Sambaquis e Sociedades Marítimas
Sambaquis e Sociedades Marítimas
Sambaquis e Sociedades Marítimas
ARTIGO
SOCIEDADE
SAMBAQUIEIRA,
COMUNIDADES
MARÍTIMAS
Flávio Rizzi Calippo
Centro de Ciências da Natureza da Universidade Federal do Piauí (CCN/UFPI)
[email protected]
83
resumo
Por quase 8.000 anos os povos dos
sambaquis distribuíram-se ao longo de
uma extensa área litorânea, dominando abstract
grande parte das regiões costeiras e dos For nearly 8,000 years the people of the
diversos ambientes aquáticos que carac- Brazilian shell mounds are distributed over
terizavam essa região. Buscando contri- an extensive coastal area, dominating much
buir para o estabelecimento de novas of the coastal regions and the various aquatic
abordagens para o estudo dessa socieda- environments that characterize this region.
de, o presente artigo propõe uma série de Seeking to establish new approaches to the
reflexões focadas na Antropologia e na study of this society, this paper proposes a se-
Arqueologia marítima. Com isso, mais do ries of discussions focused on and Maritime
que estabelecer novas interpretações a Archaeology and Anthropology. Thus, rather
respeito desses povos, procurou-se cami- than establish new interpretations about
nhar no sentido da construção de uma these people, we tried to walk towards the
abordagem teórica através da qual os construction of a theoretical framework
sambaquieiros possam ser também com- through which people of the sambaquis can
preendidos com base nas particularida- also be understood based on the specifics of
des das “gentes do mar”. the “people of the sea.”
entre terra e mar, existem ainda duas outras gundo Bava de Camargo (2006), compreen-
que devem ser levadas em consideração an- der que a Arqueologia marítima constitui
tes que possamos estabelecer uma compre- uma disciplina (ou subdisciplina) voltada
ensão marítima dos sambaquieiros, as quais para o estudo da relação do ser humano
estão ligadas, principalmente, aos significa- com os cursos d’água, estando aí abrangi-
dos dos conceitos marítimos e marinhos. dos os aspectos materiais e simbólicos des-
A primeira diz respeito aos ambientes sa relação, expressa tanto em jazidas sub-
associados ao universo marítimo samba- mersas, emersas ou na interface desses
quieiro. No que tange a proposta de Arque- ambientes.
ologia marítima aqui desenvolvida, devem Sob tal ponto de vista, tem-se na Arque-
compor o universo marítimo dos povos dos ologia marítima uma forma de investigação
sambaquis não só os ambientes oceânicos e mais abrangente do que em outros ramos
marinhos, mas, também, todos aqueles am- “úmidos”, a saber, a Arqueologia náutica e
bientes aquáticos associados à região cos- a Arqueologia subaquática. A primeira foca-
teira. Deste modo, são também concernidos da na tecnologia naval do material flutuante
como intrínsecos ao universo marítimo to- antigo e a segunda direcionada para os ves-
dos os ambientes percebidos e, cultural- tígios depositados em ambientes aquáticos.
mente, apropriados pelos povos dos samba- Apesar do termo marítimo ter uma relação
quis, independentemente de quão próximos direta com mar, hoje se engloba nele, tam-
ao mar aberto eles se encontrem. bém, a análise dos vestígios presentes nas
Tal compreensão é aqui adotada, pois, águas interiores.
embora os ambientes possam ser realmente Embora aqui se acredite que os samba-
diferenciados e classificados em conse- quieiros pudessem constituir suas próprias
qüência da influencia da água marinha, a concepções a respeito desses diferentes
subdivisão desses ambientes (como oceâni- compartimentos “molhados” e, também,
cos, marinhos, estuarinos, lacustres, flu- das diversas regiões emersas, é importante
viais, lagunas, lagoas, mangues, marismas, ressaltar que a atual subdivisão dessas áre-
etc) está fundamentada em parâmetros eco- as (em marinhos, oceânicos, lacustres, estu-
lógicos, científicos e culturais, estabelecidos arinos, etc) e os “preconceitos” interpretati-
por nossa sociedade a partir de um ponto de vos que se criam em relação a elas, são, de
vista científico ocidental moderno. certo modo, influenciados pela maneira
Apesar de acreditarmos que uma dife- como nós, arqueólogos, compreendemos os
renciação entre esses ambientes fosse esta- ambientes aquáticos.
belecida pelos sambaquieiros, é pouco pro- Segundo Blot (1999) e Read (1996 apud
vável que ela tenha sido percebida a partir RAMBELLI, 2003), em sua maioria, essas
da identificação de diferentes parâmetros compreensões devem ser reflexo da influ-
físicos e químicos (como acontece atual- ência de como nossa sociedade concebe
mente). O mais provável é que um “mapea- culturalmente o mar. Concepção essa que
mento” desse espaço tenha sido desenvolvi- não se restringe somente às questões brasi-
do com base na importância econômica, leiras, pois a separação entre marítimos e
social, cultural e simbólica de seus elemen- continentais perpetua-se devido ao fato de
tos para a sociedade sambaquieira. que “nas sociedades ocidentais, o mar per-
Nesse sentido, para a adoção de uma manece ainda como um espaço mal conheci-
perspectiva marítima é preciso antes, se- do, perigoso, fora da cultura terrestre, fora
da lei que impera no continente” (DIEGUES, populações marítimas que mantém um estreito
1998, p.58). Nesse processo, pode-se identi- contato com o mar e dele retiram sua subsistên-
ficar uma espécie de “resistência” em se cia. Essas populações humanas têm uma percep-
voltar olhares para o mar e, principalmente, ção complexa do meio marinho e seus fenôme-
para o fundo do mar, pois “a região subma- nos naturais. De um lado há um vasto
rina se torna, dessa forma, símbolo do in- conhecimento empírico adquirido pela observa-
consciente” (DIEGUES, 2000, p.159; RAM- ção continuada dos fenômenos físicos e biológi-
BELLI, 2003, p.12). cos (e.g. ventos, marés, reprodução dos cardu-
A segunda dessas questões inerentes aos mes de peixes)... De outro lado as explicações
limites entre terra e mar, diz respeito aos para tais fenômenos também passam pela repre-
contextos que historicamente vem sendo as- sentação simbólica e pelo imaginário dos povos
sociados à Arqueologia marítima. Pois, em- do mar (DIEGUES, 2003, p.3).
bora esta sub-disciplina da Arqueologia, por
vezes, se confronta com vestígios arqueoló- Assim, mais do que considerá-las como
gicos pré-históricos ou com sociedades me- simples áreas de captação de recursos, onde
nos complexas, ela sempre esteve, mesmo os ambientes marinhos teriam sido explo-
antes de Muckelroy (1972), predominante- rados sobre a perspectiva da máxima efici-
mente vinculada a problemáticas históri- ência e do mínimo gasto de energia (intrín-
cas, econômicas e políticas de sociedades seca a uma ótica capitalista), eles são aqui
clássicas e modernas. compreendidos como um espaço cultural-
No âmbito deste artigo, entretanto, pro- mente percebido e apropriado pelos povos
cura-se estabelecer uma abordagem Ar- dos sambaquis. Um universo em que nem
queológica marítima que caminha justa- sempre as escolhas são lógicas e práticas,
mente na direção contrária, procurando mas, sim, tomadas a partir de aspectos cul-
fundamentar-se mais em questões de turais.
cunho antropológico, sociológico e etno- Com base nesse entendimento, acredita-
gráfico do que nos processos e valores mer- mos ser possível estabelecer uma compre-
cantis e capitalistas que permeiam as socie- ensão da Arqueologia marítima que, ao
dades históricas modernas. Desta maneira, mesmo tempo, extrapola as fronteiras do
ao invés de adotarmos uma perspectiva fo- ambiente marinho e permite o desenvolvi-
cada na eficiência da captação dos recursos mento de uma proposta analítica e interpre-
ou na utilização prática dos ambientes tativa a respeito da maritimidade dos povos
aquáticos, o que procuramos investigar, dos sambaquis, ainda mais quando levamos
com base na análise dos vestígios arqueoló- em consideração a importância do estabele-
gicos, é a possibilidade dos povos dos sam- cimento de um contexto histórico (pré-his-
baquis terem atribuído significados a esses tórico, pré-colonial, pescador-coletor, etc)
ambientes e a seus elementos (fauna, flora, específico à complexidade e à natureza das
paisagens, etc). Pois, como apontado por sociedades em questão. Nesse sentido, o en-
Diegues (2003): tendimento do universo marítimo dos povos
dos sambaquis passa a se focar tanto na in-
[...] somente para uma ciência reducionista o terpretação dos significados e dos valores
oceano é uma realidade somente material, des- que podemos atribuir a determinada cultu-
povoada de seres humanos e seus símbolos. Essa ra ou nível de organização social, como em
concepção totalizante ainda subsiste entre as nossa compreensão (marítima) dos modos
através do quais as sociedades sambaquiei- sociedades que hoje são entendidas, no âm-
ras e os indivíduos podem perceber, com- bito da Antropologia marítima, como socie-
preender e se apropriar do ambiente. dades marítimas, tornou-se claro que exis-
Sob esse ponto de vista, objetivamos que tem certos comportamentos sociais e
a perspectiva de uma cultura sambaquieira culturais que não poderiam ser simples-
passe a ser entendida também a partir de mente concebidos a partir da aplicação de
uma visão antropológica, relacionada a gru- conceitos próprios das sociedades cujo
pos étnicos (BEATTIE, 1977; ROUSE, 1968 modo de vida está diretamente relacionado
apud TENÓRIO, 2003), através da qual a ao universo terrestre.
cultura material pode expressar significados Um exemplo dessa compreensão especí-
traduzidos pelo arqueólogo (SHANKS e HO- fica para as sociedades marítimas pode ser
DDER, 1995, p. 17 apud TENÓRIO, op. cit.). encontrado já na clássica monografia de
Malinowski (op. cit.), “Os Argonautas do Pa-
O UNIVERSO MARÍTIMO DOS POVOS cífico”, onde, segundo Diegues (op. cit., p.
DOS SAMBAQUIS 60), sob um ponto de vista funcionalista, o
Tendo como referencial uma abordagem autor analisava as funções das crenças reli-
arqueológica marítima pela qual os am- giosas, dos mitos e da magia para a socieda-
bientes marinhos, lacustres e terrestres de dos insulares tobriandesas, a partir do
constituem um espaço culturalmente per- kula (troca ritual de bens) realizado no âm-
cebido e assimilado pelo sistema sócio cul- bito da navegação entre as ilhas da Poliné-
tural dos povos dos sambaquis, procurou-se sia.
também estabelecer correlações entre as Neste estudo, que contribuiu decisiva-
evidências materiais preservadas no regis- mente para a consolidação da Antropologia
tro arqueológico e o universo marítimo dos como um novo campo do conhecimento hu-
povos dos sambaquis. Para isso, propõe-se mano, Malinowski criticava os antropólo-
aqui uma compreensão inicial do universo gos evolucionistas que viam na pesca um
marítimo dos sambaquieiros a partir de um estágio civilizatório anterior à agricultura e
ponto de vista propiciado pela Antropologia a sedentarização (DIEGUES, op. cit., p. 55 e
marítima. Elaborado principalmente a par- 56). Apesar de ser relativo aos estágios ini-
tir dos estudos realizados por Diegues ciais da Etnologia, esse estudo já apontava o
(1998) e Malinowski (1986) [1922], tal enfo- surgimento de uma preocupação em rela-
que foi estabelecido com o objetivo de pro- ção às particularidades das sociedades ma-
por um referencial através do qual podería- rítimas e do meio em que vivem.
mos entender os povos dos sambaquis com Mesmo tendo passado quase um século,
base em suas relações com o ambiente ma- essa preocupação (aqui também norteadora
rinho. da construção de uma compreensão maríti-
Antes de avançarmos nessa direção é ma a respeito das sociedades sambaquiei-
importante ressaltar que a preocupação em ras) continua sendo reforçada no âmbito
apontar a possibilidade de uma perspectiva dos estudos de Antropologia marítima. Fato
teórica complementar para o estudo dos que evidencia ainda mais a importância de
sambaquieiros não foi estabelecida, exclusi- tal singularidade das culturas marítimas.
vamente, em conseqüência da escolha de Como pode ser observado em Diegues (op.
um ponto de vista marítimo. Desde os pri- cit.), além de assumirem a existência real
meiros trabalhos publicados a respeito de de uma particularização das sociedades
De certo modo, essa associação encontra questões mais prementes para este traba-
apoio em Diegues (1998), o qual defende lho. Porém, de maneira alguma se procura
que dentre os vários aspectos componentes atribuir significados específicos às relações
do particularismo da gente do mar sobres- da cultura material e dos povos sambaquiei-
saem os aspectos simbólicos, mágicos e ri- ros com o mar, mas, sim, visa-se à oportu-
tuais dos quais se reveste, em muitas cultu- nidade de investigar e discutir se prováveis
ras marítimas, a relação homem/mar. diferenças e semelhanças nas relações
Aspectos que, segundo ele, variam de cultu- identificadas entre os diversos contextos ar-
ra para cultura: queológicos poderiam ser interpretadas
como conseqüência da existência de dife-
Enquanto nos países ocidentais, o oceano cons- rentes ou semelhantes valores sociais, eco-
titui um objeto de medo e terror, em algumas nômicos e simbólicos que os sambaquieiros
sociedades do sul do Pacífico o espaço marítimo atribuiriam ao mar e a seus recursos. Susci-
é o locus da vida, um ser vivo com o qual é pre- tando, nesse sentido, uma discussão a res-
ciso se conciliar antes de nele se adentrar. As peito da possibilidade do estabelecimento
sociedades marítimas do Pacífico, mais do que de diferentes conjuntos (ou comunidades
outras, desenvolveram mitos e ritos relativos ao sambaquieiras) ao longo do atual litoral
mar e aos seres vivos que nele habitam (DIE- brasileiro.
GUES, 1998, p.58). No que tange às características que po-
deriam permitir a constituição de diferentes
De um lado, há rituais de acesso ao mar e de sociedades, Diegues (op. cit.) indica os se-
outro, os de acesso aos recursos que nele existem. guintes exemplos:
Na polinésia, por exemplo, o mar está na origem
das ilhas e das sociedades. Cada lugar no ocea- [...] a valorização positiva ou negativa do mar,
no, cada ilha, é marcada pelo aparecimento ou o modo de organização econômica e social, o
moradia de ancestrais míticos (GEISTDOER- lugar reservado às atividades pesqueiras na eco-
FER, 1989 apud DIEGUES, 1998, p.58). nomia, o modo de integração das comunidades
litorâneas na sociedade mais ampla e o caráter
No entanto, para Diegues (op. cit.), essa simbólico das relações com o mar (DIEGUES,
relação com o mar não é, porém, algo dado, op. cit., p. 55).
imutável, mas uma inter-relação que se cons-
trói historicamente. Em geral, as comunida- Tomando por base o modelo funciona-
des marítimas constituem-se pela prática lista, Malinowski (1922), enfatizando os as-
da gente do mar num ambiente natural pectos psicológicos do comportamento so-
marcado pelo risco, pelo perigo e pela insta- cial, afirmava que os povos “primitivos”
bilidade, e dadas essas incertezas cria-se, tinham um comportamento racional, base-
entre as sociedades de pescadores, um certo ado num grande conhecimento empírico do
apego à vida no mar, dificultando, muitas mundo em que viviam. Estudando a reli-
vezes, sua inserção em terra. gião, o pensamento mágico, os mitos e os
No âmbito da Antropologia marítima, a ritos, o autor propôs que a magia floresce
configuração dessa dimensão antropológica quando o homem não pode controlar o im-
do mar e de seus recursos e, também, a previsível por meio de seu conhecimento.
compreensão de que os aspectos inerentes a Uma idéia que surgiu a partir da constata-
ela variam de cultura para cultura, são as ção de que, nas lagunas tranqüilas, os to-
briandeses não usavam os ritos mágicos rente ao seu sistema de crenças e valores.
que antecediam a pesca, como faziam em No que tange aos valores econômicos,
mar aberto, onde estavam sujeitos a perigos uma das primeiras contribuições do estudo
e incertezas (DIEGUES, op. cit.). dos trobriandeses diz respeito à voraz críti-
Assim, independente do significado e ca tecida por Malinowski (1986, p. 56) em
das relações atribuídos por Malinowski a relação à noção da existência de um ho-
esses diferentes tipos de pesca, o que inte- mem econômico primitivo: uma espécie de
ressa para o estudo dos sambaquieiros é a homem primitivo ou selvagem imaginário,
constatação de que podem existir entre as movido em todas as suas ações por uma con-
sociedades marítimas diferentes tipos de cepção racionalista do interesse pessoal,
pesca e a cada um desses tipos podem ser atingindo seus objetivos de maneira direta e
atribuídos valores sociais, econômicos e com os mínimos esforços. Para ele,
simbólicos diferenciados.
Embora uma analogia direta entre os to- [...] o nativo de Trobriand trabalha movido por
briandeses e os sambaquieiros não seja pos- razões de natureza social e tradicional altamen-
sível, afinal os tobriandeses e as outras di- te complexos; seus objetivos certamente não se
versas sociedades da costa das ilhas referem ao simples atendimento de necessidades
periféricas da Nova Guiné não podem ser imediatas nem a propósitos utilitaristas. Muito
simplesmente considerados como povos pelo contrário, em sua realização são despendi-
pescadores coletores, pois praticavam agri- das grandes parcelas de tempo e energia que, do
cultura e o kula (um tipo de “comércio pri- ponto de vista utilitário, são extremamente des-
mitivo”) entre as ilhas, as sociedades da necessárias (MALINOWSKI, op. cit, p. 56).
melanésia são aqui utilizadas como exem-
plos, por meio dos quais possamos estabele- [...] a magia também impõe à tribo muito traba-
cer novas hipóteses a respeito do que viria a lho extra e estabelece regras e tabus que são apa-
ser o universo marítimo dos povos samba- rentemente desnecessários e dificultosos. No fim
quieiros. das contas, porém, não resta dúvida de que, por
Um referencial a partir do qual a cultura sua influência no sentido de ordenar, sistemati-
material sambaquieira pode ser repensada zar e regular o trabalho, a magia constitui ele-
e interpretada com base em exemplos, rela- mento de inestimável valor econômico para os
ções e valores que não se encontram, neces- nativos (MALINOWSKI, op. cit, p. 56).
sariamente, associados a uma visão capita-
lista; onde a obtenção dos recursos e a Segundo esse autor, o trabalho e o esfor-
organização social dos povos pescadores ço não constituem apenas meios para atin-
coletores são simplesmente um resultado gir certos fins, mas sob certo ponto de vista,
direto da máxima eficiência da coleta e do são um fim em si mesmo. Nas ilhas Tro-
menor gasto de energia. Para essas socieda- briand, por exemplo, o prestígio de um bom
des da melanésia (assim como pode ter agricultor é diretamente proporcional à sua
acontecido entre os sambaquieiros), a cole- capacidade de trabalho e à quantidade de
ta, a pesca e a produção de alimentos não terra que consegue lavrar.
estavam exclusivamente vinculadas a uma Se ficarmos na ilusão de que o nativo é o filho
perspectiva de produção de excedentes, folgado e preguiçoso da natureza, que evita na
acúmulo e comercialização lucrativa, mas, medida do possível qualquer trabalho ou que
sim, ligados a um contexto de trocas, ine- não faz outra coisa se não esperar que frutas
maduras lhe caiam na boca, de modo algum des das sociedades marítimas1 e nos faz re-
poderemos compreender seus propósitos e os fletir sobre a possibilidade, sugerida por De
motivos que os levam a executar o kula ou qual- Blasis et. al. (2007, p. 33), de começarmos a
quer outro tipo de empreendimento. Muito pelo investigar e considerar os sambaquieiros
contrário: a verdade é que o nativo pode traba- como caçadores coletores complexos.
lhar e, em dadas circunstancias, realmente tra-
balha bastante. Com objetivos bem definidos e Lo distintivo de la misma [comunidade de cole-
de maneira sistemática e persistente. Tão pouco tores], encuanto a los contenidos de la proprie-
fica ele à espera que suas necessidades imediatas dad, es que ésta se establece sobre la fuerza de
lhe forcem ao trabalho. trabajo y los instrumentos de producción. No se
Na lavoura, por exemplo, os nativos produzem há establecido la propriedad real sobre los me-
muito mais do que realmente necessitam e, em dios naturales de producción. La apropriación
média, no decorrer de um ano normal, chegam de medios naturales es resultado del trabajo y no
a colher o dobro do que precisam para alimen- uma condición necesaria para La producion
tar-se. Nos dias atuais, esse excedente de alimen- (BATE, 1989, p. 19).
tos é exportado por europeus para o consumo de
trabalhadores agrícolas de outras regiões da No que se refere à organização social,
Nova Guiné. Antigamente, simplesmente apo- talvez, possamos sugerir uma série de para-
drecia (MALINOWSKI, op. cit, p. 54-55). lelos com os povos dos sambaquis. Segundo
Malinowski (op. cit., p. 63), embora todos os
Além do mais, os nativos conseguem esse exce- aspectos da vida dos nativos (magia, reli-
dente por meio de um trabalho muito maior do gião e economia) estivessem inter-relacio-
que o estritamente necessário à obtenção de uma nados, era a organização social que funda-
boa colheita. [...]. O elemento não utilitário do mentava a todos. Os povos das ilhas
seu trabalho agrícola torna-se ainda mais evi- Trobriand formavam uma unidade cultural
dente se analisarmos as diversas tarefas a que e lingüística, tinham as mesmas institui-
eles se dedicam com fins exclusivamente orna- ções, obedeciam às mesmas leis e regula-
mentais, em conexão com cerimônias de magia mentos, estavam sob a influência das mes-
e em obediência aos costumes da tribo (MALI- mas crenças e convenções.
NOWSKI, op. cit, p. 55). Os distritos em que se subdividem o ter-
ritório Trobriand distinguem-se entre si so-
Nesse sentido, apesar de também reali- mente do ponto de vista político e não do
zarem a agricultura e produzirem exceden- ponto de vista cultural. Embora possuam o
tes, os trobriandeses não possuíam, pelo mesmo tipo de nativo, cada um deles reco-
menos no mar, uma propriedade real sobre nhece o seu próprio chefe e defende seus
os meios naturais de produção. Condição próprios interesses e objetivos e, em caso de
que, para Bate (1989, p. 19), constitui, sob guerra, cada um se empenha em sua pró-
um ponto de vista focado no materialismo pria luta.
histórico, uma das principais características
das comunidad primitiva de cazadores reco- 1 - O fato dos tobriandeses estabelecerem, nas ilhas, ter-
ritórios e propriedade sobre os meios naturais e, não se
lectores. Embora estejamos tratando, neste preocuparem em se apropriar, no mar, de tais meios, é,
por si só, uma condição que reforça a singularidade das
momento, de grupos com diferentes status, comunidades marítimas, entre as quais, talvez, seja neces-
seria interessante avançar nesta discussão, sário repensar, inclusive, a própria maneira como, tradi-
cionalmente, categorizamos as sociedades em simples e
pois ela reforça ainda mais as singularida- complexas.
períodos. Sacralidade essa manifestada atra- tros. Embora não existam evidências de
vés de cerimônias funerárias fortemente ritu- que os zoólitos estejam relacionados ao es-
alizadas que constituíam referências de pro- tabelecimento dos clãs totêmicos entre os
fundo significado simbólico para seus sambaquieiros, essa ocorrência reforça a
construtores, onde também perpetua-se uma hipótese de que os povos dos sambaquis po-
visão de mundo própria da cultura samba- deriam compor uma sociedade formada por
quieira (DE BLASIS et. al, op. cit, p. 48). diferentes comunidades fluviais, lagunares
Para eles, a onipresença dos sambaquis e marítimas (umas mais marítimas do que
aponta o caráter domesticado da paisagem outras), articuladas e integradas a partir de
lagunar, onde a presença diuturna dos mor- crenças e convenções comuns. Algumas, in-
tos e suas conexões cosmológicas imiscuem- clusive, intimamente ligadas ao universo
-se na vida cotidiana da sociedade samba- marítimo.
quieira. De certo modo, essa presença é
representada pelos zoólitos. Esculturas com SOCIEDADE SAMBAQUIEIRA, COMU-
forma animal, esculpidas segundo regras NIDADES MARÍTIMAS
estilísticas rígidas e que se constituem como Embora a emergência de uma complexi-
parafernália de uso ritual relacionado a ani- dade social entre os sambaquieiros seja um
mais e entidades mitológicas específicas – tema ainda controverso, tanto no Brasil,
parte essencial de uma estrutura ideológica como no contexto norte americano (Lima,
religiosa de expansão macro-regional entre 1999/2000), mais freqüentemente se tem
as sociedades sambaquieiras do litoral. Ar- aceito que grupos caçadores-coletores não
tefatos que, por serem ocasionalmente en- podem mais ser genericamente rotulados de
contrados em associação a sepultamentos “bandos igualitários”, de maneira especial,
específicos, sugerem algum tipo de diferen- os que teriam habitado ambientes ricos e
ciação social (DE BLASIS et. al, op. cit, p. complexos (TENÓRIO, 2003, p. 50).
49-50). Tal perda de prestígio científico deve-se,
Segundo Lima e Mazz (1977, p. 43), essas principalmente, ao desenvolvimento, nas
esculturas parecem ter sido destinadas à últimas décadas, de diversos modelos de
produção de estímulos sensoriais e emocio- mobilidade e de organização social que fo-
nais. Fuertemente simbólicas, cargadas de ram elaboradas com base em estudos etno-
um significado dificilmente alcanzable, fue- gráficos de populações pescadoras não hor-
ron realmente elementos de comunicación ticulturas; cuja principal crítica é a
ritual. A rusticidade dos objetos de uso coti- utilização de parâmetros intrínsecos a gru-
diano frente ao esmero na fabricação dos pos caçadores e horticultores, desconside-
zoólitos vincula, segundo esses autores, o rando o aspecto pescador. Uma aproxima-
domínio da arte ao uso ritual. ção equivocada, já que a atividade da pesca
Além desse forte apelo simbólico atribu- pode implicar em um padrão de mobilidade
ído aos zoólitos, existe outra questão em re- e um contato social completamente diferen-
lação a eles que também encontra similari- tes daqueles encontrados ou estabelecidos
dades entre as sociedades tobriandesas. para caçadores-coletores (TENÓRIO, op.
Questão essa que está ligada ao fato de exis- cit, p. 50).
tir um grande número de zoólitos represen- Segundo a autora, tal compreensão vem
tando animais exclusivamente marinhos: sendo substituída por uma visão transigua-
mamíferos marinhos, tubarões, peixes e ou- litária de complexidade, a partir da qual,
segundo Hayden (1995), esses grupos não ciológica dos povos que os construíram.
seriam considerados nem igualitários nem Contudo, somente em alguns poucos traba-
estratificados, mas, sim, formados por so- lhos tal conceituação é aplicada com a in-
ciedades de diferentes tamanhos e graus de tenção de entender os modos através dos
complexidade, num contínuo de comunida- quais os sambaquieiros se organizavam
des compostas por famílias independentes como grupos sociais.
que controlariam os mecanismos de obten- Segundo Albuquerque (1999), o par co-
ção dos recursos. Nesse tipo de organização, munidade-sociedade indica configurações
segundo a autora, podem coexistir tanto sociais contrastantes (tais como arcaico e
trabalho cooperativo, como donos corpora- moderno, afetivo e racional, sagrado e secu-
tivistas dos recursos. Uma compreensão de lar), que, embora fizessem parte da tradição
sociedade que extrapola a categorização an- sociológica (sobretudo weberiana), só fo-
tropológica baseada em estágios. ram sistematizados no século XIX por Tön-
nies. Aqui, no entanto, ele é utilizado a par-
Shallins (1979) e Service (1971) concordam que tir de uma outra perspectiva, segundo a
na costa noroeste americana são encontrados qual as noções de comunidades e sociedade
grupos caçadores-coletores que, mesmo sem agri- não são mais vistas como conflitantes e in-
cultura, transcendem em muito o nível de bando. tegram-se de modo a englobar os dois prin-
Murdock (1968) também informa sobre grupos cipais tipos de relações sociais (primárias e
que subsistem basicamente da pesca e têm uma secundárias) que, segundo a Sociologia, ex-
cultura tão complexa quanto grupos agriculto- plicam as maneiras através das quais os
res vizinhos, citando, como exemplo, os índios grupos sociais se relacionam.
da Costa Norte do Pacífico, os Calusa, na Flóri- Tal perspectiva fundamenta-se, princi-
da, e numerosas sociedades ao longo dos rios palmente, no entendimento de que os indi-
Negro e Congo, na África. Este autor também víduos que compõem uma comunidade
relata que, no norte da Ásia, os Ainu, os Chukchee compartilham um núcleo aglutinado de va-
marinhos, os Gilyak, os Kamchadal e os Koryac lores que lhes são comuns, ao passo que nas
marinhos provavelmente também estejam na sociedades, os membros devem aceitar um
mesma categoria (TENÓRIO, op. cit, p. 51). conjunto de normas que regula a relação
entre eles (BUELA, 1987). Sob esse ponto de
Dessa maneira, procurou-se um enten- vista, os povos dos sambaquis poderiam ser
dimento que visa à adequação dessa com- vistos sob ambas as categorias. Quando
preensão transigualitária ao conjunto de abordados a partir de um conjunto regional
evidências materiais que compõe o registro de sítios, onde os indivíduos compartilham
arqueológico dos sambaquis. Entendimento normas de convivência e conduta marcadas
esse que se apóia fundamentalmente na pela tradição, religião, consenso e respeito
concepção dos povos dos sambaquis a partir mútuo (contatos primários), podem ser en-
das categorias sociológicas de comunidade tendidos no âmbito de uma comunidade.
e sociedade.
De um modo informal, os parâmetros O conceito de comunidade é empregado, no sé-
que norteiam essa categorização já vêm culo XIX e XX, para todas as formas de relacio-
sendo utilizados por alguns autores para namento caracterizadas por intimidade, pro-
contextualizar os conjuntos de sambaquis, fundeza emocional, engajamento moral e
enquanto artefatos, em uma perspectiva so- continuidade no tempo. Para Durkheim (1960)
um referencial para a construção teórica do a ser reinterpretadas sob essa nova ótica.
que teria sido uma sociedade marítima pré- Nesse sentido, poderíamos, por exem-
-histórica. plo, citar o caso das pontas duplas (em osso)
Ainda que muitas das reflexões aqui que são tão comuns nos sambaquis. Artefa-
propostas tenham se originado a partir de tos que na Europa e na América do Norte
perspectivas antropológicas e de referên- são, desde o início das pesquisas com sítios
cias etnográficos, na prática, esse novo costeiros, entendidas como anzóis. O inte-
olhar traz consigo a possibilidade de re- ressante, neste caso, é refletirmos a respeito
-interpretações da própria cultura mate- do porque nunca antes levantamos tal hipó-
rial. Com base no entendimento de que tese? Nessa mesma linha, podemos ainda
essas evidências, juntamente com outros citar o caso de alguns tipos de machados
elementos de cultura material presentes diferenciados (europeus) que, na realidade,
nos sambaquis (zoólitos, bacias polimento, eram enxós – um instrumento específico
etc), constituem um conjunto de dados que para a escavação de madeira, amplamente
aponta para o estabelecimento de comuni- utilizado (desde a pré-história) para a fabri-
dades que desenvolveram práticas sócio- cação de canoas (CALIPPO, 2004). Eviden-
-culturais intrinsecamente ligadas ao mar ciando, assim, que os sambaquieiros pode-
e aos significados a ele atribuídos, abre-se riam ter se especializado também no
a possibilidade de que outros tipos de evi- desenvolvimento de técnicas e instrumen-
dências arqueológicas normalmente en- tos específicos à prática da pesca e à cons-
contradas em sambaquis passem também trução de canoas.
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