Escrituras Cadernos de Arte e História
Escrituras Cadernos de Arte e História
Escrituras Cadernos de Arte e História
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC
ISBN 978-65-89687-01-6
CDU 008(91)
Coordenação Organização
Gisele Ribeiro Sheila Cabo Geraldo
Sheila Cabo Geraldo Maria Eduarda Kersting Faria
Tadeu Ribeiro Rodrigues
Integrantes
Adalgiso Junior Projeto Gráfico
Bárbara Carneiro Lucas Albuquerque
Camila Fersi
Claudia Duche Revisão
Cláudia Tavares Maria Eduarda Kersting Faria
Fernando Goffredo Sheila Cabo Geraldo
Maria Eduarda Kersting Tadeu Ribeiro Rodrigues
Paula Trope
Tadeu Ribeiro
Realização Apoio
8 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
ÍNDICE
11 - 14 Pequena nota para tempos de angústia
Alexandre Sá
15 - 24 Escritura e o processo de descolonização da imagem
Sheila Cabo Geraldo
25 - 37 Outras vozes, outras palavras: arte e identidade na América Latina
Gisele Ribeiro
189 - 201 Nadie olvida nada: ausência, ditadura e desaparição em Guillermo Kuitca
Maria Eduarda Kersting Faria
1
Atual diretor do Instituto de Artes da UERJ. Doutor (2011) e mestre (2006) em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da UFRJ,
licenciado em Educação Artística (Habilitação em História da Arte) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2002). Contato:
[email protected]
12 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Michel Foucault
Talvez fosse natural começar uma nota como esta de maneira ope-
racional e extremamente burocrática, repetindo de modo consciente um
método já institucionalizado de agradecimento e apresentação de um
determinado seminário, publicação e/ou produção. Se assim o fizesse,
não estaria sendo justo e lúcido com o material que aqui se apresenta por
três razões: a primeira, pela qualidade inquestionável das pesquisas aqui
reunidas. A segunda, pela memorável insistência na manutenção da reali-
zação de um evento acadêmico em um ano no qual estivemos mergulhados
em uma situação de horror e desamparo, considerando o quantitativo
galopante de mortos por Covid-19 no Brasil e no mundo. A terceira, pelo
esforço coletivo de pesquisadores, docentes e discentes que, apesar dos
pesares, insistiram na manutenção e continuidade da prática da pesquisa
como antídoto à angústia que nos atravessou e ainda nos atravessa.
Por outro lado, não é possível continuar sem que insistamos em mer-
gulhar ainda mais em uma reflexão sobre nossos devires sociais, com-
preendendo a necessidade de que a universidade, decifrada aqui como um
corpus coletivo, atente para outras urgências que surgiram a partir de uma
ampliação de seu público e da democratização do acesso que possibilitou
a entrada de grupos minoritários que jamais imaginariam poder estar
no ambiente acadêmico. Embora seja imprescindível não esquecer que o
investimento libidinal na carreira universitária não é e nem deve ser uma
obrigatoriedade, já que de fato não representa segurança absoluta, não se
pode desconsiderar o levante vagaroso que tais grupos têm proporcionado
a partir de uma prática decolonial, para além da repetição de clichês, que
certamente minaram e destruirão vagarosamente uma tradição falocên-
trica e não menos perversa, temperada por algum regime discursivo de
poder eventualmente estruturado pelo medo e pelo subjugo, na qual as
perspectivas individuais ignoravam a responsabilidade pública da pro-
dução de um saber compartilhado e não necessariamente hegemônico.
E é a este pequeno conjunto de revoltas micropolíticas, atravessadas por
algum som e fúria novos, que humildemente, devemos sempre agradecer.
14 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
15 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Escritura e o processo
de descolonização da
imagem
Sheila Cabo Geraldo 1
1
Sheila Cabo Geraldo é pesquisadora em História e Teoria da Arte, professora de Arte Moderna e Contemporânea no Depar-
tamento de Teoria e História da Arte do Instituto de Artes e do Programa de Pós-graduação em Artes – PPGArtes da Uerj. É
coordenadora, junto com Gisele Ribeiro, do Grupo de Pesquisa Escrita: arte, história, crítica. [email protected]
16 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Os arquivos e a arte
Abrindo arquivos
Fig. 2
2 Rosana Palazyan. Uma história que eu nunca esqueci... (n. 2, 2016). O vídeo é parte do trabalho
comissionado e apresentado na Bienal de Tessalônica, na Grécia, em 2013, e foi reapresentado
na Bienal de Veneza em 2015. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=wNrNMyaCHtw.
Acessado em 8 maio 2021.
22 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
3 Alice Lino comenta Das avós, de Rosana Paulino. O vídeo é parte da série Acervo Comentado,
que convida artistas, curadores e intelectuais para comentar obras do Acervo Histórico Videobrasil.
Disponível em .youtube.com/watch?v=5SgsPThMtIQ. Acessado em 10 maio 2021.
24 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
sobretudo, essas imagens são ativadas, inscritas, pela arte, em uma nar-
rativa capaz de ações transformadoras.
Referências
FOSTER, Hal. O que vem depois da farsa? São Paulo: Ubu Editora, 2021.
Outras vozes,
outras palavras:
arte e identidade
na América Latina
Gisele Ribeiro 1
1
É artista, pesquisadora e professora do Departamento de Artes Visuais da UFES. Com Pós-doutorado em Artes (PPGARTES
/ UERJ - 2019), Doutorado em Arte e esfera pública (UCLM, Espanha - 2010) e mestrado em Linguagens Visuais (EBA / UFRJ -
2002). O artigo decorre de pesquisa desenvolvida inicialmente no estágio pós-doutoral realizado na UERJ sob a orientação da
professora Sheila Cabo Geraldo, com bolsa de Pós-doutorado Sênior e vem sendo levada adiante na UFES, com a colaboração da
aluna bolsista PIBIC, Kamila P. Bodevan Peixoto, desde 2020. Contato: [email protected]
26 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Introdução
nunca estão dadas de antemão, mas que são sempre o resultado de pro-
cessos de identificação, que estão construídas discursivamente, a ques-
tão que se coloca diz respeito à que tipo de identidade as práticas artís-
ticas críticas devem ser encaminhadas a fomentar. Está claro que quem
propõem a criação de espaços públicos agonistas, nos quais o objetivo é
revelar todo o reprimido pelo consenso dominante, vão conceber a rela-
ção entre as práticas artísticas e seu público de forma muito diferente
daqueles cujo objetivo é a criação de consenso, mesmo quando o consi-
deram crítico. (MOUFFE, 2007, p.67, tradução nossa)
2 Parte dessa entrevista pode ser vista no filme Lemebel (2019) de Joanna Reposi Garibaldi e pertence ao
arquivo de Patricio Alarcón.
31 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Veja, estão sempre falando das bichas de vinte, trinta, como nós de
trinta anos, mas o que dizer dos meninos homossexuais? No garoto
que, neste momento, estão se fodendo com seis anos, com dez anos,
quem pensa neles? Na vida de merda que o cara tem que aturar na
escola... Quem pensa nessa porra? Nós somos as bichas velhas. Há
garotos, há crianças, cara! E sob essa perspectiva é que, sim, tem que
ter mudança, tem que se fazer algo! (YEGUAS DEL APOCALIPSIS apud
GARIBALDI, 2019, transcrição e tradução nossa)
Fig. 3
3 Por falta de espaço aqui não entro nesta ação, realizada na Calle San Camilo, Santiago, na noite de
25 de novembro de 1989, aniversario de Augusto Pinochet. Nela, as Yeguas convocaram o “jet cultural”
para fazer das ruas do bairro um ambiente cinematográfico, pintando estrelas (hollywoodianas) no asfalto
com material fosforescente. Uma estrela para cada travesti. Próximo ao fim da performance, um apagão
provocado pela FPMR [Frente Patriótico Manuel Rodriguez] deixou Santiago às escuras, exceto pelas
estrelas que brilhavam em San Camilo. (YEGUAS DEL APOCALIPSIS, 2018).
34 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Fig. 4
Gloria Camiruaga.
still do documentário
La venda, cor, 32
min., 2000. Fonte:
https://youtu.be/
K62TVhq39w4
indiferencia, se tapó los oídos, cerró los ojos y asumió la venda como
reemplazo a un ciclo arañado por los ecos huérfanos de su torturada
contorsión. (LEMEBEL, 2000, s.p.)
4 Pouco conhecido no Brasil, o filme de Camiruaga tem sua reverberação no recente filme brasileiro Torre das
Donzelas (2018) de Suzanna Lira.
35 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
Referências
RAUNIG, Gerald; RAY, Gene (eds.). Art and Contemporary Critical Prac-
tice: reinventing institutional critique. London: MayFly Books,
2009.
Referências filmográficas
em https://www.youtube.com/watch?v=K62TVhq39w4&lis-
t=PLtDcwWbgxys08ITnF_PyW-Bjqv4HpBM0r. Arquivo con-
sultado em 20 de novembro de 2020.
Capítulo 1
Processos
de Criação
em colaboração
41 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
Participação
pós-participativa
Ricardo Basbaum 1
1
Ricardo Basbaum (São Paulo, 1961). Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Artista, pesquisador e escritor, participa regularmente de
exposições e projetos desde 1981. Exposições individuais recentes incluem sistema-cinema: êxtase & exercício (Galeria Jaqueline
Martins, São Paulo, 2018) e nbp-etc: escolher linhas de repetição (Galeria Laura Alvim, Rio de Janeiro, 2014). Participou da 30ª e
25ª Bienal de São Paulo (2002, 2012) e da documenta 12 (2007). Teve seu trabalho incluído no 35º Panorama da Arte Brasileira
(MAM-SP, 2017) e na 20ª Bienal de Sydney (2016). Autor de Diagrams, 1994 – ongoing (Errant Bodies Press, 2016) e Manual do
artista-etc (Azougue, 2013). Professor Visitante da Universidade de Chicago (2013). Professor Titular-Livre do Depto de Arte da
Universidade Federal Fluminense. [email protected]
42 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
“Quem, eu?”
Figura 1
Ricardo Basbaum,
[pequeno evento
operístico] Você
gostaria de participar
de uma experiência
artística?, 2010, com
Joyce Gyimah, Dance
Physics and Bruce
Nockles. Diagrama
em vinil adesivo sobre
fundo monocromático,
objeto de ferro
pintado, dança, som,
leitura evento no The
Showroom, Londres.
Foto Daniela Mattos
2 É assim que Allan Kaprow se refere a Marcel Duchamp em um de seus textos. Ver: KAPROW,
Allan. “Doctor MD”, In: KELLEY, Jeff (org.), Allan Kaprow: Essays on the Blurring of Art and Life, Berkeley:
University of California Press, 1993, pp.127—29.
44 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
4 A linha orgânica é uma linha que não foi traçada ou forjada por ninguém, mas que resulta do
contato de duas superfícies diferentes (planos, coisas, objetos, corpos ou mesmo conceitos). Se-
gundo Guy Brett, Lygia Clark gostava de exemplificar a linha orgânica como aquela que podemos ver
“entre a janela e o batente, ou entre os ladrilhos do piso”. Ela dizia que a linha orgânica apareceu pela
45 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
também nos referir a Umberto Eco e seu livro A Obra Aberta (1962), bem
como à estética da recepção (Rezeptionsästhetik) de Hans Robert Jauss e
Wolfgang Iser, no final dos anos 1960, na Literatura, que definiu um papel
concreto e definitivo para o agente receptor na produção simbólica de um
texto, argumentando que o autor meramente indica um processo por vir,
já que a realização da experiência literária somente se dará através do
gesto “criativo” do leitor/espectador, que completa a obra e sem o qual
esta permanece apenas uma promessa em potencial.
primeira vez em 1954, quando observou a linha que se formava onde uma colagem emoldurada
tocava o papel do passe-partout. Escreveu: “Deixei essa pesquisa de lado por dois anos porque não
sabia como lidar com este espaço libertado”. Apud BRETT, Guy. “Lygia Clark: The Borderline Between
Art and Life”, In Third Text, no.1, Autumn 1987, p.67. Ver também: BASBAUM, Ricardo. “Within the
Organic Line and After”, In ALBERRO, Alexander; BUCHMAN, Sabeth (org). Art after Conceptual Art,
Vienna and Cambridge, MA and London: Generali Foundation e The MIT Press, 2006, pp.87—99.
46 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
5 O autor faz aqui um jogo de palavras, em inglês. Primeiro, com a expressão “expected other” (um
“esperado outro”), mas cujo som em inglês também parece evocar o “espectado/r” [spectator]; e, ime-
diatamente, um jogo com a expressão “site specificity” (lugar, e especificidade). (N.T.)
6 Na realidade, Klein estava mais preocupado com as camadas “imateriais” de mediação do que
com o toque direto da obra no corpo. O título completo do trabalho é La Spécialisation de la sensibi-
lité à l’état matière première en sensibilité picturale stabilisée, Le Vide [A Especialização da Sensibi-
lidade no Estado Material Bruto na Sensibilidade Pictórica Estabilizada, O Vazio].
47 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
7 Suely Rolnik defende, de modo preciso, esse ponto de vista: “A noção de ‘antropofagia” [...]
proposta pelos modernistas [brasileiros] refere-se à prática dos nativos Tupinambás [...], um ritual
complexo, que poderia durar meses, e até anos, no qual inimigos capturados em batalha seriam
mortos e devorados; o canibalismo é apenas uma de suas etapas”. Outra etapa envolvia o executor
do ato mudar seu próprio nome e escarificar seu corpo com o nome do inimigo: “A existência do
outro [...] era portanto inscrita na memória do corpo, produzindo imprevisíveis devires da subjeti-
vidade”. Assim, ao “propor a ideia da antropofagia, a vanguarda modernista brasileira a extrapola
da literalidade da cerimônia indígena, de modo a extrair deste ritual a fórmula ética que o permeia
da existência inevitável de uma alteridade em si mesmo, fazendo-a migrar para o terreno da cul-
tura. Com este gesto, a presença ativa desta fórmula no modo de produção cultural praticado no
Brasil desde a sua fundação ganha visibilidade e é afirmada como um valor: a devoração crítica e
irreverente de uma alteridade sempre múltipla e variável”. Rolnik também propõe uma importante
atualização: “Nós definiríamos a micropolítica cultural antropofágica como um processo contínuo de
singularização, resultando da composição das partículas de um sem número de outros devorados e
do diagrama de suas respectivas marcas na memória do corpo. Uma resposta poética— com humor
sarcástico — à necessidade de confrontar a presença impositiva das culturas coloniais [...]; uma
resposta [...] à necessidade de lidar com, e positivar, o processo de hibridização trazido pelas ondas
sucessivas de imigração, que sempre configurou a experiência viva deste país”. Ver ROLNIK, Suely.
“Politics of the Fluid, Hybrid and Flexible: Avoiding False Problems’, SUM magazine for contempo-
rary art, Copenhagen: The Royal Academy of Fine Arts, n.2, Summer 2008.
48 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
8 Sobre a “teoria do contágio” [“contagion theory”], Ver PARIKKA, Jussi e SAMPSON, Tony D.,
The Spam Book, Creskill: Hampton Press, 2009; e as obras de SAMPSON, Tony D. Virality: Contagion
Theory in the Age of Networks, Minneapolis: University of Minnesota Press, 2012 e The Assemblage
Brain: Sense Making in Neuroculture, Minneapolis: University of Minnesota Press, 2017. Em conversa
pessoal com Tony D. Sampson (Londres, julho de 2013), este reconheceu as relações do projeto NBP
com a teoria do contágio, alinhando este gesto à prática da “arte pós-conceitual, que procura criar
novas ferramentas para resistir à sociedade de controle”. Cf. The Assemblage Brain, op.cit., p. 22. [N.
do A. para esta publicação]
9 Ver BASBAUM, Ricardo. “O que é NBP?” Manifesto, 1990, disponível em: http://www.nbp.pro.br/
nbp.php (acessado em 15 de Abril de 2010).
11 Ver HOLMES, Brian, “The Flexible Personality: For a New Cultural Critique”, disponível em:
http://transform.eipcp.net/transversal/1106/holmes/en; e também ROLNIK, Suely, “A Geopolítica
da Cafetinagem”, disponível em: http://eipcp.net/transversal/1106/rolnik/pt (ambos acessados em
15 de Abril de 2018).
12 A crítica de arte Glória Ferreira organizou a primeira retrospectiva do trabalho de Clark e Oiticica
em 1986, no Paço Imperial, Rio de Janeiro. A exposição “Lygia Clark e Hélio Oiticica” teve “um recorte
muito particular, [...] a ‹participação do espectador› [...] como desdobramento das questões em co-
mum a ambos durante o período Neoconcreto”. Ver FERREIRA, Glória., “Terreiro do Paço: cena para
Lygia Clark e Hélio Oiticica”, In Lygia Clark e Hélio Oiticica, Sala Especial do 9o Salão Nacional de Artes
Plásticas, Rio de Janeiro: Funarte/INAP, 1986. Clark ainda estava viva e frequentou a exposição di-
versas vezes. As discussões que ela manteve com colecionadores sobre os originais de seus Bichos,
uma série de esculturas do anos 1960 que estava incluída na exposição, tornaram-se memoráveis:
embora ela convidasse o público a manipular as esculturas, os colecionadores donos das peças
proibiam qualquer manipulação.
51 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
13 Não é coincidência que os espólios de três dos principais artistas Neoconcretos (Clark, Oiticica
e Pape) são gerenciados por suas famílias, sob o modelo de associações culturais privadas. Este
gesto justifica-se pela falta de apoio das instituições governamentais e de museus brasileiros
à arte contemporânea em geral (com raras exceções). As associações privadas precisam buscar
financiamento nos mercados corporativos e da arte, às vezes assumindo posições que contradizem
diretamente os gestos defendidos pelos próprios artistas quando vivos. Não é necessário dizer que
tais conflitos e contradições expressam veementemente aspectos da atual economia da cultura. Ver
Projeto Hélio Oiticica, fundado em 1981 (http://www.heliooiticica.org.br); Associação Cultural O Mundo
de Lygia Clark, fundada em 2001 (http://www.lygiaclark.org.br); e Associação Cultural Projeto Lygia
Pape, fundada em 2004 (http://www.lygiapape.org.br) (todos acessados em 11 de Julho de 2011).
14 Por “estratégias transformacionais” refiro-me aos diferentes programas e projetos que obje-
tivam engajar ativamente o outro (espectador ou participante) em um processo intensivo em re-
lação ao trabalho de arte, enfrentando um “campo problemático” e deflagrando um processo de
subjetivação. Ver DELEUZE, Gilles. Difference and Repetition (trans. Paul Patton), New York: Columbia
University Press, 1994, p.246.
16 Este aspecto dos trabalhos de arte contemporâneos é desenvolvido em meu texto “Quem é que
vê nossos trabalhos?”, Seminários Internacionais Museu Vale 2009, Museu Vale, VilaVelha, ES , 2009.
52 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
17 BUREN, Daniel. “Beware”, In 5 Texts, London e New York: John Weber Gallery e Jack Wendler
Gallery, 1973, p.17.
53 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
Figura 3
18 Se me refero a uma estratégia viral para o projeto NBP, quero enfatizar a relação particular que o
projeto estabelece com aspectos de replicação, contato e contágio: o trabalho (situações relacionais,
objetos e instalações) busca uma contínua re-encenação do desenho inicial da forma-específica,
sempre com diferenças, investindo em um tipo de condição tátil/háptica, na qual o corpo está sem-
pre fisicamente envolvido. Os efeitos propostos podem ser organizados em torno da “virologia” de
Jacques Derrida: o filósofo argelino-francês “inicia um empreendimento filosófico que procura ino-
cular o Outro no Eu: uma redefinição do sujeito. Eventualmente, esta ‘inoculação’ torna-se ‘infecção’,
e o Outro é radicalmente reformatado como vírus.” Citado em BARDINI, Thierry. “Hypervirus: A Clini-
cal Report’” CTheory, vol.29, no.1—2, http://www.ctheory.net/articles.aspx?id=504 (último acesso
em 15 de Abril de 2018). Grifos no original.
54 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
por contato direto mente a mente, corpo a corpo) flua mais lentamente do
que em esforços similares, onde estratégias relacionais e participativas
são organizadas mais pragmaticamente e mais orientadas ao mercado
– já que o leitor/espectador de NBP irá basicamente seguir tanto campos
visuais quanto verbais – ao mesmo tempo também produz um interes-
sante campo de ação, no qual gestos podem ser replicados sensorial e
conceitualmente; é possível ‘ver’ como estruturas visuais se acoplam de
modo complexo a conceitos, e experimentar a produção de um “espaço
de problemas sem solução”, onde questões são trazida como dispositivos
para abrir espaços e criar conexões. O sujeito é confrontado com a pro-
dução de discurso, como consequência do seu envolvimento intensivo e
sensorial com estruturas visuais/conceituais.
19 Para uma descrição das ações de “eu-você”, ver meu texto “Diferenças entre nós e eles”, disponí-
vel em http://rbtxt.files.wordpress.com (último acesso em 15 de Abril de 2018). Originalmente publi-
cado em Becky Shaw e Gareth Woollam (ed.), Us and Them — Static Pamphlet Anthology 2003—04,
Liverpool: Static Gallery, 2005.
contato com o público, já que eram ações que deveriam ser realizadas – e posteriormente discu-
tidas –apenas dentro do grupo de participantes. Na fase final de sua vida, Kaprow encorajava os
interessados a criarem novas versões de seus trabalhos “a partir de três princípios formulados pelo
artista: especificidade do local, impermanência e dúvida na arte”. Ver o guia de exposição publicado
para acompanhar a mostra “Allan Kaprow: Art as Life”, Los Angeles Museum of Contemporary Art,
23 de Março - 30 de Junho de 2008, disponível em www.moca.org/kaprow/GalleryGuide_ Kaprow.
pdf (acessado em 1 de Agosto de 2011).
56 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
21 Ver GIL, José. A imagem nua e as pequenas percepções: estética e metafenomenologia, Lisboa:
Relógio D’Água, 1996.
57 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
outro como uma extensão de você mesmo e mobilizar você mesmo como
extensão do outro – onde a alteridade é mutuamente reforçada e onde ‘eu’
e ‘você’ são continuamente substituídos por uma ampla e exterior área de
contato. O que nós podemos fazer, senão viver fora de nós mesmos?
Referências
BRETT, Guy. Lygia Clark: The Borderline Between Art and Life. Third
Text, n.1, outono, 1987.
Relatos:
pequenas histórias
dentro da História
Paula de Lima Trope 1
2
Doutoranda em História e Crítica de Arte no PPGArtes/UERJ. Mestre em Técnicas e Poéticas em Imagem e Som na ECA/USP.
Graduada em Cinema no IACS/UFF. Aluna na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Contato: [email protected].
60 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
Construir novamente as leis da vida e do agir – para essa tarefa nossas ciências da
fisiologia, da medicina, da sociedade e da solidão não se acham ainda suficientemente
seguras de si: e somente delas podemos extrair as pedras fundamentais para novos ideais
(se não os próprios ideais mesmos). De modo que levamos uma existência provisória ou
uma existência póstuma, conforme o gosto e o talento. O melhor que fazemos, nesse
interregno, é ser o máximo possível nossos próprios reges (reis) e fundar pequenos
Estados experimentais. Nós somos experimentos: sejamo-lo de bom grado!
Friedrich Nietzsche
Figuras 1 e 2
3 A expressão vulnerabilidade social vem sendo utilizada por cientistas sociais de diferentes disci-
plinas desde os anos 1990, a partir do esgotamento da matriz analítica da pobreza, que se reduzia
a questões econômicas. Trata-se de um complexo e dinâmico campo conceitual, por isso mesmo
em construção, constituído por diferentes concepções e dimensões que podem voltar-se para o
enfoque econômico, ambiental, de saúde, de direitos, entre tantos outros. Nesse sentido, a vul-
nerabilidade passa a ser compreendida relativamente a determinadas condições e circunstâncias,
de diferentes naturezas, sejam elas econômicas, culturais ou sociais, que podem ser enfrentadas
e revertidas, e não mais entendida como uma essência ou algo inerente a algumas pessoas ou
comunidades (MONTEIRO, Simone Rocha da Rocha. “O marco conceitual da vulnerabilidade social”,
Sociedade em Debate, Pelotas, 17(2): 29-40, jul.-dez./2011.
4 Motivamo-nos aqui por Friedrich Nietzsche, que, ao longo de sua obra, como em A gaia ciência (2001),
Além do bem e do mal (2005), Crepúsculo dos ídolos (2006), entre outros livros, propõe uma cosmologia,
uma visão ontológica da existência em que tudo são forças, afirmativas ou reativas, em luta constante, e
que proclama o desejo e a vontade de potência criativa como forças propulsoras da liberdade e da vida.
6 Para o filósofo Mikhail Bakhtin (1997), o dialogismo é um princípio constitutivo da comunicação. A lin-
guagem dialógica seria uma construção das relações entre os índices sociais de valores que constituem
o enunciado, compreendido como a unidade da comunicação discursiva e da interação social. A todo
enunciado corresponderia um processo de trocas, réplicas, intervenções, marcas da alternância dos su-
jeitos falantes, produtores do discurso. Essa seria a natureza das unidades da língua enquanto sistema.
64 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
7 Tomamos como referência para práxis da arte o conceito tal como desenvolvido por Theodor Ador-
no, em Teoria Estética (2011). Para o autor, a obra de arte contemporânea é um ser vivo, não apenas
um artefato. Como um ser vivo, à semelhança de uma mônada, carrega em si uma história, a história
de sua época, e, nessa dimensão, se caracteriza como a historiografia inconsciente de seu momento.
65 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
Assim, Relatos pretende ser uma fissura, abertura para a vida, cristais
de realidade. Fazemos aqui uma referência indireta a uma determinada
produção imagética do domínio do documentário, que adquire o que Pascal
Bonitzer (1985) chamou de grão de real – imagens que são metamorfoses
entre os que são filmados e seus filmadores, entre ficção e documentação,
e que, por isso mesmo, criam uma janela para o mundo.
Figura 3
Auto-retrato, de um
jovem chamado
Orgulho, aos 15
anos. Serigrafia com
tinta spray. Díptico.
Relatos – pequenas
histórias dentro
da História, 2021.
Paula Trope, com
a colaboração de
adolescentes das Casas
Vivas da SMASDH/RJ.
Referências
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Cul-
trix, 1977.
BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
WOOD, Paul. Arte conceitual. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
70 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
71 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
Modos de criar em
campo aberto
Camila Ferreira Silva 1
1
Bailarina, pesquisadora e professora de dança formada em Artes Corporais pela UNICAMP/SP, mestre em Artes Cênicas pela
mesma universidade e doutoranda em Artes na UERJ. Atuou em diversas cias de dança e desde 2012 circula com seus próprios
trabalhos pelo Brasil. O mais recente é o solo COISA e a organização da mostra de trabalhos artísticos, MONSTRA, ambos desdo-
bramentos do CAMPO ABERTO, projeto central deste artigo. Contato: [email protected]
72 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
2 www.youtube.com/c/CampoAberto; https://www.instagram.com/campo__aberto/?hl=pt .
74 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
3 São muitas versões entre a dança, o teatro e a performance sobre o surgimento do termo Cena
Expandida. Deixo aqui uma referência instigante e polêmica em torno dessa questão e que pode ser
o início de uma investigação mais profunda: https://periodicos.ufba.br/index.php/revteatro/article/
view/20620, acesso em 11/3/2021. Loie Fuller - Artista precursora da Cena Expandida de Gabriela
Lírio Gurgel Monteiro.
6 Ideia trabalhada pelo Prof. Dr. Ricardo Basbaum no curso Conceitualismo, Pós-conceitualismo e
Formas de vida, que está sendo ministrado nesse primeiro semestre de 2021.
76 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
multilinguagem ao estilo Jonh Cage (1912-1992), que vivia sua música mis-
turada ao mundo, falava de ecologia, política, cogumelos, economia e acon-
tecimentos triviais extraindo poesia de tudo e de nada (CAGE, 2013, p.23).
Figura 1 Percebemos que as pessoas estão tristes e não é fácil fazer um movimento
que vá contra o que nos empurra, mas foi e é preciso. Essa micropolítica
Acervo Instagram
Campo Aberto, Print ativa7 acabou por gerar um movimento maior, de convívio, de experiência
de tela por Camila sensível, de redescoberta das casas, de invenção de corporeidade e pulsa-
Fersi, 2020. ção da arte. Uma ação política poética contra o embrutecimento da vida.
7 Termo usado pela Profª. Drª. Suely Rolnik na palestra intitulada - À escuta de futuros em germe – no canal
Agenciamentos: <www.youtube.com/watch?v=4yZRBY8eFXc&t=1718s> . Acesso em 26/04/2021.
79 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Processos de criação em colaboração
Figura 2
Acervo Instagram
Campo Aberto,
desenho de Patrícia
Reinheimer, 2021.
Referências:
FREIRE, Paulo. A educação e mudança. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1981.
Capítulo 2
Corpo,
Violência e
Sociedade
83 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Corpo, violência e sociedade
Conjunções disjuntivas
na colagem:
Luciano Vinhosa 1
1
Artista visual e teórico da arte. Professor do Departamento de Arte e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Contem-
porâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense. Bolsista de Produtividade em Pesquisa, CNPq. Este ensaio integra a
pesquisa Fotoperformance: passos titubeantes de uma linguagem em emancipação financiada pelo CNPq, a quem devo meus
agradecimentos. Contato: [email protected]
84 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Corpo, violência e sociedade
Colagem
Cabe ressaltar que, para fins metodológicos e bom uso das ferra-
mentas conceituais, estamos fazendo distinção entre montagem e cola-
gem. Termos muitas vezes empregados pelos teóricos da arte de forma
pouco rigorosa como se tratassem de técnicas reversíveis e sem maiores
consequências analíticas. Se para montagem tomamos anteriormente
como modelo conceitual a técnica cinematográfica que dispõe lado a lado
quadros de imagens em justaposição, estabelecendo entre eles relações
arbitrárias de continuidade para induzir uma narrativa2, para colagem
são as experiências plásticas realizadas por Picasso e Braque na segunda
década de 1900 − entre 1912 e 1914, curto período de tempo em que fizeram
suas experimentações − que estão sendo levadas em consideração. Neste
caso, ao lançar mão de materiais heterogêneos como pedaços de jornal,
de papel de parede, rótulos de mercadorias e achatá-los temporalmente
em um mesmo espaço pictórico de modo concorrente, a colagem cubista
engendra uma entidade autônoma em que os fragmentos de signos ver-
bais/visuais, desapropriados de seus significados e contextos originais,
rearticulam simultaneamente novas associações plásticas, formais e sig-
nificantes no interior da composição. Ao mesmo tempo, esses mesmos
fragmentos conspiram com a heteronomia por estarem, desde seu advento,
Figura 1 aderidos ao mundo, à vida cotidiana, à sociedade do consumo e aos fatos
sociais diversos e atuais.
Yves Klein, Le journal
d’un seul jour, 1960.
Fonte: http://www.
laboiteverte.fr/
les-coulisses-du-
saut-dans-le-vide- 2 Luciano Vinhosa. Fotoperformance em montagem: entre ficcionalidade e ficção. In: Anais do 25º
dyves-klein/ Encontro da ANPAP. Porto Alegre : UFRGS, 2016. p. 1019-1038.
86 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Corpo, violência e sociedade
Figura 2
Pablo Picasso,
Violino, 1912. Fonte:
Colagem e desenho
sobre papel. Fonte:
Os papéis de Picasso
(KRAUSS, 2006, p. 47)
3 Manet adota em seu Déjeuner sur l’herbe a disposição triangular do Renascimento. Submetidas à
um esquema geométrico rígido, as personagens em questão não se agrupam em torno de conteúdo
narrativo claro.
88 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Corpo, violência e sociedade
4 Este conceito – absorbément –, caro a suas teses sobre antiteatralidade da arte moderna, Fried
o toma de empréstimo a Diderot.
89 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Corpo, violência e sociedade
5 “Fragmentadas demais para representar na forma corporal o mundo dialógico dos romances,
elas [as colagens] decretam a pura circulação da própria sociabilidade, a forma de jogo da ‘declara-
ção’ que ainda não foi plenamente pronunciada”. (KRAUS, 2006, p.79).
91 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Corpo, violência e sociedade
Da pintura à performance
O fato de a tela ser atacada a golpes por suas quatro bordas deixava
o espaço da pintura sem um centro, figura ou fundo. Com efeito, no lugar
de revelar uma trama interna, em profundidade, ela se insinuava no espaço
real do espectador. No conjunto, quando expostas lado a lado, suas telas,
em grande escala, se comunicavam umas com as outras, formando uma
ambiência inseparável da experiência da arquitetura. Se a perspectiva nos
dá a impressão de continuidade entre o nosso espaço e o da representação,
ela somente consegue esse efeito graças a ilusão de profundidade que
projeta o espectador para o ponto de fuga, no interior da representação.
Mas, através do artifício da moldura, ela deixa bem claro os devidos luga-
res de cada um: o espaço real do espectador e o ilusório da representação.
Kaprow chega à conclusão última de que com Pollock a pintura abandona
a ilusão do quadro e dá um salto para a vida.
O ateliê é o mundo
Referências:
1
Cláudia Pinto Duche (Fundação de Apoio à Escola Técnica – FAETEC), graduada em Educação Artística/Artes Visuais pela
Universidade Estácio De Sá, especialista em Teoria da Arte: Fundamentos e Práticas Artísticas pela UERJ, mestranda em Artes
pela UERJ, professora de Artes Visuais e Coordenadora do Núcleo Pedagógico Cineclube Olho na Cena, na Escola Técnica Adolpho
Bloch – ETEAB. Contato: [email protected]
96 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Corpo, violência e sociedade
Introdução
2 Nesta pesquisa ‘corpo fêmeo’ aborda questões de gênero no corpo cis. Foi mantida a escrita
tradicional para facilitar a compreensão do texto.
3 Corpo Estético Político Performando Juventude. Cláudia Duche. Rio de Janeiro, 2019, 4’42”.
97 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Corpo, violência e sociedade
Risco oculto
“Mal tirada; fora de foco, ângulo ruim; uma floresta?; péssimo fotó-
grafo!”; risos. A fotografia gerou frustração, que gerou desinteresse. Mostro
a segunda imagem.
“Mesma floresta; tem gente pelada lá. O que é isso?”. Risos. “Um
monte de gente pelada!” Gargalham e falam alto. O tabu sobre o corpo
predomina, diante da nudez habitualmente reprimida, o riso oculta a ver-
gonha e escancara a moralizante percepção do primeiro indício de se estar
no mundo: o corpo nu.
Estou junto, sento-me ao lado, não sou mais a outra. Vozes num tom
baixo, se escutam. Todos têm algo a ser dito, algo em comum. Comunhão.
“Pois a comunidade, ou melhor, o em-comum, [...] depende também da
possibilidade, sempre retomada, da partilha sem condições de algo absolu-
tamente intrínseco, isto é, incontável, incalculável e, portanto, inestimável”
(MBEMBE, 2020, p. 7). Mostro a terceira imagem.
Fig. 1
Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo
como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo. Pois “fatos”
nada são além de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa
entregam aquilo que recompensa a escavação (BENJAMIN, 1987, p. 239).
6 Museu de Arte do Rio (MAR) expôs: Rosana Paulino: A Costura da Memória, entre 13 de abril de
2019 a 25 de agosto de 2019.
7 “Assentamento” significa colocar no lugar, do latim ADSENTARE, de AD, junto a, mais SENTARE,
alteração de SEDERE, sentar.
103 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Corpo, violência e sociedade
9 Fetiche descrito sob o ponto de vista lacaniano, insistindo que “ao tomar o outro como um objeto
de gozo, ele se situa de forma precária no que diz respeito ao registro das trocas e da experiência,
na medida em que não se reconhece faltante. Isso, por sua vez, leva-o ao exercício de uma forma
de violência que pode se materializar através da usurpação e coisificação do corpo do outro” (ROSA
JUNIOR & POLI, 2012, p. 675).
105 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Corpo, violência e sociedade
tona uma entidade mítica encantada, imposta a uns e adotada como crença
a outros, o mito da democracia racial. O racismo, conscientemente natura-
lizado, aliena o saber como opção ideológica. Encobre conscientemente a
consciência. Enquanto a memória atuará no seu oposto, será a lembrança
do não escrito, restituição da ficção. Esse embate onde um exclui o que o
outro inclui alimenta um discurso que não é conscientemente dito, mas
falado a todo instante.
10 RILEY, Denise. Am I that Name?: Feminism and the Category of Feminist Women in History, Nova
York: Macmillan, 1988.
11 “Quem é a pessoa retratada nas imagens? [...] Penso que é importante refletirmos sobre o fato
de que a população negra não tem, na grande maioria dos casos, como traçar sua origem. Portan-
to, a mulher retratada na imagem poderia, quem sabe, ser uma parenta distante da artista, por
106 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Corpo, violência e sociedade
Conclusão
Referências
BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única. Obras escolhidas II. São Paulo:
Editora Brasiliense. 1987.
exemplo. Quem sabe uma bisavó, talvez...” PAULINO, Rosana. Apostila Educativa,2013. Disponível
em: http://www.rosanapaulino.com.br/blog/tag/assentamento/ acessos em 15 de maio de 2021.
107 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Corpo, violência e sociedade
-america-latina-partir-de-uma-perspectiva-de-genero/, acessos
em 17 de maio de 2021.
ROSA JÚNIOR, Norton Cezar Dal Follo; POLI, Maria Cristina. Feti-
chismo: Falo Materno e Gozo diante do Inanimado. Revista
Mal Estar e Subjetividade – Fortaleza, v. XII, n. 3-4, p. 663-682,
dezembro 2012.
1
Tadeu Ribeiro é doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre
em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense e bacharel em História da Arte pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Contato: [email protected]
110 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Corpo, violência e sociedade
2 GALARD, Jean apud DIDI-HUBERMAN, G. In: Alfredo Jaar: la política de las imágenes. Santiago de
Chile: Metales Pesados, 2008, p.56.
111 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Corpo, violência e sociedade
5 O conjunto de estereótipos racializado é extenso e varia segundo cada região da América Latina. No
contexto brasileiro, além das célebres figuras do malandro e do preguiçoso insolente, Lélia Gonzalez
aprofunda a análise em torno dos diferentes estereótipos da mulher negra: a mulata, a mucama, a
mãe preta, entre outros (ver Racismo e sexismo na cultura brasileira, publicado por Gonzalez em 1984).
114 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Corpo, violência e sociedade
6 Barriendos refere-se aqui ao que James Clifford denomina como “crise pós-colonial da autorida-
de etnográfica” (CLIFFORD apud BARRIENDOS, 2019, p.43).
116 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Corpo, violência e sociedade
7 Entrevista concedida pela artista para a revista Contemporary and América Latina (C&) publicada
em 2018. Disponível em: https://amlatina.contemporaryand.com/pt/editorial/regina-jose-galindo/.
Último acesso: 01/12/2020.
118 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Corpo, violência e sociedade
Fig. 3
Referências
Capítulo 3
Arquivo
e crítica
123 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arquivo e crítica
A arte crítica
de Fernando Bryce
Luiz Cláudio da Costa 1
1
Luiz Cláudio da Costa, Professor Associado do Instituto de Artes e do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Bolsista de Produtividade em Pesquisa, CNPq, do Programa Cientista do Nosso Estado da Faperj, do
Prociência-UERJ. E-mail: [email protected]
124 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arquivo e crítica
Introdução
2009. As oito séries que o compõe foram realizadas entre os anos de 2002 e
2005 e encontram-se dispersas em diferentes coleções dos Estados Unidos,
da Alemanha e de Portugal. Trabalhando com figurações e textos fora dos
códigos da representação que regulam a experiência sensível, Fernando
Bryce volta-se para a história do continente latino-americano, buscando
as formações, os sintomas nos documentos desenhados, não as significa-
ções claras. Sob a perspectiva da análise mimética, Bryce em Américas atua
provocando deslizamentos e contaminações entre a história e a memória.
3 Essas informações são dadas ao final do livro Américas de Fernando Bryce (BRYCE, 2009). Como
referência da obra de Fernando Bryce, ver também o catálogo da exposição Dibujando la historia
moderna (BRYCE, 2012).
127 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arquivo e crítica
4 Todos os subtítulos e excertos de escritos nas séries são traduzidos pelo autor deste artigo.
128 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arquivo e crítica
Fig. 1.
Fernando Bryce,
Américas, 2005.
Série de 44 desenhos
(nanquim sobre papel),
30x21,5cm . Cortesia de
Pablo and Tinta Henning
Collection, Houston,
TX (USA) and Galerie
Barbara Thumm, Berlim
131 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arquivo e crítica
5 Bryce sugere a estratégia anacrônica numa palestra proferida na ocasião de sua exposição The
book of needs, na University Research Gallery no Havard Art Museum em 2018. Ver a gravação da
palestra em: https://www.harvardartmuseums.org/exhibitions/5635/fernando-bryce-the-book-o-
f-needs. Acesso em 21/10/2020. George Didi-Huberman define o anacronismo que opera nas ima-
133 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arquivo e crítica
Figura 2 mas documentos que não cumprem propriamente sua função de arquivo.
Fernando Bryce, Visión Apropriados e copiados no formato do desenho, os documentos são deslo-
de la Pintura Occidental, cados para o espaço da arte e se tornam imagens da memória. Como arte,
2002. Série de 96 os desenhos são imagens únicas, embora copiem documentos reproduzidos
desenhos (nanquim
sobre papel, 40x29cm) tecnicamente. Nessa dialética das formas, das imagens e dos procedimentos,
e 39 fotografias Bryce realiza uma arqueologia crítica da arte.
(tamanhos variados.
Instalação no Museum
Het Domein, Sittard. Criada em 2002, Visión de la pintura Occidental é estruturada por três
Cortesia de VAC paredes que compõem o espaço expositivo. Na parede central ao fundo, a
Collection, Valencia, instalação exibe reproduções fotográficas de pinturas clássicas e modernas
Espanha. Foto: Bert
Janssen, Maastricht. sem ordem histórica – Leonardo Da Vinci, Sandro Botticelli, Rembrandt, Van
Gogh, Picasso. O conjunto de 39 cópias de pinturas de dimensões diversas
cria uma estrutura gradeada de traçados desalinhados. Emolduradas, as
fotografias preenchem praticamente toda a parede de cima abaixo. Todas
as cópias pertencem ao Museo de Reproducciones Pictóricas de Lima,
criado no início da década de 1950 para servir à formação dos artistas
locais. Nas duas paredes laterais do espaço em cubo constam 96 desenhos
de cartas e outros documentos originalmente inventariados pelo museu.
gens como uma plasticidade fundamental de diferentes tempos, questionando o “objeto história”
da história da arte, a historicidade ela mesma. Ver Didi-Huberman, 2008, p.17.
134 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arquivo e crítica
e a imaginação do espectador.
Referências
Institucionalização
e crítica: reflexões a
partir do Arquivo Barrio
Bárbara Carneiro Drummond Alves 1
1
Graduada em História da Arte no Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Este artigo é resultado da
participação no grupo de pesquisa CNPq “Políticas da memória: estudos sobre o colonialismo e o pós-colonialismo na América
Latina, Brasil, Argentina e Chile” enquanto bolsista de iniciação científica, a partir da criação e construção de um arquivo digital
acerca da obra do artista Artur Barrio.
140 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arquivo e crítica
Introdução
Portanto, por achar que os materiais caros estão sendo impostos por
um pensamento estético de uma elite que pensa em termos de cima
para baixo, lanço em confronto situações momentâneas com o uso de
materiais perecíveis, num conceito de baixo para cima.3
Em 1970, durante o evento “Do Corpo à Terra”, Artur Barrio cria mais
uma situação em que as T.E.s, como ele apelida as trouxas ensaguentadas,
são protagonistas. Chamada de Situação T/T, a obra teve início na noite do
dia 19 até a madrugada de 20 de abril, quando foram preparadas e depois
dispostas as quatorze trouxas num rio do Parque Municipal de Belo Hori-
zonte. Os policiais foram chamados para averiguar na manhã do dia 20 de
Figura 1
Figura 2
Artur Barrio.
CadernosLivros
Fotografia: Paulo
Rodrigues. Fonte:
Projeto Barrio.
5 CABANNE, Pierre. Engenheiro do tempo perdido: Marcel Duchamp. 2a edição. São Paulo:
Perspectiva, 1997. Coleção “Debates”. Volume 200. p.65.
145 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arquivo e crítica
Barrio uma forma. Suas obras de arte tomam forma através dos processos.
Arquivo e Construção
Hanold tem sonhos e delírios com a figura da Gradiva que levaram Freud
a elaborar a conhecida análise “Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen” de
1907. Derrida diz:
Referências
DIDI-HUBERMAN, G. O que Vemos, O que Nos Olha. São Paulo: 34, 1998.
149 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arquivo e crítica
1
Graduando em História da Arte pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, bolsista (modalidade Iniciação Científica - vo-
luntário) do Projeto “Políticas da memória: estudos sobre o colonialismo e pós-colonialismo na América Latina (Brasil, Argentina
e Chile”). Contato: [email protected].
150 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arquivo e crítica
Situações Mínimas
peixes, o que, para Freitas, seria “uma ponte ritualística entre a profani-
dade do mundo externo e a sacralidade institucional de um museu de arte”
(2014, p. 196). A câmera percorre as manchetes e anúncios dos jornais.
SITUAÇÃO.................ORHHHHHH................. ...................................OU..................
................ .....5.000 .....T.E. .......EM ......N.Y. .....CITY ........ ......................................
..............................1969. ESTE TRABALHO DIVIDE-SE EM DUAS FASES: 1)
FASE INTERNA: realização no Salão da Bússola, Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro, Interferência no regulamento do Salão por obstruir
meus trabalhos (1 saco de papel com pedaços de jornal, espuma de
alumínio e um saco de cimento velho), transformando-os em lixo e
automaticamente em uma obra (trabalho) de transformação contínua,
anulando, assim, totalmente, o conceito germinação obra acabada. A
atuação na noite de 5.11.69, transformou os conceitos petrificados que
Lembranças Encobridoras
Conclusão
Referências
http://arturbarrio-trabalhos.blogspot.com/2008/10/situao-tt-1_22.
html. Acesso em: 30 de maio de 2021.
159 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arquivo e crítica
Relações interculturais
entre Brasil e Chile:
construção de memória
Claudia Díaz Tavares 1
1
Claudia Andrea Díaz Tavares da Silva é mestranda em Artes Visuais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (bolsista
PIBIC-UERJ), formada em Direito pela Universidade Santa Úrsula (RJ) e especialista em Administração Estratégica de Empresas
pela UNESA - RJ. Contato: [email protected]
160 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arquivo e crítica
Introdução
Museo de la Solidaridad
pela via chilena ao socialismo, razão pela qual muitos artistas doaram suas
obras para o museu como gesto solidário de apoio ao governo do primeiro
socialista a assumir o poder por via eleitoral: Salvador Allende Gossens.
Conceber a aproximação da arte ao povo é o contexto da primeira etapa do
museu, que vai de 1971 a 1973, desde o momento da sua fundação, quando
se pensou e gerou o modelo artístico cultural único para o mundo, até o
golpe militar no Chile, quando o museu fecha, conseguindo reerguer-se
no exterior um ano depois (Fase Resisténcia). A coleção “Solidaridad”, que
corresponde às obras doadas nesses anos (1971-1973) é um dos aspectos
mais importantes da história do museu. O gesto solidário e sem prece-
dentes de muitos dos artistas mais destacados e consolidados da época,
que doaram obras pela causa socialista. O presidente Allende sancionou
o projeto do museu pela sua envergadura histórica e potência cultural,
possibilitando as condições institucionais necessárias para alocar a gestão
do museu no Instituto de Arte Latinoamericano de la Facultad de Artes
de la Universidad de Chile. Mario Pedrosa estava como gestor, articulador
e fundador do Museo de la Solidaridad.
2 Mañana se inaugura el Museo de la Solidaridad. Puro Chile, 16/05/1972, p.9 (Arquivo MSSA).
3 Carta de Mário Pedrosa ao Presidente Salvador Allende, 1972 (Arquivo MSSA).
166 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arquivo e crítica
A Institucionalização
4 A Fundação Arte e Solidariedade foi criada em 9 de março de 2005, sob o decreto isento nº 1.023
do Ministério da Justiça. Seu Conselho de Pessoal é composto por cinco membros. Dois são repre-
sentantes do Poder Executivo - por meio do Ministério da Educação e da Diretoria de Bibliotecas, Ar-
quivos e Museus (Dibam) - dois da Fundação Salvador Allende e um escolhido de acordo com ambas
as partes. Esta Fundação é a entidade jurídica do Museo de la Solidaridad Salvador Allende.
169 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arquivo e crítica
Conclusão
5 MELLADO, Justo Pastor. El Museo de la Solidaridad y El Mercurio, 2004. Disponível em: http://
www.justopastormellado.cl/niued/?p=44. Acesso em julho/2021.
6 Jornal El Mercúrio, 19 de dezembro de 2004. Na sessão “Actividad Cultural” a matéria entitulada
“Un espacio contemporáneo con tesoros donados” reconstrói a trajetória do Museo de la Solida-
ridad à luz de informações prestadas pela deputada Isabel Allende, membro da Fundação Salva-
dor Allende que, entre outras atividades, administrava o MSSA. Segue um trecho da reconstrução
histórica: “Otra gran investigación fue la de averiguar qué había pasado con las obras que habían
ingresado a Chile hasta 1973. Se descubrió que estaban indebidamente inventariadas como parte
de la Universidad de Chile, en consecuencia que habían sido donadas al Estado de Chile. En ese
entonces, Isabel Allende Bussi se entrevistó con el Presidente Patricio Aylwin, quien dictó dos de-
cretos por medio de los cuales el Estado recuperó las obras ingresadas hasta 1973, entregándolas
en comodato a la Fundación Salvador Allende para que las administrara, cuidara y exhibiera. Hoy, el
museo tiene dos vertientes: una con las obras que ingresaron hasta 1973 (propiedad del Estado), y
otra que corresponde a las obras donadas en diversos países durante el gobierno militar (propiedad
de la Fundación Salvador Allende). De allí que se unieran los dos nombres para formar el Museo de
la Solidaridad Salvador Allende”.
171 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arquivo e crítica
REFERÊNCIAS
Capítulo 4
Arte/política
na América
Latina
175 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arte/política na América Latina
Na grande noite
das Américas
Marisa Flórido Cesar 1
1
Professora do Instituto de Artes e do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
crítica de arte, curadora independente. Autora de textos e livros sobre arte moderna e contemporânea.
176 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arte/política na América Latina
2 O “curral humano” foi inventado na Seca do Quinze e multiplicado na seca de 1932. Não há
dados oficiais do número de mortos. O presidente Getúlio Vargas, em discurso publicado na década
de 1930, referiu-se a esses locais como “campos de concentração”, estimando que cerca de um
milhão de pessoas ficaram lá confinadas. A caminhada da seca tornou-se um patrimônio imaterial
de cunho religioso, cultural e histórico do Ceará.
182 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arte/política na América Latina
3 A filmagem de Réquiem NN foi realizada em cinco visitas a Puerto Berrío, o filme demorou dois
anos para ser concluído. O filme está disponível em: http://www.requiemnnfilm.com/view.html.
183 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arte/política na América Latina
O corpo emprestado
4 Testemunho no julgamento por genocídio contra José Efraín Ríos Montt e José Mauricio Ro-
dríguez Sánchez. Trecho de um depoimento captado durante o julgamento do ex-presidente Ríos
Montt e do ex-chefe de inteligência, acusados de participar do genocídio dos indígenas ixiles.
184 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arte/política na América Latina
Entre 1960 e 1996, cerca de 150 mil pessoas foram mortas no con-
flito armado da Guatemala. As Forças Armadas e as oligarquias locais a
quem serviam elegeram os povos de origem maya como seus inimigos:
acusando-os de comunistas e apropriando-se de suas terras (ibidem, p.43),
perpetuaram assim o racismo estrutural e a necropolítica que definem as
sociedades americanas desde a colônia.
conjunto ritual está sendo construído desde 2019, depois que ela viajou
para Gana, Togo e Benin, onde conheceu sua família que voltou do Brasil
para o Benin no século 19: os D’Almeidas.
Referências
1
Mudar de mestranda para mestre na nota de rodapé. Correção: Maria Eduarda Kersting Faria é mestre pelo Programa de
Pós-Graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro na linha de pesquisa Arte, Imagem, Escrita. Bacharel e
licenciada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected].
190 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arte/política na América Latina
com aquilo que estava à suas mãos, com pedaços, restos e vestígios de seu
próprio espaço de trabalho.
esse ‘Nadie olvida nada’ hoje parece estar totalmente vinculado aos
desaparecidos e ao Nunca Más2, mas não é tão assim. É certo que as
coisas na arte não acontecem somente como um acredita, e aceito a
versão de que essa série está atravessada pela experiência argentina,
pelas Malvinas, pelo contexto histórico e social (KUITCA; SPERANZA,
1998, p.18, tradução nossa).
Fig. 1
Em Nadie olvida nada, a relação é mais ambígua com aquilo que repre-
senta, mas sem dúvida nela se conjuga um ‘reconhecimento das vítimas’.
As camas, com seus lençóis semiabertos, se mostram à espera de abri-
gar um corpo ausente. Como símbolo primeiro do lugar do nascimento,
sonho, doença, sexo e morte, o leito inscreve com sua presença uma rei-
vindicação pelo urgente vazio (USUBIAGA, 2012, p. 99, tradução nossa).
3 No livro História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça, Berber Bevernage chega a dizer
que os desaparecidos se tornaram parte integrante da política e da sociedade argentina como uma
“população de fantasmas” (2018, p. 69).
4 De acordo com Pilar Calveiro (2013), na Argentina funcionaram 340 campos de concentração
entre os anos de 1976 e 1982, e se estima que por eles passaram cerca de 15 a 20 mil pessoas, das
quais aproximadamente 90% foram assassinadas.
195 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arte/política na América Latina
Fig. 2
Guillermo Kuitca,
Nadie olvida nada,
Argentina, 1982.
Acrílico sobre madeira
pelos quais eram identificados negavam seus nomes, e eles eram colocados
amontoados em lugares que mais pareciam um depósito de cargas, fazendo
com que a humanidade dos presos se esvaísse, e então fossem tomadas
pela humilhação e animalização dos mesmos (CALVEIRO, 2013, p. 98). Os
campos pressupunham uma ruptura do preso com o mundo, existia um
processo em que a ideia era que eles não fossem considerados humanos,
e sim o antídoto disso. Essa despersonalização, presente nas figuras da
série de Kuitca, era algo que fazia parte do processo de desaparecimento de
identidade que, de acordo com Pilar Calveiro, ocorria da seguinte maneira:
uma espécie de alvo. Outra possível leitura se dá por esse fundo do quadro,
que pela cor azul pode nos remeter a ideia da água, que poderia então ser
o destino dessas mulheres, onde elas afundariam, assim como aconteceu
com milhares de desaparecidos que tiveram seus corpos lançados ao Rio
da Prata pelos voos da morte5.
Fig. 3
5 Segundo Janaina de Almeira Teles, no prólogo do livro Poder e desaparecimento de Pilar Calveiro,
“o método adotado de maneira massiva foi o de lançar ao mar os prisioneiros adormecidos por
soníferos, para onde eram transportados de caminhão ou de avião, nos chamados ‘voos da morte’.
Amordaçados, adormecidos, manietados, encapuzados, os ‘pacotes’ eram jogados no mar ainda
vivos” (2013, p. 12).
198 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arte/política na América Latina
6 Usamos aqui o conceito de alegoria na chave de leitura de Walter Benjamin, que pensa a interpre-
tação alegórica como profundamente histórica, associada à temporalidade e a historicidade, diferen-
te do símbolo que carrega um ideal de eternidade. Para Benjamin, a alegoria estaria então subordi-
nada a um desenvolvimento no tempo que afeta sua construção e compreensão (GAGNEBIN, 2013).
200 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arte/política na América Latina
Referências
Constelações latino-
-americanas na figuração
Argentina-Brasil:
anos 1960-70
Adalgiso Junior “Coruja” 1
1
Mestre pelo PPGARTES-UERJ na linha de pesquisa Arte, Imagem e Escrita, sob orientação da professora doutora Sheila Cabo
Geraldo. Contato: [email protected]
204 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arte/política na América Latina
Introdução
2 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História (edição crítica). Walter Benjamin; organiza-
ção e tradução de Adalberto Müller, Márcio Seligmann-Silva, - I. ed. - São Paulo: Alameda, 2020.
205 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arte/política na América Latina
Não seria justo, a rigor, pensar uma arte figuracionista em solo argen-
tino ou brasileiro como uma novidade no período estudado. Mesmo durante
o auge de um concretismo local, houve artistas − como por exemplo Antonio
Berni − que jamais abandonaram a fatura de obras com a figura. Outros
nomes portenhos como Alejandro Xul-Solar, Raquel Forner e Juan Battle
Planas, que não integram o presente trabalho, são provas incontestes de sua
permanência. Em terras brasileiras, nomes como Emiliano Di Cavalcanti,
Portinari, Oswaldo Goeldi e, em uma mirada expandida ao sistema das
artes de então, Heitor dos Prazeres e suas telas autodidatas que mostra-
vam, através de uma “cultura material através de imagens”3, o complexo
cultural do samba urbano carioca. Em um contexto argentino, foi sem
dúvida o madismo a tendência que mais logrou êxito, não apenas ali, mas
internacionalmente. Já no Brasil, concretos e neoconcretos atingiram certa
primazia em termos de uma arte local, operando de maneira mais alinhada
ou mais crítica a certos aspectos de um nacional-desenvolvimentismo.
3 BURKE, Peter. Cultura material através de imagens. In: BURKE, Peter. Testemunha ocu-
lar: o uso de imagens como evidência histórica. Tradução de Vera Maria Xavier dos Santos.
São Paulo: Unesp, 2017. p. 123-154.
4 Otra Figuración: grupo formado por Luís Filipe Noé, Ernesto Deira, Rómulo Macció e Jorge
De La Vega, que encabeçam em terras argentinas essa renovação da figura e influenciam
experiências em várias linguagens artísticas, não apenas localmente, como no Brasil.
206 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arte/política na América Latina
Fig. 1
5 Conforme matéria realizada pelo jornal portenho “Clarín”. Disponível em: <www.clarin.com/cul-
tura/cuadros-perdidos-deira-cerca-volver_0_05o0aZv_4.html>. Acessado em: 20/05/2021.
209 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arte/política na América Latina
Nos trabalhos de Berni, ainda que não se perceba uma pauta feminista
propriamente, uma aproximação pode se dar entre as figuras da prostituta
nas Passagens benjaminianas e nas leituras propostas por Andrea Giunta
em obras como La Gran Tentación o la Gran Ilusión e Ramona espera. A autora
argentina tece algumas considerações sobre um lugar feminino em um
contexto dos anos 1960 na América Latina. Longe de uma sobredetermi-
nação pela pobreza ou signos do consumo (o automóvel Buick ou Pontiac,
o refrigerante Pepsi que chegava a terras latino-americanas nessa época),
reflexos de uma mulher que assume, para todos os fins, a responsabilidade
por sua existência, em todos os níveis:
6 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica.IN: Schöttker, Detlev
[et al] (ORG).Benjamin e a obra de arte. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 9-40.
7 Essa última modalidade, aliás, movimentou muito da cena artística argentina nas duas décadas
estudadas, desde trabalhos como os de Delia Cancela, Nicolás García Uriburu, Charlie Squirru, Marta
Minujín.
8 De Quincey, Thomas. Do Assassinato como uma obra das Belas Artes. Lisboa: Editorial Es-
tampa, 1985.
210 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arte/política na América Latina
Fig. 2
Anônio Berni, La
Gran Tentación o La
Gran Ilusión, 1962.
Assemblage, óleo sobre
tela, colagem, 245
x 241,1 cm. (Fonte:
Coleção MALBA)
por uma oralidade ou imagens de uma certa cultura popular como as xilo-
gravuras de cordel, fato que influenciaria alguns dos artistas que praticavam
uma figuração local como Anna Maria Maiolino, Gilvan Samico e Manoel
Messias. Algo já dito antes é que, em um tipo de sociedade que esboçava
sua reelaboração a partir de imagens de TV, jornais, revistas e outdoors,
seria muito mais acessível a uma arte que intentasse lograr maior alcance
apropriar-se quanto antes de tais elementos, em vez de uma recorrência
construtiva/concreta. Mais forte no Brasil do que na Argentina, talvez
explique em parte uma retomada mais relevante da figuração primeiro lá.
Na efervescência de movimentos e trocas que vinham se dando entre os
dois países desde as experiências em décadas anteriores, uma importante
mostra do grupo neofiguracionista argentino na Galeria Bonino no Rio
de Janeiro em setembro de 1963 impactaria sobremaneira artistas como
Rubens Gerchman e Antônio Dias. O primeiro declarou, a respeito daquela
exposição, que “influenciou muito nossos pensamentos pela liberdade que
exerciam em seus trabalhos” (AGUILLAR, 2012, p. 43).
Fig. 3
Ela influenciou muito nosso pensamento pela liberdade que eles colo-
cavam em seus trabalhos. Luis Felipe Noé, a quem mais tarde conhe-
ceria durante um simpósio em Caracas, me impressionou muito. Eu
gostei dele, pois era um pintor sujo e eu sempre fui acusado, até por
meus colegas, de ser também um pintor sujo (ALONSO, 2010, p.226).
(...) No meu caso específico, a exposição que eles fizeram no MAM, que
era uma exposição grande, com trabalhos grandes, quer dizer, grande
para a época, pois a escala era a do bloco do MAM/RJ, o prédio princi-
pal ainda era um esqueleto de concreto, uma estrutura. A exposição
foi muito importante porque foi a primeira manifestação de arte que
eu vi que fugia dos elementos da tradição pictórica. Era o que na época
nós chamávamos de anti-arte, retomava algumas linguagens figurati-
vas em outros moldes, tinha essa coisa da assemblage, era uma coisa
mais ligada à vida. A colagem em uma outra figuração, com um tipo de
material que eles usavam, mais industrial (ZÍLIO, 2007, p. 5).
9 GERALDO, Sheila Cabo. ZÍLIO, Carlos. O desenho como memória e sobrevivência; a pintura e a relação
com a história. Porto Arte: Revista de Artes Visuais. Porto Alegre: PPGAV-UFRGS, v. 22, n. 37, p.1-13,
jul.-dez. 2017.
213 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arte/política na América Latina
Conclusão
10 CORDEIRO, Waldemar. Realismo ao nível da cultura de massa, in: Propostas 65. São Paulo:
FAAP, 1965.
11 O trecho correspondente na tradução é: “(...) el arte es internacional en la medida de su difusión,
como resultado, no como creación. Como creación es nacional, o sea, es el producto de un hombre
condicionado por una sociedad. Esta irrupción del nacionalismo en el arte moderno es un desafío a
Europa. La pretendida internalización del arte no era otra cosa que la internalización de lo europeo”.
214 Escrituras — cadernos de arte, história e crítica
Arte/política na América Latina
Referências