesse ponto, está clara a identificação de Hannah Arendt com Hobbes.
Ela explicita essa identificação quando diz: “Hobbes é o único filósofo
político em cuja obra a morte, na forma do temor da morte violenta,
desempenha um papel crucial. Porém não é a igualdade perante a
morte que é decisiva para Hobbes, mas sim a igualdade no temor,
resultante da igual habilidade para matar que possuem todos aqueles
capazes de persuadir os homens, em estado natural, a unirem-se em
uma comunidade.” (ARENDT. Da violência, p. 38.)

56. ARENDT. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, p. 134.

57. Idem.

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58. SCHOLEM. Le procès Eichmann: un débat avec Hannah Arendt, p.
213-228.

59. ROSENFIELD. Do mal. Para introduzir em filosofia o conceito de
mal, p. 51.

Conclusão
1. O início do interesse de Hannah Arendt pelo problema do mal parece
coincidir com a data em que ela situa o início do seu engajamento
político, precisamente a de 27 de fevereiro de 1933, dia do incêndio do
Reichstag e das prisões ilegais que se seguiram, na mesma noite. Sobre
isso ver: ABRANCHES. Só permanece a língua materna.

2. Essa ideia do thaumatzein como o início da filosofia bem como da
política encontra-se amplamente discutida em: ABRANCHES.
Filosofia e política, p. 91.

3. ARENDT. Lições sobre a filosofia política de Kant, p. 38.

4. REVAULT d’ALLONES. Esprit, n. 11, p. 49-61.

5. A questão da aparência no pensamento arendtiano torna-se muito clara
quando a autora mostra “o valor da superfície”, na primeira parte de A
vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar.

6. A expressão é de LIPOVETSKY. La era dei vacío - ensayos sobre el
individualismo contemporáneo.

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