Depois Que Os Sinos Dobram Dino
Depois Que Os Sinos Dobram Dino
Depois Que Os Sinos Dobram Dino
depois que
os sinos
dobram
depois que
os sinos
dobram
Vitor Flynn Paciornik e André Bernardino
depois que
os sinos
dobram
Este trabalho está licenciado sob Creative Commons
Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional
revisão
Fábio Fujita
ISBN 978-65-993680-5-9
A noite ........................................................................ 11
roteiro e arte Vitor Flynn
O sopro ....................................................................... 55
roteiro Vitor Flynn
arte André Bernardino
cor-base Hayanna Diniz
13
Amo a noite
loucamente.
De sentir na pele.
Tesão de respirar o ar,
de escutar o som que
só a noite tem.
14
O dia me enche o saco.
15
No pôr-do-sol,
me sinto melhor.
Me sinto acordado.
16
A cidade muda. Toma novas feições,
mais incertas.
As casas, os
apartamentos, vão,
aos poucos, sumindo.
Suas entradas e janelas,
perdendo a forma.
Sombras se alongam.
17
Como um véu que se
abate sobre a cidade.
Sinto uma vontade
louca de sair.
Um desejo de
ver gente.
19
Tem algo de particular São Paulo já não conta
na noite de São Paulo, mais estrelas.
talvez todo lugar tenha
sua própria noite.
20
Se pá, tem alguém
do povo no seu Zé.
Podia talvez
pegar um teatro.
21
Não, acho que hoje
não tô pra isso.
Às vezes, o teatro
me agonia.
De teatro, hoje,
basta o mundo.
22
Estranho, nunca vi isso
aqui tão deserto.
Pequenos vazios
na noite.
Tudo fica
mais quieto.
23
Tudo fica mais
calmo, parece.
Uma calmaria
nervosa.
Vai Amanhã,
milho aí, Hoje não, mestre. então, quem
chefia? sabe?
Quem sabe?
24
Eu devia ter
comprado
cigarro antes.
Preciso achar
alguma birosca
aberta.
25
Dá licença, patrão,
não é assalto,
fica tranquilo!
Pra ajudar
a passar a
noite.
Cuzão!
Cuzão é o caralho!
Não sou obrigado
a nada, porra!
26
Impressão minha ou deu Parece que tô andando
uma boa esfriada? O há um tempão.
ar parece, não sei, mais
denso…
Como assim?
Oi, gatinho!
27
Deixa eu pegar
nesse seu pau
gostoso!
Eita ferro!
Pera! Tô de
boa, moça,
valeu!
Esse
aí não curte
mulher, não!
Dá um
cigarro,
então?
Tô sem, o meu
acabou!
28
Preciso sair daqui.
29
Caramba, minhas
pernas tão me
matando.
Preciso chegar logo em
algum lugar que dê pra
sentar tranquilo.
30
Um cigarro, meu bom Deus!
Tomar uma cervejinha, Meu reino por um cigarro.
descolar um cigarro.
31
Impressão minha
ou as luzes estão
mais fracas?
Onde está
todo mundo?
32
Um táxi! táxi!
Não parou!
O filho da puta
não parou!
33
Mas que
merda!
O que
eu faço?
34
Será que tá Foda-se, se tiver
muito tarde? sinal, vou chamar a
porra de um carro.
Eu recarreguei esta
merda antes de sair
de casa.
Como pode?
Dá licença, o senhor
sabe me dizer que
horas são?
Não sei,
meu filho.
Não uso
relógio.
Importa?
35
Acho que o negócio
é tentar voltar pra
Augusta.
36
Mano do céu!
37
Não consigo É difícil reconhecer
enxergar nada os lugares assim,
direito. se orientar.
Pessoas rindo,
gente bebendo,
falando alto.
Parece tudo
morto.
Tudo tão
estranho.
38
Simplesmente não
tem ninguém aqui.
39
40
41
Caralho! Que
porra foi essa?
42
Tá tudo deserto! Não tem ninguém,
nem um mendigo,
nem um bêbado sequer.
43
Há quanto tempo eu
tô andando? Parece
uma eternidade.
Só queria que
amanhecesse logo!
Quanto tempo já
dura esta noite?
44
Não passa um carro,
um táxi, um ônibus
que seja.
Me deixar usar o
telefone, ou ao
menos me dar um
copo d’água.
45
Alguém me abre,
pelamordedeus
Nada.
46
Eu não quero
morrer aqui.
Não assim.
Não sozinho.
47
O que é essa
brisa gelada?
48
É água que ouço?
Aqui? Como pode?
49
Tô com fome.
Tá tão frio.
Me sinto tão
cansado.
50
Eu nunca vou
conseguir sair
daqui…
Não vou
ter forças…
51
Eu...
52
O SOPRO
Baseado no conto homônimo de Luigi Pirandello
55
A vida não é mais que uma sombra errante, um mau ator
que se empola e esgarça sua hora sobre o palco e depois não é
mais ouvido. É uma história contada por um idiota, cheia de
som e fúria, significando nada.
Shakespeare
56
Oi, Demi,
que surpresa!
Entra!
57
Como que
ele tá?
Meu anjo…
Tá na mesma,
tem horas em que
parece melhor, ai vem
outra crise…
Nada,
vai ser assim
Tadinho… pra sempre.
e os médicos,
nada de novo? Até não ser mais,
alguns anos, disseram,
10, talvez…
Todos temos
nossas cruzes
pra carregar…
58
Ele tem bebido
mais ultimamente, Isso não tá
depois que perdeu o certo, Mari!
E essa emprego.
cruz?
É a crise. né,
mas ele não faz
por mal, é só
como ele é!
Você sabe
Acho melhor você ir que pode contar
embora, ele deve chegar comigo pro que
daqui a pouco e não vai precisar, né?
gostar de te ver aqui.
Eu sei.
59
Amiga, Não é assim, Tina,
esquece essa a vida passa, as Só tenho
mulher! coisas mudam… um carinho muito
grande por ela. Ela tem
uma vida tão…
sofrida…
Falando em
vida, você viu
quem morreu?
É, a pessoa
vai embora.
Como se
levada por
um sopro…
60
Você tá
Ugh! bem?
Nossa, me deu
uma coisa ruim
no peito agora!
Quer ir pro
hospital? Quer
que chame
um táxi?
Não,
vai passar,
Preciso voltar
pro trabalho, hoje
é dia de fechar as
planilhas, te ligo
mais tarde.
Tá, se
precisar de algo,
me avisa. Podexá!
Beijos!
61
João! Entra,
tava passando
um cafezinho.
Ding Dong
Oi, Demi,
escuta,
Meu Deus,
como assim?
O quê?
No meio da tarde,
ela voltou do almoço
não se sentindo bem
e, quando foi pro
hospital, já era tarde
demais.
62
A gente não
sabe os detalhes
de velório e funeral, o Meu Deus,
corpo não foi liberado ela falou que tinha
ainda, parece que vai sentido algo, mas não
ter que fazer imaginava que
autópsia. fosse sério.
Nossa…
A vida
é assim…
Não é mais
que um sopro!
63
Tá tudo
bem?
Ugh!
Sim, sim,
só um mal-
estar…
cof c
of!
64
A gente precisa
de uma ambulância,
por favor, moça,
é meu amigo, ele tá
passando mal…
Eu, eu não
sei, ajuda a
gente, moça!
Desculpa,
eu não queria
soprar, eu…
Eu tô
ficando
louca!
65
Ele tá
morto!
O que
aconteceu?
Nada, eu
não sei… não
pode ser… Soprou?
A gente tava
conversando
sobre uma amiga
que morreu, ele
começou a
passar mal
de repente.
Depois que
eu… que eu
soprei…
Não acreditam
Assim, com em mim?
a mão desse jeito,
eu soprei nele… Primeiro foi
Hmm… a Tina, agora
o João, um
sopro!
66
Faça você,
sopre em mim
se não acredita!
Vai, faça você!
Moça, é melhor
você se sentar, é
uma situação difícil,
você deve estar
em choque.
Eu poderia Moça,
soprar em vocês sente-se,
agora, mas não vou! por favor!
Eu preciso
sair daqui!
67
Não pode ter
Não pode sido eu!
ser!
Qual é mina?
68
Um sopro,
simples assim…
69
Plantão
urgente…
Mais 15 mortes
confirmadas…
A gente nunca
imagina que essas
coisas vão acontecer,
assim tão perto
da gente…
70
Eu tô viajando,
alucinando, só
pode ser!
Coisa horrível
essa epidemia,
hein?
É isso!
71
Se for uma
epidemia, as pessoas
vão continuar a morrer!
Essas coisas não
passam de uma
hora pra outra!
Cruz-credo, moça!
Vira essa boca pra lá,
em nome de Jesus!
Mas eu vou
saber, entende?
Que não sou eu!
Mulher louca!
72
É isso, já
se passou uma
semana, nenhuma
morte nova.
Não pode
ser uma epidemia,
não resta dúvida,
fui eu.
O que fazer?
Ninguém vai
acreditar
em mim!
Deus, nem eu
sei se acredito
em mim mesma!
Mas são
pessoas! Não
posso sair por
aí matando
gente!
A não ser
que eu mate uma
pessoa que mereça
morrer! Sim! Uma
morte justa!
Preciso
fazer um
teste!
73
Que que você
quer agora?
Já falei pra…
Deixa eu
entrar, preciso
falar com a
Mari!
Ugh!
74
Demi!
O que você…
A vida é
assim, basta
um sopro!
75
O que
você fez?
Você está
livre agora,
viva sua vida
amiga!
Não, não,
não!
Meu
anjo…
76
Mas eu
não posso fazer
Sou eu, isso, não tenho
fui eu que fiz esse direito! Devo tirar
isso, tudo os dedos?
isso! cortar fora?
Eu sou Ou será
a morte! que basta
o sopro?
Olha, não é
aquela maluca
do sopro?
77
não me provoque!
Sou eu, fui eu que
fiz tudo isso! eu
sou a morte!
Basta isso,
um leve sopro!
Nada mais!
Louca!
Quer fazer
um teste? É isso
que você quer?
78
Quem disse Temos casos
que a epidemia novos todos os dias,
acabou? só não dá no jornal,
notícia velha,
parece…
Mas é
a mesma
doença?
Casos
idênticos!
Do que
vocês tão
rindo?
79
Essa mulher
diz que provocou a
epidemia soprando
na cara das
pessoas.
Se eu sou louca,
então não vai fazer mal
se eu soprar na cara de
HAHAHAHA vocês, hein? O que acham?
É isso que querem?
Pode soprar,
querida, tô com
um cisco no
olho mesmo.
80
HAHAHAHA
Se algo acontecer
com vocês, não fui eu,
foi a epidemia! HAHAHAHA
Ugh!
81
A epidemia!
a epidemia!
82
Eu! Eu sou
a epidemia!
83
84
85
86
87
88
O FANTASMA
DO PAQUETÁ
89
A verdade e a mentira são construções que decorrem da vida
no rebanho e da linguagem que lhe corresponde. O homem do
rebanho chama de verdade aquilo que o conserva no rebanho e
chama de mentira aquilo que o ameaça ou exclui do rebanho.
[…] Portanto, em primeiro lugar, a verdade é a verdade do
rebanho.
Nietzsche
90
Um forte nevoeiro irá
assolar as noites de Santos Isso ocorre por conta de
nos próximos dias, Augusto. uma grande massa de ar
frio chegando à região…
Oi, amor.
Eu...
91
Eu vi um fantasma,
porra! Eu vi! Tava lá,
Ah, me poupe… em frente ao cemitério
Como assim? do Paquetá.
Calma!
92
93
Ai, meu
Deus!
Ai, meu
Ai, meu Deus!
Deus!
94
Dragon Ball
é uma bosta,
para!
Melhor que
Naruto!
Se liga, Naruto
tem muito mais
história!
Eita...
o que é
aquilo ali?
95
Caraca, que
bizarro.
Manda
pra mim…
Mano, vamo
embora daqui…
96
Boa tarde, Augusto.
Parece que a alta umidade
não trouxe apenas a neblina O Fantasma do Paquetá,
para as noites santistas. uma lenda da região do ano
de 1900, vem assombrando
o local, segundo algumas
testemunhas.
97
Eu tava voltando
pra casa por volta da Ela para no portão
meia noite e do nada ela do cemitério e, de
saiu do cemitério e veio repente, desaparece.
na minha direção.
Eu vi sim!
Ela dava uns gritos O povo está
horríveis no portão assustado mesmo,
do cemitério. Meu vizinho hein Sandra?
a viu de perto e
disse que ela tem
olhos vermelhos.
Você, vai ficar
aí até a meia-noite
pra encontrar o
fantasma?
Eu não, Augusto.
Morro de medo
dessas coisas.
98
Mas, olha, apesar das A história original do
brincadeiras, o pessoal aqui fantasma do cemitério do
está bastante assustado. Paquetá data de julho de 1900 e,
na época, tal como agora, várias
pessoas garantiam ter visto
Muitas pessoas juram uma mulher com trajes de
de pés juntos que freira circulando por aqui,
viram o fantasma. perto da meia-noite.
Inclusive
a polícia já foi
acionada, por
incrível que
pareça.
99
Já passou
da meia-noite,
cadê ela?
100
Disseram aqui no
grupo que o fantasma tá
lá dentro do cemitério. Disseram
que ela tá
lá dentro. Dentro?
Alguém
tá vendo? Muita
neblina…
101
Pra casa,
pessoal!
Circulando!
Tá tarde
e não tem Parece que
nada aí! o fantasma tá
lá dentro.
102
Ali! Ela tá ali!
Ela tá lá dentro!
Abram o portão!
Tá aberto!
103
O cemitério foi
invadido, precisamos
de reforços!
104
Duerme, duerme, negrito,
que tu mamá está en el
campo negrito.
Duerme, duerme, mobila,
que tu mamá está en el
campo, mobila.
Te va traer
codornices para ti.
Te va a traer
rica fruta para ti.
Te va a traer
carne de cerdo para ti.
Te va a traer
muchas cosas rara ti.
Y si el negro no se duerme,
viene el diablo blanco y, ¡Zas!
le come la patita…
Chacapumba,
chacapum…
105
Se passando
Então por fantasma…
era você!
Vadia!
O que… gente,
eu não sei…
106
Não foge,
não!
Você é uma sem-vergonha,
fazendo isso com a gente!
Me deixa
sair…
107
108
109
Uma tragédia ocorreu
no cemitério do Paquetá Segundo familiares, ela
na noite de ontem. Maria costumava chegar do
de Souza, 37 anos, foi trabalho em Cubatão e ir
linchada por pessoas direto para o cemitério
que procuravam o visitar o túmulo do
fantasma do Paquetá. filho, que faleceu há
poucas semanas.
110
111
112
Isabela
113
O sonho da razão produz monstros.
Goya
114
Pegou a mala Tá aqui dentro,
do bebê? vamos que tamos
atrasados.
O que a gente
tá esquecendo?
Putz, a chave
Como a gente do carro! Que
vai saber o que tá viagem! Haha!
esquecendo, sua Segura a
idiota? porta do
elevador.
Eu só…
115
Tô nervosa, Relaxa, os
médicos sabem Mas e se acontecer
e se der alguma alguma coisa, alguma
coisa errada? o que tão fazendo,
complicação?
Eles estudam
pra isso.
Nosso filho
vai nascer com
três pernas!
Hahaha!
Não brinca
com isso!
116
Queria que minha
mãe tivesse aqui,
ela estaria tão feliz.
Tenho certeza
que onde estiver, ela
está feliz querida!
Presta atenção
na pista, Rô!
Cala a boca,
porra!
Fiquei de
mandar um zap
pros bróder
do pôquer!
117
118
119
Meu bebê…
Meu…
120
121
Meu bebê!
O que
Isa! Você aconteceu com
acordou! meu bebê?
Calma!
122
Tá tudo Tem alguém
bem! que eu quero que
você conheça.
123
Os médicos disseram
que ele não apresentou
nenhuma sequela.
E o Rô?
Foi
instantâneo,
falaram.
O assento
dele concentrou
todo o impacto
da batida,
Não
sentiu dor
nenhuma.
124
Minha
cabeça dói.
Deve ser
normal, depois
de tanto
tempo.
Vou chamar
alguém.
Meu filho!
125
Ah, como
é bom estar
em casa de
novo.
Escuta, tava
pra te falar, você não
tem que se preocupar
com a papelada toda do
inventário e afins.
Deve ficar
pronto logo, aí é só
assinar, e todos os
bens de vocês passam
oficialmente pro
seu nome.
Nosso
escritório já
tá cuidando
de tudo.
126
Mas tem Bem,
uma coisa que você com outras
precisa saber, tem mulheres…
um apartamento…
Parece
que o Roberto
usava…
Eu… sabia,
acho. Não sobre Que merda, Olha, eu
o apartamento, Isa. realmente
digo. preciso ir.
Mas dessas
outras, eu
desconfiava.
Quando
quiser conversar
sobre essas
coisas todas,
me dá um
toque.
Tá tudo
bem! Te amo,
Vai lá, viu?
não quero
te prender.
Também.
Obrigada.
Por tudo.
127
Agora
é só nós
dois.
Nós dois,
contra o
mundo!
128
Diga adeus
pro seu pai!
129
Vamos, filho!
Sem olhar
pra trás!
130
Tá aqui,
querida!
Ai, brigada!
Desculpa Cansada!
os canos semana o gordo dá
passada, o escritório trabalho.
tá uma loucura! Mas tô bem!
Realmente
bem!
Mas conta,
como você tá?
Que
ótimo!
Eu me Como assim?
sinto… livre.
Acho que
pela primeira
vez em muito
tempo.
131
Mas é como
se eu conseguisse
respirar de verdade
pela primeira vez em
muito tempo.
Sei que é feio
dizer isso agora,
depois que ele
morreu.
Eu penso em antes,
e era como se houvesse algo
me sufocando, como se eu
tivesse um pano amarrado
no meu pescoço, bem
apertado.
E por tanto
tempo que eu já
nem lembrava
que ele tava ali,
entende?
132
A gente tinha
problemas com o
Roberto, você sabe, Tem uma
mas sempre imaginei coisa…
que você sabia
o que tava
fazendo.
O quê?
Eu não sei,
às vezes eu tenho Como assim, Não,
uma sensação… tipo um stalker? eu não sei
parece que tem E eu acho explicar.
alguém me que vi alguém,
seguindo. mas não tenho
certeza, eu
não sei.
Pararam, quase.
Tirando uma tontura
de vez em quando e a
dor no joelho, eu tô
nova em folha.
133
Duvido!
Talvez seja tudo Você nunca foi
coisa da minha cabeça, tão criativa
alguma sequela do assim!
acidente, sei lá.
Talvez eu
esteja ficando Vai se
louca, imaginando fuder!
coisas. Besta!
Vamos
Te amo, passear um
Te amo, pouco?
pirralha. velha.
134
Jesus,
quanta coisa
feia!
135
136
DEIXA A GENTE
EM PAZ, SEU
DOENTE!
Senhora, Sim…
tá tudo
bem? Acho
que sim,
obrigada.
137
Oi, sou eu,
tudo bem?
É, eu sei.
Não precisa,
não dá nem dez
minutos de
Sim, caminhada.
posso sim.
Brigada, mana,
te devo essa,
Até sexta,
então.
Beijo.
138
O que pode
acontecer também?
Tá de dia e tamos
numa região
movimentada.
Me recuso a
viver na paranoia
o resto da
minha vida.
139
140
!?
141
só o carrinho do bebê sem bebê
142
Não!
Não! Não!
Não! Não! Não!
Não! não!
Meu bebê!
Pelo amor de deus,
Meu bebê!
Alguém me
ajuda, roubaram
meu bebê!
Devolve
meu bebê!
143
Rô, devolve
meu filho, Rô!
Eu faço
o que você
quiser, mas
devolve meu
bebê!
144
Meu bebê!
Meu bebê!
Calma, amor,
tá tudo bem!
Você perdeu
a criança,
amor.
145
A gente
Os médicos tiveram teve sorte,
que fazer um parto de na verdade.
alto risco, o bebê só
viveu alguns dias. Eu não tive
nenhuma sequela
do acidente.
Nós o enterramos,
já faz uns meses,
você ficou em coma
um tempão.
E os médicos
disseram que seu Vai ficar
quadro é muito tudo bem.
otimista.
146
147
148
MITZVÁ
O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é
privilégio exclusivo do historiador convencido de que também
os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse
inimigo não tem cessado de vencer.
Walter Benjamin
Passa o goró
aí, mano!
Ai, gente, não
sei se isso tá
certo…
Não… mas
não sei se é
certo mexer
com morto.
Se gosta
tanto, leva
Não devia nem pra casa! Eu não sou
enterrar, dava amante de judeus,
pros porcos. é só que…
Hmm... Tá faltando
alguma coisa
aqui!
Me empresta
Agora sim o spray, quero
tá certo! fazer também!
Preciso
dar um mijão.
Que porra tá
acontecendo?
Que merda
você fez, seu
idiota?
Cala a boca,
fiz nada, não!
Ai, gente…
Eita porra!
Perdão, Deus
eu não quero
morrer!
Eu faço
qualquer coisa,
Deus, me ajuda!
AAAA
AAAA
AAAA
AAAA
AAAh!
Sai da frente
seu bando de
frouxo!
Caceta!
Mano
do céu!
NÃO!
Não
encosta Por favor,
em mim! não!
Mas…
Quadrinhos em
tempos de cólera
Há uma famosa tira de Tom Gauld em que uma escritora se isola para escrever
uma distopia e quando ela termina o mundo lá fora virou justamente uma distopia.
Com este livro foi um pouco assim.
Os sinos que dobram apontam para uma dimensão de coletividade, nas igrejas,
no poema de Donne, no livro de Hemingway. Coletividades diferentes, talvez, mas
formadas pela noção inextricável de que compartilhamos uma mesma condição
humana. O que nos acontece quando esse sonho de coletivo se esfacela? As histó-
rias aqui reunidas de certa forma giram todas em torno dessa questão.
Mas se a questão do coletivo em nossa sociedade é um problema em aberto
desde sempre, o ciclo que nos coube viver nos últimos anos se configura como um
abismo todo novo – ainda que recendendo aos autoritarismos passados.
Fazer histórias que tratam da impossibilidade de conexão durante uma pande-
mia que nos forçou ao isolamento, em mais formas do que imaginávamos possí-
veis, não foi exatamente fácil. Se fôssemos iniciar este livro do zero hoje, certamen-
te muita coisa seria feita diferente.
A gente jura que quando ele começou a ser esboçado ainda não havia covid-19,
não havia as agruras da quarentena e do isolamento. Quando algumas das histórias
deste volume foram pensadas, céus! não havia nem tido o golpe. Cada uma das
histórias aqui tem sua própria trajetória, algumas vinham amadurecendo de longa
data, outras foram pensadas já para este volume – que começou a tomar as feições
atuais como um projeto para o Proac (Programa de Ação Cultural) – programa de
incentivo à cultura do Estado de São Paulo –, em meados de 2019.
É da natureza das coletâneas, e uma de suas graças, nos parece, que tragam
múltiplas temporalidades. E ao se justapor histórias que foram pensadas de forma
independente, em momentos distintos, novas camadas de significado talvez sejam
criadas. O que era todo vira parte, e o conjunto se impõe, às vezes em teias de rela-
ções que escapam às intenções de seus criadores.
Inclusive porque este é também um livro coletivo, um coletivo pequeno, é ver-
dade, mas, ainda assim, coletivo. Cada parte do processo de um quadrinho tem
suas especificidades, desenhar uma história escrita por outrem é bem diferente
de conceber o todo de uma obra de forma autônoma, e o mesmo vale para cor,
arte-final, letreiramento e edição. Então, se não aparece como tal em sua forma, ao
menos para seus criadores, durante o processo, este livrinho teve algo de experi-
mental. E nisso há sempre uma abertura, e o que passou por essa abertura, parece,
foi o mal-estar de nossos tempos.
Fazer quadrinhos demora, e este livro se materializa em um momento bem di-
verso do inicial. É até um pouco assustador perceber como o tempo ressignificou
essas histórias, isoladamente e em seu conjunto. Coisas que foram pensadas como
figuradas viraram literais, o que era sugerido tornou-se óbvio e, quem sabe, coisas
que eram literais sejam lidas figuradamente hoje.
O que podemos dizer agora, de nossa parte, é que alimentamos a esperança de
que, em breve, os tempos mudem novamente. Que o terror dessas historinhas logo
se torne menos palpável. E que possamos novamente declamar com o poeta que a
morte de toda pessoa nos diminui, pois fazemos parte do gênero humano. Mas, se
isso for pedir demais, que possamos ao menos sentar em uma mesa de bar, numa
calçada qualquer, e falar bobagem sobre quadrinhos, a vida e tudo mais. Saúde.
Agradecimentos
Vitor Flynn
André Bernardino
Sobre os autores
Em Depois que os sinos dobram, Vitor Flynn Paciornik e André Bernardino mostram as
cidades de São Paulo e Santos sob novas feições. Como personagens à parte, elas se adaptam
a cada narrativa que irão abrigar, podendo ser, ao mesmo tempo, ambientes inóspitos,
opressores, ou terrenos férteis e plurais. O leitor local irá reconhecer esquinas, passagens,
prédios e monumentos dessas cidades, mas a falta de tal reconhecimento não será problema
para o leitor que, através da hq, poderá fazer seu primeiro passeio pelas noites paulistanas,
santistas, e por outras noites. A já conhecida solidão da metrópole encontra aqui uma
ambientação sombria e misteriosa, construindo protagonistas que agonizam em uma São
Paulo e uma Santos surrealmente assustadoras, que levam o leitor a embarcar junto nesse
delírio. As cidades nos acompanham à medida que seguimos os personagens em busca de
respostas para desaparecimentos, mortes misteriosas, fantasmas. Lendas são revividas e
reformuladas, em uma ambientação muito familiar para todo brasileiro que já ouviu e passou
adiante histórias assustadoras de sua cidade – assim como para todo brasileiro que conhece as
injustiças do país. A obra leva ao ponto máximo o seu jogo entre o gênero terror e a discussão
de desigualdades, tanto brasileiras como universais. Esta hq se dirige aos apaixonados por
quadrinhos que exploram o gênero do terror em suas camadas narrativas mais profundas.
Boa leitura!
Aline Zouvi é quadrinista, ilustradora e tradutora.
Realização