CPST 183492 3P
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Este artigo analisa a atuação do trabalho como dispositivo de inclusão e exclusão na criminalidade, a partir das histórias
de vida de um ex-interno do Sistema Socioeducativo e egresso do Sistema Prisional da Região Sudeste do Brasil. Trata-se
de um estudo qualitativo, por meio do método biográfico, que considerou os relatos da história de vida de um sujeito do
gênero masculino. Recolhidos a partir de entrevistas em profundidade, os relatos foram analisados por meio da técnica
de análise de conteúdo. Foi possível compreender o trabalho como um dispositivo que paradoxalmente opera tanto na
inclusão, quanto na exclusão de um indivíduo na criminalidade. O sujeito é incluído em atividades lícitas, na vida de
trabalhador de boa conduta, e simultaneamente na vida de trabalhador-traficante, que pratica atividades ilícitas por
meio da criminalidade. O trabalho não atua como uma poção mágica na exclusão da criminalidade; e não cumpre esse
papel de salvador para os sujeitos considerados (ex)criminosos. O dispositivo trabalho não pode ser visto como uma
panaceia que vai dar conta da fragilidade de tantos outros que atuam na sociedade e por ela são produzidos.
Palavras-chave: Socioeducação, Trabalho, Prisão.
Work as a power device in the socio-educational context: a magic potion for the devil’s workshop?
This study aims to analyze the role of work as a device for criminality inclusion and exclusion based on the life stories of
a former intern in the Brazilian Socio-Educational System who egressed from the Prison System in Southeastern Brazil.
This qualitative study used the biographical method, considering a male subject’s reports of his life history. Collected
from in-depth interviews, reports were analyzed via the content analysis technique. We managed to understand work
as a device which paradoxically operates in an individual’s inclusion into and exclusion from criminality. The subject
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is included in lawful activities, in the life of a worker with good conduct, and simultaneously included in the life of a
worker-dealer who practices illegal activities via criminality. Work neither acts as a magic potion which excludes crime
nor fulfills the role of savior for considered (ex)criminals. We must refrain from seeing the working device as a panacea
which will account for the fragility of so many other devices operating in and stemming from society.
Keywords: Socio-education, Work, Prison.
1 Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no “XXIII Semead – Seminários em Administração” em novembro de 2020.
2 https://orcid.org/0000-0002-5746-7571
3 https://orcid.org/0000-0002-0775-7757
1
O trabalho como dispositivo de inclusão e exclusão na criminalidade: uma poção mágica para a oficina do diabo?
Introdução
A história das prisões é um capítulo singular que denuncia mudanças capitalistas de produção
no século XX e revela novos meios de controle sobre o proletariado. A criminologia moderna
elucida as funções sociopsicológicas da punição e considera que (sobre)viver dentro da prisão resulta
em um nível de vida pior que o da classe trabalhadora (Melossi, 2014). Entretanto, a utilidade da
prisão em prol da transformação dos indivíduos justificou-se por meio de técnicas disciplinares como
o isolamento individual, a hierarquia, o trabalho obrigatório, a normalização, a cela e, em suma,
o sistema penitenciário (Foucault, 1975/2013).
O capitalismo flexível, que atua no mundo do trabalho contemporâneo, caracteriza-se
pela desqualificação, precarização, negação de direitos, insegurança e instabilidade. Portanto,
a marginalidade e condições precárias de subsistência são vistas muitas vezes como efeito de uma
vontade pessoal de recusar o trabalho; e não como imperativo de um sistema produtivo seletivo e
excludente (Barros, 2005).
O posicionamento dominante – econômico e de gestão – reflete fragilidades simbólicas e sociais
por meio da desregulamentação e desconstrução dos coletivos de trabalho, estas são sustentadas
pela realidade organizacional (Lhuilier, 2002). Cotidianamente, a função política do trabalho sofre
distorções e transformações em prol de estratégias de dominação social, exploração e submissão às
condições laborais precárias (Barbalho & Barros, 2010). Destarte, a ausência de políticas públicas
evidencia as tramas de um sistema que se (retro)alimenta das dificuldades para se conseguir um
emprego, da desordem e da marginalidade (Barros, 2005).
Nesse cenário, no seio das instituições que organizam a sociedade, encontra-se a socioeducação,
recorte para analisar o dispositivo trabalho neste artigo. É válido ressaltar que a socioeducação,
a partir da execução da medida de internação, é a privação de liberdade para adolescentes que
cometeram ato infracional e passam a ser acompanhados judicialmente4, tal internação é vivenciada
em uma Unidade de Atendimento Socioeducativo (Lei nº 8.069, de 13 de julho 1990).
O período de seis meses a três anos de internação é determinado pelo judiciário (infância e
juventude) (Baquero et al., 2011), legitimando o tratamento tutelar via Estado para punir e privar
o(a) adolescente considerado(a) desviante-delinquente do convívio social (Melo & Souza, 2019).
É válido salientar que o trabalho é objeto de uma discussão no cerne da comunidade científica, em que
se enfrentam perspectivas diferentes em relação às definições correspondentes ao conceito: do lugar,
das funções, do papel do trabalho para a sociedade e os sujeitos que a produzem (Lhuilier, 2002).
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), estabelecido pela Lei nº 8.069, de 13 de julho
de 1990, determina que serão aplicadas aos adolescentes que cometem atos infracionais medidas
pedagógicas socioeducativas que visam sua ressocialização (Coutinho et al, 2011) e pesquisas
sobre o tema analisam, por exemplo, (1) aspectos educacionais relacionados à socioeducação
(Araújo, 2018; Freitas, 2021; Siqueira et al., 2022); inclusive a (2) alocação (ou o encaminhamento)
de adolescentes infratores em processo de ressocialização que apresentam altas habilidades ou
superdotação intelectual (Figueiredo & Fernandes, 2022); e (3) a socioeducação como dispositivo
de poder disciplinar (Melo & Souza, 2019). Assim, este artigo pretende contribuir com o debate
ao analisar as relações entre socioeducação e trabalho.
Portanto, este estudo torna-se relevante ao trabalhar os seguintes aspectos: a) ampliar as
discussões sobre a função social do trabalho (Lhuilier, 2002); b) debater a premissa da seletividade
e exclusão no cerne do mundo do trabalho (Barros, 2005); c) discutir o reflexo da socioeducação
brasileira, a partir da realidade prisional do país e as altas taxas de reincidência (Almeida &
4 Internação é uma medida socioeducativa prevista nos artigos 112 e 121 a 125 do ECA, executada em uma Unidade de Atendimento
Socioeducativo, aplicada pelo Juizado da Infância e da Juventude a adolescentes autores de atos infracionais (Lei nº 8.069/1990).
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Mansano, 2012), a rotulação e exclusão vivenciadas por egressos do sistema prisional (Barbalho &
Barros, 2010), a desvalorização da mão de obra da população carcerária e a atuação empresarial
e o papel do trabalho como recurso no combate à criminalidade (Barros, 2005); e d) apresentar a
carência de estudos que problematizam o dispositivo trabalho, a partir das histórias de egressos do
sistema prisional (Barros et al., 2015) e socioeducativo (Melo & Souza, 2019).
Em função do exposto anteriormente, o objetivo deste artigo é analisar a atuação do trabalho
como dispositivo de inclusão e exclusão na criminalidade, a partir das histórias de vida de um
ex-interno do Sistema Socioeducativo e egresso do Sistema Prisional da Região Sudeste do Brasil5.
O artigo será assim organizado: primeiramente serão apresentados os principais conceitos
relacionados ao trabalho e à prisão. Posteriormente, apresentaremos os caminhos metodológicos
percorridos para se realizar este estudo. Por fim, serão expostas as análises sobre duas categorias:
(1) “trabalhando e investindo um dinheiro no negócio” e (2) “mente vazia é oficina do diabo
trabalhar”, que foram identificadas a partir das histórias de vida do sujeito pesquisado, seguidas
das principais considerações.
Do tripalium à panaceia6
5 A partir do entendimento foucaultiano, dispositivos são estratégias de relações de forças que estabelecem relações de sustenta-
ção com saberes. É um conjunto heterogêneo – instituições, medidas administrativas, discursos, enunciados científicos, decisões
regulamentares, organizações arquitetônicas, leis, proposições filosóficas, morais, filantrópicas – que tem por elementos o dito e o
não dito (Foucault, 1979). Assim, os dispositivos produzem discursos e regulam certas regras de conduta (Souza, 2014; Souza &
Bianco, 2011).
6 A origem etimológica da palavra trabalho, o latim tripalium, significa instrumento de tortura. Neste contexto, o indivíduo que tra-
balhava estava relacionado a um estado de sofrimento. Atualmente, o sentido de trabalho evoluiu, mas ainda se conserva a noção
de esforço, afinal, é uma atividade que se apoia no desprendimento de energia em prol de um objetivo (Lhuilier, 2002).
7 No presente estudo, adota-se o entendimento do trabalho como atividade social que contribui com a constituição do sujeito,
sendo que esta pode ser remunerada ou não (Lhuilier, 2002) e, nesse caso, pode ser lícita ou ilícita.
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O trabalho como dispositivo de inclusão e exclusão na criminalidade: uma poção mágica para a oficina do diabo?
Trabalhador ou criminoso?
A prisão é uma invenção desacreditada desde que nasceu. Ela está enterrada no meio de
dispositivos, relações de forças e estratégias de poder (Foucault, 1975/2013). Atualmente, a opinião
difundida é que a instituição prisão tem uma longa história de utopias e reinvenções e, portanto,
funcionaria. Porém, neste caso, não como mecanismo de reabilitação, mas como instrumento
neutralizante e retributivo da punição, respondendo às exigências políticas populares que clamam
por segurança pública e punições mais severas (Garland, 2008).
Segundo Foucault (1975/2013), no lugar da encenação carnal e sanguinária, ouve-se o barulho
maçante das fechaduras à sombra das celas prisionais. Saem de cena os corpos condenados, que agora
são escondidos. Serão adestrados, e não mais assassinados, afinal, essas almas serão reeducadas.
Com efeito, de justiça em justiça, percebe-se a alternância na própria organização do poder. O alarde
supliciante não se opõe à mudez da reclusão. Se na monarquia absoluta o criminoso se defrontava
com o poder aniquilante do rei – lembrando a todos sua força infinita –, no século das Luzes,
ou Iluminismo, ao cometer um crime, o homem violava o contrato que o conectava aos seus
semelhantes e, consequentemente, a sociedade se obrigava a afastá-lo e adestrá-lo, controlando
com precisão: fatos, gestos e momentos de sua nova vida no cárcere.
Os criminosos serão punidos e, do mesmo modo, haverá reconhecimento das razões de
tal punição, assim, a vigilância da polícia fornece à prisão os infratores e esta os transforma em
delinquentes e reincidentes. A detenção e o encarceramento caracterizam o castigo no jogo de
forças que reforça o temor a pena e apresenta as desvantagens do crime ao criminoso. É esse castigo
que pretendia impedir a reincidência no século XVIII (Foucault, 1975/2013).
Na instituição carcerária, a punição é uma técnica coercitiva que treina o corpo e institucionaliza
o poder de punir, justificado por uma função social geral. Assim, a reclusão possibilita o controle
do tempo, silêncio, movimentos, atividades, trabalho e boa conduta, ou seja, essa nova técnica de
corrigir se propõe a reconstruir o sujeito obediente em um indivíduo que está sujeito às ordens,
regras, autoridade e poder (Foucault, 1975/2013).
Para o código penal brasileiro, o menor infrator é inimputável, ou seja, o menor de dezoito
anos é considerado como incapaz de cometer de fato um crime. Apesar disso, é atribuído a ele a
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capacidade de praticar ato infracional equiparado ao crime, estando sujeito às medidas estabelecidas
pelo ECA (Silveira, 2020). Estas medidas não possuem o caráter de uma pena, configurando-se
como medidas socioeducativas. Neste sentido, o ECA prevê a aplicação de medidas socioeducativas
aos menores infratores com idade entre 12 e 18 anos, podendo estas variarem desde medidas em
meio aberto até medidas em meio fechado, com restrição de liberdade, de acordo com a infração
cometida (Silveira, 2020).
Assim, apesar do caráter socioeducativo destas medidas, no Brasil, os menores infratores
estão sujeitos a penas restritivas de liberdade. O encarceramento visa satisfazer as necessidades de
punição e, ao mesmo tempo, promover a ressocialização desses menores. Contudo, nem sempre
isto ocorre, principalmente devido às instituições de ressocialização não valorizarem sua dignidade
humana (Follone et al., 2021). Os menores infratores têm uma representação destas instituições
de reclusão como símbolo de sofrimento para eles e não de um local que propicie uma nova
forma de vida, o que produz neles um sentimento de fracasso social (Coutinho et al., 2011).
Além disso, a população brasileira tem dificuldade em aceitar o menor infrator, principalmente
jovens reincidentes do delito cometido, fazendo com que os seus processos de ressocialização sejam
envolvidos por estigmas que os dificultam ainda mais (Freitas, 2021). Desta forma, menores infratores
da lei são marcados pela sociedade como sendo pessoas de alta periculosidade e extremamente
violentos (Andrade et al., 2020). Esse processo de desvalorização e desqualificação social desses
jovens produz neles um sentimento de que não pertencem à sociedade, aumentando a resistência
ao processo de ressocialização (Coutinho et al., 2011).
Em função do exposto anteriormente, é válido sublinhar a maneira que a sociedade
delimita o antagonismo entre criminoso e trabalhador. Ou se é criminoso, ou se é trabalhador
(Barbalho & Barros, 2010). Desse modo, questiona-se o trabalho como “recurso no enfrentamento
da criminalidade, como transformador de ‘classes perigosas’ em classe trabalhadora, e as contradições
que tal proposta contém” (Barros, 2005, p. 53). Logo, a carteira de trabalho assinada, expressão do
emprego formal, figura-se como instrumento de controle de pessoas, legitimando a dicotomia que
produz o sujeito (ou é trabalhador, ou é criminoso) (Barros, 2005). Cabe ressaltar a atuação dos
aparelhos repressivos, que operam a suspeição especial direcionada a que não tem como provar
que é um cidadão ou um indivíduo trabalhador (Barros, 2005).
Outrossim, o trabalho no tráfico de drogas, ainda que ilegal, é uma possibilidade entre poucas
alternativas para os sujeitos desqualificados – que não atendem o perfil do mercado de trabalho
legal (Faria & Barros, 2011). Observa-se “um quadro de expressivo aumento no número de pessoas
aliciadas pelo tráfico de drogas, cujas atividades são submetidas a um processo de organização
hierárquica, produtiva e comercial, com delimitação de mercado” por meio da força e violência entre
grupos (Faria & Barros, 2011, p. 536). Ademais, o tráfico é um meio social que não faz exigências do
mercado neoliberal; oferece sucesso financeiro e consumo, mesmo que, para isso, os sujeitos tenham
que exercer atividades ilícitas. Ora, vislumbra-se driblar o sistema excludente e, simultaneamente,
ser incluído, mesmo que à margem. Nesse sentido, o tráfico de drogas apresenta três dimensões que
o entrelaçam à discussão do trabalho: a) sua íntima relação com a economia neoliberal; b) a busca
por reconhecimento; e c) o funcionamento da organização (Faria & Barros, 2011).
Caminhos percorridos
Este artigo é um estudo de cunho qualitativo (Creswell, 2003), por meio do método biográfico,
tendo proposta metodológica fundamentada em uma perspectiva dialógica (recolhimento em história
de vida – que valoriza a fala, a escuta, a troca, a reflexão sobre a trajetória do sujeito entrevistado)
(Barros et al., 2015).
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O trabalho como dispositivo de inclusão e exclusão na criminalidade: uma poção mágica para a oficina do diabo?
A partir da perspectiva da inclusão social laboral e preparação do sujeito para ser útil,
este capítulo considera as histórias vividas pelo sujeito de pesquisa após ter recebido a autorização
para cumprir a medida socioeducativa de internação na Casa de Inclusão Social (CIS); tal recorte
justifica-se pelo fato da CIS se configurar como o local que oportunizou acesso ao trabalho (formal)
via socioeducação. Observa-se um recrutamento e produção do sujeito delinquente dócil e útil,
que deve viver a vida de socioeducando em inclusão social e laboral, afinal ele é preparado para
isso, como se o trabalho fosse parâmetro real para o juízo de boa conduta.
8 Este artigo é originado da pesquisa de mestrado aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa – Parecer nº 48071315.4.0000.5542.
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Eu gostava de trabalhar lá, fui aprendendo igual, mexer com chapa, com lanche, eu não sabia (F.).
É nesse espaço que o trabalho instiga a busca pela identidade e conduz o sujeito à singularidade,
por meio de suas práticas, com representação e utilização de si (Lhuilier, 2002).
E aprendi rápido, a dona de lá gostava de mim, eu era o garoto mais dedicado lá (F.).
9 Felipe estava cumprindo medida socioeducativa de internação no CI por tráfico de drogas – um dos atos de maior reprovação por
parte do Estado/sociedade (Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990).
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O trabalho como dispositivo de inclusão e exclusão na criminalidade: uma poção mágica para a oficina do diabo?
Não queria contar que tinha cometido um ato tipificado como infracional, tampouco citar
que estava privado de liberdade.
Ademais, não conseguir realizar a troca sobre o trabalho, sobre o que somos e fazemos, implica
o confronto solitário com o real e a busca por um significado (Lhuilier, 2002) das práticas sociais.
Até que um dia:
No horário de café, aí vieram me perguntar de novo, aí eu fui e falei, abri o jogo que eu estava
cumprindo uma medida de um ato que eu tinha cometido, e aqueles cara ali eram agente do Sistema
que eu estava cumprindo, estavam me acompanhando né mano10 (F.).
Aí eles ficaram meio assim, mais, assim outras pessoas lá me olharam estranho, mais, na maioria das
vezes, tratava como tratava todo mundo né? Eu não dava motivo, não intimidava ninguém, ficava
mais na minha, fazia meu serviço11(F.).
Desse modo, a atividade de trabalho tem uma marca fundamentalmente social, pois não pode
ser reduzida apenas aos desejos individuais.
O trabalho como dispositivo realiza-se com os outros e para os outros, torna-se uma
relação simbólica entre sujeitos; inscrita socialmente num grupo de pertença que condiciona
o reconhecimento e validação das práticas sociais. Trabalhar em conjunto requer articulação da
atividade e construção da cooperação entre os sujeitos (Lhuilier, 2002).
Felipe começou a ir para casa da mãe todo final de semana, o que era considerado estímulo
do programa CIS, mas ele ainda estava cumprindo medida socioeducativa de internação.
Falei, o dia que cantar minha autorização pra mim ir pra casa, eu chego quietinho lá no barraco lá e
fico tranquilo 12 (F.).
Em relação aos procedimentos para autorização de convivência familiar aos finais de semana,
o socioeducando informou para a equipe técnica que não tinha nenhuma restrição de saída13.
Eu falei que podia né? Tinha um certo risco, mas, para não perder minha oportunidade, meu final de
semana em casa, eu falava que estava tudo tranquilo. Tinha algumas pessoas que me representava
perigo lá sim (F.).
Felipe não tem consigo próprio o mesmo arquétipo de relação que o constitui como sujeito
socioeducando, sujeito traficante, sujeito filho, sujeito namorado, sujeito trabalhador e sujeito
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estudante, pois são tais formas de sujeito que sustentam os jogos de verdade (Foucault, 1979, 1975/2013)
que o produzem.
Não queria falar com a equipe que eu tinha um certo problema porque fiquei com medo deles querer
travar a minha ida para casa. Fiquei quieto e falei pra minha família ficar quieta também (F.).
Felipe relembra que, antes de receber a medida socioeducativa de internação, tinha guerra
do tráfico no bairro que morava com sua mãe. Ao retornar para casa aos finais de semana:
Ficava com receio assim de sei lá, alguém armar uma croca14 para mim. Não estava, vamos dizer,
dando mole no meio de rua, eu ficava mais entocado, observando os outros, os outros não me via,
eu via o outros (F.).
É válido ressaltar que antes de passar o primeiro final de semana em casa, Felipe conversou
com outro socioeducando, que também estava cumprindo medida socioeducativa no programa CIS:
Ele tinha uma pistola e também tinha um 38 que ficava do lado de fora. Falei com ele daquela situação
ali, eu sem arma ali . . . ele foi e me emprestou (F.).
Incluído novamente na criminalidade, o socioeducando Felipe relata que sua mãe “não
gostava”, mas não contava para a equipe técnica o que acontecia em casa nos finais de semana.
Ela viu que eu estava tempo demais, tempo demais preso, eu tinha que curtir memo. Na mente dela,
eu estava só curtindo só, só que já tinha outras coisas acontecendo já por fora (F.).
Após idas e vindas para casa, Felipe retoma sua atuação no tráfico, na criminalidade:
Depois de uns quatro, cinco meses na CIS, eu estava indo pra casa e retomei a amizade de alguns amigos
que tinha lá, e alguns caras de outra facção que me representava mais perigo estavam presos (F.).
Inserido numa das indústrias mais rentáveis do mundo, o tráfico de drogas, um mercado ilegal
(Faria & Barros, 2011), Felipe afirma que:
Fui pensando, fui sondando a área, fui vendo, estava fraco o movimento lá, e eu estava trabalhando
e investindo um dinheiro no negócio lá e larguei nas mãos do moleque. E acabei me aprofundando
mais ainda no tráfico (F.).
Ele foi se reintegrando aos poucos na sociedade como traficante, pois sempre é possível
encontrar uma forma de ingresso (Melossi, 2014).
Evidencia-se que Felipe nomeia as atividades exercidas na padaria como trabalho, e as executadas
no tráfico são identificadas como negócio. Assim, o trabalho é visto como atividade lícita e o negócio
como ilícita, que requer investimento (fruto do trabalho), concede sentido e reconhecimento à
sua existência, além de romper com a dicotomia trabalho ou crime. Ao mesmo tempo em que
o dispositivo trabalho disparou estratégias para exclusão da criminalidade, como a inserção no
trabalho formal da padaria, ele também permite a inclusão na criminalidade, pois o dinheiro que o
socioeducando recebia como pagamento pelo trabalho era revertido em investimento no tráfico de
14 Cilada.
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O trabalho como dispositivo de inclusão e exclusão na criminalidade: uma poção mágica para a oficina do diabo?
drogas. Nesse sentido, o sujeito segue atuando, pois o dispositivo trabalho para Felipe ora é meio
para saída da ilegalidade, ora é meio para inclusão na ilegalidade:
Meu celular ficava na rua, tinha uns matos assim, eu só levantava uma moita, jogava o celular assim
por baixo, jogava ele dentro de uma camisinha assim, amarrava, para se caso molhasse, não afetasse o
celular15. Com o celular, eu monitorava e traficava, vamos ser bem específico, estava começando a me
levantar de novo, aos poucos. Se levantar é se erguer, começar a ganhar dinheiro de novo, ter minhas
coisas de novo e voltar meu negócio para o meu bairro (F.).
Que ali, querendo ou não, eu tinha uns, tinha uns pequenos aliados ali dentro. Eu arrumei um pó,
uma cocaína, endolei tudo e dei na mão dos garotos lá, na época de CIS ainda (F.).
Além disso, tais negócios incluem indivíduos que são excluídos do jogo das relações sociais
neoliberais (Barbalho & Barros, 2010).
Com o silêncio da família de Felipe e um vantajoso jogo de verdades, ilegalidades e legalidades
(Foucault, 1979, 1975/2013) no programa CIS, o que o socioeducando mais queria era consumir
bens materiais, ter, ser reconhecido, ser visto, ser alguém:
Curtir, era mostrar para os outros que eu estava na condição ali, né? Na condição de comprar uma
bebida cara para tomar, de fazer um rock, de sair, de ter uma moto (F.).
Lograr bens de consumo desejáveis, duráveis e não duráveis, aqueles que não são acessíveis
a grande parcela da população (Garland, 2008), galgar o sucesso nas atividades ilícitas (Faria &
Barros, 2011) caracteriza o público juvenil em conflito com a lei (Baquero et al., 2011), que cumpre
uma medida socioeducativa.
Então eu deixei o dinheiro subir pra cabeça, só pensava em ganhar, só que eu ganhava e gastava (F.).
Uma rentabilidade fruto da exigência para conquistar um espaço de existência social e obter
reconhecimento no mundo econômico (Gaulejac, 1946/2007) é garantir seu lugar no negócio.
Com o apoio da equipe da CIS, Felipe conseguiu uma vaga para trabalhar de segunda à sexta
em uma empresa de reciclagem, carga e descarga de caminhões. E mais uma vez, o dispositivo
socioeducação oportuniza a inclusão no trabalho, com o objetivo de excluí-lo da criminalidade.
Após seis meses de trabalho na padaria, pediu demissão e mudou a rotina de escola e finais de
semana em casa.
Dava na sexta-feira assim de tarde, eu tinha satisfação de ir para casa, eu estava ficando mais à
vontade depois que eu fui para esse serviço (F.).
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Felipe relata que ficou pouco tempo na empresa de reciclagem, continuou estudando no CI,
aguardando o alvará na CIS sem trabalhar formalmente. O dinheiro que recebeu ao trabalhar
na padaria e na empresa de reciclagem, “investi no tráfico”, organizando sua vida em torno da
criminalidade (Baquero et al., 2011). Portanto, o tráfico de drogas é uma das opções contidas em
uma reduzida gama de escolhas a serem feitas, devido às inúmeras limitações e exclusões do cenário
socioeconômico (Barros et al., 2015; Faria & Barros, 2011).
Qualquer momento meu alvará ia chegar e como é que eu ia fazer? Eu estava preso e não tinha gastos
com nada né, que o Estado estava cobrindo tudo lá, alimentação, assim, não tinha essa preocupação.
Foi por isso também que, que eu retomei o tráfico lá, foi para me manter também, né? Se caso eu não
arrumasse emprego depois que eu saísse de alvará, alguma coisa eu ia ter que ter, né? Entende? (F.).
quando eu ganhei meu alvará, para mim foi a felicidade maior, quando eu ganhei meu alvará.16 (F.).
Eu saí da CIS, foi aí que desandou mesmo, depois que eu ganhei o alvará. Saí de alvará ali, já fiquei
muito acelerado vamos dizer, no começo até tentei trabalhar, assim, só que nada, dinheiro fácil falou
mais alto (F.).
Tal realidade é atroz e baliza a decisão dos egressos, sair ou continuar no crime, eis uma linha
tênue (Baquero et al., 2011).
16 Um julgamento fundamentado na análise técnica e avaliação embasada na decisão judicial, que determina a desinternação
(Almeida & Mansano, 2012).
17 Felipe recebeu o alvará no programa (CIS) e, logo, casou-se com a jovem Ana. Poucos meses depois, após um desentendimento
com a família dela, Felipe pediu a separação.
18 “Dechavo é você disfarçar num tem?”.
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O trabalho como dispositivo de inclusão e exclusão na criminalidade: uma poção mágica para a oficina do diabo?
de olho em mim”. Assim, ele se apresenta para a sociedade como cidadão trabalhador; (4) parte
do seu salário é investido no tráfico de drogas, “voltei para o crime do mesmo jeito, já estava no
crime na verdade. Trabalhando ali, mas eu estava envolvido, eu tinha uns meninos lá que vendia lá,
para mim lá na boca”; e (5) parte do lucro do tráfico de drogas era direcionado para as despesas
de casa. O envolvimento de jovens na rede de tráfico apresenta-se “como uma opção de trabalho
de remuneração alta, se comparada a outras, auxiliando na renda familiar ou financiando outros
interesses” (Carreteiro et al., 2011, p. 45).
Ao retornar para o bairro onde traficava, Felipe saiu do trabalho no supermercado e
Retomei o contato de Adriano. Dizem que ele faleceu já 19. Ele tava precisando também ganhar um
dinheiro, fazer uns corre (F.).
Depois que a gente tinha recolhido tudo dos clientes, na hora que a gente estava saindo, a viatura
cercou e pegou a gente. Nem um ano cheguei a ficar na rua não (F.).
Os policiais bateram bastante na gente e eu acabei sendo preso de novo... Para você vê, né, me deram
trabalho, me deram oportunidade de estar na sociedade assim, me inserindo aos poucos, só que assim,
eu fui fraco mesmo, né? ... O crime falou mais alto né? (F.).
Felipe foi preso e encaminhado ao sistema prisional20. Ficou preso por aproximadamente
19 Nome fictício de outro ex-socioeducando que conheceu no período que cumpriu medida socioeducativa de internação no CI.
20 Registra-se sua primeira passagem pelo sistema prisional para maiores de 18 anos de idade.
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um ano e quatro meses por aí... Acabei sendo condenado de novo e sofrendo bem mais, muito mais,
pior, tomando gás de pimenta na cara, tomando borrachada de agente, tomando cacetada nas costas...
era só humilhação, fi[lho]. (F.)
Eis a prisão, um ambiente que não propicia a recuperação do ser humano (Barbalho &
Barros, 2010) e não o reeduca como cidadão, ao contrário, oportuniza práticas ilegais e alimenta
altas taxas de reincidência (Pires & Palassi, 2008). Apesar disso, Felipe recebeu seu alvará de soltura
há mais de dois anos, “estou sem recair”, conta com a ajuda de sua família;
sou o filho mais novo, minha família aposta muito em mim ainda (F.).
tem mais de um ano que ela está aqui já, eu resolvi mesmo, na nossa língua, dar gelo, se afastar do
crime. Eu pensei, tem que ter uma pessoa do meu lado aí, né? (E.).
O que reforça o entendimento de que existem exceções a esta configuração do sistema prisional,
são egressos, ex-internos que, apesar de terem passado pela prisão, buscam na família, na religião e em
diferentes bases de apoio a ressocialização (Pires & Palassi, 2008) tão exigida pela sociedade.
Ela [Elizabeth] estava me pressionando bastante para eu abandonar o crime, para sair fora, largar tudo
para aqueles cara lá, para arrumar um emprego aqui, que era melhor para ficar junto com ela. Que ela
só ia ficar comigo se eu largasse num tem? Se eu largasse essa vida de crime, essas doideirada toda,
né? Aí eu fui e liguei para o moleque lá que ficava na boca, deixei ele na responsabilidade de tudo e
falei ‘decide que você faz aí, toma para você, estou dando para você aí’. Esse moleque, mataram ele
depois lá, um dos meus inimigos mataram ele (F.).
Felipe relata que abriu mão do tráfico de drogas, deixou seu legado, sua contribuição, sua morte
simbólica no negócio e, agora, pretende “cuidar da família, do garotinho pequeno, eu tenho uma
criança de quatro anos que eu cuido” (filho biológico de sua esposa), além disso, ele começou a
procurar trabalho em atividades lícitas, “porque mente vazia é oficina do diabo trabalhar, né?”.
Assim, o dispositivo trabalho oportuniza nova busca identitária, apoiando-se na necessidade que o
sujeito tem de criar laço social, de ser aceito pela sociedade como cidadão honesto, trabalhador com a
mente ocupada. Para ocupar a mente e não dar oportunidade para o “diabo trabalhar”, Felipe precisa
buscar e criar formas de se distanciar das supostas ações ilícitas (Carreteiro et al., 2011):
Minha mente pesa muito, num tem?22 Pesa em questão, igual eu volto a falar, de serviço, de ter
responsabilidade, né? Que querendo ou não eu tenho uma criança que eu cuido, né? Tenho uma
mulher dentro de casa, né? Tem as coisas que você tem que comprar, que não pode deixar faltar
nada… então assim, na vida do crime vinha tudo… tudo isso era fácil para mim, né? Mais agora
tá sendo difícil, tá sendo difícil pela falta de emprego e pelas estas questões também, né? Que as
vezes, quando começa a faltar alguma coisa dentro de casa e minha mente já começa ficar quente,
na hora que, o moleque começa a pedir as coisas e as vezes não tem, e minha mente já começa a ficar
mais atribulada, então, para mim, às vezes, é muito difícil né? (F.).
21 Felipe já conhecia Elizabeth desde a infância. Moravam no mesmo bairro e, após receber o alvará de soltura do Sistema Prisional,
eles se reencontraram e começaram a namorar. Depois de alguns meses, foram morar juntos.
22 A expressão “num tem?” é uma gíria capixaba.
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O trabalho como dispositivo de inclusão e exclusão na criminalidade: uma poção mágica para a oficina do diabo?
Enquanto isso, Felipe fez alguns “bicos” como ajudante de pedreiro e estava fazendo um
trabalho temporário de ajudante de pintor para a reforma da casa de um “tio de consideração”,
Sr. Mauro, que adotou um de seus irmãos na infância. Mas,
hoje em dia tem muita tentação ainda mano, muitos amigos me chamam para assaltar, para ficar na
boca de fumo vendendo droga (F.).
teve um momento que eu pensei em fazer alguma coisa, mas eu fui forte, para mim mesmo, fui forte
e segurei a barra, né? (F.).
Ele conta que tem medo de recair. Ora, as atividades exercidas no tráfico de drogas
oportunizavam reconhecimento e identidade para Felipe, logo, seu discurso traduz uma consciência
pessoal do crime, e não uma consciência material, social (Barbalho & Barros, 2010):
Hoje em dia, a falta de oportunidade assim, eu vejo, é muita dificuldade e também preconceito das
pessoas, num tem? Eu queria assim, arrumar um emprego, nem que fosse para bater marreta o dia todo
no chão. Porque você chega numa empresa assim, aí eles veem se você responde alguma coisa, e eu até
consigo o nada consta, mais, sempre tem pessoas ali que desconfia de você, puxa seu nome todo, vê que
você tem uma passagem e não te dá uma oportunidade pelo fato de você ter uma passagem. A juíza lá,
ela não quer saber de nada não, a vida dela está boa, né?! Tem carro, tem dinheiro, tem segurança,
vive bem, mais… o lado de quem passou no sistema, o lado de como essas pessoas vive do lado de fora
depois que sai, ela não quer saber, as dificuldades, o preconceito das pessoas arrumarem emprego, isso aí
ela não quer saber, ela não procura entender o lado da pessoa, ela quer que a pessoa leve sua justificativa,
leva o seu comprovante que está trabalhando e pronto. Ela acha que só o fato dela ter dado o alvará para
pessoa, ela acha que isso já resolve todos seus problemas… mais não é assim não! (F.).
Eu passei por cada uma, simplesmente por ter um alvará. É porque, na mente dos policiais, eu sou
bandido, né? Uma vez, eu vindo do serviço, tomei o maior tapão por cima do pescoço… só porque eu
mostrei o alvará, então você tem passagem, né? Aí, mandou eu ir. Peguei e fui, né?! (F.).
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deve se adequar ao sistema visto como normal. Nesse sentido, ele vivencia e experimenta regras
e normas que a sociedade definiu e, gradualmente, adquire jeito para se relacionar nos regimes de
verdades que permeiam o cotidiano vivido (Barbalho & Barros, 2010). Felipe conta que tem um
sonho de gravar as músicas que compõe, pois, ao ter acesso às atividades de arte e música no CI,
aprendeu a tocar “percussão e cavaquinho”, o que despertou interesse pela música.
O ser humano Felipe é um ser histórico, que é transformado por relações de poder e saber,
culturalmente, socialmente e politicamente23. A partir do meio ao qual pertence e das escolhas
que orientam sua vida pessoal e comunitária, tem-se uma historicidade que o influencia, mas não
retira as possibilidades de que ele ressignifique-se (Faria & Barros, 2011).
Por fim, entende-se que o sujeito (sobre)vive em meio ao paradoxo do trabalho lícito e
negócio ilícito, revisitando um desejo de trabalhar na área musical e/ou de educador em projeto
social. Isto posto, emerge um novo sentido laboral para Felipe, uma atividade lícita que pode
manifestar realização pessoal, reconhecimento, autoestima, autonomia, autoimagem; e, quiçá,
uma alternativa ao tráfico de drogas, acionando o trabalho (de forma que faça sentido para o sujeito)
como dispositivo de exclusão na criminalidade.
Considerações finais
O objetivo desta pesquisa foi analisar a atuação do trabalho como dispositivo de inclusão e
exclusão na criminalidade, a partir das histórias de vida de um ex-interno do Sistema Socioeducativo
e egresso do Sistema Prisional da Região Sudeste do Brasil. Para tal, a proposta metodológica
escolhida fundamentou-se numa perspectiva dialógica, no recolhimento em história de vida ou
método biográfico, que foi sobremaneira importante nesta pesquisa, pois vislumbrou-se o universo
do sujeito pesquisado, sua subjetividade e como este se relaciona com os fatos sociais por meio dos
quais se produz.
A partir das histórias vividas e narradas pelo sujeito, foi possível compreender o trabalho
como um dispositivo que paradoxalmente opera na inclusão e exclusão de um indivíduo na
criminalidade. O sujeito é incluído na vida de trabalhador de boa conduta e, simultaneamente,
na vida de trabalhador-traficante, que pratica atividades ilícitas por meio da criminalidade.
Foi possível constatar, por meio deste estudo, que o trabalho não consegue atuar como uma
poção mágica para excluir as pessoas da criminalidade, pois não cumpre o papel de salvador para
os sujeitos considerados (ex)criminosos. Indubitavelmente, só o esforço individual não é suficiente
para a inclusão de ex-internos no mercado de trabalho, com acesso ao Sistema de Garantia de
Direitos. Assim, esse mesmo indivíduo já carrega uma história de vida permeada por diferentes
processos de exclusão.
No entanto, atividades laborais estão atravessadas por sentidos e são fundamentais para a
realização pessoal, sociabilidade e reconhecimento dos sujeitos, sejam lícitas ou ilícitas. Ademais,
reforça-se a imprescindível atuação do Estado, por meio de formulação e atuação das políticas públicas,
para trazer aos egressos um status de cidadania e de construção dos vínculos sociais, uma vez que a
entrega do alvará de soltura não deveria ser o ponto final ou o lavar as mãos do sistema prisional.
O dispositivo trabalho não pode ser visto pela coletividade como uma panaceia, que vai dar
conta da fragilidade de tantos outros dispositivos que atuam na sociedade e por ela são produzidos.
A partir da história de Felipe, ex-interno do Sistema Socioeducativo, egresso do Sistema Prisional,
foi possível perceber que o dispositivo família atuou na exclusão da criminalidade e se sobrepôs ao
dispositivo trabalho.
23 Na época em que concedeu as entrevistas, Felipe estava em liberdade há mais de 2 anos e tinha 23 anos de idade.
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O trabalho como dispositivo de inclusão e exclusão na criminalidade: uma poção mágica para a oficina do diabo?
Conclui-se o artigo com a sugestão e demanda de estudos futuros que considerem outros
sujeitos de pesquisa. Cabe ressaltar que espaços privativos de liberdade e as pessoas que os habitam –
ou habitaram – possibilitam diferentes análises, agendas de pesquisas e lacunas de investigação.
Por fim, questiona-se: se a mente vazia é oficina do diabo, a mente pesada (citada por Felipe)
é oficina de quem?
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