Livro 13 Iniciacao A Cultura Classica Greco Latina

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INICIAÇÃO À CULTURA

Clássica GRECO-LATINA
Editora da Universidade Estadual de Maringá

Reitor Prof. Dr. Júlio Santiago Prates Filho


Vice - Reitor Profa. Dra. Neusa Altoé
Diretor da Eduem Prof. Dr. Ivanor Nunes do Prado
Editor - Chefe da Eduem Prof. Dr. Alessandro de Lucca e Braccini

Conselho Editorial

Presidente Prof. Dr. Ivanor Nunes do Prado


Editores Científicos Prof. Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima
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Equipe Técnica

Projeto Gráfico e Design Marcos Kazuyoshi Sassaka


Fluxo Editorial Edilson Damasio
Edneire Franciscon Jacob
Mônica Tanamati Hundzinski
Vania Cristina Scomparin
Artes Gráficas Luciano Wilian da Silva
Marcos Roberto Andreussi
Marketing Marcos Cipriano da Silva
Comercialização Norberto Pereira da Silva
Paulo Bento da Silva
Solange Marly Oshima
Formação de Professores em Letras - EAD

Aécio Flávio de Carvalho


(Autor)

Iniciação à Cultura
Clássica Greco-Latina

13
Maringá
2011
Coleção Formação de Professores em Letras - EAD
copydesk: Rosane Gomes Carpanese
Apoio técnico: Rosineide Ferreira
Normalização e catalogação: Ivani Baptista CRB - 9/331
Revisão Gramatical: Maria Regina Pante
Edição, Produção Editorial e Capa: Carlos Alexandre Venancio
Júnior Bianchi
Eliane Arruda
Vânia Cristina Arruda

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Iniciação à cultura clássica greco-latina / Aécio Flávio de Carvalho.


C331i -- Maringá: Eduem, 2011.
88p.(Coleção formação de professores em Letras EAD; n. 13)

ISBN: 978-85-7628-355-3

1. Cultura greco-latina – 2. Cultura grega. 3. Cultura latina. 4. Língua e


lingüística greco-latina. 4. Cultura clássica – Crenças e tradições.

CDD 21. ed. 480

Copyright © 2011 para o autor


Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo
mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos
reservados desta edição 2011 para Eduem.

Endereço para correspondência:

Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá


Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 - Campus Universitário
87020-900 - Maringá - Paraná
Fone: (0xx44) 3011-4103 / Fax: (0xx44) 3011-1392
http://www.eduem.uem.br / [email protected]
S umário
Sobre o autor > 7

Apresentação da coleção > 9


Uma reportagem do clássico > 11

Introdução
> 15
Capítulo 1
A Cultura Grega
> 19
Capítulo 2
A Cultura Latina
> 51

5
S obre o autor
Aécio Flávio de Carvalho
Graduado em Letras Franco-portuguesas pela Faculdade Estadual de Filosofia

Ciências e Letras de Paranaguá-PR (1971), completou Filosofia em Curso

Seminarístico (1962- Ponta Grossa-PR), diplomando-se, posteriormente,

pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP); em 1999, doutorou-se em Letras

Clássicas, pela Universidade de São Paulo. Exerceu o magistério em nível

de ensino fundamental e médio como professor vinculado à SEED-PR, de

1966 a 1992; e, como docente nos Cursos de Letras na UEM - Universidade

Estadual de Maringá, desde 1985 até maio p.p. Credencia-se pela experiência

na graduação em Letras, com ênfase na docência da Língua Latina e da

Literatura Latina; na pesquisa, como orientador de trabalhos de iniciação

científica e no PDE- Programa de Desenvolvimento Educaional da SEED-PR; e

na pós-graduação, no Programa de Mestrado do Departamento de Letras,

da UEM, atuando principalmente nas seguintes áreas: da cultura clássica,

privilegiando temas da literatura latina e, dentre estes, os relativos à épica e à

evolução do epos; da história da literatura, com ênfase ao estudo da evolução

da narrativa clássica até a modernidade. Tem dezenas de artigos publicados,

em revistas especializadas, anais de eventos e capítulos de livros. É membro

ativo do GEAMPAR/SC - Grupo de Estudos Antigos e Medievais do Paraná e

Santa Catarina e da SBEC - Sociedade Brasileira dos Estudos Clássicos.

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A presentação da Coleção
Os 54 títulos que compõem a coleção Formação de Professores em Letras fazem
parte do material didático utilizado pelos alunos matriculados no Curso de Licenciatu-
ra em Letras, habilitação dupla, Português-Inglês, na Modalidade a Distância, da Uni-
versidade Estadual de Maringá (UEM). O curso está vinculado à Universidade Aberta
do Brasil (UAB) que, por seu turno, faz parte das ações da Diretoria de Educação a
Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior
(Capes).
A UEM, na condição de Instituição de Ensino Superior (IES) proponente do curso,
assumiu a responsabilidade da produção dos 54 livros, dentre os quais 51 títulos fica-
ram a cargo do Departamento de Letras (DLE), 2 do Departamento de Teoria e Prática
da Educação (DTP) e 1 do Departamento de Fundamentos da Educação (DFE). O pro-
cesso de elaboração da coleção teve início no ano de 2009, e sua conclusão, seguindo
o cronograma de recursos e os trâmites gerais do Fundo Nacional de Desenvolvimento
da Educação (FNDE), está prevista até 2013. É importante ressaltar que, visando a
atender às necessidades e à demanda dos alunos ingressantes no Curso de Graduação
em Letras-Português/Inglês a Distância, da UEM, no âmbito da UAB, nos diferentes
polos, serão impressos 338 exemplares de cada livro.
A coleção, não obstante a necessária organicidade que aproxima e estabelece a
comunicação entre diferentes áreas, busca contemplar especificidades que tornam o
curso de Letras uma interessante frente de estudos e profissional. Desse modo, as
três principais instâncias que compõem o curso de Letras na modalidade a distância
(Língua Portuguesa, Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa e
Língua Inglesa e Literaturas Correspondentes) são contempladas com livros que
são organizados tendo em vista a construção do saber de cada área. Semelhante cons-
trução não apenas trabalha conteúdos necessários de modo rigoroso tal como seria
de esperar de um curso universitário, como também atua decisivamente no sentido de
proporcionar ao aluno da Educação a Distância a autonomia e a posse do discurso de
modo a realizar uma caminhada plenamente satisfatória tanto em sua jornada acadê-
mica quanto em sua vida profissional posterior. Isso só é possível graças à competência
e ao comprometimento dos organizadores e autores dos livros dessa coleção, em sua
maior parte ligados aos departamentos da Universidade Estadual de Maringá envol-
vidos neste curso, além de convidados que enriqueceram a produção dos livros com
sua contribuição. A excelência e a destacada contribuição científica e acadêmica desses

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INICIAÇÃO À CULTURA autores e organizadores são outros elementos que garantem a seriedade do material
Clássica GRECO-LATINA
e reforça a oportunidade que se abre ao aluno da Educação a Distância. Além disso, o
material produzido poderá ser utilizado por outras instituições ligadas à Universidade
Aberta do Brasil, abrindo uma perspectiva nacional para os livros do curso de Letras
a Distância.
Além do trabalho desses profissionais, essa coleção não seria possível sem a con-
tribuição da Reitoria da UEM e de suas Pró-Reitorias, do Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes da UEM e seus respectivos representantes e departamentos, da Diretoria
de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do
Ensino Superior (Capes) e do Ministério da Educação (MEC). Todas essas esferas, de
acordo com suas atribuições, foram de suma importância em todas as etapas do traba-
lho. Diante disso, é imperativo expressar, aqui, nosso muito obrigada.
Por último, mas não menos importante, registramos nosso agradecimento especial
à equipe do NEAD-UEM: Pró-Reitoria de Ensino, Coordenação Pedagógica e equipe
técnica, pela dedicação e empenho, sem os quais essa empreitada teria sido muito
mais difícil, se não impossível.

Rosângela Aparecida Alves Basso,


Organizadora da coleção.

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U ma reportagem
do clássico

O título poderia sugerir, de imediato, em contexto não-acadêmico, uma sequência


de comentários sobre um evento esportivo; é nesse o sentido que a palavra “clássico”
tem, hoje, uso mais corrente.
Entretanto, convidamos o leitor para um clássico menos comum; aqui, a palavra
“clássico” terá um sentido mais tradicional, de “relativo à literatura, às artes ou à cultu-
ra da Antiguidade greco-latina”, como registra o dicionário.
Ao reportar (re + portar) o clássico, no estudo que estamos iniciando, estaremos
trazendo ao conhecimento informações gerais, lances principais dos eventos criados
e vivenciados pelos “times”, isto é, pelos povos gregos e latinos, pré-avaliados pelos
críticos de todos os tempos como espetaculares, sensacionais.
A elaboração deste trabalho, então, partiu de uma tripla motivação:
• a primeira, informar dados que justifiquem o fascínio extraordinário e persis-
tente que a cultura greco-latino sempre exerceu ao longo da história do mundo,
muito particularmente do mundo ocidental;
• a segunda, suprir, minimamente, a lacuna, em todos os níveis de ensino, de
informações sobre o que se costuma rotular como “cultura clássica”;
• e a terceira, angariar novos admiradores destas agremiações culturais fantásticas
que foram os gregos e latinos, para que, assim, o pensamento e os ideais deles
continuem iluminando a vida moderna.

Em relação à primeira motivação, antecipando elementos do conteúdo que virá,


transcrevo a síntese espetacular que Will Durant faz no prefácio de seu livro A História
da Civilização – Nossa Herança Clássica:

Excetuando a maquinaria, com dificuldade encontremos algo secular em nossa


cultura que não tenha vindo da Grécia. Escolas, ginásios, aritmética, geome-
tria, história, retórica, física, biologia, anatomia, higiene, terapia, cosméticos,
poesia, música, tragédia, comédia, filosofia, teologia, agnosticismo, ceticismo,
estoicismo, epicurismo, ética, política, idealismo, filantropia, cinismo, tirania,

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INICIAÇÃO À CULTURA plutocracia, democracia: todas são palavras gregas para designar forma de cul-
Clássica GRECO-LATINA tura raramente originadas, mas quase sempre amadurecidas, para o bem ou
para o mal, pela exuberante energia dos gregos. Todos os problemas que hoje
nos preocupam – o desflorestamento e a erosão do solo; a emancipação da
mulher e a limitação da família, o conservantismo dos estabelecidos e o experi-
mentalismo dos deslocados, na moral, na música e no governo; as corrupções
da política e as perversões da conduta; o conflito entre a religião e a ciência
e o enfraquecimento dos esteios sobrenaturais da moralidade; as guerras de
classes e de nações e de continentes; as revoluções dos pobres contra o poder
econômico dos ricos, e dos ricos contra o poder político do pobres; as lutas
entre a democracia e a ditadura, entre o individualismo e o comunismo, entre
o Oriente e o Ocidente – todos estes problemas agitaram, como que a nos dar
uma lição, a brilhante e turbulenta vida da antiga Hélade [...]

E Durant (1966) conclui:

“Não há nada na civilização grega que não ilumine a nossa”.

Considerando os propósitos do presente estudo, é igualmente válido, e por isso


importante, acrescentar outra ideia inconteste:

a cultura grega teve, como fulcro e aditivo substancial,


a contribuição do gênio latino.

Em relação à segunda motivação, penso que posso invocar a experiência de mais de


40 anos de docência, inclusive 30 anos no magistério superior. Fruto dessa experiência
é a comprovação genérica de que não há, na vida do estudante brasileiro, estímulos fun-
damentais à formação de uma consciência cultural (considerando-se que cultura é um
repositório de princípios humano-humanísticos, não apenas de informações pragmáti-
cas relativas à comunicação e à ciência da moda). Ora, a mesma experiência também
vale para testemunhar o quanto serve à motivação dos jovens - já na fase dos estudos
acadêmicos - a descoberta dos tesouros da sabedoria e da arte clássica, a maioria deles
lamentando a oportunidade de melhor aprofundamento, outros buscando espontanea-
mente uma continuidade, pela participação em projetos de extensão ou de iniciação
científica; e outros ainda, integrando conhecimentos da tradição clássica à compreen-
são e análise de manifestações diversificadas que – nas artes (plásticas ou cinéticas), em
geral, e na literatura, em especial – renovam, reinterpretam, reconstroem, revitalizam
temas, personagens e idéias que, nascidas há séculos antes de Cristo, projetam-se como
valores válidos e eficazes ainda nos dias atuais.
É, então, entusiasmante a inserção da disciplina “Cultura Clássica” no Programa do
Curso de Letras modalidade à Distância-EAD, sobretudo quando se tem a consciência

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de que a ideia base que fundamenta o Curso é a possibilidade, que o distingue, de be- Uma reportagem
do clássico
neficiar uma clientela mais ampla, ensejando-se, pois, a condição de iniciar os cursistas
no conhecimento das características distintivas da civilização greco-latina, dar-lhes a
“notícia” de fatos, de nomes, de teorias que – nascidas no limiar dos tempos históri-
cos – projetam-se até nós; suscitar-lhes a curiosidade e o desejo de saber, e discutir,
“como” e “porque” e “se” esse legado, às vezes lendário, pode – ainda – nos ser útil.
Um último considerando: obviamente, este livro é uma “compilação” de dados,
informações. Não há o que inventar. Ocorrem entretanto também, juízos de valor (nes-
tes, às vezes, pode aparecer um dedo do autor, talvez até inconsciente). Mas, via de
regra, a compilação e a avaliação advêm do cânone; coube ao autor escolher como
aproveitar a matéria e/ou material já consagrado pela tradição. E prover uma sistema-
tização dos dados, tendo-se optado por apresentá-los sob o viés da cronologia, com a
certeza de que, assim, os iniciantes no estudo poderão se situar melhor no tempo da
ocorrência dos eventos.
Como é da tradição acadêmico-clássica, é preciso estudar: oportet studere!

Anotações

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INICIAÇÃO À CULTURA
Clássica GRECO-LATINA

Anotações

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I Introdução

...cultura é uma síntase;


a compreensão é uma vida.”
(Fernando Pessoa, introdução do livro ”Mensagem”)

De início, é importante definir melhor o objeto deste estudo, até aqui apenas delineado.
Para chegar mais facilmente à definição do nosso objetivo vamos preestabelecer o
entendimento de que a cultura greco-latina é uma cultura clássica. E aí temos, juntas,
as palavras “cultura” e “clássica”. Tanto uma quanto outra são muito empregadas no
nosso dia-a-dia, em contextos diversos. Ou seja: se vamos falar de “cultura” é preciso
definir qual o sentido que terão, neste trabalho, as palavras “cultura” e “clássica”; e, já
em seguida, explicar porque estudar a “cultura clássica greco-latina”, ainda que este
estudo seja apenas uma iniciação.
Em busca da maior clareza, transcrevemos abaixo, da última edição do Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa, os significados que nos interessam:
Cultura - conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos, costu-
mes etc. que distinguem um grupo social forma ou etapa evolutiva das tradições e va-
lores intelectuais, morais, espirituais (de um lugar ou período específico); civilização.
Clássico - relativo à literatura, às artes ou à cultura da Antiguidade greco-latina; -
que é fiel à tradição da Antiguidade greco-latina ou a seus autores; - que serve como
modelo ou referência; exemplar.
Casando os conceitos acima, chegamos ao que interessa:

interessa-nos conhecer crenças, tradições e valores, a civili-


zação, enfim, de um grupo social em especial, a saber, do grupo
social representado pelos antigos gregos e latinos.

Tal estudo interessa porque os valores relativos à cultura da antiguidade greco-


-latina nos servem como modelo ou referência; foram e são subsídios e matéria-prima
para a evolução de outras culturas, particularmente para a cultura ocidental.

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INICIAÇÃO À CULTURA Sabemos, então, “o que” vamos estudar, definimos o objeto do nosso
Clássica GRECO-LATINA
estudo: a cultura grego-latina.
E esclarecemos o “porquê”, o objetivo de tal estudo: conhecer as características
exemplares das culturas dos antigos gregos e latinos; ou, mudando a ordem das pa-
lavras, vamos estudar as culturas dos antigos gregos e latinos porque são exemplares:
deixaram ideias, conceitos, princípios que até hoje, passados mais de vinte séculos,
ainda têm força e eficácia na vida e nas ações individuais ou coletivas dos homens.
E por serem essas ideias, conceitos e princípios assim tão especiais e importantes
para a humanidade constituem uma “classe”, isto é, um conjunto essencialmente dife-
renciado: são o clássico.
É por isso que o binômio Cultura Clássica, na maioria das vezes (nos meios aca-
dêmicos, em especial), remete a um conceito único: estudo dos princípios e valores
espirituais, ideológicos, sociais e estéticos da civilização greco-latina.

Sabemos o que e o porquê; mas “como” chegar ao conhecimento da


Cultura Clássica Greco-latina?
Conhecendo, estudando e analisando a vasta produção intelectual e material,
configurada em documentos reconhecidos pela ciência como válidos: textos escritos
relacionados a todos os interesses humanos ou um tesouro arqueológico e artístico
(esculturas e arquiteturas) impressionante, um legado ainda não exaurido, apesar de
passados tantos séculos.
Deixemos claro que este trabalho, propositadamente intitulado “Iniciação”, não
tem a pretensão de trazer todas as referências nem referências completas sobre todos
os aspectos da Cultura Clássica Greco-latina; nem mesmo pretende esgotar todas as in-
formações aqui constantes. Conscientes dos limites que esta disciplina tem no ensino
de um Curso de Graduação à distância e, ademais, conscientes de que toda a cultura
não é a cultura toda, a pretensão maior é trazer dados de conhecimento interessantes
o quanto possível para provocar a admiração e a vontade de pesquisas mais aprofun-
dadas, pelo menos de alguma das facetas da admirável cultura clássica.

Distribuiremos o objetivo geral identificado em duas partes:


I – A Cultura Grega.
II – A Cultura Latina.
Num e noutro caso importam considerações preliminares sobre o espaço, o tem-
po e o povo que construiu os monumentos culturais que nos legaram; e os nomes
– autores, obras – que sinalizam os marcos principais das respectivas culturas.
Claro está que não é o objetivo apresentar referências canônicas como conclusões

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intocáveis; mas o cânone é um parâmetro tanto mais válido quanto mais foi apurado Introdução

na forja do tempo e da tradição.


Como contribuição ao esforço dos que se iniciam no estudo da Cultura Clássica,
oferecemos, ao final, uma amostragem de textos – uma “antologia”, se diria noutros
tempos – com uns poucos excertos de algumas das obras/autores referidos ao longo
deste trabalho.

Anotações

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INICIAÇÃO À CULTURA
Clássica GRECO-LATINA

Anotações

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1 A Cultura Grega

Preliminares: A Grécia – Os povos gregos


A cultura grega é o resultado de um longo processo, cujo marco inicial é muito
antigo e, ainda, impossível de identificar com exatidão científica. Esse processo come-
ça quando ainda não existia uma área geográfica identificada como Grécia e, por isso
mesmo, nem existia um povo identificado como “grego”.
Os estudiosos costumam recuar a origem do povo que um dia será chamado “gre-
go” até, mais ou menos, o século XVI a.C. É preciso explicar essa “data”.
Para o estudo científico dos povos antigos, dos povos gregos e latinos em particu-
lar, existem duas fontes principais: a) os documentos arqueológicos e b) os documen-
tos literários.
Na verdade, uma fonte complementa a outra, uma vez que os documentos literá-
Estamos falando de uma trans-
rios (papiros, tabletes de argila, inscrições tumulares ou em vasos, por exemplo) são, missão documentável. Não era o
caso da oralidade, ainda.
na maioria das vezes, descobertos por meio de pesquisas arqueológicas. Datam deste
tempo impreciso - para uns séc. XVI, para outros séculos antes, até o ano 2.000 a. C. –
As conhecidas lendas de
os documentos que comprovam o uso da escrita, condição indispensável para a trans- “Ícaro” e de “Teseu e o mino-
tauro” têm a ver com a história
missão literária. Esses documentos são constituídos de tijolos (tabletes ou tabuinhas) destes povos, nesses tempos
imprecisáveis.
de barro, com inscrições, cujos caracteres são de três tipos: um hieroglífico, outro
chamado de “linear A” e um terceiro chamado de “linear B”. Somente este último, o
linear B, foi decifrado: trata-se de um código silábico.
Os documentos constituídos pelos tabletes com escrita linear B foram encontra-
dos na ilha de Creta, onde – conjectura-se - foram introduzidos pelos “micênicos”,
os quais – vindos do Peloponeso (v. mapas, na sequência) - dominaram os povos da
ilha, identificados como “minóicos”, dando origem a uma extraordinária civilização
a que os historiadores denominam minóico-micênica ou creto-micênica. São eles, os
minóicos e micênicos, os povos dos quais se têm provas mais numerosas e concretas
da civilização que antecedeu à grega.

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INICIAÇÃO À CULTURA A miscigenação desses povos foi facilitada pela possível origem comum, pois todos
Clássica GRECO-LATINA
seriam indo-europeus, chegados à bacia do Egeu em diferentes e imprecisas etapas. É
É na mitologia que se vai
achar uma explicação para o importante ter isto em mente para que se possa compreender o fenômeno da pequena
nome “heleno”. Segundo uma
tradição, o titã Prometeu (“o diferença cultural, neste momento considerada em termos linguísticos, apenas. Ou
previdente”) tinha feito o pri-
meiro homem de barro; e, para seja: esses povos pré-gregos falavam dialetos diferentes, mas suficientemente seme-
dar-lhe vida, roubou o fogo de
ZEUS. Irado, Zeus acorrentou lhantes para se entenderem. Dos dialetos, sobressaíram o dialeto eólico, o jônico e o
Prometeu a um rochedo; ali,
um abutre vinha devorar-lhe o dórico; o eólico era falado no norte do território, desde então identificado como Tessá-
fígado. Não satisfeito, ZEUS se
voltou contra os homens, sob a
lia; o jônico, no centro, ou seja, na Ática; e o dórico, no sul, no Peloponeso e nas ilhas.
forma do dilúvio. Só se salva-
ram Deucalião e Pirra, filha de
Eólios, jônios e dórios podem ser considerados povos “pré-gregos”; porém nem
Pandora. De Deucalião e Pirra eles nem seus descendentes se auto-identificaram com o nome “grego”. Antes, na nar-
nasceu, entre outros filhos,
HÉLEN; e ele, com uma ninfa, rativa homérica, aparecem designados como aqueus ou acaios (que, aliás, as pesquisas
teve três filhos: ÉOLO, DORO e
Xuto. Este último teve de Creu- modernas indicam como os primeiros migrantes indo-europeus na penísula). Serão os
sa dois filhos: ÍON e AQUEU.
Destes chefes epônimos (a latinos que, bem mais tarde - tornando comum o nome que era particular aos mem-
saber, Hélen, Éolo, Doro, Íon
e Aqueu) teriam derivado os bros de uma tribo do noroeste da Grécia, que se identificavam como graikoi - passarão
nomes dos Helenos e das qua-
tro principais tribos gregas: 0s a usar o termo para designar, indistintamente, todos os habitantes da península. Eles
eólios, os dórios, os jônios e os
aqueus. mesmos, a partir do séc. VII a. C., depois que se identificaram como um povo único,
denominavam-se “helenos” e ao país que constituíram denominaram “Hélade”.

Enquadramento geográfico.

Mapa da Grécia Antiga – com identificação didática das divisões e regiões referidas abaixo, bem como
a localização das cidades mais importantes na história da Grécia: Atenas, na Ática; Esparta, na Lacônia;
Tebas, na Beócia; Corinto, no Peloponeso, próxima ao istmo do mesmo nome.

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A superfície atual da Grécia é bem mais extensa do que a dos tempos antigos. E não A Cultura Grega

eram bem precisos os limites do território que os helenos, então, chamavam Hélade.
Para o nosso trabalho convém distinguir: a Grécia Continental, a Grécia Peninsular e a
Grécia Insular, divisão meramente didática, pois os habitantes, em geral, tinham paren-
tesco étnico e linguístico, o que significa pensar numa certa homogeneidade cultural:

A Grécia Continental e a Peninsular (o Peloponeso), bem distintas no mapa, com o istmo (faixa de terra
estreita) de Corinto bem visível. E uma parte da Grécia Insular, destacando-se, no mar Jônio, Corfu, As
Lêucades, Cefalônia e Zacinto; e no mar Egeu, Eubeia

A Grécia Continental: é a região situada ao norte do istmo de Corinto. Com-


preende regiões como o Épiro e a Tessália, ao norte; a Etólia, Beócia e a Ática, na
parte central.

Grécia Peninsular: é a parte situada ao sul do istmo de Corinto, constituída


pela Península do Peloponeso. Compreende regiões como a Acaia, Arcádia, Élida,
Messênia, Lacônia e Argólida.

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INICIAÇÃO À CULTURA
Clássica GRECO-LATINA

A ilha de Creta em destaque, e algumas da inúmeras ilhas no mar Egeu. Em Cnossos é que se localizava
o famoso labirinto que escondia o lendário Minotauro. De lá foi que fugiram Dédalo e seu filho Ícaro,
também lendários.

Grécia Insular: é a parte formada por um grande número de ilhas espalha-


das, sobretudo, pelo Mar Egeu. Entre essas ilhas destacam-se Creta, Eubeia e os
conjuntos das ilhas Ciclades e das ilhas Jônicas.

Observe- se o mapa:

Topografia, recursos naturais, clima


Dentro desse espaço geográfico – situado na extremidade sul da península balcâni-
ca, como se vê – desenvolveu-se a cultura que nos interessa conhecer.
Cortado de norte a sul por uma cordilheira (os montes Pindos), mais de dois terços
do território é montanhoso; as planícies, excetuada a da Tessália que é mais extensa,
são pequenas, entrecortadas por rios pequenos; no litoral, o recorte territorial é, em
geral, abrupto e as reentrâncias do mar são profundas.
Em geral, a topografia não favorece a agricultura; as áreas cultiváveis são poucas: mui-
ta rocha, pouca água. Assim, o cultivo da terra árida, na antiguidade, era limitado à subsis-
tência: pouco cereal, o cuidado de plantas naturais, a oliveira e a videira (vegetais ligados,
respectivamente, ao culto da deusa Atenas e do deus Dioniso, como se verá adiante).
Dos recursos minerais, destaca-se o calcáreo, particularmente o mármore.
O clima da região é, em geral, ameno.

Influências do meio geográfico


O condicionamento geográfico, se não pode ser considerado determinante, com
certeza influenciou o homem grego em todos os segmentos da vida (individual ou

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comunitária), do pensamento (religioso ou filosófico/político) e da produção (artística A Cultura Grega

ou econômica).
A pouca fertilidade do solo levou o grego a ser sóbrio, a viver com pouco; a ameni-
dade do clima empurrou para a vida ao ar livre, favorecendo a sociabilidade, influindo
na comunicação das ideias dentro da comunidade e na possível discussão das opini-
ões, ambiente propício à formação de uma consciência política.
Entretanto, o retalhamento físico-topográfico provocou isolamento de comunida-
des, cada uma guardando o tesouro das suas próprias leis e tradições; esse fato teve
como consequência o retalhamento político. O que ocorreu é que quantas ilhas ou
quantos vales cercados por muros de montanhas, tantas comunidades com certa in-
dependência, algumas vindo a ser, em algum momento da história, “cidades-estados”.
E, então, um duplo ideal alimentava essas comunidades assim independentes: ser,
cada uma, autosuficiente e ser a melhor entre as vizinhas. A cidade tornava-se, por isso
mesmo, uma escola de civismo, convalidando a educação para a nobreza de espírito e/
ou valorização do físico.
Em direção ao que interessa particularmente ao nosso estudo, ou seja, relativamente
à sedimentação de uma cultura, a influência do meio geográfico foi muito marcante. O
solo árido, dificultando atividades agrícolas, impelia o grego à prática do comércio, en-
senjando trocas de produtos e de outras ideias. E o clima, favorecendo uma vida ao livre, “Na Grécia, o mar une o que
a montanha separa. Por mar, em
impeliu às práticas esportivas, às atividades ginásticas, à dança e à frequência ao teatro. todos os tempos, se estabelece-
Por outro lado, inclinava o homem à contemplação metafísica (à filosofia) e à produção ram naquela terra as transações
e relações humanas mais impor-
artística (à poesia, ao canto, à literatura), fornecendo-lhe, ademais, abundante matéria tantes”. (Robert, 1987, IX)

(o mármore, especialmente) para a criação nas artes plásticas ( arquitetura, escultura).


Ainda em relação ao meio ambiente, destaque-se que o mar foi importante presen-
ça na história dos gregos. Se o solo é duro e hostil, o mar foi e é uma imensa dádiva,
abrindo horizonte ilimitados às viagens aventurosas, à expansão da liberdade de co-
Joseph Ernest Renan foi um
mércio e ao intercâmbio cultural com os povos mediterrâneos. escritor, filósofo, filólogo e his-
toriador francês, autor de obras
Por último, é preciso lembrar, com ênfase, que “a Geografia não explica a História”. célebres...

Ou seja, não é possível admitir que “o milagre grego” – expressão cunhada por Ernest
Renan (1823-1892) para destacar o prodigioso legado cultural que os gregos nos dei-
xaram – seja um resultado determinado pelas condições do meio físico. É inegável a
importância do condicionamento ambiental; mais importante, porém, é o agente da
história e da cultura que ali se processou: o homem. Afinal, o gênio grego soube trans-
formar a península tão pobre em recursos naturais em um dos recantos da terra mais
ricos em produtividade espiritual.
Por outro lado, importa não esquecer que o milagre grego não é uma criação ins-
tantânea, do nada, sem antecedentes. Na impossibilidade de reconstituir, de forma

23
INICIAÇÃO À CULTURA fidedigna, todos os dados anteriores à civilização grega, a arqueologia já nos fornece
Clássica GRECO-LATINA
elementos suficientes para afirmar que o milagre grego aprofundou suas raízes em
húmus histórico espesso e rico, das civilizações pré-helênicas ou pré-gregas.1
O que importa é compreender que a civilização grega, ou helênica, que começou
Usamos aqui a palavra “ci- a existir milênios antes de Cristo, está viva ainda hoje, de maneira multiforme, ainda
ência” entendendo que dados
importantes fornecidos pela que, muitas vezes, reinventada nos aspectos formais.
arqueologia, pela papirologia,
pela epigrafia, pela numismática
e até pela literatura somam-se,
fornecendo a matéria para a
Enquadramento histórico
construção das certezas ou das Já referimos a existência de povos precursores da civilização grega, que chegaram à
hipóteses da história.
península balcânica em ondas sucessivas, em tempos imemoriais.
De onde eles teriam vindo? Quando? A ciência não tem informação segura sobre
isso. Muito sinteticamente damos abaixo dados tidos como certos, independentemen-
te do fato de serem impossíveis datas absolutamente fidedignas.
• Admite-se a existência – nos espaços geográficos que um dia formarão a Gré-
cia – de um povo, talvez autóctone, que desde as fontes mais antigas é chama-
do pelasgo.
Autóctone, isto é, natural da • Os espaços geográficos acima referidos são, todos, banhados pelo mar Egeu, razão
região, indígena. Os Pelasgos
são um mistério para a ciência; pela qual os povos que habitaram às suas margens chamaram-se, também, egeus.
eram povos do mar, que deram
origem a outros dentre os quais • Esses povos serão dominados e se miscigenarão com povos invasores, possivel-
os fenícios e, possivelmente, os
etruscos. Há quem os relacione mente indo-europeus que, em levas sucessivas, desde os anos 2000 a.C. chegam,
com a Atlântida, o continente
desaparecido, fato admitido imigrando, provavelmente, das regiões da Ásia central.
como possível por alguns
cientistas. • Os primeiros invasores foram os aqueus, entre os anos 2.000 a.C. e 1.700 a.C.
Foram eles os fundadores de Micenas, cidade que foi o berço da civilização
micênica que, mais tarde, dominará os minóicos de Creta. A partir de 1400 a.C.,
com a decadência da civilização cretense, Micenas viveu um período de grande
desenvolvimento.
• Entre 1700 a.C. e 1400 a.C., chegaram outros povos: os eólios, que ocuparam a
Tessália e outras regiões, e os jônios, que se fixaram na Ática, onde posteriormen-
te fundaram a cidade de Atenas.
• Por volta de 1200 a.C., iniciaram-se as invasões dos dórios. Os dórios – último
povo indo-europeu a migrar para a Grécia – eram essencialmente guerreiros.
Seu domínio coincide com um tempo que os historiadores chamam de “Idade
das Trevas”, que se prolonga até os anos 800 a.C.
• Daí por diante, até os anos 500, aproximadamente, tem-se um período obscuro,

1 - OBS. A partir de agora, usaremos indistintamente os termos “grego” e “helênico.

24
que, entretanto, compreende duas fase importantes: A Cultura Grega

a) a que se convencionou chamar tempos homéricos (quando se projetam as


figuras de Homero e de Hesíodo);
b) a que corresponde ao início das manifestações do gênero lírico e do gêne-
ro trágico.
• De 500 a 300 a. C. – tem-se o período áureo da evolução do pensamento grego,
com as manifestações mais expressivas tanto nas artes quanto na filosofia e nou-
tros campos do saber.
• No final dos anos 300 vai se iniciar o Período Helenístico, que engloba o fato
histórico da Incorporação da Grécia ao Império Romano (146 a. C.). Isto muda-
rá os rumos da história da Grécia; aliás, mudará a história de toda a civilização
ocidental.

E, no caso do presente trabalho, mudam-se também os vetores de sua elaboração.


Com essa afirmação queremos significar que se abre a condição de dividir nosso traba-
lho em duas partes interrelacionadas mas distintas:
I - A cultura no mundo grego;
II – A cultura no mundo latino.

I – A cultura no mundo grego.

PARTENON – Templo da deusa Atená, construído no séc. V a. C. – monumento sempre apresentado


como símbolo da autêntica cultura grega. Está localizado na Acrópole, i. é, na parte mais alta da cidade
de Atenas.

25
INICIAÇÃO À CULTURA Dado o imenso cabedal de informações que o tema sugere, nossa primeira preocu-
Clássica GRECO-LATINA
pação é fazer uma seleção e escolher um critério:
a) faremos a seleção dos eventos artístico-culturais por períodos, visando ordenar
a exposição;
b) dentro dos períodos, dar-se-á destaque aos eventos que a tradição aponta como
mais significativos, visando a economia didática do trabalho.

A partir desses parâmetros, nossa primeira parada na jornada do tempo será o que,
no enquadramento histórico acima, identificou-se por tempos homéricos.

Homero, então, é o ponto de partida.

Busto de Homero, no British Museum, London. Provém do Wikimedia Commons, acervo de


conteúdo livre, da Wikimedia Foundation.

Há uma questão não resolvida envolvendo esse nome: estamos falando de um ho-
mem ou de vários homens a que os antigos distinguiram com o nome Homero? Home-
ro (séc. VIII a. C. ?) seria um nome próprio ou apenas sinônimo de aedo, rapsodo, poeta
ambulante que vagava pelas ágoras (praças) das cidades gregas? E as epopeias que
lhe(s) são atribuídas, a Ilíada e a Odisseia, são, de fato, obras de um ou de mais de um
autor? Estas questões constituem o que se chama, em história da literatura, “Questão
Homérica”.
A respeito, o que nos interessa saber é:
a) que as duas epopeias foram “compostas” entre o séc. IX e o séc. VII a.C.;

26
b) que, provavelmente, são o resultado final de uma “costura” inteligente de A Cultura Grega

narrativas menores, que os cantadores ambulantes divulgavam de cidade em cidade;


c) que essa costura supõe um autor só, que bem pode ter sido um “homero” (=
Essas narrativas menores de-
cantador) de nome desconhecido ou Homero, nome próprio de um desses vem ter passado de geração a
geração, por transmissão oral.
cantadores, como é da tradição. O texto escrito da Ilíada só teria
aparecido por volta do séc. VI a.
Por outro lado, é à tradição, também, que Homero deve seus temas, sua linguagem, C., quando Pisístrato ordenou a
“publicação”.
sua métrica e muitos dos recursos de que se vale para tornar sua obra inteligível e
atraente. Os textos das suas obras, a Ilíada e Odisseia, no estado atual, com certeza É assim que Toynbee conside-
ra a Ilíada e a Odisseia, fazendo,
contêm interpolações, sofreram cortes e modificações. porém, ressalvas ao valor histó-
rico dessas narrativas. (Toynbee,
Entretanto, é importante realçar que, mesmo com as interferências e interpolações, Helenismo, História de uma
civilização, p. 40).
os textos homéricos que temos ainda são fontes mais detalhadas e atraentes relativas
à organização social e política dos gregos nos séculos que se seguiram às invasões
dóricas. Entretanto, não há como nem porque negar que as epopeias homéricas estão A estética diz respeito à per-
cepção e à expressão da beleza
impregnadas de fantasia, que fazem ficção em cima de uma realidade indefinível, mis- e das formas artísticas. A ética
refere-se aos princípios que
turando séculos, costumes e lugares. Essa comprovação ajuda a concluir que a Ilíada e disciplinam ou orientam o com-
portamento humano.
a Odisseia são obras de arte; e já assim são documentos bem válidos de uma atividade
cultural, que é o nosso objetivo realçar. Chama-se “alexandrino” o
A poesia homérica caracteriza o pensamento grego primitivo; caracteriza, igual- período que vai do f im do séc.
IV ao III a.C. O nome tem a ver
mente, a ligação que então se fazia entre a estética e a ética. Ou seja: os textos da Ilíada com Alexandre, o Grande e a
cidade de Alexandria.
e da Odisseia são documentos dos valores estéticos dos gregos naqueles tempos lon- Filologia é o estudo científico
dos documentos escritos anti-
gínquos, mas, também, dos anseios e motivações do homem relativamente à realização gos e de sua transmissão. Os
principais filólogos do período
de sua condição humana. alexandrino foram Zenódoto,
Aristarco, famoso como intér-
A densidade dos valores estéticos é tal que é possível dizer que ali, na narrativa prete de Homero; e Apolônio
Díscolo.
homérica, encontram-se os germens das diversas outras espécies de manifestação li-
terária, ou seja, da lírica, da tragédia e da comédia. Por outro lado, a densidade dos
A palavra “canto”, aqui, tem
valores éticos, ou seja, os valores relacionados aos deveres do homem em relação a si o mesmo sentido de “capítulo”.
Em relação aos poemas antigos
mesmo, ao seu semelhante e à pátria, produziu uma herança tão vasta e tão profunda sempre se usa “canto” porque as
narrativas eram feitas em versos
que ainda hoje é identificável. Explicando melhor: depois de quase trinta séculos, e não se entendia a cadência do
ritmo como algo que não fosse
ainda é possível tomar como referências, na Ilíada ou na Odisseia, tanto recursos para ser cantado.

estilísticos quanto elementos temáticos; tanto o que é nobre e digno quanto o que
é vil e indigno no comportamento humano – tudo a partir de ações de personagens
criados por Homero,
Tanto a Ilíada como a Odisseia são poemas narrativos, divididos pelos filólogos
alexandrinos, cada um, em 24 “cantos ”. A Ilíada narra um episódio da famosa guerra
de Troia, normalmente conhecido como “a cólera de Aquiles”; ou seja, narra-se uma
desavença entre Aquiles, destemido guerreiro grego, e Agamênon, chefe supremo dos
exércitos que assediavam Troia; a raiva de Aquiles e as suas consequências são o ponto

27
INICIAÇÃO À CULTURA de partida para o narrador trazer para a cena dos acontecimentos outras personagens,
Clássica GRECO-LATINA
intercalar outras histórias, informar hábitos e costumes, tudo revestido da aura da lenda
ou do mito. E então desfilam diante de nossos olhos um cortejo de divindades, deuses,
deusas, ninfas, faunos, sátiros... E o que a Ilíada não traz é complementado na Odisseia
que, alias, é outra narrativa derivada da primeira: narra-se agora que, finda a guerra de
Troia, Ulisses, um guerreiro cujo traço distintivo é a astúcia, de volta para a sua terra,
precisa superar desafios fantásticos, até chegar junto à sua querida esposa Penélope.
Na impossibilidade de nos atermos a todos os aspectos de cada uma das narrativas,
e conscientes do que é de mais valia para uma iniciação à cultura clássica grega, desta-
camos, a seguir, algumas personagens das narrativas; fazemos isto porque, a juízo da
crítica universal, – mais do que personagens – as figuras em destaque são protótipos
humanos, e como tal, são modelos de valores culturais, genericamente dignos de ins-
piração em qualquer espaço e tempo.

As personagens como exemplos


Homero, com sua poesia desenvolve uma tácita, porém massiva e atraente, fórmula
educativa. Não é um código de leis comportamentais, mas deixa implícitas lições de
natureza sócio-política. Refere episódios que, conquanto lendários, são eficazes no
sentido de produzir modelos comportamentais válidos não apenas para os gregos e
para os ouvintes das ágoras de então, mas também para os leitores de todos os tempos.
Mais que personagens, os protagonistas desses episódios são – repetimos – protótipos
humanos.
Abaixo, os protótipos mais conhecidos.
Agamenão é a personagem símbolo do poder constituído. No texto da Ilíada
sempre aparece distinguido com o epíteto “Rei dos Homens”. Nele, Homero critica
a arbitrariedade e o abuso do poder. Portanto, educa para a moderação no exercício
da autoridade; mas não deixa de esclarecer sobre a necessidade do respeito à auto-
ridade legítima.
Aquiles representa o homem cioso da sua honra pessoal e da sua força. Por meio
dele, Homero sugere a importância da auto-estima, mas insinua que o homem domi-
nado pelo orgulho desmedido pode ser até cruel.
Nestor personifica o equilíbrio, ideal maior na formação de todo indivíduo, meta
suprema dos que desejam conhecer a si mesmos e que será marca do apelo clássico –
grego e latino – na construção da nobreza pessoal.
Em Ulisses, Homero representa a capacidade de argumentar e convencer, por
um lado; por outro, a astúcia capaz de criar a solução nas situações mais difíceis,
ambas qualidades sutilmente sugeridas como desejáveis.

28
A Cultura Grega

Cavalo de Troia feito para o filme Troia, preservado em Çanakkale,


Turquia. Uso da imagem nos termos da licença Creative Commons.
Atribuição-Partilha nos Termos da Mesma Licença 3.0 Unported.

Da Ilíada, é bem conhecido o episódio do cavalo de Tróia, engenho da criativida-


de de Ulisses, sempre caracterizado por Homero com o epíteto “o de muitos ardis”.
Da Odisseia é famoso o episódio em que se relata a manha com que Ulisses se faz
“Ninguém” para escapar da caverna de Polifemo.
Não se pode esquecer de que, na Odisseia, a todos os episódios sobrepaira a lição
da fidelidade conjugal: de Ulisses arrostando os perigos na tumultuada volta para a
casa; de Penélope, protótipo da fidelidade feminina, que resiste às investidas dos pre-
tendentes mesmo com o esposo há tanto tempo ausente.
Dentre os troianos, Heitor é o destaque maior. Nele o poeta exalta a nobreza de
alma e a bravura “patriótica” em defesa de Tróia, mostra-o como esposo amoroso e pai
cheio de ternura; faz dele um modelo de cidadão e exemplo de chefe de família; monta
um quadro admirável de família ideal, colocando-lhe ao lado a figura de Andrômaca,
mãe e esposa chorosa, mas forte na sua resignação feminil.
Já o irmão de Heitor, Páris, é o símbolo do jovem deslumbrado com a própria
beleza e com seu poder de sedução. Na história, é afoito até à inconsequência, mas

29
INICIAÇÃO À CULTURA fraco no momento da luta que ele mesmo provocara com o rapto da formosa Helena,
Clássica GRECO-LATINA
a qual, por sua vez, é o protótipo da mulher sedutora e seduzível.
É extensa a galeria das personagens-símbolo de Homero. A crítica ensina que são
personagens complexas, capazes de surpreender o leitor, a cada nova leitura, com li-
ções não captadas antes. É por isso que um estudioso diz que Homero é inspirado por
uma concepção relativa à natureza humana e às leis que regem o mundo e que passa
ao leitor essas ideias através dos exemplos que cria.
Trata-se de Werner Jaeger,
num livro muito famoso, intitu-
lado “Paideia”. Para comprovar Hesíodo
sua afirmativa, Jaeger cita um
episódio muito interessante da Hesíodo é, com Homero, a mais antiga fonte de estudo da cultura grega, até o séc.
Ilíada, conhecida com o título
“O escudo de Aquiles”. VII a.C. Sabemos dele o que ele mesmo conta: que era pastor, que viveu a maior parte
da vida na Beócia, que após a morte do pai teve uma disputa com um irmão chamado
Perses por causa da herança. Exatamente quando e quanto viveu não se sabe; tem-se
como certo que sua obra apareceu depois que já era conhecida a narrativa de Homero.
Hesíodo deixou dois poemas: a Teogonia e Os trabalhos e os dias.
Esse poema, Os trabalhos e os dias, é explicitamente didático:

Página inicial de Os trabalhos e os dias, de Hesíodo


Data: 1539. Basileae, Mich. Ising., 1539, p. 6-7. Fonte: Wikimedia Commons

São 826 versos, dirigidos por Hesíodo ao irmão Perses, com a finalidade de incentivar
o irmão ao trabalho e à prática da justiça. É uma exortação em quatro partes, entremeada
por mitos, principalmente na primeira parte, quando ficamos conhecendo, por exemplo,
o mito de Prometeu, o de Pandora, o das cinco idades da terra, entre outros. Da segunda
parte em diante, Hesíodo é mais objetivo e realista: orienta o trabalho na agricultura e
na navegação; dá conselhos diversos e fala sobre os dias favoráveis e os desfavoráveis às
atividades. É de se pensar na atualidade de algumas observações do poeta:

30
• Trabalhar não envergonha, o que envergonha é a preguiça; A Cultura Grega

• A fome é sempre companheira do homem preguiçoso;


• Não se deve roubar as riquezas; como dons dos deuses, são melhores;
• Não procure lucros desonestamente; lucros desonestos trazem desgraças;
• Não adiar para amanhã nem para depois de amanhã;
• Guarda bem na tua alma o temor dos deuses;

São máximas fortes, inesquecíveis: encerram lições que, nascidas no VIII a.C., ainda
são modernas.

No poema Teogonia Hesíodo ensina a genealogia dos deuses. É preciso ter em


conta que os deuses representavam, para os gregos, formas de manifestação das forças
do mundo: num primeiro momento, as forças telúricas, as forças da natureza (a terra,
o ar, o céu, as águas, a tempestade, o raio, o vulcão, os seres vegetais e animais, etc.) e
os fenômenos da morte, do nascimento; num segundo momento, a força dos instintos
e paixões humanas (o sexo, o amor, a ambição, o poder...), as faculdades superiores
do homem (a inteligência, a sabedoria...). Na Teogonia, metodicamente, os deuses
são explicados numa sucessão que vai do Caos a Júpiter. Tal sucessão é inicialmente
marcada pela violência e, finalmente, controlada, como que significando o triunfo da
racionalidade sobre o primitivismo, o advento de uma certa ordem moral. Desta for-
ma, tem-se na Teogonia uma tentativa de sistematização mais ou menos didática das
crenças, mitos e lendas que, então, existiam na memória e na vivência popular.
Organizado, o mito se reafirma e se realiza como valor sócio-educativo, sugerindo a
lição de que a manutenção da comunidade social passa pelo respeito a certas tradições.
Quando falamos em mani-
Ainda hoje o estudo dos mitos constitui importante instrumento de análise e de festações artísticas ,estamos
valoração de qualquer cultura e, por isso, constitui o objeto específico da mitologia. nos referindo a todas elas,
não apenas às literárias. Hoje,
Ora, sobretudo nós ocidentais, tivemos, dos gregos e latinos, uma herança direta é inegável o uso do mito e da
tradição clássica no cinema e na
da grande maioria dos elementos culturais que hoje dão substância à nossa civilização. mídia em geral.

Em relação à mitologia e aos mitos, certamente ainda é importante dar-lhes impor-


tância como componentes dessa herança. Essa importância deriva de considerações
válidas, tais como:
• O conhecimento dos mitos greco-latinos serve à cultura, em geral;
• instrumentaliza as manifestações artísticas, em especial;
• e, muito particularmente, otimiza o conhecimento e fruição da arte literária
(como manifestação especial de qualquer forma cultural, em qualquer lugar e
em qualquer tempo).

31
INICIAÇÃO À CULTURA Em nosso caso específico, nós, que fazemos parte dos povos latinos, visto sermos
Clássica GRECO-LATINA
herdeiros diretos da cultura greco-latina, o conhecimento dos elementos básicos da
mitologia grega e latina é pré-requisito
• para o melhor entendimento das obras literárias dos gregos e dos latinos;
• fornece subsídios à compreensão dos fatos de qualquer uma das culturas oci-
Somos herdeiros diretos da
cultura greco-latina e tributários dentais, especialmente daquelas que, pelo instrumental linguístico, são conhe-
privilegiados da estrutura mor-
fossintática da língua latina. cidas como neolatinas (a portuguesa, a francesa, a espanhola, a italiana...).
• De resto, o conhecimento da mitologia greco-latina serve à compreensão de
toda a cultura humana, subsidiando conhecimentos da história, da filosofia, da
psicologia, da antropologia.

Os gregos conceberam três gerações de deuses:

a primeira foi presidida, inicialmente,


por uma divindade feminina > GAIA (Geia),
e, logo depois, por > URANO;
a segunda foi presidida por > CRONOS;
a terceira, a geração dos deuses olímpicos,
era governada por Z E U S.

Apontamentos2:
1) C A O S não era um divindade: era o estágio primordial da realidade, anterior à
individualização do seres.
• G A I A – a Terra (= a natureza), ventre primordial, donde tudo nasce (não
deve ser confundida com terra=solo), é o primeiro ser que se individualiza
do Caos; ou melhor, é a primeira aparência de matéria.
• Com ela, emerge uma energia espiritual que a tudo preside.
• Gaia, sozinha (por cissiparidade), gera URANO (o céu).
• EROS é a representação da energia imaterial que preside a geração da vida.
• CRONOS (o Tempo) comanda a evolução da vida. Numa fase primeira, gera
vida; de Reia, faz nascer inumeráveis filhos. Numa fase seguinte, devora a
vida que fez nascer.
• ZEUS é único que se salva da gana do pai, e o sucede no poder. Torna-se o
pai dos deuses olímpicos.

2 - Nesse momento, aproveitamos os dados já publicados no capítulo III do livro “Fundamentos His-
tóricos da Educação”, p. 47-72

32
A Cultura Grega
 Da união Gaia < > Urano nasceram:
• Hecatônquiros
• Cíclopes
• Titãs (Oceano,Ceos,Crio,Hipérion, Jápeto e Crônos)
• Hipéríon – o Sol, que tudo vê;
Jápeto – o pai de Prometeu;
• Titânides (Teia,Reia, Febe, Tétis, Mnémosine).
Mnémosine – a mãe das Musas; Febe, a Lua.

 Da união de Crônos e Reia nascem


 H( V )éstia, Deméter, Hera, Hades, Posídon e Zeus.

Do sangue de Urano nasceram as Erínias,Gigantes e Melíades;


do seu sêmen, nasceu Afrodite.

2)
Os deuses gregos eram antropomórficos, isto é: os gregos concebiam as divin-
dades com características dos seres humanos. Eles as representavam, fisicamente,
como homens ou mulheres; e lhes atribuíam qualidades intelectuais e sentimentos
humanos, inclusive paixões (amor, orgulho, ira, inveja, cobiça...).

3) É a seguinte a relação dos deuses olímpicos:


Nome grego Nome latino Domínio Atributos Símbolos

Zeus Júpiter/jove Ar Onipotência Águia, raio, cetro

Hera Juno Céu Casamento Pavão

Palas Atená Minerva Relâmpago Inteligência Mocho, escudo, oliva

Ártemis Diana Lua Castidade Cervo, lua crescente

Afrodite Vênus Amor Beleza Pomba

Deméter Ceres Terra Fecundidade Foice

Apolo Febo Sol Artes / Letras Arco, lira

Hermes Mercúrio Chuva Eloquência Asas, caduceu

Ares Marte Furacão Guerra Capacete, lança

Hefesto Vulcano Fogo inferior Indústria Martelo, bigorna

Pos(e)idon Netuno Mar Cólera Tridente

Héstia Vesta Lar Virtudes do lar Fogo sagrado

33
INICIAÇÃO À CULTURA NB.* A relação dos olímpicos não é sempre apresentada assim; é possível encontrar
Clássica GRECO-LATINA
nela também o nome de Dionis(i)o/Baco; ou às vezes, a exclusão do nome de
Héstia.
* Adiantando informações que serão úteis mais à frente, nesta relação já apare-
cem os nomes pelos quais os deuses serão invocados pelos latinos.

Abaixo, as representações imagéticas, mais comus, dos deuses olímpicos.

ZEUS HERA PALAS ATENEIA ÁRTEMIS

AFRODITE CERES APOLO HERMES

ARES HEFESTO POSS(E)IDON HÉSTIA

34
O panteão – isto é, o universo de todos os deuses – é vasto. A Cultura Grega

O que importa é conhecer os nomes que, ainda hoje, são empregados na vida mo-
derna e qual a possível relação do seu emprego atual com a função mítica tradicional.
Mais do que isso, ao acadêmico das ciências humanas, particularmente ao estudante
de letras, interessa que tenha subsídios para compreender as frequentes retomadas
do mito em textos de autores modernos, que buscam na remitologização das paixões
humanas a inspiração da sua ficção e da sua poesia.
Referência especial merece o deus Dionis(i)o (para os latinos BACO), em cujo cul-
to mesclavam-se, ritualizados, os fatos da origem da vida e a sua representação sacrali-
zada, (mais exatamente os fenômenos da fertilidade e da sexuualidade relacionados ao
cultivo da videira e à fabricação do vinho), de certa forma misturando as forças naturais
da reprodução e da renovação da vida humana, animal e vegetal num impulso comum.

Além dos deuses olímpicos – e de BACO – outras divindades, das gerações an-
teriores, são frequentemente citadas:

HADES \ PLUTÃO > deus dos infernos e dos mortos;


CRONOS \ SATURNO > o pai dos deuses da 2a. geração;
GAIA ou GEIA \ TERRA. > a deusa-mãe, deusa da fertilidade;
EROS \ CUPIDO > deus do amor;
PROMETEU > deus criador do homem
MOIRA \ FADO, DESTINO, PARCAS > divindades do destino humano;
TÂNATOS \ MORTE > deusa da morte;
PAN > deus dos campos;
TÊMIS > personificação da justiça;
NEREU e as NEREIDAS > divindades marítimas;
ERÍNIAS \ FÚRIAS > divindades vingadoras dos crimes.

É preciso saber, ainda, a respeito das MUSAS e dos HERÓIS.

 As MUSAS nasceram da titânide MENMÓSINE (Memória, Lembrança) e, na tradi-


ção corrente, eram nove:

CALÍOPE > inspiradora da poesia épica;


CLIO > inspiradora da história;
EUTERPE > da poesia lírica e da música;
MELPÔMENE > da tragédia;

35
INICIAÇÃO À CULTURA TERPSÍCORE > da dança e do canto;
Clássica GRECO-LATINA
ÉRATO > da poesia erótica e da música coral;
POLÍMNIA > da oratória e retórica;
URÂNIA > da astronomia;
TÁLIA > da comédia e da poesia idílica.

 Os HERÓIS e/ou semideuses (seres humanos que sobressaem, distinguidos


pela proteção especial de alguma divindade) mais conhecidos são:

HÉRCULES, TESEU, AQUILES, ENEIAS, PERSEU,


Homero e Hesíodo viveram
contextos históricos diferentes
TÂNTALO, ÉDIPO, JASÃO, BELEROFONTE,
e espaços diferentes. Homero
viveu nos espaços da Jônia
DEUCALIÃO e sua mulher PIRRA,
e o momento era de guerra.
Hesíodo viveu nos campos da
EUROPA, ATALANTA.
Beócia o tempo das culturas do
trigo, da uva e do trato com as
ovelhas. Disso tudo que vimos estudando é possível concluir que tanto Homero quanto
Hesíodo passaram aos seus conterrâneos uma concepção de vida. Fizeram isso não
por meio de um manual de comportamentos, mas por meio da sedução e da sutileza
da poesia. No entanto, a concepção de vida em Homero e em Hesíodo não é a mes-
ma. Enquanto Homero representa o mundo e a cultura grega do ponto de vista da
aristocracia, Hesíodo representa o mundo e a cultura grega do ponto de vista rural.
Em Homero, a grandeza do homem liga-se aos valores da guerra de conquista ou de
manutenção da terra conquistada; em Hesíodo, a luta que se projeta é a do cultivo da
A palavra elegia tem, hoje, o
terra e da conquista dos frutos que a terra produz. Homero exalta o homem por sua
sentido de “poema carregado de
tristeza”. Não era assim na anti-
honra pessoal e pela forma como a conquista e defende; Hesíodo exalta o homem que
guidade, quando podia ter con- trabalha e no trabalho conquista a sua honra.
teúdo moralista (com Sólon),
patriótico (com Tirteu), amoro-
sos (com Mnermo) e mais tarde
com Calímaco; na poesia elegía- Dentro dos parâmetros de exposição que estabelecemos acima, entramos, agora,
ca se destacaram grandes poetas
em Roma, como veremos: Tibu- cronologicamente, entre os anos 600 e 500 a. C.. E é preciso registrar, então, que esse
lo, Propércio e Ovídio.
contexto aristocrático regido pelos deuses e refletido nas epopeias passará, aos pou-
cos, por transformações sócio-políticas importantes.
Uma figura histórica simboliza essas mudanças: SÓLON. Considerado um dos sete
sábios da Grécia, Sólon ( 638 a.C. – 558 a.C.) foi legislador, jurista e poeta. As reformas
que introduziu em Atenas tinham o direcionamento à liberdade e vão condicionar as
expressões culturais daí por diante.
Na arte literária, aflora a subjetividade em manifestações do gênero lírico, ou em
versos elegíacos ou em versos iâmbicos ou na ode.
Representantes da elegia são o próprio Sólon e Teógnis; do iambo, o poeta

36
Arquíloco, criador da sátira; e na ode, são nomes imortais os de Safo (560 a. C.) (a A Cultura Grega

primeira mulher escritora de que se tem notícia no Ocidente, poetisa do amor e da


beleza) e de Anacreonte (563 a. C.), poeta do amor e do vinho, que será imitado,
mais tarde, pelos latinos Horácio e Catulo; sua temática chegou aos tempos modernos Safo foi casada e tinha uma
filha, Cleia ( Ver texto, ao fi-
caracterizada como “poesia anacreôntica”. nal). Entretanto, o nome da
poetisa Safo e do lugar em
Já quase no final dessa fase vamos encontrar o poeta Píndaro que, na Antiguidade, que viveu (Lesbos) ficaram
perenemente associados à
tinha grande reputação, chegando a ser considerado o maior dos líricos, sobretudo sexualidade ou homossexuali-
dade femininas, como é bem
pela expressão triunfal da suas odes. sabido, na maioria das vezes
sem a compreensão do por-
quê... Platão a incluiu entre as
O período áureo da cultura grega. Musas: expressando-se assim:
Para algum são nove as
O período da evolução do pensamento grego consagrado como áureo coincide Musas / Mas excessivamente
poucas na verdade / Que a
com o que os historiadores classificam como “ático”; e se estende dos anos 500 aos décima se acrescente / E Safo
de Lesbos échamada!
anos 300, aproximadamente. É um tempo em que a expressão escrita liberta-se do ver-
so, sem que isso represente abandono dele. Entretanto, eclode com força a expressão
em prosa, que favorece as informações da história, o registro da discussão filosófica
e as manifestações da eloquência. Assim, o registro documental da cultura grega no
período é mais diversificado.
Já se disse que o grego tem gênio especulativo. E quem se inicia no estudo da
cultura clássica grega não pode desconhecer nomes e ideias que, alguns mais, outros
menos, representam a efervescência do pensamento filosófico grego na época; pensa-
mento que prolonga sua influência através dos tempos, até nossos dias. Aqui, para fins
didáticos, ordenamos cronologicamente algumas informações.

Filosofia e filósofos gregos no período áureo.


É claro que conhecer nomes dos filósofos gregos não é saber filosofia, nem basta
para formar um repertório de conhecimento sobre as teorias deles; a expectativa é de
que a menção a eles e às indagações comuns que motivavam suas ideias possa dar, pelo
menos, a dimensão de quanto tais ideias têm em comum com os problemas da nossa
atualidade; e, assim, surja alguma motivação pessoal a um estudo particularizado.
Há certa entendimento de que:
a) As primeiras especulações giraram em torno de problemas cosmológicos
(cosmos = mundo + logos = estudo). Ou seja, buscava-se entender o mun-
do, a sua origem e os fenômenos da natureza.
Neste sentido, empenharam-se filósofos como Tales de Mileto (624?-546?), Ana-
ximandro (610-547), Pitágoras (570? – 500), Heráclito (544-484), Parmênides
(530-460), Empédocles (494-435), Anáxagoras (500-428), Zenão (489), Demó-
crito (470-360).

37
INICIAÇÃO À CULTURA b) Num segundo estágio da prosperidade correspondente ao período áureo, as
Clássica GRECO-LATINA
especulações filosóficas voltaram-se para o ser humano, para a realização do
indivíduo como pessoa, e para as questões da construção do conhecimento e,
ainda, para os problemas do relacionamento da vida em comunidade.
• É quando aparecem os sofistas: os primeiros foram: Protágoras (481 a.C.-420
a.C.), Górgias (483 a.C.-376 a.C.), e Isócrates (436 a.C.-338 a.C.). A conhe-
cida frase “o homem é a medida de todas as coisas” resume, de certa forma,
os ensinamentos sofistas, que apregoavam a relatividade do conhecimentos
e das suas formulações.
• Da mesma época foi também Sócrates (470 – 399 a. C.), uma das figuras
mais marcantes dentre os filósofos gregos. Entretanto, ele não deixou nada
escrito. O que sabemos de sua vida e de seu pensamento nos foi transmitido
por seus dois discípulos Xenofonte e Platão. Seu método de pesquisa consis-
tia no diálogo, feito em duas etapas: a ironia e a maiêutica. A ironia socrática
levava o discípulo ou interlocutor à dúvida sobre o próprio conhecimento; a
seguir, pela maiêutica (literalmente, arte do parto), Sócrates procurava, com
perguntas pertinentes, levar o próprio discípulo a dar luz à verdade. Daí a
sua máxima mais conhecida: “conhece-te a ti mesmo”. É como se dissesse: é
preciso bem pensar para bem viver. O ponto alto dos ensinamentos socráticos
visava a moral: a prática da virtude é o único meio alcançar a felicidade, fim
supremo do homem. A virtude leva a sabedoria ou, antes, com ela se identifica.
Não obstante a nobreza de tais princípios, Sócrates foi acusado de corromper
a juventude e condenado a beber veneno (a cicuta), morreu aos 70 anos (ver,
mais adiante, a naração do filósofo).

São desse período, justamente chamado áureo, os grandes sistemas filosóficos,


que englobaram todas as principais dúvidas/problemas do ser humano: “o ser e o pen-
samento, a matéria e o espírito, Deus e o mundo, a ordem física, moral, social, estética
e religiosa” (GIORDANI, 1984, p. 375).
Esses sistemas acham-se definidos no conjunto das teorias e doutrinas de Platão,
primeiro, e de Aristóteles, em seguida.
Platão (427 a.C.-347 a. C.) foi o maior discípulo de Sócrates. O sistema doutrinário-
-filosófico que legou é fonte inesgotável da especulação dos pensadores de todos os
tempos.
A doutrina de Platão aparece, hoje, reunida em coleção de obras normalmente
intitulada “Diálogos”, justamente pela forma dialógica com que Platão, seguindo o
mestre Sócrates, a produziu. Compreende trinta e cinco diálogos e um conjunto de

38
treze cartas. Abaixo, alguns dos temas/ diálogos famosos: A Cultura Grega

- Apologia de Sócrates,
- Críton ou
- Do Dever,
- Lísis ou Da Amizade,
- Cármides ou Da Sabedoria,
- Hípias menos ou Da Mentira,
- Hípias Maior ou Do Belo,
- Górgias ou Da Rétorica,
- República - livro I,
- Protágoras ou Dos sofistas,
- Ménon ou Da Virtude,
- Fédon ou Da Alma, - Teeteto ou da Ciência,
- Banquete ou Do Bem, - Sofista ou Do Ser,
- República - livros II a X, - Timeu ou Da Natureza,
- Fedro ou Da Beleza, - Crítias ou Da Atlântida.
- Parménides ou Das Formas

Não há como sumarizar aqui todo o pensamento platônico; do mar imenso das
suas ideias, tomamos algumas, das mais lembradas, com a preocupação maior de sus-
citar a curiosidade para um estudo pertinente:
• Teoria das Ideias – Platão ensina que, por trás do mundo dos sentidos, existe
uma realidade autônoma e imutável, que ele chamou de mundo das ideias: são
formas primordiais, padrão de tudo o que existe no mundo sensível. Assim o co-
nhecimento através dos sentidos é suscetível de falhas, é fragmentário e restrito;
só é conhecimento aquele a que se chega por operações racionais e pela intui-
ção; só quando se chega ao mundo das ideias chega-se ao conhecimento univer-
sal e, portanto, à ciência. Assim se delineia o chamado Idealismo platônico.
• O Mito ou Alegoria da Caverna é o nome da exposição pela qual Platão procura
esclarecer como acontece a aprendizagem do homem “O mundo das ideias é
o mundo das realidades perfeitas ao qual se opõe o mundo visível, intermédio
entre o ser e o não ser, envolto em uma escuridão como uma caverna em que os
homens só podem ter conhecimento das sombras, imagens escuras do mundo
superior” (GIORDANI, 1984, p. 371).
• Para Platão, o homem é um composto de corpo e alma, sendo esta racional e
passível de reincarnações sucessivas.

39
INICIAÇÃO À CULTURA • A felicidade é fim supremo do homem; a realização da felicidade só será conse-
Clássica GRECO-LATINA
guida na contemplação do sumo bem, que se se encontra num mundo ideal ao
qual se chega pela prática da virtude.
• O Estado só se justifica como uma necessidade de os homens se reunirem para
suprirem as carências individuais. E os destinos do Estado deveriam ficar sob
a responsabilidade dos sábios (os filósofos), coadjuvados pelos produtores e
pelos guerreiros.
• Ao Estado ideal de Platão, tudo se subordina; na sociedade ideal, a segurança da
coletividade será mais importante que a formação do indivíduo e que o aperfei-
çoamento do homem. Este, assim, deverá ter uma educação correspondente à
sua função dentro da comunidade.

Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) foi discípulo de Platão, com quem estudou por
cerca de vinte anos; conviveu também com outros ex-discípulos de Sócrates. Esta re-
ferência serve para compreender quanto foi sólida a base doutrinária sobre a qual
Aristóteles construiu as teorias que, tanto quanto as do mestre, enredaram e enredam
os pensadores de todos os tempos. A imensa produção aristotélica provoca discussões
de variada natureza entre os especialistas. Ora, o objetivo deste trabalho é uma inicia-
ção, motivar para um aprofundamento posterior. Dessa forma, entendemos – num
primeiro momento – que a simples enumeração das obras de Aristóteles, agrupadas
por áreas de interesse, já é chamativa. Veja-se:

(1) Os escritos lógicos - que constituem o Órganon ou


conjunto das informações relacionados à doutrina ló-
gica e à metodologia aristotélicas;
(2) Escritos sobre a filosofia da natureza: Física, Do
Céu, Da geração e da corrupção;
(3) Escritos sobre psicologia e antropologia: Sobre a
alma - e pequenos tratados (sobre a sensação, o so-
nho, a memória... ).
(4) Escritos sobre zoologia: Sobre a história dos animais;
(5) Escritos sobre Metafísica: Metafísica (obra mais famosa, contém 14 livros);
(6) Escritos sobre Ética: Ética a Nicômaco, Grande ética, Ética a Eudêmia;
(7) Escritos sobre Política: Política, Econômica;
(8) Escritos sobre Retórica e poética: Retórica, Poética

40
Protótipo do verdadeiro pesquisador, ao invés de aceitar docilmente as ideias do A Cultura Grega

seus mestre e dos seus antecessores, Aristóteles as discutiu, ampliou ou contestou e


sistematizou. Seus discípulos ficaram conhecidos como p e r i p a t é t i c os (os que
passeiam), devido ao hábito de Aristóteles de ensinar caminhando ao ar livre, muitas
vezes sob as árvores que cercavam a escola, o Liceu. Divergiu do idealismo de Platão
e construiu sua doutrina consagrando, como importante, a observação da natureza. É
dele a célebre frase: “Nada chega à inteligência sem passar, primeiro, pelos sentidos”.
Pelo rigor racional que impõe às suas conclusões sobre a lógica, pode ser considerado
o criador da metodologia da pesquisa científica, fixando, inclusive, uma terminologia
filosófica.
Não obstante vasto, o conjunto das obras aristotélicas apresenta notável coerência
das partes, razão pela qual se diz que é um verdadeiros sistema:
• Seus estudos metafísicos levam à conclusão da existência de um Deus, de quem
depende a vida e a racionalidade.
• Sua moral ensina que todo ser – e consequentemente o homem - tende ne-
cessariamente à realização da sua natureza, à atualização plena da sua forma:
e nisto está o seu fim, o seu bem, a sua felicidade; para o homem, realizar-se é
buscar a virtude, concebida, fundamentalmente, como um hábito racional.
• É com homens que se constrói a familia e o estado; mas o Estado não é uma uni-
dade substancial, e sim uma síntese de indivíduos substancialmente distintos.
• Tarefa essencial do Estado é a educação, que deve desenvolver, antes, as facul-
dades espirituais, intelectuais; e, subordinadamente, as capacidades materiais,
físicas.
• O fim da educação é formar homens e não máquinas, mediante um treinamento
profissional.
• Entre os fatores que produzem a educação como cultura da alma está o cul-
tivos das artes. E, como Platão, Aristóteles ensina que a arte é imitação, a mi-
mese. Mas diverge de Platão quando este sugere a arte como imitação de uma
imitação (como no mito da caverna). A arte, na poética de Aristóteles, é mi-
mese direta da natureza, imitação da forma imanente na matéria mesma, ou
da forma mimetiza anteriormente por outro artista; daí valorizar a poesia de
Homero, como modelo universal.

É indiscutível a importância das lições aristotélicas para o saber humano através


dos séculos; mas nem é possível nem é o objetivo, aqui, trazer mais que a amostragem
mínima e fragmentada, como acima.
Até porque, nesse periodo áureo que vimos historiando, a florescência do

41
INICIAÇÃO À CULTURA pensamento filosófico e da cultura grega se fez notável também por outras manifestações.
Clássica GRECO-LATINA
Assim, voltamos a falar de manifestações literárias, focando agora uma das signfica-
“A tragédia nasceu do culto tivas páginas da arte grega: o teatro e a representação dramática.
de Dioniso. (...) Historicamente,
por ocasião da vindima, celebra-
va-se a cada ano, em Atenas, e O teatro e a representação dramática
por toda a Ática, a festa do vinho
novo, em que os participantes , O surgimento do teatro entre os gregos está enredado com o mito e com a lenda: “A
como outrora os companheiros
do deus Baco, se embriagavam tragédia nasceu do culto de Dioniso”. Não vamos entrar em detalhes, a respeito. Vamos,
e começavam a cantar frenetica-
mente (. . .) Ora, ao que parece, sim, considerar o teatro grego já na fase áurea. E, assim, é preciso lembrar que a epopeia
esses adeptos do deus do vinho
disfarçavam-se em sátiros, que (com Homero) e a lírica (com Anacreonte, Safo, Píndaro) já tinha vivido sua exuberân-
eram concebidos pela imagina-
ção popular como “homens-bo- cia; bem como lembrar que outros fatores – guerras, perdas, conquistas territoriais e
des”. Teria nascido assim o vo-
cábulo tragédia (...”tragoidia”+
sociais, transformações políticas e ideológicas – impunham-se aos artistas como vetores
... “trágos”, bode +... “oidé”,
canto + ... “ia”, donde o latim
das suas produções. Expressões das vicissitudes sociais e políiticas desses tempos, e
tragoedia e o nosso tragédia. também ecos do pensamento ideológico-filosófico em voga, Ésquilo, Sófocles e Eurípi-
(Brandão, p. 10)
des, na tragédia; e Aristófanes, na comédia, foram os grandes autores do teatro grego.
De antemão, é preciso repetir que a intenção é trazer, apenas, informações genéricas e,
Se o homem ultrapassa o quanto possível, estimuladoras de melhores estudos, de aprofundamento, não cabendo
métron, a medida humana de
cada um, comete uma violência outros juízos de valor que os consagrados pela história e pela crítica.
a si próprio e à divindade, que
fatalmente gera a punição. Esta
ocorrerá ou sobre o indivíduo
cuplpado ou soobre a sua des- 1) A tragédia grega
cendência. Esta filosofia básica
do teatro de Ésquilo está às Ésquilo (525-425 a.C.) – é, na verdade, do séc. VI a. C. Está, portanto, mais ligado
páginas 17 e 18 do livro Teatro
Grego- Tragédia e comédia., de às origens e menos sujeito às influências ideológicas do século seguinte. Por isso, sua
Junito de Souza Brandão. (v. re-
ferências bibliográficas). produção é notavelmente impregnada de um sentido religioso, por sua vez engajado
num objetivo político: é preciso obedecer às leis dos homens sob pena de sofrer o
castigo dos deuses: “o ánthropos, o homem, em Ésquilo, tem que estar realmente
condicionaddo por sua condição humana”, “sofrer para compreender ”. Sob esse con-
dicionamento ideológico, têm-se 7 grandes peças trágicas, sendo mais conhecidas O
Vem daí o chamado “voto de
Minerva”, que decide uma vota- Prometeu Acorrentado ( cujo argumento é o castigo que Prometeu recebe por trazer
ção, numa situação de empate
de votos. o fogo aos homens) e a Oréstia (uma trilogia, i. é, três peças de assunto correlato).
• Na primeira peça, Agamêmnon, Clitemnestra assassina o marido que, antes, na
expedição à Troia, sacrificara a filha Ifigênia;
• Na segunda, Coéforas, Orestes vinga a morte do pai, matando Clitemnestra e o
seu amante Egisto;
• Na terceira peça, Eumênides, Orestes é julgado em Atenas e, tendo como advo-
gado o deus Apolo; terminando empatada a votação dos jurados, entra em ação a
deusa Atená (=Minerva), e, como juíza do tribunal, dá o seu voto e absolve o réu.
• Com a trilogia Oréstia se configura toda uma evolução da antiga mentalidade
grega, a substituição da lei de talião pela aplicação da justiça pelos tribunais.

42
Sófocles (495-405 a. C) – Compôs mais de cem peças, das quais, inteiras, só restam A Cultura Grega

sete; e destas, mais conhecidas são Antígona e Édipo Rei.


• Antígona traz à cena o conflito entre a lei divina e a lei humana: contrariando
ordens do rei de Tebas, Creonte, Antígona se dispõe a dar a sepultura ao cadá-
ver do irmão, que morrera combatendo os próprios concidadãos.
• Édipo Rei, tem um argumento bem conhecido: Édipo, rei de Tebas, tentando
fugir ao destino que lhe fora profetizado em Delfos, acaba indo ao seu encon-
tro. Na peça, Édipo é um sábio, feliz e estimado monarca. Acredita que é filho
do rei Polibo de Corinto. Ora, consultado, o oráculo havia profetizado que ele
mataria o pai e se casaria com a própria mãe. Por isso, foge de Corinto e vai se
esconder em Tebas. Já perto dessa cidade, encontra um homem idoso e seus
cinco criados, e, após um desentendimento, mata-os, ainda na estrada. Ao en-
trar em Tebas, encontra-a assolada por uma peste; e decifrando um dos enigmas
da terrível Esfinge, livra a cidade. Como recompensa, é feito rei, casando com As peças de Sófocles, como
se vê, contrapõe-se à ideologia
Jocasta, a rainha, cujo antigo marido, o rei Laio, fora assassinado pouco tempo teocêntrica e aristocrática de
Ésquilo.
antes. É então que nova peste se abate sobre a cidade, e Édipo, tentando revelar
o mistério de tal praga, acaba por descobrir que o velho que matara na estrada
era o antigo rei, Laio, e que este era seu verdadeiro pai, por quem fora abando-
nado ainda pequeno. A profecia se confirma e a rainha Jocasta, na verdade sua
A consideração é de Junito de
mãe, tira a própria vida O oráculo havia profetizado que ele mataria o pai e se Souza Brandão, p. 56. Conferir
as considerações do crítico com
casaria com a própria mãe; esta, ante a evidência vexatória dos fatos, se suicida; as palavras de Édipo quando,
ele, desesperado, fura os próprios olhos e parte para um exílio voluntário. finalmente, se reconhece como
um parricida: “Oh! Ai de mim!
Tudo está claro! Ó luz, que eu te
veja pela derradeira vez! Todos
Como se vê, as peças de Sófocles são antropocêntricas, giram em torno do homem sabem: tudo me era interdito:
ser filho de quem sou, casar-
e da sua vontade de fazer o que é certo. O trágico, em Sófocles, é que, na sua busca -me com quem me casei... e..e..
eu matei aquele a quem eu não
pela verdade, o homem acaba construindo um destino infeliz, pela interveniência de poderia matar!”

fatores que escapam à sua percepção; quando esta, finalmente, ocorre, o desenlace
trágico já está em consumação. “Uma das características fundamentais da obra dramá-
tica de Sófocles é fazer que suas personagens, no fecho da tragédia, se apaguem numa
sombra física e psíquica...”
Édipo Rei é considerada a obra-prima do teatro, é considerada uma tragédia em
sentido moderno. Sófocles, inegavelmente, integra a tríade dos dramaturgos gregos
mais celebrados em todos os tempos.

Eurípides (480-406 a.C) deixou dezessete peças trágicas. Sintomaticamente, de-


zesseis intituladas com nomes femininos, comprovação de um misoginismo que seria
consequência de uma vida matrimonial infeliz. A mais famosa de suas peças, mais que

43
INICIAÇÃO À CULTURA suficiente para justificar sua genialidade criadora é Medeia, peça que data de 431 a.C.
Clássica GRECO-LATINA
Na protagonista, representa-se o perfil psicológico de uma mulher carregada de amor
e ódio a um só tempo. Apaixonada, Medeia deixara tudo para trás, a pátria e a família,
para seguir ao lado de seu grande amor, Jasão. Líder dos argonautas, Jasão partira para
a Cólquida em busca do velocino de ouro, missão que lhe fora imposta para ter de
volta o trono de Iolco, usurpado por Pelias; a filha deste, Medeia, apaixonada pelo he-
rói da Argos, e desprezando os interesses do pai, usa seus poderes de feiticeira, ajuda
decisivamente Jasão a vencer todos os obstáculos e, apoderando-se do velocino, fogem
ambos para Corinto. Lá, depois de tudo, inclusive depois de dar à luz dois filhos, Me-
deia vê-se traída por Jasão. É a partir daí que se desencadeia sua fúria louca, a ponto
de matar os filhos para vingar-se do marido traidor.

Medeia – e antes, a Oréstia ou o Édipo Rei – não são, meramente representações


de histórias ou revivências dramáticas de mitos. São, acima de tudo, concepções artís-
ticas que permitem reflexões profundas, quer ligadas ao contexto histórico em que as
peças foram produzidas, quer em relação às paixões eternas que se instalam na alma
Os críticos distinguem uma
comédia antiga e uma comédia
humana, ontem como hoje. No caso, Medeia reflete, num sentido mais moderno, mais
nova. A antiga tinha elementos ousado e mais realista, o império da paixão tanto sobre os condicionamentos sócio-
estruturais bem marcados e nela
um “coro” era parte essencial; -religiosos (que motivara Ésquilo), quanto sobre a luta da vontade humana ante o
os temas exploravam, sobretu-
do, mitos e lendas. Na comédia destino (que Sófocles magistralmente enaltece). Aliás, a melhor definição do senso
nova, o coro desaparece e os
temas são tirados do cotidiano. dramático de Eurípides está expressa numa frase atribuída ao mesmo Sófocles: “Pinto
Da antiga, conhecemos como
representante Aristófanes, que, os homens quais devem ser; Eurípides os retrata como eles são ” (In Giordani, p. 309).
entretanto, já apresenta traços
de inovação.

2) A comédia
Tragédia e comédia, já dissemos, têm sua origem estreitamente ligada aos rituais
dionisíacos. Na comédia, particularmente na comédia antiga, são mais claros os indí-
cios dos elementos burlescos e satíricos que caracterizavam as festas báquicas, princi-
palmente as celebradas por ocasião da primeira vindima anual.
O maior representante da comédia grega foi Aristófanes.

Aristófanes (445-385 a.C.) teria escrito 44 peças; restam onze; mais lembradas são
As rãs, A paz, Lisístrata, As aves, As nuvens.
Lisístrata é conhecida, também por outro título: A greve do sexo. Cansadas de ver
os maridos em guerra, as mulheres entram em greve para forçar a paz.
A paz é uma criação ditada pela rejeição à guerra.
As aves é uma história fantástica sobre a construção de uma cidade ideal no céu.
As rãs têm um argumento muito interessante. Dioniso resolve trazer dos infernos

44
um bom escritor, ou Ésquilo ou Eurípides, visto que o nível das representações, na A Cultura Grega

época, estava sofrível. Aristófanes compara os dois dramaturgos, criticando duramente


Eurípides. É, pois, uma obra de crítica literária.
As nuvens, semelhantemente à As rãs é uma peça de crítica impiedosa, agora a Só-
crates, que Aristófanes identifica, erroneamente, como sofista; a crítica, pois, é contra
o sofisma como forma de argumentar, e contra o mal que representaria uma formação
sofística.
A tônica das obras de Aristófanes é a preocupação com o social. Mais do que isso,
o que confere à sua obra um valor transcendente à realidade da época, é a função
educativa que a comédia, então, assume.
O prestígio de Aristófanes continua em alta. Um bom exemplo é a reatualização da
Lisístrata (A greve do sexo), o tema e o espetáculo.

A cultura clássica grega representada por outros autores.


Já dissemos antes que o registro documental da cultura grega no período é diver-
sificado. Lembrar isso nos dá a condição de referir outras formas de manifestação da
inteligência grega fazendo, apenas, menção a nomes e/ou dados significativos (e, em
Essa teria sido a exclamação
algum caso, sem uma preocupação maior com o fato de o nome ser posterior ou ante- do matemático que – conta-se
rior ao período áureo). Assim: - um belo dia, ao tomar um ba-
nho de banheira, preocupado
• na História: com resolver um problema, de
repente, num lampejo súbito
- Heródoto (480-425) – chamado “o pai da História”; saiu correndo, nu, pelas ruas
da cidade a gritar “Eureka,
- Tucídides (460-395) – historiador e pensador: inaugura a preocupação com as Eureka!”, o que significa: “Des-
cobri, descobri!”. É, depois,
causas e consequências dos fatos; enunciou: “Todo o corpo mer-
gulhado num líquido está su-
- Xenofonte (430 -355) – Sua obra mais importante é a Anábase. jeito a uma força vertical, de de
baixo para cima, cuja grandeza
• nas Ciências: é igual ao peso do volume de
líquido deslocado”.
- Pitágoras (580 - ?) – quem não “penou” com o teorema de Pitágoras? Qual o problema que preocu-
pava Arquimedes... é caso para
- Hipócrates (460 -?), de quem procede o juramento que, até hoje, os médicos uma rápida pesquisa.

fazem;
- Demócrito (460 - ?) – autor de teorias inaugurais sobre o átomo;
- Euclides (300 a.C.?) – sistematizador de teorias sobre a Geometria;
- Arquimedes (287-212) – matemático e astrônomo, seu nome vem sempre
associado à exclamação “heureca!” e à frase: “Dêem-me uma alavanca e um
ponto de apoio e eu moverei o mundo”.
• na Literatura: os poetas alexandrinos.
- De entre os poetas alexandrinos, destacam-se:
- Calímaco (300 - 240 a.C.) Foi bibliotecário da Biblioteca de Alexandria. Das
obras em prosa, a mais importante é Pinakes, um catálogo analítico das

45
INICIAÇÃO À CULTURA obras da biblioteca. Como poeta, escreveu poemas curtos, entre os quais
Clássica GRECO-LATINA
sobressaem cerca de sessenta epigramas. Composições que influenciaram
fortemente os poetas romanos, especialmente Cátulo, Ovídio e Propércio.
Das suas obras, sobreviveram ainda alguns fragmentos de Aetia, uma colec-
ção de lendas gregas em versos elegíacos, e a curta obra épica Hecale.
- Apolónio de Rodes(295 - 215 a.C.), gramático e poeta épico, manteve em
Rodes uma famosa escola de retórica. Compôs um grande poema épico in-
titulado “Argonautica” (poema em cinco cantos que narra as aventuras de
Jasão e seus companheiros na Argos em expedição à Cólchida, em busca do
velocino de ouro).
- Teócrito(310 - 250 a.C.) nasceu em Siracusa, Sicília, passou algum tempo
na ilha de Cós e depois foi viver para a corte de Ptolomeu II em Alexandria,
onde foi membro da pleiade dos poetas alexandrinos. Criador do estilo po-
ético pastoral, chegaram até nós trinta poemas idílicos e vinte e quatro epi-
gramas curtos, se bem que as autoridades no assunto questionem a autoria
de alguns. Dos poemas idílicos, dez são pastoris; seu seguidor mais célebre
foi Virgílio.

• na Oratória: Demóstenes (384-322) – consagrado o maior orador da Grécia an-


tiga e um dos maiores em todos os tempos. Sua biografia histórica é movimen-
tada e tem algum ingrediente da lenda. Seu discurso mais famoso é conhecido
como “Oração sobre a coroa”. Também são famosos discursos em série intitula-
dos “Filípicas”, em que Demóstenes conclama seus concidadãos a resistir contra
Felipe da Macedônia. Mais tarde, Cícero, em Roma, vai adotar o mesmo título
“Filípicas” em discursos contra Marco Antonio.
• na Escultura: Miron, Policleto, Fídias, Praxíteles, cujos nomes estão ligados a
estátuas famosas pela concepção, forma e movimentos – todos admiráveis na
maestria da arte. As conhecidas fotos das estátuas, reproduzidas a seguir, eterni-
zam os nomes desses escultores geniais.

46
A Cultura Grega

O Discóbulo, de Miron, 455 a. C. Doriforo, de Policleto, 440 a. C.


Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/Commons:Reutiliza%C3%A7%C3%A3o_de_conte%C3%BAdo_fora_da_Wikimedia

Athena Parthenon, Fídias, 490 Afrodite, Praxíteles, 395-330

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INICIAÇÃO À CULTURA Dentro dos parâmetros que estabelecemos, estamos agora no limiar de novos tem-
Clássica GRECO-LATINA
pos. Como marcos dessa passagem aos tempos novos, em que a força do Helenismo se
impõe citemos os nomes de Zenão (336-264 a.C) e de Epicuro (341-270 a.C.).
Postas em confronto as duas doutrinas, e expostas de outra forma, pode-se chegar
ao seguinte quadro das idéias epicuristas e estoicas:

• Zenão de Cício foi criador do estoicismo, nome que vem do lugar


em que estava localiza a escola do pensador em Atenas: junto a um pórtico (em
gregos stoá). Para os estóicos, basicamente:
a) Não existe razão para teorias do conhecimento: o conhecimento se faz
simplesmente das sensações. E toda a sensação imediata é verdadeira e,
portanto, é um bem; rejeitavam, pois, tanto o idealismo de Platão quanto
o universal aristotélico;
b) Todos os corpos são formados por átomos, incriados, infinitos, eternos.
Não existe alma espiritual; como o corpo, a alma é uma combinação de
átomos; a dissolução deste “consilium” de átomos provoca a morte. Não
existe destino. Tudo se explica em função de causas físicas, a partir da
combinação dos átomos.
c) A ideia fundamental é que a natureza é essencialmente um bem, por isso o
homem deve viver de acordo com a natureza, renunciando à vontade pes-
soal. Viver de acordo com a natureza é praticar a virtude; praticar a virtude
leva à felicidade. Quando o homem se integra à natureza (então atinge
a ataraxia) então se liberta dos desejos não naturais e não necessários.
Então é livre. E é feliz.

• Epicuro de Samos deixou doutrinas que se relacionam com o seu


nome – epicurismo. Interessante que as suas ideias não constam de nenhu-
ma obra identificada como sendo da autoria dele. Na verdade, a divulgação do
epicurismo se deve, principalmente, ao poema De rerum natura, escrito pelo
poeta latino Lucrécio. Em síntese:
a) O pensamento epicurista é essencialmente materialista, sensualista,
empírico;
b) A felicidade consiste na libertação de três preocupações: o medo do des-
tino, o medo da morte, o medo do destino;

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A Cultura Grega

c) O prazer é a finalidade maior da vida; para atingi-la o homem deve prati-


car as virtudes que o livram do sofrimento: a prudência, a temperança, a
justiça e a amizade.

Para melhor entendimento, atente-se ao quadro comparativo

Para o epicurista Para o estoico

- todos os corpos são formados por átomos, a natureza é deus; a osmologia estoica é, tam-
incriados, eternos, infinitos; bém, a sua cosmologia: o mundo e deus se
identificam;

- não existe razão para teorias sobre o conhe- o conhecimento é empírico; conhecer é es-
cimento: este nasce das sensações, simples- tabelecer razões de consequência; e estas
mente; toda a sensação imediata é verdadeira nascem da “representação” do objeto e da
e, portanto, é um bem; consequente afeição (eles dizem pathos) que a
representação provoca na alma;

- não existe alma espiritual; corpo e alma são a alma existe: é uma parte do sopro divino in-
combinações de átomos; a dissolução de tal suflado no corpo humano;
combinação provoca a morte;

- não existe destino; tudo se explic em função qundo o corpo morre, a alma subsiste, mas vai
de causas físicas, a partir da combinação dos se diluindo até integrar-se no universo;
átomos;

- a liberdade é o estágio final da sabedoria, cada ser humano está programado pelo seu
que se alcança quando se stinge a ataraxia; hegemonikon, que é uma das oito partes da
alma (juntamente com os cinco sentidos, mais
os órgãos reprodutores e a fala);

- a moral se baseia na ideia de que a sensação Epitecto, um dos teóricos do estoicismo, ensina
é a fonte do sumo bem: regra de vida é fugir da que é livre o homem que compreende a neces-
dor e buscar o prazer, sidade de as coisas acontecerem como con-
sequência de suas ações (estas, por sua vez,
determinadas pela tendência fundamental de
os seres se autoconservarem);

que deve ser entendido como participação di- o prazer é uma decorrência de o ser humano
reta naquilo que a natureza oferece; a moral aceitar a sua própria natureza; e aceitar a
epicurista é, então, individualista. própria natureza é estar em harmonia com a
razão, que não é individual, mas universal; a
moral estoica, então, é universalista.

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INICIAÇÃO À CULTURA Essas duas correntes filosóficas grangearam muitos adeptos, desde o seu apare-
Clássica GRECO-LATINA
cimento. Em Roma, que teve no poeta Lucrécio o grande divulgador das doutrinas
estoicas, nenhum dos intelectuais posteriores ficou completamente indiferente a uma
ou outra dessas teorias, em especial Cícero, que as discutiu em duas obras: De natura
deorum (Sobre a natureza dos deuses) e De fato (Sobre o destino); e Sêneca que, em
sua Quaestiones naturales (Questões naturais) apresenta um posicionamento estoico.
A essa altura da história, importantes acontecimentos tinham modificado a vida po-
lítica dos gregos. O apogeu, simbolizado pela figura olímpica de Péricles, estava corro-
ído. As chamadas “cidades-estado” Esparta, Atenas e Tebas alternaram-se na hegemonia
política, sempre a um alto custo da união interna dos helenos dentro da península e a
um crescente desgaste da resistência frente aos interesses de outros povos, em particu-
lar dos macedônios. Estes, apesar dos esforços do grande orador Demóstenes no senti-
“Era sua vontade tomar toda
a terra habitável sujeita à mes- do de inflamar os gregos à resistência com a sua oratória, assumiam, a partir de 336 a.
ma razão e todos os homens
cidadãos do mesmo governo.” C., o controle da península helênica inteira: emergia para a história do mundo a figura
Plutarco, cit. in Bonnard,
1972, II :203
semi-lendária de Alexandre, cognominado o Grande. E somente doze anos depois, o
grande conquistador já tinha dominado, sucessivamente, a Pérsia e toda a Mesopotâ-
mia, a Síria, a Fenícia, o Egito, a Magna Grécia (sul da península itálica, inclusive a ilha
da Sicilia), expandindo o helenismo para quase toda a bacia do mar Mediterrâneo.
Dois feitos históricos de Alexandre são particularmente interessantes para o pros-
seguimento de nosso estudo: a conquista da Magna Grécia, consolidando a influência
grega naquela região; e a fundação da cidade de Alexandria (332 a. C.), onde um seu
general, Ptolomeu I, se estabelecerá como governante do Egito, vindo a criar a célebre
biblioteca, que vai se tornar extraordinário pólo de irradiação de cultura, com signifi-
cativa influência no mundo romano.
É tempo de entrar na segunda parte do nosso estudo.

Anotações

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2 A Cultura Latina

A conotação das palavras “latino” e “latina” para nós, hoje, na maioria das vezes
não remete ao sentido que as palavras vão ganhar neste trabalho. Quando dizemos
que somos povos latinos, ou povo da América Latina, na maioria das vezes, estamos
esquecidos da razão porque assim somos considerados.
Ora, o adjetivo tem a ver com a língua; latinos foram povos da península itálica que
falavam “latim”; e latim/latino são palavras que interrelacionam com o nome da região
que tais povos ocupavam na península: os povos latinos antigos, que falavam latim,
habitavam o Lácio; ou, em latim, Latium.

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INICIAÇÃO À CULTURA Ora, é bem sabido que o latim evoluiu, influindo decisivamente na formação de
Clássica GRECO-LATINA
outras línguas pelo mundo afora; os povos cujas línguas evoluíram à sombra da influ-
ência do latim são, por extensão, povos latinos. Mas os latinos da antiguidade eram
povos itálicos.

A PENÍNSULA ITÁLICA – os itálicos


A Itália, como nação, é fato histórico politicamente recente. Isto quer dizer que a
palavra designava, nos tempos antigos, mais o território que o país que hoje conhece-
mos como Itália. No mapa, a seguir, V. pode ver a localização geográfica da península e
nela a indicação do território dos latinos e de outros povos que a ocupavam.

É bem conhecida a característica forma da península italiana, bota gigantesca, cuja


ponta parece atingir a Sicília, com o salto voltado para a Grécia.
Ao norte, como uma muralha separando a península do continente, está uma ca-
deia de montanhas, os Alpes; e outra cadeia de montanhas (os Apeninos) corta o terri-
tório de norte a sul, dividindo-o em duas regiões desiguais, uma, ao leste, voltada para
o mar Adriático e a outra voltada para o mar Tirreno, onde se localiza a Itália insular,
que abrange as ilhas Sicília, Sardenha, Córsega e o arquipélago toscano.
Na composição da topografia destacam-se três rios: ao norte, o Rio Pó banha uma
vasta planície com cerca de 70000²; a nordeste, o Adige, irriga cerca de 12000²; e na
região centroeste, o rio Tibre, 17000². O conjunto forma um bacia hidrográfica impor-
tante, assegurando a fertilidade do solo.

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O conjunto do quadro geográfico propicia um clima variável mas, em geral saudá- A Cultura Latina

vel e, na Itália meridional, ameno.


Estes registros, referentes aos elementos espaço-ambientais, visam deixar clara a
diferença do contexto geográfico em que se desenvolveram as duas culturas que são a
matéria de nosso estudo, a grega e a latina.

O processo de povoamento da península Itálica foi bastante complexo; vários po-


vos ali se estabeleceram em diferentes épocas. Estes habitantes primitivos da Itália
viviam em um estágio de desenvolvimento bastante rudimentar até a chegada dos
indo-europeus.
A partir de 2000 a.C., povos indo-europeus, aparentados com os ancestrais dos gre-
gos, deslocaram-se para o centro e para o sul da península. Esses povos, conhecidos
como italiotas ou itálicos, formaram vários núcleos de povoação: latinos, samnitas,
úmbrios, volscos e sabinos.
Aos nossos objetivos interessam os latinos.

Os latinos habitavam o curso inferior do rio Tibre. Constantes lutas e


os contatos com o mundo grego, levaram os latinos ao desenvolvimento,
ao aumento do seu poderio bélico, à gradativa conquista dos territórios
limítrofes e à consequente integração com os povos e culturas vizinhas e, Os etruscos são de origem
até hoje desconhecida. Sabe-
ainda, à fortificação de cidades. Destas, Roma passaria, desde o nascimento, -se que sua língua não era de
origem indo-europeia. A arque-
a ser um centro, ao mesmo tempo de irradiação e de aglutinação, receben- ologia revela que detinham co-
nhecimentos avançados e diver-
do imigrantes de todo o mundo e, com eles, influências de toda a natureza. sificados. Integrados aos latinos,
forneceram a eles importantes
Bem cedo, latino e romano passaram a ter sentido bem próximo, a elementos de cultura, tanto
agro-pastoril, quanto na compe-
ponto de se poder tomar uma palavra pela outra. tência como construtores.
Foi muito significativa para o processo de formação do que viria a ser,
mais tarde, o que se chamaria cultura latina ou cultura romana, a integração
com os etruscos e o contato com os gregos.

Entretanto, determinante para os rumos da civilização latina foi a expansão sobre a


colonização grega no sul da Itália, região conhecida como Magna Grécia.
Enquanto o nível de vida das tribos italiotas (excetuados os etruscos) era ainda
muito rudimentar, os gregos já apresentavam notável desenvolvimento econômico e
cultural. Isso é estranhável, em princípio, porque os gregos, como os latinos, também
são indo-europeus. A explicação pode advir do fato de que nem todos os indo-euro-
peus participaram da mesma onda migratória, por um lado; e, por outro, porque os
indo-europeus migrados para a península itálica encontram um solo bem mais amigo
que os ancestrais dos gregos. Na Itália, já vimos, as áreas cultiváveis são extensas e mais

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INICIAÇÃO À CULTURA férteis, propiciando mais facilidade ao amanho da terra, à agricultura dos cereais e à
Clássica GRECO-LATINA
diversificação dos frutos da terra. Isto ensejou o gosto pela prática agrícola, forjando
o caráter na apreciação dos resultados concretos e o físico na rudeza do trabalho nos
campos. Ao romano não importavam outros questionamentos que não fossem os liga-
dos à atividade agrícola ou à defesa dos seus campos e lavouras. Ao contrário dos gre-
gos, seu pensamento era pragmático: apreciava o que é útil; era ambicioso: valorizava
o que propicia o lucro; era sistemático: dava importância à lei e à ordem como forma
de melhor convivência e de melhores resultados imediatos.
Justamente pela menor disposição “pensar abstrato”, as manifestações do pen-
samento romano só acontecem por imitação e tardiamente, depois que os romanos
dominaram a Magna Grécia. Então, conquistadores pelas armas, os romanos foram
conquistados pela inteligência grega.
Costuma-se dividir a história do pensamento romano em períodos:
I – Período arcaico, desde a fundação até 240 a.C.;
II- Período helenístico – caracterizado pela produção exclusivamente de imitação;
vai até 81 a.C., ano marcado pela aparição de Cícero;
III- Período clássico, que se estende até 68 d.C. e é balizado pela morte de Nero.
Três eventos políticos sinalizam fases intermediárias: a) o consulado de Cícero;
b) o império de Augusto; c) a dinastia júlio-claudiana.
IV – Período pós-clássico, que se prolonga até a queda do império romano no
Ocidente, no séc. V d. C.

PERÍODO ARCAICO:
A origem do império romano não tem um marco histórico; é, geralmente, associa-
da à fundação da cidade de Roma, que se presume ter acontecido por volta de 753 a.
C., por iniciativa dos irmãos gêmeos Rômulo e Remo. Entretanto, a lenda envolve a
história; e a versão lendária é sempre lembrada: os dois irmãos, Rômulo e Remo, eram
filhos do deus Marte e da vestal Rea Sílvia; por ser vestal, i. é, sacerdotisa da deusa Ves-
ta, ela deveria manter-se virgem; sua gravidez implicou na condenação dos filhos que,
ao nascer, foram abandonados às margens do rio Tibre; uma loba os salvou e amamen-
tou e, mais tarde, um pastor os acolheu; já adultos, fundaram a cidade de Roma; mas,
no ato, uma discussão entre os gêmeos resultou na morte de Remo; Rômulo, então,
deu nome à cidade.
O conhecimento das vicissitudes que transformaram a cidade de Roma na capital
de um império tão grande que, nele, o sol nunca se punha (conforme uma frase co-
nhecida e comum) – é um outro viés das informações que dão substância à construção
de uma cultura clássica.

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Para o nosso objetivo – fixar o que é clássico – pouco há o que informar deste A Cultura Latina

período, até porque os registros são escassos e fragmentários.


Há documentos esparsos
Cicero se manifesta a respei-
• de manifestações líricas, de caráter religioso (como o Carmen Saliorum e o to, na sua obra De Oratore, I,
43; Tito Lívio considera Lei das
Carmen Fratrum Arvalium); e de manifestações satíricas, com tom crítico e Doze Tábuas a origem tanto do
direito público quanto do direi-
licencioso, como os cantos fesceninos; to privado, (In Berthaux, p. 22)
• de textos fragmentados ligados à jurisprudência (da Lei das Doze Tábuas e do
Jus Papirianum) que comprovam o sentido pragmático da inteligência romana;
Cícero e Tito Lívio se referem com orgulho a estes documentos, que podem
representar a origem do direito público e privado modernos;
• dos germens da eloquência – e aí entra o nome do escritor latino mais antigo:
Ápio Cláudio Cego;
• dos germens da história – configurada em Annales, Anais, isto é, o registros dos
fatos importantes no período de um ano.
Conquanto tenham mais valor histórico, sob o viés da cultura, que é o que nos in-
teressa, o registro da elaboração das primeiras leis é bem significativo do gênio
romano e da sua contibuição ao Direito no mundo.

PERÍODO HELENÍSTICO:
O marco histórico do período é a conquista dos Romanos na Magna Grécia, apos- Ver a página. sobre a mitolo-
gia grega
sando-se da cidade de Tarento.
Várias foram as causas agentes da influência helenizante; e as cosequências se fize-
ram sentir nos segmentos mais importantes da vida romana:
Escravo grego da gens Iulia,
a) sobre a religião, porque os romanos “latinizaram” as divindades gregas, alforriado, passa a ser o precep-
tor dos jovens da família; e, de-
adotando-as ou incorporandoas aos seus antigos deuses; pois, funda a sua escola, vindo
a ser o primeiro professor em
b) sobre a educação, porque a língua grega se impôs como uma necessidade de Roma. Foi então que os jovens
latinos tomaram contato com a
atualização cultural aos embevecidos patrícios romanos diante do conhecimen- Odisseia, traduzida por Lívio
para o latim, para uso como ma-
to e da produção artística dos gregos; e aprender grego requeria mestres gre- terial didático..

gos, pedagogos, ou seja, escravos gregos tornados preceptores dos seus filhos;
c) sobre a vida social, cujos hábitos tradicionais passam a refinar-se, ao contato
com novos elementos de cultura;
d) sobre a língua, que enriquece o vocabulário de uso cotidiano com o léxico e a
fraseologia própria à expressão do abstrato.

A onda helenizante penetrou Roma com extraordinária força; historicamente, pode


ser significada pela figura de Lívio Andronico (278?).
Escravo grego da gens Iulia, alforriado, passa a ser o preceptor dos jovens da

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INICIAÇÃO À CULTURA família; e, depois, funda a sua escola, vindo a ser o primeiro professor em Roma. Foi
Clássica GRECO-LATINA
então que os jovens latinos tomaram contato com a Odisseia, traduzida por Lívio para
o latim, para uso como material didático.
É de Ênio a frase Moribus an-
tiquis res stat Romana virisque/ São nomes representativos do período:
Nos homens e nos costumes
antigos se fundamenta a gran- • Névio (270-201 a.C) – o primeiro poeta latino, autor do Bellum Punicum, poe-
deza de Roma
ma em versos satúrnios;
• Ênio (239 – 169) – autor de Annale s, onde exprime com vigor o sentimento
romano;
• Catão, o Velho (234-149), escritor e orador;
• Plauto (259? – 184?) e Terêncio (190-159), comediógrafos;
• Lucílio (180-102), poeta satírico.

Destaque, com repercussão na posteridade, Marco Pórcio Catão, também conheci-


do como Catão, o Censor, autor de um tratado De Agricultura; deve seu renome como
representante autêntico do romano à antiga, o mais ferrenho opositor do grecismo em
Roma, papel que assumiu com êxito graças à reconhecida nobreza de caráter.
Destaque maior do período helenístico, Tito Mácio Plauto.
Plauto teria escrito mais de cem comédias; na verdade, temos o texto de 21. O
que distingue o seu trabalho é intenção persistente de provocar o riso e a capaci-
dade que demonstra ter para conseguir isso. Os meios para capacitar-se dessa vis
comica, “força de comicidade” resultam de um trabalho criativo com a linguagem
das suas peças, cheia de trocadilhos e quiproquós resultantes de aliterações e efei-
tos cacofônicos. Sua graça é bem vulgar, não tem fineza alguma; mas sua comédia
tem fundo moralista e extrai o ridículo e o risível de tipos e atitudes comuns no
dia a dia. Considerado o maior comediógrafo em língua latina, Plauto deve muito à
língua grega, com a qual brinca nas suas peças, sempre visando o riso. Os estudio-
sos reconhecem muita criatividade na sua produção que, além do mais, tem valor
documental, trazendo até nós uma visão da plebe romana, inclusive reproduzindo
alguma coisa da sua linguagem.
A importância do papel de Plauto na comédia latina, no seu momento histórico e para
a posteridade, é garantida por “imitadores” da envergadura de Molière e de Shakespeare;
entre nós, Ariano Suassuna o toma como inspiração na peça “O santo e a porca”.

PERÍODO CLÁSSICO
O adjetivo “clássico” atribuido a este período deriva, justamente, da excelência
dos nomes e das produções que, então, surgiram, garantindo o reconhecimento dos
estudiosos até os nossos dias, mesmo porque continuam sendo fontes de inspiração

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à análise, à crítica e à recriação. Como dissemos antes, três eventos políticos sinalizam A Cultura Latina

fases intermediárias desse período:


a) o consulado de Cícero; b) o império de Augusto; c) a dinastia júlio-claudiana. Roma tinha vivido o período
da realeza desde a origem, pas-
sara à república em 509 a. C. e
agora, desde 87 a. C. , violentas
• A primeira das fases é representada por Cícero que, tanto pela atuação política guerras civis, entre os patrícios
(aristocratas) e plebeus, vão
quanto pela produção cultural, e até como figura humana, merece a distinção. provocar sucessivas ditaduras;
pondo fim às lutas, em 27 a. C.,
Otaviano instituirá o Império.
Foi um momento politicamente importante, marcado pela mudança do regime de
governo, pela dilatação das fronteiras, quando se projetam figuras históricas que ninguém,
mesmo de média instrução pode deixar de conhecer, ainda que minimamente; tais são
César, Pompeu, Catão de Útica, Marco Antônio, Cleópatra e, especialmente, Cícero.
O eterno embate entre a
O momento foi também muito signficativo para cultura, visto que o helenismo se tradição e os tempos novos já
acontecia. Cicero liderava, en-
consolida em Roma e, por influência da capital, nos terrítórios do imenso império tão, a reação dos antiqui, Catu-
lo, a ousadia dos novi.
constituído pela expansão romana; o “modernismo” que representa a riqueza civiliza-
cional helênica provocará impacto a ponto de se instaurar em Roma um conflito entre
os antigos / antiqui e os novos / novi intelectuais. E aí é necessário lembrar a poesia de
Lucrécio e de Catulo; a prosa de Cícero, de César, de Salústio e de Varrão.
A simples indicação dos nomes já é bastante para a percepção de que é impossível,
neste estudo de iniciação, falar particularmente de cada um. Foi preciso fazer opções;
e o critério da escolha e da maior atenção levou em conta a maior ou menor repercus-
são do nome e da obra ao longo dos tempos.
Sobre o epicurismo, recor-
Lucrécio ( Tito Lucrécio Caso – em latim Titus Lucretius Caro) nasceu em 94 a. dem-se as informações já co-
nhecidas à p. ??
C e viveu 44 anos. Diz-se que fez uma poesia didática; de fato, seu poema, intitulado
De rerum natura (Sobre a natureza das coisas), tem a intenção de expor as ideias de
Epicuro, o epicurismo que, inegavelmente, tem ressonância bem atual quando, por
exemplo, fala da indestrutibilidade da matéria e do evolucionismo; ou quando fala da
ataraxia, a procura da tranquilidade de espírito pelo domínio das emoções. É a Cícero
que se deve a divulgação da obra de Lucrécio.
Catulo (Caio Valério Catulo – em latim Gaius Valerius Catullus) nasceu em Verona
(em 87/ 84? a. C); morreu moço, talvez com 30 anos. Foi um dos jovens poetas novi
que causaram estranheza em Roma, pela exposição franca da paixão amorosa e da
sensualidade ardente. Temos dele 116 poemas, reunidos numa coletânea a que se
intitulou Carmina. A crítica é unânime em considerar Catulo um poeta inovador, que
faz poesia em verso leve, elegante e fascinante, trabalhando ritmos diversos.

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INICIAÇÃO À CULTURA
Clássica GRECO-LATINA

Cicero - Fonte: Wikimedia Commons

Cícero (Marco Túlio Cícero - em latim Marcus Tullius Cicero, viveu de 106 a.C. - 43
a.C.), foi político, advogado, orador, filósofo, e escritor. Sem dúvida, é uma das perso-
nalidades mais marcantes da história de Roma, é personagem símbolo da sua época
e das mais importantes para o estudo da cultura clássica greco-latina. Isto principal-
mente pelas muitas obras que escreveu - em prosa - abrangendo, sobretudo, temas
Dos discursos citados, só o
Pro Archia não tem vinculação ligados à retórica, à filosofia, à política e à moral, e, ainda, inúmeros discursos, frutos
com a política; é uma defesa
criminal, mas o lembro aqui do exercício da advocacia ou da sua ação política.
porque contém um elogio à
poesia. Entretanto, foram os Discursos, a crítica enumera 61, mais fragmentos de outros 20, dos 120 que teria
discursos políticos que deram
maior renome ao orador. escrito; e relaciona entre os mais importantes As Verrinas (In Verrem – 70 a.C), Catili-
nárias (In Lucium Catilinam orationes IV – 63 a. C), Em favor de Arquias (Pro Archia
– 62 a. C), Filípicas (Philippicae orationes – 44/43 a.C.).
As obras retóricas têm conteúdo didático: Cícero ensina sobre a técnica da elabo-
ração do discurso, sobre as qualidades necessárias ao orador e exemplifica, trazendo
a história da oratória romana numa obra intitulada Brutus (De claris oratoribus). Ou-
tras, do gênero, são: Rethoria ou de inventione, De oratore, Orator ad M. Brutum,
Partitiones oratoriae.
As obras filosóficas distribuem-se em:
- Tratados políticos: De Republica (6 livros), De legibus (6 livros);
- Tratados metafísicos, p.ex.: De natura deorum; De finibus bonorum et malo-
rum, Tusculanae disputationes;
- Tratados sobre a moral: De officiis, De senectute, De amicitia.

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A Cultura Latina
Numa apreciação genérica sobre as ideias filosóficas de Cícero, importa dizer
que valem menos pela originalidade (que é encontrada nos tratados políticos) do
que valem pela condição de intermediar teorias das fontes gregas das quais fez
uso, trazendo-as para nós, com os recursos da retórica e o brilho de estilo que
distinguiram todos os seus escritos, e que lhe garantiram – ao lado de Demóstenes
– o título dos melhores oradores de todos os tempos. A crítica, em geral, considera
Cícero um eclético.

De Cícero é preciso registrar, ainda, uma ativa correspondência epistolar, forman-


do um conjunto de centenas de cartas a familiares e amigos. Essas cartas se consti-
tuem como documentos importantes sobre o contexto histórico da época, tanto mais
fidedignos quanto mais espontâneos, inclusive com marcas da intimidade familiar;
por outro lado, o registro da linguagem coloquial é fonte importante para os estudos
gramáticos e linguísticos
Cícero desenvolve a prosa latina até a levar à sua perfeição, do mesmo modo que
Virgílio e Horácio o fazem com a poesia.
Outros prosadores do período, já citados acima, escreveram sobre a história.
César (Caio Júlio César, em latim Caius Iulius Caesar – 100-44 a. C) – general,
conquistador das Gálias, e ditador em Roma graças à vitória em guerra civil, escreveu
comentários sobre as suas proezas: Comentários sobre a guera na Gália (Commenta-
rii de Bello Gallico) e Comentários sobre a guerra civil (De bello civili Commentarii).
Caracterizado como sóbrio no estilo e correto na linguagem, os comentários de César
são aceitos como fontes históricas interessantes, mesmo sabendo-se que foram escritas
com interesse pessoal. Talvez mais pelo que significou por sua ação política do que
por seus escritos, César é uma figura histórica com inegável e continuado chamariz ao
estudo dos romanos.
Varrão (M. Terêncio Varrão – 116-27) foi considerado o mais culto dos romanos,
apesar de não ser considerado grande escritor. Ou seja, suas obras têm mais valor
como documentário do que como peças literárias. Das 70 obras que teria escrito, te-
mos 5 livros incompletos de uma, intitulada De Lingua Latina (Sobre a língua latina),
dada como o mais antigo estudo dessa natureza que chegou até nós; e conhecemos
inteiros 3 livros Sobre as coisas rústicas (Rerum rusticarum libri) que pode ser con-
siderado um manual sobre agropecuária concebido com o orgulho de que sabe das
coisas do campo.
Varrão teve considerável influência, pelas informações que deixou, tanto na forma-
ção das gerações próximas dos romanos depois dele, como nos séculos subsequentes,

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INICIAÇÃO À CULTURA servindo como referência mesmo aos estudiosos de hoje, históriadores e estudiosos
Clássica GRECO-LATINA
da língua latina.

 A segunda das fases do período clássico está centrada na figura política do


imperador Augusto. Com frequência é caracterizada como “século de Augusto”,
o que se justifica tanto pelo clima de relativa paz no vasto império romano,
quanto pela extraordinária florescência cultural nesse período.
“Augusto” não era nome pró-
prio, como é hoje. Foi o título Os nomes principais, sempre citados como representativos desse apogeu cultural,
de honra atribuído ao sobri-
nho de Júlio César, Otaviano, são Virgílio, Horácio, Ovídio, Tito Lívio.
quando em 27 a. C. , assumiu
o poder como primeiro impe- Antes deles, porém, lembremos Mecenas, não como autor, mas como o ministro
rador em Roma, pondo fim à
guerra civil. influente e esclarecido do Imperador Augusto, ao qual se deve o incentivo e a proteção
Os imperadores, depois dele,
passaram a adotar o mesmo
aos intelectuais da época. Sua iniciativa histórica de apoio às artes e aos artistas foi,
título.
talvez, decisiva para o progresso da cultura latina na época

Foi tão marcante e de tal


importância esse apoio que
“Mecenas”tornou-se nome “co-
mum” para designar as perso-
nalidades protetoras da cultura.

Fonte: Wikimedia Commons

 Virgílio, Públio Virgílio Marão – em latim Publius Vergilius Maro (70 a.C. – 19
d.C.) é, reconhecidamente, nome imortalizado na literatura latina, criador de

60
uma obra poética capaz de suscitar admiradores e inspirar continuadamente A Cultura Latina

imitadores, sobretudo na poesia épica. Deixou três obras-primas: as Bucólicas,


as Geórgicas, a Eneida.
• Bucólicas, compostas entre 41 e 37 a.C, são a primeira manifestação da arte
virgiliana. O conjunto consta de 10 poemas pastoris, às vezes referidos como
éclogas ou églogas. A poesia bucólica é uma criação do grego siciliano Teócri-
to, que viveu em Siracusa, e depois em Alexandria. O gênero bucólico supõe
uma poesia feita para celebrar a simplicidade do campo e da vida pastoril;
Virgílio adotou a fórmula de Teócrito, inovando conforme sua experiência
pessoal (ele era, também, um campônio de origem). Assim, suas Bucólicas
enaltecem a simplicidade da vida no campo e ganham a cor da natureza itá-
lica, de Mântua, a pátria de Virgílio. O poeta serve-se da canção pastoril para
falar de si e de seus amigos e da natureza que o cerca: a expressão poética
ganha subjetividade, por uma lado e, por outro, assume um compromisso
com o que se passa politicamente ao seu redor. O diálogo - característico
desta espécie poética – é, em verdade, a reprodução do que realmente acon-
tecia entre os pastores, que alternavam-se em cantos espontâneos enquanto
cuidavam dos rebanhos.
• As Geórgicas relacionam-se, no que tem de pessoal e contemporâneo, a
uma preocupação já presente nas Bucólicas. Destas as Geórgicas retomam
a lamentação do poeta pelo abandono dos campos agrícolas, que ficaram
incultos enquanto os braços vigorosos dos lavradores eram empregados nas
campanhas militares. A motivação real da Virgílio para a elaboração desse
poema, tão diferente das duas outras produções, ainda não está bem es-
tabelecida. De modo geral, tem-se como certo que o poeta atendeu a um
pedido do imperador, via Mecenas. Desta forma, o autor serviria aos obje-
tivos político-administrativos do imperador Augusto, que desejava atrair ao
cultivo das terras agrícolas os antigos soldados que, sem guerras por lutar,
perambulavam pelas cidades italianas.
• A concepção do poema trai influências gregas, principalmente da obra Os
trabalhos e os dias, de Hesíodo; mas contém também elementos do tratado
de agricultura do velho Catão, celebrado, aliás, como símbolo da romani-
dade autêntica. As Geórgicas, porém, apresentam mais amplitude e é obra
melhor estruturada. É composta de quatro partes, ou cantos, como se diz
dos poemas clássicos, perfazendo aproximadamente 500 versos: O primeiro
canto trata sobre o cultivo dos cereais, o segundo sobre a conservação dos
bosques e sobre o cultivo da uva e dos olivais, o terceiro sobre o cuidado

61
INICIAÇÃO À CULTURA com o rebanho e o quarto canto sobre apicultura. Os detalhes referem as-
Clássica GRECO-LATINA
suntos ligados à vida rural; por exemplo, dos dias propícios ao plantio; dos
diferentes tipos de solo e das suas qualidades; da importância de escolher a
terra própria para cada tipo de planta; da necessidade de alternância de cul-
turas; da irrigação de terras secas; da importância da seleção das sementes;
da enxertia e do transplante da videira; do aprimoramento dos espécimes
animais; da formação de um apiário e do cuidado com as colmeias. Bem se
vê aí um verdadeiro tratado de agronomia.

A par dessas instruções de ordem prática, temas de natureza moral, cívica e religio-
sa vêm à tona, tais como o valor dignificante do trabalho, a importância da organização
e da ordem, a responsabilidade dos atos humanos, as obrigações do homem com a
divindade, a efemeridade da existência humana. Para estas ideias muito concorreu a
influência epicurista do escritor Lucrécio e do seu livro De rerum natura, seguramen-
te uma das fontes do poeta mantuano.
Não é difícil concluir que é patente a atualidade dos temas tratados por Virgílio nas
Geórgicas, comprovando-se, de novo, a perenidade dos valores culturais herdados da
antiguidade greco-latinna.
• A Eneida é o poema maior da literatura latina. Está estruturado em doze
cantos, somando 9. 826 versos. A história é rica em detalhes. No primeiro
canto, há o relato das vicissitudes de Eneias, fugindo de Tróia. No mar, os
navios do herói são atingidos por uma violenta tempestade e a chegada dele
a Cartago; tudo é consequência da intervenção dos deuses, particularmente
de Juno e Vênus. No segundo canto, a rainha Dido, já apaixonada, ouve do
herói o relato dos acontecimentos da guerra de Tróia. O relato termina no
canto III: Eneias detalha as escalas da sua viagem desde Tróia (Trácia, Delos,
Estrofades, Creta, Ítaca, Sicília e Epiro) e outros acontecimentos, como o
encontro com as harpias e a morte de Anquises. No quarto canto, Dido, no
clímax da paixão, se entrega à Eneias; entretanto, Mercúrio, como emissário
de Júpiter, vem lembrar o herói que deve abandonar Cartago e cumprir a sua
missão, o seu destino. Consciente, o herói abandona Dido, que o amaldiçoa
e se suicida. Eneias, então, parte para a Sicília, onde realiza jogos fúnebres
em homenagem ao aniversário da morte de seu pai Anquises (canto V ). Na
sequência, em Cumas, Eneias encontra a sacerdotisa de Apolo e obtém a
permissão para entrar no mundo dos mortos, onde encontra Anquises, que
antecipa informações sobre o futuro de Roma (canto VI). No canto seguinte,
narra-se a chegada de Eneias à região do Tibre, o encontro com o rei Latino,

62
que lhe oferece a mão da filha, Lavínia; por isso, atrai a inimizade da rainha A Cultura Latina

(Amata) e deTurno, a quem Lavínia fora prometida: é o estopim da guerra


entre latinos e troianos (canto VII). Vulcano, a pedido de Vênus, forja armas
para Eneias, que busca fazer aliança com o rei Evandro (canto VIII). Turno
ataca os acampamentos dos troianos e Niso e Euríalo, dois jovens guerrei-
ros, são mortos (canto IX). Júpiter procura conciliar as deusas Juno e Vênus,
enquanto a guerra prossegue (canto X). Uma trégua para o sepultamento
dos mortos é observada; e ambos os lados refletem sobre um possível acor-
do de paz, o que não acontece: a luta recrudesce num dos mais sangrentos
episódios da luta (canto XI). O batalhão dos latinos esmorece, e Turno se
propõe a enfrentar Eneias numa batalha corpo-a-corpo. O troiano vence o
fantástico duelo e mata Turno (canto XII).
• Não há como negar a clara influência dos poemas homéricos na Eneida. En-
tretanto, Virgílio vale-se das narrativas de Homero com criatividade: costura
numa só narrativa, na Eneida, os assunto mais evidentes nos dois modelos
gregos; retira da Odisseia o traço distintivo de “poema da viagem” de Ulisses
de volta para casa e o reloca espertamente nos seis primeiros cantos da Enei-
da, mostrando o herói Eneias enfrentando vicissitudes mil para encontrar o
Lácio, a futura morada dos latinos; e traz para os seis últimos cantos do seu
poema toda a violência e sangue dos aqueus na conquista de Troia, mostran-
do a crueza realista da luta pela conquista do território do Lácio.
Combinando fatos da história e tradições lendárias, a realidade e o mito, Vir-
gílio constrói um poema de celebração eloquente das glórias do passado latino,
moldando os personagens, particularmente o protagonista Eneias, como símbolos
das virtudes características da romanidade. E assim como episódios marcantes nas
narrativas homéricas desvendam o homem, simbolizado em tipos inesquecíveis, na
sua grandeza e na sua mesquinhês, assim Virgílio delineia figuras prototípicas, com
realce para o protagonista Eneias. Entretanto, na Eneida as personagens parecem
programadas para um fim especial, um destino, um fatum. E é no cumprimento
deste fatum, que os destinos individuais se engrandecem. O herói Eneias se destaca
pela sua pietas e pela gravitas, ou seja, pela obediência à vontade dos deuses e
pela dignidade como cumpre o seu destino. Aliás, o cumprimento desta sina dá ao
poema um caráter “romântico”, prenuncia os grandes lances emotivos que vão ser a
tônica das narrativas a partir do romantismo. É o que se vê em episódios envolvendo
Eneias e o pai, Aquises; Eneias e o filho, Ascanio; Eneias e a esposa, Creusa; Eneias
e a amante, Dido; Eneias e a deusa Vênus; Dido e a irmã; Turno e Lavinia; Niso e
Euríalo, e outros.

63
INICIAÇÃO À CULTURA A Eneida é quase uma unanimidade na apreciação da crítica literária, desde o seu
Clássica GRECO-LATINA
aparecimento, mantendo-se como um dos textos literários primordiais - analisado,
estudado, criticado, reinventado – renovando-se como inspiração para todas as formas
de expressão artística.
Ele mesmo parece ter tido
muito orgulho do seu trabalho,
o que transparece nos famosos  Horácio, Quinto Horácio Flaco – em latim Quintus Horatius Flaccus (65 a.C.
versos:
Construí um monumento – 8 d.C) foi contemporâneo e amigo de Virgílio, que o apresentou a Mecenas,
mais duradouro que o bronze
E ainda mais alto que a real passando a gozar os favores da corte augustana; manteve, porém, sua indepen-
decrepitude das pirâmides.
(Hor. III, 30, 1-2) dência pessoal, conciliando bem a arte e a vida. São as seguintes suas obras:
Odes (4 livros), Epodos, Sátiras (2 livros), Epistolas.
• As Odes são poesias de conteúdo lírico, nas quais a crítica vê o melhor da produ-
ção horaciana. Costumam ser dividas em odes ligeiras e odes cívicas e religiosas.
Nas primeiras, os temas são os comuns à poesia lírica: expressão de sentimentos
Ver antologia, ao final desse
estudo.
pessoais diante da natureza e da vida (amor, amizade, reflexões). No conjunto,
tem-se uma poesia “filosófica”, deixando entrever uma postura epicurista diante
da existência, o que poderia ser inferido do célebre carpe diem.
Nas odes cívicas e religiosas, a poesia de Horácio assume um tom moralizan-
te e decisivamente educativo patriota; aparece uma crítica aos costumes do
tempo para a exaltação do passado grandioso, de Roma e do Imperador Au-
gusto; bem assim é, também, o Carmen Saeculare, composto especialmente
para os Jogos Seculares, realizados por Augusto em 17 a. C.
• Os Epodos (ou Iambos) e as Sátiras (ou “Sermones”) podem ser vistos como
um duo de igual inspiração na criação horaciana; ou seja, tanto nos 17 poe-
mas dos Epodos quanto nos dois livros de Sátiras a inspiração, o conteúdo
e o tom da expressão são os mesmos. A inspiração vem da sátira de Lucílio
e da influência do grego Arquíloco; o conteúdo, consiste na indicação pers-
picaz do ridículo nos homens; a expressão, é sempre uma variável do tom
jocoso para a ironia e/ou para a mordacidade.
• As Epístolas de Horácio são poemas cartas; ou cartas em forma de poema.
O poeta as chamou, também, sermones, isto é, “conversas”. Estas conver-
sas, como as produções anteriores, nascem da observação do mundo e dos
homens, mas feita, agora, num momento mais sereno da vida do poeta, o
que explica revelarem maior ponderação. São, ao todo, 23 cartas, a maioria
de sentido moralizante. E uma, a mais famosa, de reflexão sobre a arte lite-
rária, conhecida como Ars poetica (Arte poética), foi, na origem, uma carta
escrita aos Pisões, melhor explicando, aos filhos do cônsul Calpúrnio Pisão.
Demonstrando influências tanto de Platão quanto de Aristóteles, Horácio

64
ensina os princípios básicos de uma composição literária; discorre sobre os A Cultura Latina

grandes gêneros literários e dá conselhos sobre a formação do poeta.


Sem nunca ter grangeado a simpatia geral, comum, Horácio sempre teve a admira-
ção dos grandes autores, e, junto com Virgílio e Ovídio, constituiu a tríade dos poetas
latinos mais influentes sobre a poesia de todos os tempos.

 Ovídio, Públio Ovídio Naso, em latim Publius Ovidius Naso (43 a.C. – 17 p.C.)
– é, dentre os componentes da tríade, o que melhor realiza em si o provébio ... quod tentabam scribere
latino “poeta nascitur...”, um poeta nasce poeta. Ele mesmo narra que, quando versus erat. (Trist , 4, 10 26)

pretendia escrever, tudo se transformava em verso.


Por outro lado, diferencia-se por ser um poeta elegíaco. No entanto, não cultivou
exclusivamente elegias, como os seus antecessores (Propércio e Tibulo). Sua obra é
multiforme, fruto de um talento extremamente criativo, capaz não apenas de um novo
estilo. Ovídio pode ser considerado o primeiro poeta “moderno”, o que pode explicar
a duradoura influência que exerceu nas literaturas românicas. Por motivos até hoje
não esclarecidos, já com 49 anos, é exilado por Augusto, na longínqua ilha de Tomos,
no mar Negro, onde morreu.
Sua atividade poética pode ser dividida em três períodos; da juventude, da matu-
ridade e do exílio.
Pertencem ao período da juventude as obras Amores, Heroides (ou Heroidum Epis-
tolae), Ars Amatoria, Remedia Amoris e De medicamine faciei.
Amores são, na forma atual, três volumes nos quais canta seu amor por uma mu-
lher, Corina, que nunca foi possível identificar; os críticos entendem que, mais que
uma figura real, Corina foi uma criação artística. Nestas, e noutras elegias amorosas
ovidianas, falta a profundidade de sentimento, poucas vezes o poeta parece pessoal-
mente comovido; em compensação, sobra a desenvoltura formal, a riqueza das ima-
gens, a vivacidade da imaginação.
Heroides são cartas de amor de heroinas míticas aos seus amantes. São, ao todo, 21
cartas, sendo que, nas últimas 6, encontram-se também as respostas dos destinatários.
Como se vê, trata-se de uma “invenção”, o que pode explicar a falta de espontaneidade
das expressões. Ainda assim, pode-se perceber que Ovídio não narra o mito pelo mito,
mas dá-lhe reações humanas, patenteando impressionante conhecimento da psicolo-
gia feminina e criando situações bem interessantes.
Ars amatoria (A arte de amar), em três volumes, fornece um repertório de receitas
da arte da sedução. É como se o poeta transformasse em regras práticas as palavras,
gestos e ações amorosas que seus personagens das obras anteriores praticaram. A
obra criou algum impacto na época; diante das críticas, Ovídio escreveu, em seguida,

65
INICIAÇÃO À CULTURA Remedia Amoris, criada para ser o reverso da obra anterior, ou seja, ensina-se como
Clássica GRECO-LATINA
alguém pode livrar-se de uma paixão. O conselho principal é: para expulsar um amor,
é preciso encontrar outro.
De medicamine faciei (Remédios para face), fala sobre o uso de cosméticos - é
bem uma prova de quanto Ovídio fixava-se em tudo quanto se refere à arte feminina
da sedução.
Do período da maturidade, importa destacar as Metamorfoses (Metamorphoseon,
libri XV ) e Fastos (Fasti).
Metamorfoses são a obra-prima de Ovídio, a obra de maior e mais perene influên-
cia. Muitas gerações conheceram os mitos e as fábulas da antiguidade através desta
obra. Ovídio parece ter planejado uma história da humanidade, dando à obra uma
feição de epopeia, começando a narrativa pelo caos original para chegar à apoteose de
César. Pode-se dizer que o mundo das Metamorfoses é o mundo das divindades sem as
características olímpicas. A obra compreende 15 livros. Vale a pena conhecer algumas
(são 246!) das fábulas de cada um dos cantos para se perceber o mundo lendário que
o poeta atualizou em latim, e do latim para a posteridade: I – O caos, a criação do
mundo, a origem do homem, as quatro idades da humanidade, o dilúvio, Deucalião e
Pirra; II- A história de Faetonte; III- Cadmo e o dragão, Eco e Narciso; IV- Perseu e An-
drômeda; V- Prosérpina; VI – Aracne e Níobe; VII – Medeia, a feiticeira; VIII – Dédalo
e Ícaro, Filemon e Baucis; IX – A apoteose de Hércules; X – Orfeu e Eurídice; XI – A
morte de Orfeu; XII – O sacrifício de Ifigênia; XIII – O saque de Troia, A fuga de Eneias;
XIV – A apoteose de Eneias; XV – A apoteose de Augusto.
As Metamorfoses foram, ao longo dos tempos, uma constante fonte de inspiração
para novas criações artísticas; e aí vale a pena destacar o quanto serviu sua obra para a
arte plástica, particularmente para a pintura, conforme se exemplifica a seguir.

66
A Cultura Latina

Narciso, pintura de Caravaggio Diana surpreendida por Acteão, de Delacroix

As imagens aqui reprodu-


zidas provêm da Wikimedia
Commons, acervo de conteú-
do livre da Wikimedia Foun-
dation; cf. http://commons.
wikimedia.org/wiki/ Commons:
Reutiliza%C3%A7%C3%A3o_
de_conte%C3%BAdo_fora_
da_Wikimedia

Danaë, Ticiano, uma das inúmeras pinturas inspiradas na Metamorfoses.

• Pertencem ao período do exílio as obras Tristia (Cantos tristes) e Epistulae ex


Ponto (Cartas Pônticas) em que predomina a expressão de lamento pelo sua
sorte. Valem não tanto pelo valor poético das elegias, quanto pelo sentido do-
cumental do conteúdo: evocando o passado, desde a infância até as alegrias da
amorosa na juventude e, por fim, até a vivência com a boa e fiel esposa, Ovídio
faz desta obra uma autobiografia incomum.
Personalidade ímpar dentro do contexto da literatura latina, já se dei-
xou claro que Ovídio forma com Virgílio e Horácio a tríade poética
mais famosa da literatura universal.

 Tito Lívio (59 a.C. – 17 d.C) integra, com Júlio César, Salústio, Cornélio Ne-
pos, Anísio Polião, Tácito e Suetônio uma galeria de representantes dos escri-
tores do gênero histórico em Roma.

67
INICIAÇÃO À CULTURA Já demos o possível destaque a César; e agora falemos de Títo Lívio. Sua imensa obra
Clássica GRECO-LATINA
intitulada Ab urbe condita libri, em português Desde a fundação da cidade, já revela
no título as intenções do autor. Entretanto, dos 142 livros de que essa história de Roma
se compunha, tem-se hoje apenas 35. Não obstante isso, e apesar de acolher na sua obra
também referências lendárias, sobretudo em relação às origens de Roma, Tito Lívio é res-
peitado como historiador. Concorre para isso a preocupação de tornar a narrativa - mais
do que uma relação de fatos e de ações, que ele procura transmitir com seriedade - uma
forma de ensinar, talvez consciente do que Cícero já doutrinara: a história é a mestra da
vida. Além disso, a narrativa de Lívio atrai pela vivacidade com que recupera e transmite
os fatos, sem descuidar de insinuar a psicologia das figuras históricas. Enfim, o que asse-
V. Giordani, p. 246 gura um lugar de destaque a Tito Lívio e lhe dá foros de historiador-fonte, o seu grande
mérito, “foi ter extraído o que havia de mais verossímil na Literatura Histórica anterior e,
sobretudo, de havê-lo fixado para o porvir, graças à superioridade de sua arte”.

 A terceira fase do período clássico corresponde aos anos da dinastia júlio-


-claudiana, a saber, do ano 14 – quando Tibério assume o poder – a 68, quando
morre Nero.
 São muitos os nomes que brilham na época:
Fedro e as suas fábulas; Juvenal e sátira; Marcial e o epigrama; Lucano e a
renovação da epopeia; os historiadores Tácito e Suetônio, Amiano Marce-
lino e Eutrópio; Plínio, o Velho e sua História Natural; Sêneca, o filósofo
e dramaturgo; Quintiliano e a oratória; Petrônio e o Satiricon; Apuleio e o
Asno de ouro.
Mais uma vez pensando nos nomes que ecoam influências, escolhemos:
Fedro é trácio de nascimento. Levado jovem para Roma como escravo de
Augusto, escreveu cinco livros, que contêm 123 fábulas. Inspirou-se em Eso-
po, grego lendário que teria criado o gênero fabulístico. As fábulas, como se
sabe, são historietas cujos personagens são animais que vivem situações e
ações simbólicas, narradas com vistas a uma lição moral, ou a uma crítica, a
pessoas e a instituições.

As fábulas de Fedro, a par do mérito de resgatar as criações esópicas, constituem-se


matéria de imitação perene.

68
Tácito e Suetônio. A Cultura Latina

O primeiro, Públio Cornélio Tácito viveu entre a metade do primeiro e o início


do segundo século depois de Cristo. De cinco obras que escreveu, duas têm assunto
histórico: As Histórias, que referem eventos da sua época; e Os Anais, que referem
eventos anteriores aos referidos nas Histórias.
O trabalho de Tácito como historiador é, no geral, bem visto pela crítica dos seus
pares modernos. E as suas obras continuam merecendo crédito como fonte de infor-
mações sobre as épocas e fatos que historiou. É considerado o último dos grandes
historiadores romanos.
Caio Suetônio Tranquilo (69? – 141 d.C.) escreveu duas obras, ambas de cunho
biográfico: Homens ilustres (De viris illustribus), da qual só restam partes; e Vidas dos
doze Césares, obra muito conhecida e sempre consultada, importante pela revelação
de dados e curiosidades da vida dos doze primeiros imperadores de Roma.
Plínio, o Velho (23-79) caracteriza-se como um erudito universal. Escreveu muito
e sobre muitos assuntos. O que sobrou, inteira, foi uma História Natural, um trabalho
enciclopédico que reune conhecimentos sobre a natureza em todos os seus aspectos,
a partir da leitura dos melhores estudiosos que o precederam, em particular de Aristó-
teles e de Varrão. Aborda física e astronomia, a geografia política e histórica da Europa
e do Oriente, as características ds seres vivos (homem, animais, vegetais,) os minerais
e seu uso nas artes plásticas, e, ao final, lista os principais artistas da antiguidade e suas
produções mais famosas.
É contestável o valor científico da obra de Plínio, considerada mais uma compi-
lação de dados, às vezes ingênuos. Entretanto, o valor documentário é apreciável,
constituindo-se uma coletânea de informações que podem preencher lacunas conse-
quentes do desaparecimento de documentos originais; suas informações são a base do
conhecimento sobre a arte antiga.

69
INICIAÇÃO À CULTURA
Clássica GRECO-LATINA

Escultura de Seneca, à Puerta de Almodóvar, em Córdoba, Espanha

Sêneca, Lúcio Aneu Sêneca (4 - 56 d. C.), foi um dos mais célebres escritores e inte-
lectuais do Império Romano. Conhecido também como Sêneca, o Moço, o Filósofo,
ou ainda, o Jovem, sua obra literária e, principalmente, a filosófica, é considerável; e
o autor, a máxima expressão do pensador estoico latino, inspirou o desenvolvimen-
to da tragédia na dramaturgia e contribuiu grandemente no pensamento filosófico
ocidental.
Hispânico de nascimento, veio para Roma com o pai, logo envolvendo-se na vida
pública; desenvolveu intensa ação política e intelectual. Sua produção literária abran-
ge tratados filosóficos, tragédias e uma sátira.
Dentre os tratados filosóficos merecem destaque: De ira (três livros); De Consola-
tione (reunem-se aqui três consolationes: a Políibio, a Marcia, à mãe Élvia); De Cons-
tantia sapientis; De Providentia; De vita beata; De otio; De tranquilitate animi; De
brevitate vitae; De beneficiis; Epistolae ad Lucilium (124 cartas).
Esses tratados mantêm certas características comuns: uma preocupação com as
questões práticas da vida e com a moral; um ecletismo de ideias, com predileção pelo
estoicismo. Pelo tom geral, essas obras de Sêneca resvalam para o que, hoje, se chama-
ria de aconselhamento espiritual.
Além delas, ainda no âmbito da filosofia, merecem menção os Quaestionum Na-
turalium Libri (Livros sobre as questões naturas), um estudo sobre os fenômenos
naturais a partir da filosofia estóica.

70
Sêneca escreveu também nove tragédias, todas inspiradas em modelos gregos; uma A Cultura Latina

tem merecido referência especial, Medeia, sempre confrontada com o modelo origi-
nal, a peça de Eurípides. Há certo consenso na apreciação de que as tragédias sene-
quianas se destinavam à recitação retórica, não à representação dramática.
A sátira que Sêneca compôs passa por ser sua obra mais original; o título, em grego,
é Apocolocyntosis (=aboborização); aqui, vale apenas a menção.

Sêneca teve renome e influência desde a sua contemporaneidade. Já era bem


considerado por Quintiliano e por Tácito; será constantemente lembrado por Ter-
tuliano, S. Jerônimo e Santo Agostinho. Nos tempos modernos, o renome conti-
nuou com Erasmo de Roterdã, Montaigne,, Diderot, Rousseau, e inúmeros outros
pensadores. Influenciou dramturgos como Corneille, Racine, Marlowe; e escritores
como Cervantes e Balzac, entre outros.

Quintiliano, Quinto Fábio Quintiliano (30 d.C,?-95 d.C) foi advogado e retor, isto
é, dirigente de uma escola de retórica que ele mesmo fundara, vindo a ser o primeiro
a ser pago, em Roma, para ensinar. Essa experiência docente serviu para dar suporte
prático às muitas teorias que acumulou pela leitura de autores gregos e latinos, firman-
do, afinal, um cabedal próprio de princípios relativos não apenas ao ensino das técni-
cas da oratória mas à educação da criança como um todo. É o que se pode comprovar
pela leitura de sua obra A Instituição Oratória, composta em doze livros.
Interessante que, já então, Quintiliano antecipava ideias didático-pedagógicas que
agora são discutidas pelos teóricos modernos, por exemplo em relação à importância
e à metodologia de ensino da leitura, às conveniências e inconveniências da educação
escolar. E também já apontava a importância dos clássicos – ele falava de Cícero, por
exemplo – como modelos dignos de imitação.
Petrônio e Apuleio – são lembrados juntos, aqui, porque ambos trabalharam um Raymond Queneau, in apre-
gênero de narativa que, às vezes e impropriamente, é entendido como nascido nos sentação de Satíricon, Petrônio,
tradução de Cláudio Aquati, p. 7
tempos modernos. Trata-se do romance.
Petrônio - Caio ou Tito Petrônio – é identificado com um personagem que fre-
quentava a corte de Nero e a quem o imperador distinguia como arbiter elegantiae
(árbitro da elegância). As circunstâncias de seu nascimento são desconhecidas, mas
da morte não: Petrônio foi obrigado a cortar os pulsos, acusado de participar de uma
conspiração contra o Imperador; isto no ano 65 a.C.
Atribui-se a Petrônio a autoria de um romance hoje famoso: Satíricon, motivando
manifestações como esta: “De todos os escritores da Antiguidade não há nenhum
mais moderno do que Petrônio ”. E a história do texto desse romance ainda dá
margem a conjecturas e especulações, mesmo sendo, como é, incompleto: não se

71
INICIAÇÃO À CULTURA tem nem o começo nem o fim. “Nos trechos remanescentes, o Satíricon contas as
Clássica GRECO-LATINA
aventuras e desventuras de dois rapazes que perambulavam pelo sul da Itália, nas
imediações de Pompeia e Nápoles. (... ) Um deles é Encólpio, o narrador e perso-
nagem principal. Jovem bissexual, ciumento, covarde e violento, é um estudante
que aparentemente conhece as letras, a retórica em particular. Acompanha-o Gitão,
adolescente que tem por volta de dezesseis anos, um homossexual efeminado, vo-
lúvel e disseminado.” Só por esta síntese mínima já se vê que estamos falando de
uma narrativa capaz de suscitar viva curiosidade. E controvérsias. Até porque “Entre
as personagens que povoam o enredo desse romance (... ) nenhuma há que tenha
Essa informação acima, bem
como as linhas abaixo são, bons princípios morais...” E, então, donde o valor do Satíricon? Pode-se dizer que o
quase todas, uma “costura” de
excertos do posfácio escrito por Satíricon tem um caráter multifacetado. Primeiro, suscitou o interesse a gramáticos
Claudio Aquati (e transcritos
ipsis litteris) em apêndice à sua de várias épocas, por causa dos fenômenos linguísticos que documenta, fazendo um
tradução do Satíricon.( p. 224 e
seguintes; ver bibliografia)
registro único das particularidades da lingua cotidianamente falada, o latim vulgar;
e, depois, tardiamente, motivou estudos sobre a qualidade literária que esconde
com recursos hábeis, como o de dar voz aos libertos, a descrição dos valores desse
gruupo social, feita a partir de seus próprios representantes, a supressão do dis-
curso direto de personagens de fala culta, a construção de uma narrativa circular,
o emprego da paródia, da intertextualidade, entre outros. Em relação à história da
literatura antiga, o Satíricon tem importância decisiva como oposição e transgres-
são ao tradicional, não só por seus conteúdos e formas, mas também pelo choque
com o que se encontra acomodado. Em relação à literatura moderna, o Satíricon é
um texto dos mais importantes, não apenas pela consagração definitiva do gênero
romance, mas por uma (im)pertinente e continuada inspiração à produção artística
ainda em nosso tempo.
Apuleio (125 - 164) era cidadão romano, mas sua pátria de nascimento foi a Nu-
mídia, na África. Seu nome repercute até a atualidade por causa da sua obra intitulada
O asno de ouro, uma narrativa em prosa em 11 livros a que inicialmente chamou
Metamorfoses. Trata-se da narrativa das aventuras do jovem Lúcio, que é transfor-
mado por magia em burro e que só recupera a forma humana graças à intervenção
da deusa Ísis, a cujo serviço se consagra. O Asno de Ouro aproxima-se do Satíricon
pela narrativa autodiegética, bem como pelo conteúdo ironizante e anti-heroico, fre-
quentemente definido como pícaro. Nesse sentido, produções esparsas da literatura
moderna acusam influências dificilmente definíveis como sendo só de uma ou de
ambas as obras. O exemplo,
com frequência lembrado, é Dom Quixote de La Mancha.

72
Finalizando a reportagem A Cultura Latina

No início desta reportagem, ou seja, na apresentação deste trabalho, aproveitamos


ideias de Will Durant. Voltamos a nos servir de Durant para umas poucas considera-
ções finais, iniciando-as por esse trecho lapidar:

“Se incluirmos em nossa herança helênica não só o que os gregos inventa-


ram, mas o que adaptaram das culturas mais antigas e por diversas vias trans-
mitiram à nossa, encontraremos esse patrimônio em quase todas as facetas da
vida moderna. [...]
... tudo chegou até nós pela corrente histórica que da Grécia passou a
Roma e desta a nós.”
(DURANT, 1966, p. 523)

Vamos particularizar sumariamente esse legado:


• Nossa língua e as línguas românticas são um latim evoluído e modificado, ainda
mais enriquecido no seu léxico com um cem número de palavras de origem
grega, que, na linguagem do dia ou na linguagem culta, ganham vida nova e
perenidade
Mas não só as línguas românicas beberam destas fontes; outros os idiomas dos
países ocidentais enriqueceram e enriquecem seu vocabulário indo diretamente
ao latim; e por vezes, entram na língua do dia-a-dia palavras que são de origem
latina (vídeo, áudio, deletar, p. ex.) como se viessem do inglês.
• Na escrita: nosso alfabeto, através dos etruscos, é uma herança grega.
• Nas artes: Durante os milênios passados, a cultura greco-latina vem impondo-se
às culturas dos demais povos, não só como fonte de inspiração, mas até pela
permanência de princípios, técnicas e gêneros, às vezes apenas diferenciados
ou facilitados pela matéria ou material de produção. Não apenas nas artes literá-
rias, mas nas artes plásticas, em geral, é inumerável – e admirável – o acervo de
produções de alguma forma derivadas da arte clássica, constituindo-se outros
tantos vasos comunicantes da fonte original
• Na filosofia: Nenhum grande pensador moderno pôde dispensar o instrumen-
tal teórico para produzir qualquer ideia que se pudesse dizer absolutamente
nova.
• Nas ciências: os princípios fundamentais formulados pelos matemáticos e geô-
metras gregos continuam valendo, mesmo depois dos gênios Descartes e Pascal.
• Na política: O ideal democrático, mesmo que vivenciado hoje sob fórmulas dife-
rentes da vivida pelos gregos na polis, ainda guarda as raízes do seu nascimento.

73
INICIAÇÃO À CULTURA • No direito: a regulação dos direitos e deveres, nos diversos segmentos da vida do
Clássica GRECO-LATINA
indivíduo e das relações sociais, tem a sua formulação mais antiga derivada das
especulações éticas dos filósofos gregos, concretizadas pelo pragmatismo atávico
dos latinos nos artigos, ainda indispensáveis, dos códigos do direito romano.
• Na educação: em qualquer dos aspectos, intelectual, moral e físico, paira sobre
o universo dos métodos didático-pedagógicos o espírito helenizante, represen-
tado – de forma concreta – pela revivência periódica dos Jogos Olímpicos.

Comprova-se, então, mesmo sem a amplitude e sem o aprofundamento de exposi-


ção que a temática enseja, que o conhecimento da Cultura Clássica tem extraordinária
pertinência. E, nos termos da proposta delineada, firma-se a presunção e a expectativa,
de que este trabalho inspire suficiente motivação para estudos mais aprofundados.
Vale sempre lembrar os versos de Fernando Pessoa, em sua Ode Triunfal:

Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,


Porque o presente é todo o passado e todo o futuro,
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas
Só porque houve e outrora foram humanos Virgílio e Platão
(Ode Triunfal, 440, v. 17-20)

74
TEXTOS – Excertos antológicos A Cultura Latina

HOMERO, I l í a d a, Canto II - (Excerto; Homero descreve os exércitos


gregos momentos antes de uma batalha. Observe-se as comparações, trabalha-
das a partir das realidades da época).
Tal como um fogo destruidor abrasa uma floresta imensa, nos cumes de uma
montanha, e de longe se vê o seu clarão, assim, dos guerreiros em marcha, o
bronze maravilhoso lançava o seu brilho resplandecente, través do éter, até ao
céu. Tal como aves aladas, em tribos numerosas, patos-bravos, grous ou cisnes
de longos pescoços, na pradaria de Asio (...) voam por aqui e por ali, vaidosas
de suas asas, pousam gritando e fazem ecoar a pradaria, assim numerosas tri-
bos, vindo das naus e das tendas, se espalhavam na planície do Escamandro. A
terra ressoava terrivelmente sob os seus pés e os cascos dos seus cavalos: eles
detiveram-se nos prados floridos do Escamandro, aos milhares, tão numerosos
como as folhas e as flores em sua época. Em tão grande número como moscas
compactas que em tribos abundantes erra numa vacaria, na Primavera, quando
o leite inunda as vasilhas, os Aqueus pararam diante dos Troianos, na planície,
impacientes de os despedaçarem. E tal como, tendo-se dispersos rebanhos de
cabras, os cabreiros as separam facilmente, depois de eles estarem dispersos
na pastagem, assim os chefes punham os homens em ordem, aqui e ali, para
entrarem na peleja, tendo entre eles o poderoso Agamemnon, semelhante, no
olhar e na cabeça, a Zeus fulminante, a Ares na cintura e no peito a Posídon.
(HOMERO. A Ilíada. Tradução de Cascais Franco. Mem Martins. Lisboa: Europa – América, 19--?)

HOMERO, O d i s s e i a, Canto I (Excerto da introdução)


Musa, narra-me as aventuras do herói engenhoso, que após saquear a sa-
grada fortaleza de Tróia, errou por tantíssimos lugares vendo as cidades e co-
nhecendo o pensamento de tantos povos e, no mar, sofreu tantas angústias no
coração, tentando preservar a sua vida e o repatriamento de seus companhei-
ros, sem, contudo, salvá-los, mau grado seu: eles perderam-se por seu próprio
desatino [...] Já se achavam em sua terra todos os demais que escaparam ao fim
abismal, slavos da guerra e do mar: só ele ainda curtia saudades da pátria e da
esposa, retido no seio duma gruta pela real ninfa Calipso, augusta deusa, que
o cobiçava para marido. Porém com o volver dos tempos, chegou, enfim, o ano
em que, segundo teceram os deuses, voltaria a seu lar em Ítaca, mas nem então
se veria livre de lutas, embora entre seus entes queridos.
(HOMERO. Odisseia. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1997)

75
INICIAÇÃO À CULTURA
Clássica GRECO-LATINA
HESÍODO - Excerto da T e o g o n i a – O nascimento de Zeus
Reia submetida a Cronos pariu brilhantes filhos:
Hésia, Deméter e Hera de áureas sandálias,
O forte Hades que sob o chão habita um palácio
Com impiedoso coração, o troante Treme-terra
E o sábio Zeus, pai dos deuses e dos homens,
Sob cujo trovão até a ampla terra se abala.
E engolia-0s o grande Cronos tão logo cada um
Do ventre sagrado da mãe descia aos joelhos,
Tramando-o para que outro dos magníficos Uranidas
Não tivesse entre os imortais a honra de rei.
Pois soube da Terra e do Deu constelado
Que lhe era destino por um filho ser submetido
Apesar de poderoso, por desígnios do grande Zeus.
E não mantinha vigilância de cego, mas à espreita
Engolia os filhos. Reia agarrou-a grande aflição.
Mas quando a Zeus pai dos Deuses e dos homens
Ela devia parir, suplicou então aos pais queridos,
Aos seus, à Terra e ao Ceu constelado,
Comporem um ardil para que oculta parisse
O filho, e fosse punido pelas Erínias do pai

E filhos engolidos o grande Cronos de curvo pensar.


Eles escutaram e atenderam a filha querida.
(HESÍODO. Teogonia. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1991)

ARISTÓTELES - Ética a Nicômacos, Livro II (Excerto).


(O objeto e o sujeito do estudo da ética)
Estou falando da excelência moral, pois é esta que se relaciona com as emoções
e ações, e nestas há excesso, falta e meio termo. Por exemplo, pode-se sentir medo,
confiança, desejos, cólera, piedade, e, de um modo geral, prazer e sofrimento, de-
mais ou muito pouco, e, em ambos os casos, isto não é bom: mas experimentar estes
sentimentos no momento certo, em relação aos objetos certos e às pessoas certas, e
de maneira certa, é o meio termo e o melhor, e isto é característico da excelência.
Há também, da mesma forma, excesso, falta e meio termo em relação às ações. Ora,
a excelência moral se relaciona com as emoções e as ações, nas quais o excesso é

76
uma forma de erro, tanto quanto a falta, enquanto o meio termo é louvado como A Cultura Latina

um acerto; ser louvado e estar certo são características da excelência moral. A exce-
lência moral, portanto, é algo como equidistância, pois, como já vimos, seu alvo é o
meio termo. Ademais é possível errar de várias maneiras, ao passo que só é possível
acertar de uma maneira (também por esta razão é fácil errar e difícil acertar – fácil
errar o alvo, e difícil acertar nele); também é por isto que o excesso e a falta são ca-
racterísticas da deficiência moral, e o meio termo é uma característica da excelência
moral, pois a bondade é uma só, mas a maldade é múltipla.
Fonte: Texto parcial - Revista Diálogo Educacional, Curitiba. Disponível em: <http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resu-
mos_comentarios/e/etica_a_nicomaco >. -Acesso em: 25 fev. 2011.

A Morte de Sócrates”, por Jacques-Louis David (1787) – Fonte: Wikimedia Commons

PLATÃO - Excerto do Fédon - A morte de Sócrates


“... O sol já estava prestes a se pôr; pois Sócrates passara muito tempo neste lugar.
Assentara-se, ao voltar do banho e, a partir daquele momento, a palestra foi muito bre-
ve. Chegou, então, o servidor dos Onze e, de pé diante dele, disse-lhe: “Sócrates, não
tenho nenhum motivo para te censurar justamente naquilo que incrimino aos outros!
Encolorizam-se contra mim e crivam-me de imprecações, quando convido-os a beber
o veneno, pois tal é a ordem dos Magistrados. Quanto a ti, porém, já noutras ocasiões
tive tempo suficiente para compreender que és o homem mais generoso, mais doce
e melhor de quantos jamais aqui entraram. E, muito especialmente hoje, tenho plena
certeza que não é contra mim que se dirige a tua cólera, pois conheces, com efeito,
os responsáveis, mas contra estes. Agora, portanto, como não ignoras o que vim te

77
INICIAÇÃO À CULTURA anunciar, adeus! Procura suportar da melhor maneira aquilo que é fatal”! [...] Sócrates,
Clássica GRECO-LATINA
levantando os olhos para ele, disse-lhe: “A ti também, adeus! No tocante a nós, segui-
remos tua recomendação”! A esta altura, Sócrates voltou-se para nosso lado e disse:
“Quanta gentileza neste homem! [...]. E hoje, que generosidade na maneira como
chora a minha sorte! Vamos, pois! Obedeçamos-lhe, Críton. Tragam-me o veneno se já
estiver socado; caso ainda não esteja, que disso se ocupe quem estiver encarregado”!
Então Críton disse: “Mas Sócrates, se não me engano, o sol ainda está sobre as
montanhas e não acabou de se pôr. Também ouvi dizer que outros beberam o veneno
muito tempo depois de terem recebido o convite, e isto só depois de haverem comido
e bebido á saciedade [...] Vamos! Nada de precipitações: há tempo ainda”! Ao que
replicou Sócrates: “É natural, sem dúvida, Críton, que assim procedessem as pessoas
a que te referes, pensando, com efeito ganhar algo com isso. Quanto a mim, porém,
também é natural que não faça nada, pois penso que, deixando para beber um pouco
mais tarde o veneno, outra coisa não lucro senão ter-me tornado objecto de escárneo
para mim mesmo, [...] Basta, porém, de falar; vai, obedece e não me contraries”.
Assim interperlado, Críton fez sinal a um dos servidores que se mantinha perto.
Este saiu e voltou ao cabo de certo tempo, trazendo consigo quem deveria ministrar
o veneno já moído numa taça. Ao ver o homem Sócrates disse o seguinte:”Meu caro!
Tu que estás ao corrente do assunto, dize-me o que devo fazer. Nada mais, respondeu,
que dar uma volta depois de ter bebido, até que sintas tuas pernas pesadas, deita-te em
seguida e permanece estirado: com isto ele produzirá efeito”. Dizendo isto, estendeu a
taça a Sócrates. Este tomou-a, conservando, toda a serenidade, sem um tremor sequer,
sem a mínima alteração nem da côr nem dos traços. [...] Logo [...], sem parar, sem
demonstrar a mínima resistência ou enjôo, bebeu até ao fundo.
Então nós, que quase todos havíamos feito o máximo até aquele momento para
não chorar, ao vermos que bebia, que já tinha bebido, não pudemos mais conter-nos
[...]”Que fazeis lá? exclamou este (Sócrates)1 sois mesmo extraordinários! Se mandei
embora as mulheres, foi sobretudo pelo seguinte: para evitar da parte delas semelhan-
te falta de medida; pois como me ensinaram, é com palavaras felizes que devemos
terminar. Guardem, pois calma e firmeza”! Ao ouvir tal linguagem, sentimo-nos enver-
gonhados e deixámos de chorar.
Ele, porém, continuava a andar quando declarou que sentia as pernas tornarem-se
pesadas. Então, deitou-se de costas, como efectivamente lhe recomendara o homem.
Ao mesmo tempo, este aplicava a mão aos pés e às pernas examinando-o por intervalos.

1 - Interpolação minha

78
[...] Ao cabo de curto momento, ele teve, entretanto, um sobressalto. Então, o homem A Cultura Latina

descobriu-o: o seu olhar estava fixo. Vendo isto, Críton fechou-lhe a boca e os olhos.
Assim, foi o fim que vimos dar a nosso companheiro, o homem do qual podemos
dizer, com justiça, que, dentre todos os de seu tempo que nos foi dado conhecer, foi o
melhor, e, além disto, o mais sábio e o mais justo.
http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/escola/socrates/mortedesocrates.htm - Acesso em 25 fev. 2011

SÓFOCLES - Excerto da peça


Édipo Rei (palavras do Coro) -
“Possa eu conservar a mais santa pureza quer em minhas palavras, quer
em minhas ações! Possa eu obedecer na vida, às leis sublimes, instituídas pela
Providência Divina, da qual é o Olimpo o supremo pai. Não as criou a natureza
mortal dos humanos, e nunca as apagará o nosso do esquecimento; vive nelas
uma potestade divina, a que a velhice não pode atingir.
O orgulho é que produz o tirano; e quando tiver em vão acumulado excessos
e imprudências, precipitar-se-á o fastígio do seu poder num abismo de males,
de onde não mais poderá sair! (... ) A todo aquele que se mostrar prepotente
por suas ações ou por suas palavras, que não venera santuários, nem respeita a
Justiça – que uma morte funesta o castigue, punindo-o por sua ignorância. Se
ele fizer fortuna, pelo sacrifício e pela impiedade, quem mais quererá manter o
domínio de sua alma? Se tão nefandos crimes merecem honrarias, de que vale
entoar cânticos em favor dos deuses?”
(SÓFOCLES. Rei Édipo / Antigone / Prometeu Acorrentado. Tradução de J. B. Mello e Souza. Rio de Janeiro: Tecnoprint, [19--?].

SAFO - Poemas
É minha esta criança.
Cleia se chama
E o seu corpo lembra
Uma flor de oiro.
Por nada eu trocava:
Nem pela Lídia toda
Nem pela minha amada...
(GIEBEL, Marion. Safo.Tradução de Maria Emilia Moura. Porto: Distri Editora, 1980. p. 37)

Semelhante aos deuses me parece


O homem que diante de ti se senta

79
INICIAÇÃO À CULTURA
Clássica GRECO-LATINA E, tão doce, a tua voz escuta,
Ou terno riso – que tanto agita
Meu coração de súbito, pois basta ver-te
Para que não atine com o que digo,
Ou a língua se me torna inerte.
Um sutil fogo me percorre a pele,
Deixam de ver os meus olhos, zunem meus ouvidos,

O suor inunda-me o corpo de frio,


E tremendo toda, mas verde que as ervas
Julgo que a morte não pode já tardar
(GIEBEL, Marion. Safo.Tradução de Joachim Schikel Porto: Distri Editora, 1980, p. 77).

PLAUTO (Poen. 1-35) - Prólogo de O cartaginês,


como o apresenta Zélia de Almeida Cardoso em A Literatura Latina.
Estou com vontade de imitar o Aquiles de Aristarco:
Vou usar o mesmo começo daquela tragédia:
“Façam silêncio, calem-se e prestem atenção:
Quem ordena que você ouçam e o rei da Histri...onice”.
Sentem-se em seus bancos com boa disposição de espírito:
Tanto os que não comeram como os que estão de barriga cheia.
Os que não comeram, que se fartem, agora, com a comédia.
Quem tinha o que comer, puxa vida!
Foi burrice ter vindo sem comer.
Vamos, anunciador, mande o pessoal prestar atenção.
Faz horas que estou esperando que você faça a sua parte.
Use a sua voz; é ela que lhe dá meios de vida e de comida.
Se você não falar, morrerá de fome, calado.
[...]
E vocês, agora, observem minhas ordens:
Que nenhuma prostituta se sente aqui na frente.
[...]
Que os escravos não ocupem o lugar dos homens livres,
[...)
Que as amas cuidem das crianças pequenas em casa,

80
A Cultura Latina
em vez de trazê-las para verem o espetáculo;
assim elas não precisam sentir sede, as crianças não morrem de fome
e não berram aqui, como cabritos desmamados;
que as senhoras vejam o espetáculo em silêncio, que
riam silenciosamente,
e que saibam moderar, aqui, o ruído de suas vozes esganiçadas;
que elas tagarele em casa para que, ao menos aqui,
não irritem os homens como fazem quando estão em casa.
(CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura Latina. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 31-32).

CATULO - Carmina
Carmen 85 Poema 85
Odeio e amo. Talvez tu me perguntes porque pro-
Odi et amo. Quare id faciam, fortasse requiris.
cedo assim.
Nescio, sed fieri sentio et excrucior Não sei, mas sinto isto dentro de mim e me angustio.

Carmen 05 Poema 05
Vivamos, minha Lésbia, amemo-nos,
Viuamus, mea Lesbia, atque amemus,
E a todas as censuras dos velhos demasiada-
rumoresque senum seueriorum mente austeros,
omnes aestimemus unius assis. demos o valor de um único asse.
Os sóis podem se pôr e retornar;
Soles occidere et redire possunt; Quando, porém, numa única vez a breve luz
Nobis cum semel occidit breuis lux, 5 De nossas vidas desaparece no ocaso,
somos obrigados a dormir uma noite sem fim.
Nox est perpetua una dormienda.
Dá-me mil beijos, depois cem,
Da mi basia mille, deinde centum, e a seguir outros mil e mais cem
e depois ininterruptamente outros mil e mais cem.
Dein mille altera, dein secunda centum.
A seguir, depois que tivermos trocado estes mui-
Dein, cum milia multa fecerimus, tos milhares de beijos
conturbabimus illa, ne sciamus, 10 alteraremos a soma deles para que não saib-
amos quantos foram
aut nequis malus inuidere possit,
ou para que nenhum invejoso possa
cum tantum sciat esse basiorum. nos lançar uma mau-olhado quando
souber exatamente o número destes beijos.

(CATULO/CATVLLVS. O Cancioneiro de Lésbia. Tradução de Paulo Sérgio de Vasconcelos. São Paulo: Hucitec, 1991, p.38-39; 64-65.

81
INICIAÇÃO À CULTURA
Clássica GRECO-LATINA
CÍCERO - Excerto do tratado intitulado De Senectute (Sobre a velhice).
Nesse trecho, Catão, o Censor, compara a mocidade e a velhice.

SOBRE A VELHICE, 19-23.


Breve é o tempo da vida,mas longo bastante para se viver bem e honesta-
mente; porém, se formos mais longe, não deve ser isto para nós razão de má-
goa, como para o lavrador não o é o ter passado o suave tempo da primavera e
ter alcançado o estio e o outono. A mocidade é como a primavera, que promete
os frutos; nas outras estações se fazem as colheitas. Os frutos da velhice são,
como tenho dito, a memória e a abastança dos bens adquiridos.
Tudo o que é feito segundo a natureza, deve ser tido por bom. Ora, que
coisa é mais natural do que morrer na velhice? Na mocidade, porém, é contra a
natureza. Morrer moço se me afigura como apagar uma chama a poder de água;
na velhice é extinguir-se o fogo por si mesmo, sem violência. Os frutos ainda
verdes não se despegam da árvore sem emprego de força; os maduros caem por
si: assim os moços morrem violentamente, e aos velhos vai-se a vida pela sua
maturidade. A mim é esta já tão suave que, ao aproximar-me da morte, parece-
-me, após longa navegação, avistar terra e ir-me recolher ao porto.
(Cícero. Poetas e prosadores latinos: ideias da antiguidade. Tradução de Leopoldo Pereira. Rio de Janeiro: Tecnoprint, [19--?]. p. 119).

VIRGÍLIO – Eneida – Canto IV – Excerto: o suicídio de Dido


E já as terras eram inundadas com a nova luz da Aurora [...] quando a rainha,
do alto do palácio, vendo a limpidez do dia que começava a surgir e a frota
que se afastava com as velas enfunadas, percebeu que a praia estava deserta e
o porto sem remadores. Três e quatro vezes, com sua mão feriu o belo seio e
arrancou os loiros cabelos: “Ai de mim! Júpiter, ele partirá” [...]
Tanto pior! Que tenho a perder, resolvida que estou a morrer? [...]
... fremente, exasperada pelo seu monstruoso desígnio, Dido, volvendo os
sanguíneos olhos, as faces trêmulas e semeadas de lívidas manchas, pálida pela
proximidade da morte, lança-se para o interior do palácio, sobe, furiosa, os
degraus da fogueira e desembainha a espada dardânia [...]... entregouse um
momento às lágrimas e aos seus pensamentos, deitou-se no leito e proferiu as
últimas palavras: “[...] Vivi e terminei a missão que a Fortuna me tinha dado, e
agora a minha sombra irá grande para de baixo da terra. [...] Feliz fora se nunca
os navios troianos tivessem tocado os nossos litorais”. Disse e, tendo-se lançado

82
A Cultura Latina
sobre o leito, beijando-o “Morreremos sem vingança, mas morramos”, diz. [...]
Dissera; e, enquanto ainda falava, suas damas vêem-na caída sobre o ferro;
vêem a espada espumando com sangue e as mãos desfalecentes.
(In VIRGÍLIO, Eneida, Tradução Tassilo Orpheu Spalding. São Paulo: Cultrix, 1999.

HORÁCIO - POEMAS *2

CARMINA HORATII, I, 11 ODES DE HORÁCIO I, 11


Tu ne quaesieris (scire nefas) quem mihi, quem Não buscarás, saber é proibido, ó Leucônoe,
que fim reservarão a mim, a ti os deuses:
tibi
nem mesmo os babilônios números per-
finem Di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
scrutes...
temptaris numeros. Vt melius quicquid erit pati! Seja lá o que for, é melhor suportar!
Seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam, Quer Júpiter nos dê ainda mil invernos,
quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare quer venha a conceder apenas este último,
Thyrrhenum, sapaias, uina liques et spatio que agora estilha o mar Tirreno nos penhascos,
tem siso, os vinhos vai bebendo, e a esperança,
breui
de muito longa, faz caber em curta vida.
spem longam reseces. Dum loquimur, fugerit
Foge invejoso o tempo, enquanto conversa-
inuida mos.
aetas: carpe diem, quam minimum credula Colhe o dia de hoje e não te fies nunca,
postero um momento sequer, no dia de amanhã...
(Trad. Prof. Ariovaldo A. Peterlini, - USP)

Carmina I, 4. Odes I, 4.
Soluitur acris hiems grata uice ueris et Fauoni Esvai-se o rigoroso inverno com a volta aprazível da
trahuntque siccas machinae carinas, primavera e dos zéfiros
e os barcos, da terra seca, são impelidos ao mar;
ac neque iam stabulis gaudet pecus aut arator igni
não se aquece mais a ovelha nos estábulos, nem o
nec prata canis albicant pruinis. lavrador ao pé do fogo
Iam Cytherea choros ducit Venus imminente luna nem os campos branqueiam com a alva neve.
Iunctaeque Nymphis Gratiae decentes Vênus, a Citérea, já traz seu cortejo sob a luz da lua
Alterno terram quatiunt pede, dum graues Cy- e as Graças elegantes, unidas às Ninfas,
clopum embalam a terra ritmadamente, enquanto Vulca-
no, ardente,
Vulcanus ardens urit officinas.
inflama as rubras forjas dos Cíclopes.
Nunc decet aut uiridi nitidum caput impedire myrto É bom, agora, cingir os cabelos brilhantes com
aut flore, terrae quem ferunt solutae; verde coroa de mirto
nunc et in umbrosis Fauno decet immolare lucis, ou de flores, que a natureza generosa produz;
seu poscat agna siue malit haedo. é bom, nos bosques verdejantes, imolar a Fauno
Pallida mors aequo pulsat pede pauperum taber- quer seja uma ovelha, quer seja um cabrito.
nas A pálida morte bate, igualmente, às portas das tav-
ernas dos pobres
regumque turres. O beati Sesti,
Ou dos castelos dos reis. Ó feliz Séstio,
uitae summa breuis spem nos uetat inchoare lon- a vida é, enfim, tão breve que nos impede acalen-
gam. tar grandes esperanças
Logo pesarão sobre ti a noite e os Manes, estes
fantasmas,

2 - Os textos latinos dos poemas de Horácio são extraídos de HORACE, Oevres, publiés par F.
Plessis et P.Lejay. Paris: Hachette et Cie., 1909. A tradução da Ode I, 11 foi retirada de: NO-
VACK (Org.). Poesia Lírica Latina. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
A tradução das Odes I, 4 e I, 9 são do autor deste livro.

83
INICIAÇÃO À CULTURA
Clássica GRECO-LATINA Iam te premet nox fabulaeque Manes e a casa ilusória de Plutão, na qual, tão logo
et domus exilis Plutonia, quo simul mearis, chegares,
Nec regna uini sortiere talis Não tirarás na sorte seres rei do banquete,
Nem terás olhos para o gentil Licidas, a quem hoje
nec tenerum Lycidam mirabere, quo calet iuventus
toda a mocidade
nunc omnis et mox uirgines tepebunt. cobiça, e por quem logo as moças arderão de
amor.
(Trad. Prof. Aécio F. Carvalho - 05/11/99)

Carmina 1, 9 Odes 1, 9
Vides ut alta stet niue candidum Vê como se alteia, branco de densa neve,
Soracte nec iam sustineant onus o Sorate; como as florestas, curvando as comas,
não mais sustêm tanto peso
siluae laborantes geluque
e como os rios cristalizam-se em gelo espesso?
flumina constiterint acuto? Dissipa o frio alimentando a fogueira
Dissolue frigus ligna super foco com muita lenha e, mais generosamente,
Large reponens atque benignius ó Taliarca, manda servir, de uma ânfora sabina,
deprome quadrimum Sabina, um vinho de quatro anos.
o Thaliarche, merum diota. Tudo o mais, deixa-o aos deuses: assim que eles
acalmarem os ventos revoltos sobre o mar agitado,
Permitte diuis cetera, qui simul
nem os ciprestes,
strauere uentos aequore feruido nem os velhos freixos se agitarão mais.
deproeliantes, nec cupressi Como será o amanhã, não queiras saber;
nec ueteres agitantur orni. qualquer seja o dia que te der a sorte, como lucro
Quid sit futurum cras, fuge quaerere, et o tenhas, nem desdenhes
quem fors dierum cumque dabit, lucro ó jovem, os doces amores ou as danças,
adpone nec dulces amores enquanto longe ainda está da tua juventude
a velhice molesta. Agora, é o Campo de Marte, são
sperne, puer, neque tu choreas
as praças,
donec uirenti canities abest e são suaves sussurros à sombra da noite,
morosa! Nunc et Campus et areae que se sucedem no momento certo;
lenesque sub noctem susurri agora, é o riso agradecido da menina
composita repetantur hora, traindo o que ela esconde no âmago da alma;
nunc et latentis proditor intumo é um prêmio roubado dos braços
e das mão, simuladamente resistentes.
gratus puellae risus ab angulo
(Trad. Prof. Aécio F. Carvalho - 05/11/99)
pignusque dereptum lacertis
aut digito male pertinaci.

OVÍDIO - Tristia – Excerto


ARS AMATORIA, I,35-39; 42-44 A arte de Amar, I, 35-39; 42-44
Principio, quod amare velis reperire labora, Se vais para o amor como quem vai
pela primeira vez ao fogo das pelejas,
Qui nova nunc primum miles in arma venis.
trata de procurar, antes de mais,
Proximus huic labor est placitam exorare puellam; aquela a quem desejas.
tertius, ut longo tempo duret amor. Trata depois, então, de conquistar
o coração da jovem
que elegeste entre as demais mulheres.
E trata finalmente, em último lugar,
de esse amor prolongar o mais que tu puderes.

Elige cui dicas: “Tu mihi sola places.” Elege, pois, aquela a quem dirás:
Haec tibi non tenues veniet delapsa per auras; “Só tu me podes agradar.”
Todavia não julgues que ela vá
Quaerenda est oculis apta puellis tuis.
Cair-te do céu, surgir do ar...
Terás com teus olhos procurá-la,
Se por fim a desejas encontrar.

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A Cultura Latina

Ruinas do anfiteatro de Epidauro-Grécia, fotografada pelo autor

Ruinas (parte interna) do Coliseu em Roma, fotografadas pelo autor.

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INICIAÇÃO À CULTURA
Clássica GRECO-LATINA

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INICIAÇÃO À CULTURA
Clássica GRECO-LATINA

Anotações

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