Sambaquis e Sociedades Marítimas

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ARTIGO

SOCIEDADE
SAMBAQUIEIRA,
COMUNIDADES
MARÍTIMAS
Flávio Rizzi Calippo
Centro de Ciências da Natureza da Universidade Federal do Piauí (CCN/UFPI)
[email protected]
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resumo
Por quase 8.000 anos os povos dos
sambaquis distribuíram-se ao longo de
uma extensa área litorânea, dominando abstract
grande parte das regiões costeiras e dos For nearly 8,000 years the people of the
diversos ambientes aquáticos que carac- Brazilian shell mounds are distributed over
terizavam essa região. Buscando contri- an extensive coastal area, dominating much
buir para o estabelecimento de novas of the coastal regions and the various aquatic
abordagens para o estudo dessa socieda- environments that characterize this region.
de, o presente artigo propõe uma série de Seeking to establish new approaches to the
reflexões focadas na Antropologia e na study of this society, this paper proposes a se-
Arqueologia marítima. Com isso, mais do ries of discussions focused on and Maritime
que estabelecer novas interpretações a Archaeology and Anthropology. Thus, rather
respeito desses povos, procurou-se cami- than establish new interpretations about
nhar no sentido da construção de uma these people, we tried to walk towards the
abordagem teórica através da qual os construction of a theoretical framework
sambaquieiros possam ser também com- through which people of the sambaquis can
preendidos com base nas particularida- also be understood based on the specifics of
des das “gentes do mar”. the “people of the sea.”

Palavras chavA_Sambaqui, Arqueolo- Key-words_Shellmound, Maritime Ar-


gia maritima chaeology

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Introdução dos ambientes aquáticos como a dos am-


Nas últimas décadas as pesquisas em bientes terrestres. Isso porque, mesmo en-
sambaquis atravessaram um período de in- tendendo que os povos dos sambaquis de-
tensas inovações teóricas e metodológicas senvolviam práticas sócio-culturais
que revolucionaram a maneira como os sí- diferenciadas em conseqüência do distinto
tios e os povos dos sambaquis vinham sen- valor social, econômico ou simbólico que,
do compreendidos. De simples acúmulos de segundo Geistdoerfer (1989, p. 7 apud DIE-
restos de comida, os sambaquis passaram a GUES, 1998, p. 57), as sociedades maríti-
ser entendidos também como estruturas mas dão ao mar ou a seus recursos, no caso
verdadeiramente construídas, imbuídas de dos sambaquieiros, parte dessas práticas
intencionalidade, de monumentalidade e de também envolve ambientes ou estão asso-
um forte significado simbólico, cujos cons- ciadas a um universo que não está, necessa-
trutores organizavam-se em sociedades riamente, ligado ao mar.
que, segundo De Blasis et al. (2007), encon- Assim, a construção dessa abordagem
travam-se em um processo de complexifica- teve início a partir do estabelecimento de
ção social. um arcabouço teórico que se fundamenta
Com o intuito de contribuir com a con- em uma Arqueologia marítima preocupada
solidação dessa compreensão a respeito dos em identificar e compreender quais os com-
povos sambaquieiros, propõe-se neste arti- portamentos e elementos materiais do
go a construção de uma abordagem teórica modo de vida sambaquieiro se encontram
fundamentada na Arqueologia e na Antro- associados ao universo marítimo dos povos
pologia marítima, onde os ambientes aquá- dos sambaquis.
ticos deixariam de ser simplesmente com- Essa compreensão dos sambaquieiros
preendidos como um local de captação de como uma sociedade marítima, cujo uni-
recursos e vias de circulação para passarem verso extrapola os limites do ambiente ma-
a ser entendidos também como parte de um rinho, encontra similaridades na proposta
espaço socialmente percebido e incorpora- de Adams (2002), para quem a Arqueologia
do às suas práticas sociais econômicas e marítima é o estudo da interação humana e
simbólicas (CALIPPO, 2004). Espaço em das manifestações materiais de culturas
que os povos dos sambaquis teriam apren- marítimas com os diversos tipos de ambien-
dido, produzido, acumulado e transmitido tes aquáticos.
conhecimentos desenvolvidos com base na
transformação de seu meio e em sua pró- The study of human interaction with the sea,
pria modificação a partir de uma relação lakes, and rivers through the archaeological
dialética com a natureza. study of material manifestations of maritime
culture, including vessels, shore-side facilities,
OS SAMBAQUIS SOB O PONTO DE cargoes, and even human remains (DELGA-
VISTA DA ARQUEOLOGIA MARÍTIMA DO, 1998, p. 259).
O primeiro passo no sentido de se pro-
por que a sociedade sambaquieira possa ser Embora a compreensão de Adams (op.
concebida também como uma sociedade cit.) constitua-se como uma proposição ain-
marítima foi estabelecer uma proposta teó- da pouco explorada pela própria Arqueolo-
rica e metodológica que fosse capaz de levar gia marítima, ela é aqui adotada e desenvol-
em consideração tanto as especificidades vida pois suscita novas possibilidades para

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a construção de uma interpretação a respei- p. 92), busca o rompimento com as limita-


to de um modo de vida cujas práticas so- ções geográficas do mundo submarino
ciais, culturais ou simbólicas possam estar (como impostas por Muckelroy, op. cit.),
associadas tanto ao mar quanto a terra. com o foco específico nos sítios de naufrá-
Do ponto de vista teórico, tal proposta gios (como sugerido por este e desenvolvido
pode ser entendida como uma continuidade por Gibbins, 1990), e a inclusão dos ele-
da Arqueologia marítima criada por Keith mentos terrestres associados, de uma ma-
Muckelroy que, no final dos anos de 1970, neira ou de outra, ao universo marítimo.
procurando superar a visão histórico-cultu- Assim, os sítios abordados pela Arqueologia
ralista então predominante na Arqueologia marítima se encontrariam tanto em terra
praticada no mar, propôs que os arqueólo- como no mar, e, mais do que o ambiente
gos começassem a estabelecer como princi- onde ocorrem (ou da maneira que devemos
pal objetivo o homem e não mais os artefa- utilizar para acessá-los), o que mais impor-
tos (navios, cargas, etc.) perdidos no mar. ta são as compreensões dos processos e as
Muckelroy enfatizava que, nesse processo, correlações com o universo marítimo que
também fosse levado em consideração tudo estão preservadas em seu interior (FONTE-
aquilo que está conectado com a vida no NOY, 1998).
mar e não somente os restos dos navios e
dos barcos que nele se encontram. Sites pertinent to the sub discipline of maritime
archaeology exist both on land and underwater
Above all, it should be noted that the primary [...] Maritime archaeologists need to appreciate
object of study is man […] and not the ships, that it is the subject matter of sites that is distinc-
cargoes, fittings, or instruments with which the tive, not that diving is necessary to reach them.
researcher is immediately confronted (MU- (FONTENOY, 1998: 47, 49).
CKELROY, 1978, p. 03)
Sob esse ponto de vista, os desdobra-
Com base na Arqueologia marítima de- mentos de uma cultura marítima não termi-
senvolvida por Muckelroy – na época defi- nariam exatamente no último resquício de
nida como sendo “o estudo científico dos água salgada que banha a praia ou a linha
vestígios materiais do homem e de suas ati- de costa de diferentes ilhas e continentes.
vidades do mar” (MUCKELROY, 1978, p. Ela estenderia sua influência terra adentro,
05), Adams (2002) sugere uma abordagem englobando também equipamentos, estru-
mais abrangente, a qual, ao mesmo tempo turas produtivas, religiosas e mesmo cida-
em que supera a “compreensão da pesca e des inteiras (DURAN, op. cit., p. 92).
da faina do mar como uma sub-cultura dis-
tinta” (HASSLÖF, 1972, p. 15-17), permite [...] those ‘related objects on the shore’ and ‘coas-
que tanto as evidências marítimas (aponta- tal communities’ explicitly ruled out by Keith Mu-
das por Muckelroy), como as terrestres se- ckelroy would just as explicitly be ruled in today.
jam utilizadas para entender o universo Indeed, it is through them that coastal and sea-
marítimo e as relações que os povos estabe- -born maritime concerns articulate with society
leciam com o mar. at large. Today, then, maritime archaeology is the
Nesse sentido, a proposta de Adams se study of material (ADAMS, 2002: 328).
alinha com uma nova corrente da Arqueo-
logia Marítima que, segundo Duran (2008, Além das questões inerentes aos limites

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entre terra e mar, existem ainda duas outras gundo Bava de Camargo (2006), compreen-
que devem ser levadas em consideração an- der que a Arqueologia marítima constitui
tes que possamos estabelecer uma compre- uma disciplina (ou subdisciplina) voltada
ensão marítima dos sambaquieiros, as quais para o estudo da relação do ser humano
estão ligadas, principalmente, aos significa- com os cursos d’água, estando aí abrangi-
dos dos conceitos marítimos e marinhos. dos os aspectos materiais e simbólicos des-
A primeira diz respeito aos ambientes sa relação, expressa tanto em jazidas sub-
associados ao universo marítimo samba- mersas, emersas ou na interface desses
quieiro. No que tange a proposta de Arque- ambientes.
ologia marítima aqui desenvolvida, devem Sob tal ponto de vista, tem-se na Arque-
compor o universo marítimo dos povos dos ologia marítima uma forma de investigação
sambaquis não só os ambientes oceânicos e mais abrangente do que em outros ramos
marinhos, mas, também, todos aqueles am- “úmidos”, a saber, a Arqueologia náutica e
bientes aquáticos associados à região cos- a Arqueologia subaquática. A primeira foca-
teira. Deste modo, são também concernidos da na tecnologia naval do material flutuante
como intrínsecos ao universo marítimo to- antigo e a segunda direcionada para os ves-
dos os ambientes percebidos e, cultural- tígios depositados em ambientes aquáticos.
mente, apropriados pelos povos dos samba- Apesar do termo marítimo ter uma relação
quis, independentemente de quão próximos direta com mar, hoje se engloba nele, tam-
ao mar aberto eles se encontrem. bém, a análise dos vestígios presentes nas
Tal compreensão é aqui adotada, pois, águas interiores.
embora os ambientes possam ser realmente Embora aqui se acredite que os samba-
diferenciados e classificados em conse- quieiros pudessem constituir suas próprias
qüência da influencia da água marinha, a concepções a respeito desses diferentes
subdivisão desses ambientes (como oceâni- compartimentos “molhados” e, também,
cos, marinhos, estuarinos, lacustres, flu- das diversas regiões emersas, é importante
viais, lagunas, lagoas, mangues, marismas, ressaltar que a atual subdivisão dessas áre-
etc) está fundamentada em parâmetros eco- as (em marinhos, oceânicos, lacustres, estu-
lógicos, científicos e culturais, estabelecidos arinos, etc) e os “preconceitos” interpretati-
por nossa sociedade a partir de um ponto de vos que se criam em relação a elas, são, de
vista científico ocidental moderno. certo modo, influenciados pela maneira
Apesar de acreditarmos que uma dife- como nós, arqueólogos, compreendemos os
renciação entre esses ambientes fosse esta- ambientes aquáticos.
belecida pelos sambaquieiros, é pouco pro- Segundo Blot (1999) e Read (1996 apud
vável que ela tenha sido percebida a partir RAMBELLI, 2003), em sua maioria, essas
da identificação de diferentes parâmetros compreensões devem ser reflexo da influ-
físicos e químicos (como acontece atual- ência de como nossa sociedade concebe
mente). O mais provável é que um “mapea- culturalmente o mar. Concepção essa que
mento” desse espaço tenha sido desenvolvi- não se restringe somente às questões brasi-
do com base na importância econômica, leiras, pois a separação entre marítimos e
social, cultural e simbólica de seus elemen- continentais perpetua-se devido ao fato de
tos para a sociedade sambaquieira. que “nas sociedades ocidentais, o mar per-
Nesse sentido, para a adoção de uma manece ainda como um espaço mal conheci-
perspectiva marítima é preciso antes, se- do, perigoso, fora da cultura terrestre, fora

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da lei que impera no continente” (DIEGUES, populações marítimas que mantém um estreito
1998, p.58). Nesse processo, pode-se identi- contato com o mar e dele retiram sua subsistên-
ficar uma espécie de “resistência” em se cia. Essas populações humanas têm uma percep-
voltar olhares para o mar e, principalmente, ção complexa do meio marinho e seus fenôme-
para o fundo do mar, pois “a região subma- nos naturais. De um lado há um vasto
rina se torna, dessa forma, símbolo do in- conhecimento empírico adquirido pela observa-
consciente” (DIEGUES, 2000, p.159; RAM- ção continuada dos fenômenos físicos e biológi-
BELLI, 2003, p.12). cos (e.g. ventos, marés, reprodução dos cardu-
A segunda dessas questões inerentes aos mes de peixes)... De outro lado as explicações
limites entre terra e mar, diz respeito aos para tais fenômenos também passam pela repre-
contextos que historicamente vem sendo as- sentação simbólica e pelo imaginário dos povos
sociados à Arqueologia marítima. Pois, em- do mar (DIEGUES, 2003, p.3).
bora esta sub-disciplina da Arqueologia, por
vezes, se confronta com vestígios arqueoló- Assim, mais do que considerá-las como
gicos pré-históricos ou com sociedades me- simples áreas de captação de recursos, onde
nos complexas, ela sempre esteve, mesmo os ambientes marinhos teriam sido explo-
antes de Muckelroy (1972), predominante- rados sobre a perspectiva da máxima efici-
mente vinculada a problemáticas históri- ência e do mínimo gasto de energia (intrín-
cas, econômicas e políticas de sociedades seca a uma ótica capitalista), eles são aqui
clássicas e modernas. compreendidos como um espaço cultural-
No âmbito deste artigo, entretanto, pro- mente percebido e apropriado pelos povos
cura-se estabelecer uma abordagem Ar- dos sambaquis. Um universo em que nem
queológica marítima que caminha justa- sempre as escolhas são lógicas e práticas,
mente na direção contrária, procurando mas, sim, tomadas a partir de aspectos cul-
fundamentar-se mais em questões de turais.
cunho antropológico, sociológico e etno- Com base nesse entendimento, acredita-
gráfico do que nos processos e valores mer- mos ser possível estabelecer uma compre-
cantis e capitalistas que permeiam as socie- ensão da Arqueologia marítima que, ao
dades históricas modernas. Desta maneira, mesmo tempo, extrapola as fronteiras do
ao invés de adotarmos uma perspectiva fo- ambiente marinho e permite o desenvolvi-
cada na eficiência da captação dos recursos mento de uma proposta analítica e interpre-
ou na utilização prática dos ambientes tativa a respeito da maritimidade dos povos
aquáticos, o que procuramos investigar, dos sambaquis, ainda mais quando levamos
com base na análise dos vestígios arqueoló- em consideração a importância do estabele-
gicos, é a possibilidade dos povos dos sam- cimento de um contexto histórico (pré-his-
baquis terem atribuído significados a esses tórico, pré-colonial, pescador-coletor, etc)
ambientes e a seus elementos (fauna, flora, específico à complexidade e à natureza das
paisagens, etc). Pois, como apontado por sociedades em questão. Nesse sentido, o en-
Diegues (2003): tendimento do universo marítimo dos povos
dos sambaquis passa a se focar tanto na in-
[...] somente para uma ciência reducionista o terpretação dos significados e dos valores
oceano é uma realidade somente material, des- que podemos atribuir a determinada cultu-
povoada de seres humanos e seus símbolos. Essa ra ou nível de organização social, como em
concepção totalizante ainda subsiste entre as nossa compreensão (marítima) dos modos

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através do quais as sociedades sambaquiei- sociedades que hoje são entendidas, no âm-
ras e os indivíduos podem perceber, com- bito da Antropologia marítima, como socie-
preender e se apropriar do ambiente. dades marítimas, tornou-se claro que exis-
Sob esse ponto de vista, objetivamos que tem certos comportamentos sociais e
a perspectiva de uma cultura sambaquieira culturais que não poderiam ser simples-
passe a ser entendida também a partir de mente concebidos a partir da aplicação de
uma visão antropológica, relacionada a gru- conceitos próprios das sociedades cujo
pos étnicos (BEATTIE, 1977; ROUSE, 1968 modo de vida está diretamente relacionado
apud TENÓRIO, 2003), através da qual a ao universo terrestre.
cultura material pode expressar significados Um exemplo dessa compreensão especí-
traduzidos pelo arqueólogo (SHANKS e HO- fica para as sociedades marítimas pode ser
DDER, 1995, p. 17 apud TENÓRIO, op. cit.). encontrado já na clássica monografia de
Malinowski (op. cit.), “Os Argonautas do Pa-
O UNIVERSO MARÍTIMO DOS POVOS cífico”, onde, segundo Diegues (op. cit., p.
DOS SAMBAQUIS 60), sob um ponto de vista funcionalista, o
Tendo como referencial uma abordagem autor analisava as funções das crenças reli-
arqueológica marítima pela qual os am- giosas, dos mitos e da magia para a socieda-
bientes marinhos, lacustres e terrestres de dos insulares tobriandesas, a partir do
constituem um espaço culturalmente per- kula (troca ritual de bens) realizado no âm-
cebido e assimilado pelo sistema sócio cul- bito da navegação entre as ilhas da Poliné-
tural dos povos dos sambaquis, procurou-se sia.
também estabelecer correlações entre as Neste estudo, que contribuiu decisiva-
evidências materiais preservadas no regis- mente para a consolidação da Antropologia
tro arqueológico e o universo marítimo dos como um novo campo do conhecimento hu-
povos dos sambaquis. Para isso, propõe-se mano, Malinowski criticava os antropólo-
aqui uma compreensão inicial do universo gos evolucionistas que viam na pesca um
marítimo dos sambaquieiros a partir de um estágio civilizatório anterior à agricultura e
ponto de vista propiciado pela Antropologia a sedentarização (DIEGUES, op. cit., p. 55 e
marítima. Elaborado principalmente a par- 56). Apesar de ser relativo aos estágios ini-
tir dos estudos realizados por Diegues ciais da Etnologia, esse estudo já apontava o
(1998) e Malinowski (1986) [1922], tal enfo- surgimento de uma preocupação em rela-
que foi estabelecido com o objetivo de pro- ção às particularidades das sociedades ma-
por um referencial através do qual podería- rítimas e do meio em que vivem.
mos entender os povos dos sambaquis com Mesmo tendo passado quase um século,
base em suas relações com o ambiente ma- essa preocupação (aqui também norteadora
rinho. da construção de uma compreensão maríti-
Antes de avançarmos nessa direção é ma a respeito das sociedades sambaquiei-
importante ressaltar que a preocupação em ras) continua sendo reforçada no âmbito
apontar a possibilidade de uma perspectiva dos estudos de Antropologia marítima. Fato
teórica complementar para o estudo dos que evidencia ainda mais a importância de
sambaquieiros não foi estabelecida, exclusi- tal singularidade das culturas marítimas.
vamente, em conseqüência da escolha de Como pode ser observado em Diegues (op.
um ponto de vista marítimo. Desde os pri- cit.), além de assumirem a existência real
meiros trabalhos publicados a respeito de de uma particularização das sociedades

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marítimas, os antropólogos defendem que e outros) desses povos evidenciam que as


para um entendimento mais específico des- propriedades naturais do mar também atin-
sas sociedades faz-se necessária, também, giram, entre os sambaquieiros, tal dimen-
uma reavaliação das próprias compreen- são antropológica.
sões e conceitos desenvolvidos no meio Um exemplo desses valores simbólicos
científico. em relação ao mar pode ser percebido na
diferenciação de status social que, segundo
[...] os conceitos utilizados até hoje para se anali- Pinheiro e Peixoto (2003, p. 177), era dada a
sar as sociedades camponesas, como a função da homens e mulheres em enterramentos de
família na reprodução social, o salário e a pro- alguns sambaquis do Rio de Janeiro. Onde,
priedade, dificilmente se aplicariam à realidade em geral, são encontrados ossos de baleia
social marítima e às práticas da gente do mar. como acompanhamento funerário masculi-
No entanto, afastando-se o perigo do determinis- no e evidências de tubarões acompanhando
mo geográfico, Geistdoerfer (1989) afirma que os os corpos femininos.
homens do mar souberam colocar em prática Ainda que não possamos apontar um
sistemas sociais, econômicos e religiosos destina- significado específico para tal associação
dos a ocupar, explorar, gerir e imaginar o mar e com tubarões e baleias, as associações des-
os seus recursos (DIEGUES, 1998, p. 57). ses ossos de animais marinhos a contextos
mortuários indicam, assim como ocorre
Ainda em relação à questão da particula- com os zoólitos, a existência de uma relação
rização do meio marítimo, Diegues propõe simbólica com o mar e com os seres que
que além do surgimento de sistemas sociais nele habitam.
diferenciados aos das comunidades que não Para Tenório (2003), essa associação não
vivem o ambiente marítimo, tais sistemas se restringe somente aos artefatos, mas, tam-
atribuem às características naturais do oce- bém, a todos os outros elementos de ordem
ano uma dimensão antropológica. faunística que compõe o próprio sambaqui.
Fundamentada em Lévi-Strauss (1962), para
As práticas socioculturais da gente do mar [...] quem membros de sociedades não-estratifica-
são marcadas, de maneira original, por essas das são conduzidos pelo impulso de classifi-
“propriedades naturais” do mar, socializadas car, exaustivamente, os elementos do ambien-
pela aplicação dos diferentes sistemas. Mas, se- te explorado para garantir a sua sobrevivência,
gundo o valor social, econômico ou simbólico o que fornece a cada elemento um lugar em
que as comunidades dão ao mar e aos seus re- sua cosmologia (LUBY e GRUBER, 1999, p
cursos, o conjunto de praticas sócio-culturais 102 apud TENÓRIO 2003, p. 53); a autora su-
dessas comunidades pode ser marcado de forma gere que muitos grupos caçadores coletores
diferenciada (GEISTDOERFER, 1989, p.7). estariam conectados com o reino sagrado em
seu ambiente explorado. Nesse contexto, se-
Embora esse particularismo social e cul- gundo uma abordagem estruturalista, os
tural tenha sido identificado a partir do es- “shellmounds” deveriam ter significado sim-
tudo de sociedades modernas, ele é aqui bólico envolvido por ampla cosmologia; o
adotado para o estudo das sociedades sam- conteúdo simbólico desse centro doméstico,
baquieiras porque diversos elementos da com certeza, estaria imbuído pelo lado sagra-
cultura material (como, por exemplo, zoóli- do do alimento (LUBY e GRUBER, op. cit., p
tos, adornos, acompanhamentos funerários 102 apud TENÓRIO, id ibidem).

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De certo modo, essa associação encontra questões mais prementes para este traba-
apoio em Diegues (1998), o qual defende lho. Porém, de maneira alguma se procura
que dentre os vários aspectos componentes atribuir significados específicos às relações
do particularismo da gente do mar sobres- da cultura material e dos povos sambaquiei-
saem os aspectos simbólicos, mágicos e ri- ros com o mar, mas, sim, visa-se à oportu-
tuais dos quais se reveste, em muitas cultu- nidade de investigar e discutir se prováveis
ras marítimas, a relação homem/mar. diferenças e semelhanças nas relações
Aspectos que, segundo ele, variam de cultu- identificadas entre os diversos contextos ar-
ra para cultura: queológicos poderiam ser interpretadas
como conseqüência da existência de dife-
Enquanto nos países ocidentais, o oceano cons- rentes ou semelhantes valores sociais, eco-
titui um objeto de medo e terror, em algumas nômicos e simbólicos que os sambaquieiros
sociedades do sul do Pacífico o espaço marítimo atribuiriam ao mar e a seus recursos. Susci-
é o locus da vida, um ser vivo com o qual é pre- tando, nesse sentido, uma discussão a res-
ciso se conciliar antes de nele se adentrar. As peito da possibilidade do estabelecimento
sociedades marítimas do Pacífico, mais do que de diferentes conjuntos (ou comunidades
outras, desenvolveram mitos e ritos relativos ao sambaquieiras) ao longo do atual litoral
mar e aos seres vivos que nele habitam (DIE- brasileiro.
GUES, 1998, p.58). No que tange às características que po-
deriam permitir a constituição de diferentes
De um lado, há rituais de acesso ao mar e de sociedades, Diegues (op. cit.) indica os se-
outro, os de acesso aos recursos que nele existem. guintes exemplos:
Na polinésia, por exemplo, o mar está na origem
das ilhas e das sociedades. Cada lugar no ocea- [...] a valorização positiva ou negativa do mar,
no, cada ilha, é marcada pelo aparecimento ou o modo de organização econômica e social, o
moradia de ancestrais míticos (GEISTDOER- lugar reservado às atividades pesqueiras na eco-
FER, 1989 apud DIEGUES, 1998, p.58). nomia, o modo de integração das comunidades
litorâneas na sociedade mais ampla e o caráter
No entanto, para Diegues (op. cit.), essa simbólico das relações com o mar (DIEGUES,
relação com o mar não é, porém, algo dado, op. cit., p. 55).
imutável, mas uma inter-relação que se cons-
trói historicamente. Em geral, as comunida- Tomando por base o modelo funciona-
des marítimas constituem-se pela prática lista, Malinowski (1922), enfatizando os as-
da gente do mar num ambiente natural pectos psicológicos do comportamento so-
marcado pelo risco, pelo perigo e pela insta- cial, afirmava que os povos “primitivos”
bilidade, e dadas essas incertezas cria-se, tinham um comportamento racional, base-
entre as sociedades de pescadores, um certo ado num grande conhecimento empírico do
apego à vida no mar, dificultando, muitas mundo em que viviam. Estudando a reli-
vezes, sua inserção em terra. gião, o pensamento mágico, os mitos e os
No âmbito da Antropologia marítima, a ritos, o autor propôs que a magia floresce
configuração dessa dimensão antropológica quando o homem não pode controlar o im-
do mar e de seus recursos e, também, a previsível por meio de seu conhecimento.
compreensão de que os aspectos inerentes a Uma idéia que surgiu a partir da constata-
ela variam de cultura para cultura, são as ção de que, nas lagunas tranqüilas, os to-

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briandeses não usavam os ritos mágicos rente ao seu sistema de crenças e valores.
que antecediam a pesca, como faziam em No que tange aos valores econômicos,
mar aberto, onde estavam sujeitos a perigos uma das primeiras contribuições do estudo
e incertezas (DIEGUES, op. cit.). dos trobriandeses diz respeito à voraz críti-
Assim, independente do significado e ca tecida por Malinowski (1986, p. 56) em
das relações atribuídos por Malinowski a relação à noção da existência de um ho-
esses diferentes tipos de pesca, o que inte- mem econômico primitivo: uma espécie de
ressa para o estudo dos sambaquieiros é a homem primitivo ou selvagem imaginário,
constatação de que podem existir entre as movido em todas as suas ações por uma con-
sociedades marítimas diferentes tipos de cepção racionalista do interesse pessoal,
pesca e a cada um desses tipos podem ser atingindo seus objetivos de maneira direta e
atribuídos valores sociais, econômicos e com os mínimos esforços. Para ele,
simbólicos diferenciados.
Embora uma analogia direta entre os to- [...] o nativo de Trobriand trabalha movido por
briandeses e os sambaquieiros não seja pos- razões de natureza social e tradicional altamen-
sível, afinal os tobriandeses e as outras di- te complexos; seus objetivos certamente não se
versas sociedades da costa das ilhas referem ao simples atendimento de necessidades
periféricas da Nova Guiné não podem ser imediatas nem a propósitos utilitaristas. Muito
simplesmente considerados como povos pelo contrário, em sua realização são despendi-
pescadores coletores, pois praticavam agri- das grandes parcelas de tempo e energia que, do
cultura e o kula (um tipo de “comércio pri- ponto de vista utilitário, são extremamente des-
mitivo”) entre as ilhas, as sociedades da necessárias (MALINOWSKI, op. cit, p. 56).
melanésia são aqui utilizadas como exem-
plos, por meio dos quais possamos estabele- [...] a magia também impõe à tribo muito traba-
cer novas hipóteses a respeito do que viria a lho extra e estabelece regras e tabus que são apa-
ser o universo marítimo dos povos samba- rentemente desnecessários e dificultosos. No fim
quieiros. das contas, porém, não resta dúvida de que, por
Um referencial a partir do qual a cultura sua influência no sentido de ordenar, sistemati-
material sambaquieira pode ser repensada zar e regular o trabalho, a magia constitui ele-
e interpretada com base em exemplos, rela- mento de inestimável valor econômico para os
ções e valores que não se encontram, neces- nativos (MALINOWSKI, op. cit, p. 56).
sariamente, associados a uma visão capita-
lista; onde a obtenção dos recursos e a Segundo esse autor, o trabalho e o esfor-
organização social dos povos pescadores ço não constituem apenas meios para atin-
coletores são simplesmente um resultado gir certos fins, mas sob certo ponto de vista,
direto da máxima eficiência da coleta e do são um fim em si mesmo. Nas ilhas Tro-
menor gasto de energia. Para essas socieda- briand, por exemplo, o prestígio de um bom
des da melanésia (assim como pode ter agricultor é diretamente proporcional à sua
acontecido entre os sambaquieiros), a cole- capacidade de trabalho e à quantidade de
ta, a pesca e a produção de alimentos não terra que consegue lavrar.
estavam exclusivamente vinculadas a uma Se ficarmos na ilusão de que o nativo é o filho
perspectiva de produção de excedentes, folgado e preguiçoso da natureza, que evita na
acúmulo e comercialização lucrativa, mas, medida do possível qualquer trabalho ou que
sim, ligados a um contexto de trocas, ine- não faz outra coisa se não esperar que frutas

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maduras lhe caiam na boca, de modo algum des das sociedades marítimas1 e nos faz re-
poderemos compreender seus propósitos e os fletir sobre a possibilidade, sugerida por De
motivos que os levam a executar o kula ou qual- Blasis et. al. (2007, p. 33), de começarmos a
quer outro tipo de empreendimento. Muito pelo investigar e considerar os sambaquieiros
contrário: a verdade é que o nativo pode traba- como caçadores coletores complexos.
lhar e, em dadas circunstancias, realmente tra-
balha bastante. Com objetivos bem definidos e Lo distintivo de la misma [comunidade de cole-
de maneira sistemática e persistente. Tão pouco tores], encuanto a los contenidos de la proprie-
fica ele à espera que suas necessidades imediatas dad, es que ésta se establece sobre la fuerza de
lhe forcem ao trabalho. trabajo y los instrumentos de producción. No se
Na lavoura, por exemplo, os nativos produzem há establecido la propriedad real sobre los me-
muito mais do que realmente necessitam e, em dios naturales de producción. La apropriación
média, no decorrer de um ano normal, chegam de medios naturales es resultado del trabajo y no
a colher o dobro do que precisam para alimen- uma condición necesaria para La producion
tar-se. Nos dias atuais, esse excedente de alimen- (BATE, 1989, p. 19).
tos é exportado por europeus para o consumo de
trabalhadores agrícolas de outras regiões da No que se refere à organização social,
Nova Guiné. Antigamente, simplesmente apo- talvez, possamos sugerir uma série de para-
drecia (MALINOWSKI, op. cit, p. 54-55). lelos com os povos dos sambaquis. Segundo
Malinowski (op. cit., p. 63), embora todos os
Além do mais, os nativos conseguem esse exce- aspectos da vida dos nativos (magia, reli-
dente por meio de um trabalho muito maior do gião e economia) estivessem inter-relacio-
que o estritamente necessário à obtenção de uma nados, era a organização social que funda-
boa colheita. [...]. O elemento não utilitário do mentava a todos. Os povos das ilhas
seu trabalho agrícola torna-se ainda mais evi- Trobriand formavam uma unidade cultural
dente se analisarmos as diversas tarefas a que e lingüística, tinham as mesmas institui-
eles se dedicam com fins exclusivamente orna- ções, obedeciam às mesmas leis e regula-
mentais, em conexão com cerimônias de magia mentos, estavam sob a influência das mes-
e em obediência aos costumes da tribo (MALI- mas crenças e convenções.
NOWSKI, op. cit, p. 55). Os distritos em que se subdividem o ter-
ritório Trobriand distinguem-se entre si so-
Nesse sentido, apesar de também reali- mente do ponto de vista político e não do
zarem a agricultura e produzirem exceden- ponto de vista cultural. Embora possuam o
tes, os trobriandeses não possuíam, pelo mesmo tipo de nativo, cada um deles reco-
menos no mar, uma propriedade real sobre nhece o seu próprio chefe e defende seus
os meios naturais de produção. Condição próprios interesses e objetivos e, em caso de
que, para Bate (1989, p. 19), constitui, sob guerra, cada um se empenha em sua pró-
um ponto de vista focado no materialismo pria luta.
histórico, uma das principais características
das comunidad primitiva de cazadores reco- 1 - O fato dos tobriandeses estabelecerem, nas ilhas, ter-
ritórios e propriedade sobre os meios naturais e, não se
lectores. Embora estejamos tratando, neste preocuparem em se apropriar, no mar, de tais meios, é,
por si só, uma condição que reforça a singularidade das
momento, de grupos com diferentes status, comunidades marítimas, entre as quais, talvez, seja neces-
seria interessante avançar nesta discussão, sário repensar, inclusive, a própria maneira como, tradi-
cionalmente, categorizamos as sociedades em simples e
pois ela reforça ainda mais as singularida- complexas.

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As diversas comunidades existentes em aponta uma série de evidências que suge-


de cada distrito são independentes umas rem o estabelecimento de práticas sociais
das outras. Cada aldeia tem um líder que a que muito se assemelham aos tipos de prá-
representa, seus membros organizam tra- ticas desenvolvidas pelos tobriandeses.
balhos em conjunto, suas próprias festas e Além da presença de restos de madeira pro-
cerimônias, pranteiam seus mortos em co- venientes de áreas de restinga aberta e Mata
mum e realizam, em memória deles, uma Atlântica (as quais indicariam que o territó-
série interminável de distribuições de ali- rio dos sambaquieiros incluiria também
mentos. Em todos os assuntos importantes áreas terrestres), ocorrem diversos restos
da tribo ou do distrito os membros de cada vegetais que parecem apontar para o surgi-
comunidade se mantêm unidos e atuam mento de atividades relacionadas à horti-
como um grupo independente dos demais. cultura e para uma possível sedentarização
Interpondo-se através das divisões polí- dessas sociedades.
ticas e territoriais há também a divisão em Em relação ao estabelecimento de terri-
clãs totêmicos, cada um deles com uma sé- tórios, os autores acreditam que não existe
rie de totens relacionados. Os membros des- uma individualização para grupos de sítios
ses clãs estão espalhados por toda a tribo e, e, sim, uma superposição de territórios que
em cada comunidade, podem ser encontra- aponta uma clara interação e articulação
dos representantes de todo eles. Existe certa dessas comunidades no entorno da laguna,
solidariedade entre os membros do mesmo centro do universo econômico e social sam-
clã, baseada num sentimento muito vago de baquieiro. Nesse sentido, cada agrupamen-
afinidade comunal com os animais totêmi- to de sítios constituiria um foco nuclear–so-
cos, que se manifesta, principalmente, nos cial, não apenas geográfico, de ocupação e
diversos deveres sociais, como a execução adensamento geográfico, marcos territoriais,
de determinadas cerimônias, especialmente referências locacionais e de identidade para
as funerárias, que mantêm unidos os mem- comunidades sambaquieiras no entorno da
bros do mesmo clã. laguna.
Nessa questão, creio que o estudo dos
sambaquieiros também possa ir buscar ele- Esta configuração circum-lagunar, juntamente
mentos de reflexão na organização social com a cronologia disponíveis que atesta a longa
dos trobriandeses e nos tipos de símbolos e duração destes sambaquis, aponta para a exis-
significados que desenvolveram. Embora tência de comunidades sedentárias que, com o
não tenhamos aqui a pretensão de afirmar tempo, foram crescendo e se desenvolvendo no
que os sambaquieiros articulavam-se a par- entorno da laguna, espaço e domínio comum e
tir de clãs totêmicos, não podemos negar epicentro da vida (e da morte) sambaquieira
que existe uma série de significados e sim- (DE BLASIS et. al, op. cit, p. 48).
bolismos implícitos nos zoólitos, nos acom-
panhamentos funerários e, também, nas Os autores reiteram, ainda, o aspecto sa-
singularidades regionais que acabam por grado desses sítios, o qual acreditam repre-
compor a sociedade sambaquieira. sentar um vinculo essencial entre a socieda-
Analisando, por exemplo, os sambaquis de sambaquieira e seus antepassados e
da região da paleolaguna de Santa Marta, territórios, apontado pelo modo intencional,
localizada na porção do litoral do estado de recorrente e incremental com que esses sí-
Santa Catarina, De Blasis et. al. (op. cit, p.48) tios foram construídos ao longo de extensos

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períodos. Sacralidade essa manifestada atra- tros. Embora não existam evidências de
vés de cerimônias funerárias fortemente ritu- que os zoólitos estejam relacionados ao es-
alizadas que constituíam referências de pro- tabelecimento dos clãs totêmicos entre os
fundo significado simbólico para seus sambaquieiros, essa ocorrência reforça a
construtores, onde também perpetua-se uma hipótese de que os povos dos sambaquis po-
visão de mundo própria da cultura samba- deriam compor uma sociedade formada por
quieira (DE BLASIS et. al, op. cit, p. 48). diferentes comunidades fluviais, lagunares
Para eles, a onipresença dos sambaquis e marítimas (umas mais marítimas do que
aponta o caráter domesticado da paisagem outras), articuladas e integradas a partir de
lagunar, onde a presença diuturna dos mor- crenças e convenções comuns. Algumas, in-
tos e suas conexões cosmológicas imiscuem- clusive, intimamente ligadas ao universo
-se na vida cotidiana da sociedade samba- marítimo.
quieira. De certo modo, essa presença é
representada pelos zoólitos. Esculturas com SOCIEDADE SAMBAQUIEIRA, COMU-
forma animal, esculpidas segundo regras NIDADES MARÍTIMAS
estilísticas rígidas e que se constituem como Embora a emergência de uma complexi-
parafernália de uso ritual relacionado a ani- dade social entre os sambaquieiros seja um
mais e entidades mitológicas específicas – tema ainda controverso, tanto no Brasil,
parte essencial de uma estrutura ideológica como no contexto norte americano (Lima,
religiosa de expansão macro-regional entre 1999/2000), mais freqüentemente se tem
as sociedades sambaquieiras do litoral. Ar- aceito que grupos caçadores-coletores não
tefatos que, por serem ocasionalmente en- podem mais ser genericamente rotulados de
contrados em associação a sepultamentos “bandos igualitários”, de maneira especial,
específicos, sugerem algum tipo de diferen- os que teriam habitado ambientes ricos e
ciação social (DE BLASIS et. al, op. cit, p. complexos (TENÓRIO, 2003, p. 50).
49-50). Tal perda de prestígio científico deve-se,
Segundo Lima e Mazz (1977, p. 43), essas principalmente, ao desenvolvimento, nas
esculturas parecem ter sido destinadas à últimas décadas, de diversos modelos de
produção de estímulos sensoriais e emocio- mobilidade e de organização social que fo-
nais. Fuertemente simbólicas, cargadas de ram elaboradas com base em estudos etno-
um significado dificilmente alcanzable, fue- gráficos de populações pescadoras não hor-
ron realmente elementos de comunicación ticulturas; cuja principal crítica é a
ritual. A rusticidade dos objetos de uso coti- utilização de parâmetros intrínsecos a gru-
diano frente ao esmero na fabricação dos pos caçadores e horticultores, desconside-
zoólitos vincula, segundo esses autores, o rando o aspecto pescador. Uma aproxima-
domínio da arte ao uso ritual. ção equivocada, já que a atividade da pesca
Além desse forte apelo simbólico atribu- pode implicar em um padrão de mobilidade
ído aos zoólitos, existe outra questão em re- e um contato social completamente diferen-
lação a eles que também encontra similari- tes daqueles encontrados ou estabelecidos
dades entre as sociedades tobriandesas. para caçadores-coletores (TENÓRIO, op.
Questão essa que está ligada ao fato de exis- cit, p. 50).
tir um grande número de zoólitos represen- Segundo a autora, tal compreensão vem
tando animais exclusivamente marinhos: sendo substituída por uma visão transigua-
mamíferos marinhos, tubarões, peixes e ou- litária de complexidade, a partir da qual,

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segundo Hayden (1995), esses grupos não ciológica dos povos que os construíram.
seriam considerados nem igualitários nem Contudo, somente em alguns poucos traba-
estratificados, mas, sim, formados por so- lhos tal conceituação é aplicada com a in-
ciedades de diferentes tamanhos e graus de tenção de entender os modos através dos
complexidade, num contínuo de comunida- quais os sambaquieiros se organizavam
des compostas por famílias independentes como grupos sociais.
que controlariam os mecanismos de obten- Segundo Albuquerque (1999), o par co-
ção dos recursos. Nesse tipo de organização, munidade-sociedade indica configurações
segundo a autora, podem coexistir tanto sociais contrastantes (tais como arcaico e
trabalho cooperativo, como donos corpora- moderno, afetivo e racional, sagrado e secu-
tivistas dos recursos. Uma compreensão de lar), que, embora fizessem parte da tradição
sociedade que extrapola a categorização an- sociológica (sobretudo weberiana), só fo-
tropológica baseada em estágios. ram sistematizados no século XIX por Tön-
nies. Aqui, no entanto, ele é utilizado a par-
Shallins (1979) e Service (1971) concordam que tir de uma outra perspectiva, segundo a
na costa noroeste americana são encontrados qual as noções de comunidades e sociedade
grupos caçadores-coletores que, mesmo sem agri- não são mais vistas como conflitantes e in-
cultura, transcendem em muito o nível de bando. tegram-se de modo a englobar os dois prin-
Murdock (1968) também informa sobre grupos cipais tipos de relações sociais (primárias e
que subsistem basicamente da pesca e têm uma secundárias) que, segundo a Sociologia, ex-
cultura tão complexa quanto grupos agriculto- plicam as maneiras através das quais os
res vizinhos, citando, como exemplo, os índios grupos sociais se relacionam.
da Costa Norte do Pacífico, os Calusa, na Flóri- Tal perspectiva fundamenta-se, princi-
da, e numerosas sociedades ao longo dos rios palmente, no entendimento de que os indi-
Negro e Congo, na África. Este autor também víduos que compõem uma comunidade
relata que, no norte da Ásia, os Ainu, os Chukchee compartilham um núcleo aglutinado de va-
marinhos, os Gilyak, os Kamchadal e os Koryac lores que lhes são comuns, ao passo que nas
marinhos provavelmente também estejam na sociedades, os membros devem aceitar um
mesma categoria (TENÓRIO, op. cit, p. 51). conjunto de normas que regula a relação
entre eles (BUELA, 1987). Sob esse ponto de
Dessa maneira, procurou-se um enten- vista, os povos dos sambaquis poderiam ser
dimento que visa à adequação dessa com- vistos sob ambas as categorias. Quando
preensão transigualitária ao conjunto de abordados a partir de um conjunto regional
evidências materiais que compõe o registro de sítios, onde os indivíduos compartilham
arqueológico dos sambaquis. Entendimento normas de convivência e conduta marcadas
esse que se apóia fundamentalmente na pela tradição, religião, consenso e respeito
concepção dos povos dos sambaquis a partir mútuo (contatos primários), podem ser en-
das categorias sociológicas de comunidade tendidos no âmbito de uma comunidade.
e sociedade.
De um modo informal, os parâmetros O conceito de comunidade é empregado, no sé-
que norteiam essa categorização já vêm culo XIX e XX, para todas as formas de relacio-
sendo utilizados por alguns autores para namento caracterizadas por intimidade, pro-
contextualizar os conjuntos de sambaquis, fundeza emocional, engajamento moral e
enquanto artefatos, em uma perspectiva so- continuidade no tempo. Para Durkheim (1960)

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esse tipo de solidariedade é denominada mecâ-


nica, já que os indivíduos se ligam ao todo sem Há no circuito inteiro do kula um encadeamen-
intermediário e participam de crenças coletivas to de relações que naturalmente fazem dele um
idênticas. [...]. A esse tipo de contato dá-se o todo entrelaçado. Pessoas que vivem centenas de
nome de primário, nas classificações sociológi- milhas uma das outras se relacionam através da
cas (ALBUQUERQUE, 199, P. 51). parceria direta ou indireta, realizam trocas,
passam a conhecer-se e, às vezes, se encontram
No entanto, quando vistos a partir de em grandes reuniões intertribais. Os objetos da-
uma perspectiva mais ampla, onde mais do dos por um nativo – não só os artigos do kula,
que as relações de parentesco, afetividade e mas também vários outros de uso doméstico e
informalidade, predominem relações im- pequenos presentes – chegam, com o tempo, a
pessoais, racionais, formais (contatos se- parceiros indiretos muito distantes. É fácil ob-
cundários), diferentes grupos sociais po- servar que, no fim das contas, não só os objetos
dem ser considerados como intrínsecos a da cultura material, mas também costumes,
uma sociedade. Sob essa perspectiva, tanto canções, temas artísticos e influencias culturais
as diversas comunidades sambaquieiras re- gerais também viajam ao longo das rotas do
gionais como os diferentes contextos sam- kula. O que se verifica, então, é um vasto encade-
baquieiros (e.g. fluviais, costeiros, mari- amento de relações intertribais numa grande
nhos, etc) poderiam ser estabelecidos como instituição que incorpora milhares de pessoas,
grupos sociais de uma única sociedade todas elas unidas por uma paixão comum pelas
sambaquieira. transações do kula e, em segundo plano, por
muitos pequenos laços e interesses (MALINO-
[...] os indivíduos [ou as comunidades] se liga- WSKI, 1986, p. 78).
riam às partes que compõe o todo coletivo e par-
ticipam de crenças diferentes entre si. [...]. No jar- Assim, como o kula teve um papel fun-
gão sociológico esse tipo de conduta é chamado damental de articulação e integração entre
de secundário (ALBUQUERQUE, 1999, P. 51). as diversas comunidades tobriandeses, fa-
vorecendo a disseminação e a manutenção
Nesse sentido, assim como identificado desse sistema de regras, convenções e cren-
por Malinowski (1986, p. 56), embora as em- ças, é preciso atentar para a possibilidade
barcações que participavam do kula fossem de que esse mesmo processo, fundamenta-
geralmente compostas por membros de cada do na prática navegação costeira, pudesse
comunidade, em determinadas situações, in- ter atuado como um elemento de ligação
divíduos de outras comunidades (do interior entre as diversas regiões litorâneas e ilhas
das ilhas eram ou de outros locais) ou de ou- costeiras ocupadas pelos sambaquieiros, in-
tras sociedades, integravam-se às expedi- terligando comunidades e fortalecendo os
ções. Fato que evidencia não só a articulação laços e as convenções que uniriam as co-
entre diferentes grupos sociais de uma mes- munidades marítimas, litorâneas e fluviais
ma região e de diferentes tipos de comunida- em uma única e hegemônica sociedade.
des (costeiras, marítimas, litorâneas, etc), Uma navegação praticada por comunidades
mas, principalmente, o papel do kula (e, con- que deveriam conceber o mar e os corpos
seqüentemente, da navegação) na relação e d’água costeiros como muito mais do que
na integração dessas comunidades e da so- um local de passagem e extração de recur-
ciedade trobriandesa com seus vizinhos. sos. Um ambiente percebido e apropriado,

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ao qual era atribuída enorme importância e rias e a chegada de parentes, as atividades


significado em conseqüência de seu poder de coleta e preparação do alimento muda-
de conexão entre populações aparentadas, vam consideravelmente. Nessas ocasiões,
isoladas por grandes distâncias de terra. enquanto os homens se ocupam dos rituais,
Referindo-se a uma questão semelhante, a coleta passa a ser uma tarefa das mulhe-
Meghan (1982, p. 40 apud TENÓRIO, 2003, res (TENÓRIO, 2003, p. 58).
p. 57) apresenta o caso de uma comunidade
de pescadores, coletores, caçadores do nor- CONSIDERAÇÕES FINAIS
te da Austrália, os Gidjingali, que pode O estabelecimento da abordagem marí-
exemplificar o modo através do qual pode- tima para o estudo dos povos dos sambaquis
ria ter se dado o contato entre as diversas e de sua cultura material que se propõe nes-
comunidades dos povos dos sambaquis. te artigo não tem a mínima pretensão de
A comunidade Gidjingali engloba quatro desconstruir nenhuma das diversas corren-
subgrupos (os Anbarra, os Matai, os Mara- tes teóricas e metodológicas que historica-
wuraba e os Gullala) que tem como base de mente atuaram para a consolidação dos es-
sua alimentação a coleta de moluscos. Em- tudos dos sambaquis como uma das linhas
bora possuam a mesma filiação cultural, de pesquisa mais importantes do Arqueolo-
esses quatro subgrupos apresentam dife- gia brasileira. Muito pelo contrário, nosso
renças em sua cultura material, que, segun- principal propósito é apresentar novos ar-
do Meghan (op. cit, 40), estão relacionadas gumentos, olhares e hipóteses que venham
ao fato de habitarem ambientes distintos. a ampliar a maneira como esses sítios são
interpretados, colaborando para uma me-
Os Gullala percorrem a costa de canoa, chegan- lhor compreensão de toda a gama de rela-
do ao mar alto; eles seriam, segundo o infor- ções e práticas sociais, econômicas e simbó-
mante de Meghan, os soberanos do mar. licas que caracterizam uma sociedade.
Os Matai tinham medo do mar aberto e gasta- É verdade que para o estabelecimento
vam mais tempo nas florestas, manguezais, ter- dessas correlações marítimas utilizamos
ra preta e planícies lodosas; seriam o povo da como apoio alguns referenciais etnográfi-
floresta. cos e abordagens desenvolvidas para socie-
Os Anbarra se estabeleciam no estuário do rio, dades modernas. No entanto, em sua maio-
ambiente de muita fartura, vivendo com maior ria, tais analogias foram utilizadas apenas
abundância de recursos; seriam também mais como fonte de inspiração para a formulação
sedentários, dando grande importância à coleta de novas hipóteses a respeito da organiza-
de moluscos, valorizando o seu sabor e orgu- ção e da cultura material produzida pelos
lhando-se de ter disponíveis algumas espécies povos construtores dos sambaquis. Além
que também utilizavam para presentear seus disso, a seleção e o estabelecimento desses
parentes do interior (TENÓRIO, 2003, p. 58) referenciais não foram aleatórios. Procu-
rou-se escolher sociedades que vivem um
Além de se visitarem constantemente, tipo de contexto ambiental e antropológico
em determinadas épocas, os Gidjingali rea- semelhante e evitar, ao máximo, a constru-
lizam cerimônias que concentram grande ção de analogias feitas de maneira mecâni-
quantidade de pessoas acampadas. Nesses ca e linear. Na medida do possível, as infor-
momentos, geralmente associados a ceri- mações provenientes dessas outras
mônias de iniciação, as atividades mortuá- sociedades foram utilizadas somente como

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um referencial para a construção teórica do a ser reinterpretadas sob essa nova ótica.
que teria sido uma sociedade marítima pré- Nesse sentido, poderíamos, por exem-
-histórica. plo, citar o caso das pontas duplas (em osso)
Ainda que muitas das reflexões aqui que são tão comuns nos sambaquis. Artefa-
propostas tenham se originado a partir de tos que na Europa e na América do Norte
perspectivas antropológicas e de referên- são, desde o início das pesquisas com sítios
cias etnográficos, na prática, esse novo costeiros, entendidas como anzóis. O inte-
olhar traz consigo a possibilidade de re- ressante, neste caso, é refletirmos a respeito
-interpretações da própria cultura mate- do porque nunca antes levantamos tal hipó-
rial. Com base no entendimento de que tese? Nessa mesma linha, podemos ainda
essas evidências, juntamente com outros citar o caso de alguns tipos de machados
elementos de cultura material presentes diferenciados (europeus) que, na realidade,
nos sambaquis (zoólitos, bacias polimento, eram enxós – um instrumento específico
etc), constituem um conjunto de dados que para a escavação de madeira, amplamente
aponta para o estabelecimento de comuni- utilizado (desde a pré-história) para a fabri-
dades que desenvolveram práticas sócio- cação de canoas (CALIPPO, 2004). Eviden-
-culturais intrinsecamente ligadas ao mar ciando, assim, que os sambaquieiros pode-
e aos significados a ele atribuídos, abre-se riam ter se especializado também no
a possibilidade de que outros tipos de evi- desenvolvimento de técnicas e instrumen-
dências arqueológicas normalmente en- tos específicos à prática da pesca e à cons-
contradas em sambaquis passem também trução de canoas.

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