Admin, t1
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Carine Haupt1
André Berri2
1 Introdução
O presente trabalho é um estudo fonético-fonológico da realização do arquifonema /S/,
tanto em sílaba medial quanto final, numa perspectiva sincrônica, na fala de moradores
nativos de Florianópolis.
A variação entre a realização alveolar e palato-alveolar da fricativa coronal /S/ é um
fenômeno já bastante discutido em todo território brasileiro, haja vista a quantidade de
trabalhos realizados em diversas regiões, inclusive em Florianópolis (BRESCANCINI, 1996,
2003a, 2003b). Contudo, resolvemos estudar sua ocorrência na fala de florianopolitanos,
usando um outro tipo de corpus – um corpus lido – a fim de comparar os resultados com
aqueles que encontramos em trabalhos feitos com fala espontânea, como, por exemplo, com
dados do Projeto VARSUL (Variação Linguística Urbana da Região Sul) (Id. 2003a, 2003b).
Acreditamos que, por a palatalização ser um processo bastante difundido em Florianópolis3, a
realização palato-alveolar de /S/ seja predominante até em um corpus com um grau de
monitoramento de fala maior, como é o caso da leitura.
Com o objetivo central de oferecer explicações linguísticas e/ou sociolinguísticas, o
fenômeno da palatalização será analisado sob a perspectiva da sociolinguística quantitativa de
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina –
UFSC- e professora efetiva da Universidade Federal do Tocantins – UFT.
2
Doutor em Linguística e professor efetivo da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
3
Brescancini (2003a) atesta que o uso da variante palato-alveolar é predominante em Florianópolis, chegando a
83% das ocorrências analisadas.
Haupt, Carine; Berri, André
origem laboviana. Interessa a essa pesquisa não somente fazer um levantamento das
ocorrências de palatalização, mas também tentar explicar esse fenômeno. Para tanto, usamos
como referencial teórico os estudos em fonologia multilinear, mais especificamente o modelo
da Fonologia da Geometria de Traços (GT), e a Teoria da Variação. O modelo da GT parece
ser o mais apropriado, uma vez que estuda a organização dos traços de cada segmento de
forma independente e hierarquizada, o que permite entender como um traço pode se estender
além de um segmento ou como o apagamento de um segmento não implica necessariamente o
desaparecimento de todos os traços. Além disso, esse modelo está profundamente
comprometido com a realidade fonética. A pesquisa se valerá também do apoio da fonética
acústica para sanar dúvidas em relação à transcrição fonética.
O trabalho se constitui de partes distintas. Primeiramente, é feita uma revisão
bibliográfica tratando de caracterizar fonologicamente os segmentos em questão, isto é, as
sibilantes [s, z, Σ, Ζ], de acordo com a Fonologia da Geometria de Traços. Ainda na revisão
bibliográfica, descrevemos os resultados das pesquisas de Brescancini (1996, 2003a), que
serão objeto de nossa comparação. Num segundo momento, apresentamos algumas discussões
sobre o estudo da variação que norteia a metodologia adotada na pesquisa. Trazemos,
também, detalhes sobre as variáveis envolvidas e os informantes. Por fim, analisamos os
resultados das ocorrências de palatalização a partir do referencial teórico proposto e das
hipóteses levantadas.
são simples e, redundantemente, [+anterior]. Às complexas, por sua vez, atribui-se o valor [-
anterior] como decorrência da estrutura desses segmentos pela seguinte razão: há a
incorporação do nó vocálico e dos pontos de V que representam a articulação secundária.
Quando há o traço [coronal] sob o domínio do nó dos pontos de V, dele só pode depender o
traço [-anterior], pois o traço [coronal] das vogais implica redundantemente o traço [-
anterior]. Esse valor, [-anterior], faz com que o traço [coronal] sob o domínio do nó dos
pontos de C passe a ter o mesmo valor, isto é, ocorre uma conversão do valor desse traço. De
acordo com essa explicação, temos a seguinte representação para a consoante complexa /Σ/ e
para a consoante plena /s/.
4
O desligamento de nós também explica processos fonológicos categóricos.
10º) contexto seguinte, entre o qual, as consoantes dorsais [g, k, x] foram favorecedoras;5
11º) a variável ‘idade’ não foi considerada estatisticamente relevante.
Em relação à variável ‘contexto seguinte’, é interessante mencionar o trabalho de Hora
(2003), que analisa dados de fala de João Pessoa. Segundo seus resultados, a palatalização só
é favorecida em contexto de consoante coronal [+anterior], ou seja, [t, d]. A aplicação da
regra em outros contextos é praticamente nula. O mesmo autor afirma que, no Rio de Janeiro,
a palatalização já é gramaticalizada, sendo indiferente o contexto seguinte. Hora (2003)
afirma que, em João Pessoa, trata-se de um processo dissimilatório, enquanto no Rio de
Janeiro, os dados revelam um processo assimilatório. Já em Florianópolis, como pudemos ver,
o fenômeno ocorre preferencialmente em contexto de consoantes dorsais. Essas diferenças
nos fazem crer que podem existir diferentes motivações para a aplicação da palatalização.
Em estudo posterior, Brescancini (2003a) analisou o processo de palatalização,
também em Florianópolis, com dados do banco de dados do VARSUL. Os resultados aos
quais ela chegou foram bastante similares aos de 1996, com um valor diferente para a
aplicação total da variante palato-alveolar, 83%. A primeira variável linguística
estatisticamente relevante foi o traço [voz], em que [-voz] favoreceu a palatalização, seguida
da variável ‘contexto precedente’, que teve a vogal dorsal [a], em segunda posição, como
condicionadora, ao lado do fator ‘ausência de vogal’, que foi predominante. Em terceiro lugar
ficou a variável ‘contexto seguinte’, que teve como fator condicionante a consoante coronal [-
anterior] [tΣ], seguido das dorsais [k, g, x]. No entanto, a autora considerou esse resultado de
modo relativo, visto que a ocorrência das coronais [tΣ] representou apenas 3% do total. Em
quarto lugar, encontramos o ‘acento’, com uma maior aplicação da regra em contextos pré-
tônicos e, por fim, a variável ‘posição da fricativa na palavra’, em que a posição medial foi
favorecedora. Em relação à tonicidade, a autora amalgamou todos os fatores em apenas dois –
forte e fraco – e obteve um resultado que confirmou o que já havia sido constatado no estudo
anterior, isto é, de que a posição ‘forte’ é maior indutora da produção da consoante palato-
alveolar. Quanto às variáveis sociais, houve taxas mais altas para os mais escolarizados,
enquanto que para idade, a variante mostrou-se estável. Outra observação interessante a se
fazer sobre esse estudo é de que todas as variáveis, tanto as linguísticas quanto as sociais,
foram relevantes, porém “o programa de análise estatística privilegiou, de modo geral, as
variáveis linguísticas.” (BRESCANCINI, 2003a, p.322).
5
A análise dos dados é mais complexa do que a breve exposição que aqui fizemos. A autora cruza variáveis,
realiza rodadas por regiões, e com isso chega a conclusões mais consistentes. A leitura do trabalho na íntegra é
recomendada para o leitor interessado num maior detalhamento dos resultados.
4 Metodologia
O presente estudo constitui-se das seguintes etapas: definição das variáveis linguísticas
e sociais com base nos estudos teóricos; elaboração do corpus; coleta de dados através do
corpus lido junto aos informantes; levantamento das ocorrências da palatalização usando um
programa de estatística VARBRUL e interpretação dos resultados a partir da fonologia da
Geometria dos Traços e das informações acerca das variáveis sociais.
Para realizar a pesquisa, tomamos alguns princípios e métodos da sociolinguística,
mais especificamente, da Teoria da Variação, apresentada, inicialmente, por Labov (1972)
em estudos sobre variações fonéticas em Nova Iorque, entre 1963 e 1964, e na ilha de
Martha’s Vineyard, em 1963. O princípio fundamental que norteia o trabalho da
sociolinguística é de que as forças sociais operam continuamente sobre a língua. “Assim,
atitudes linguísticas são as armas usadas pelos residentes para demarcar seu espaço, sua
identidade cultural, seu perfil de comunidade, de grupo social separado” (TARALLO, 1986,
p. 14).
Estudar a variação e as mudanças na língua significa olhar três questões: i) a origem
das variações; ii) a extensão e a propagação das mudanças; iii) a regularidade das mudanças.
As variações linguísticas podem ser estruturalmente motivadas, introduzidas por diferentes
processos como assimilação, dissimilação, analogia, entre outros. Essas variações podem ser
esporádicas e extinguir-se ou entrar em conflito com uma outra forma já existente. No caso de
uma das duas formas deixar de ser usada, dizemos que houve uma mudança, isto é, uma
variante tornou-se regular e a outra extinguiu-se.
No presente estudo, estamos lidando com uma regra variável, a palatalização. Ela pode
ser resultado de um processo dissimilatório ou de assimilação, fato que pretendemos apurar
no decorrer do estudo e das análises dos dados. A aplicação ou não da regra pelos falantes
pode ser favorecida ou não por contextos linguísticos e sociais diversos. No caso da regra de
palatalização do arquifonema sibilante /S/, temos como variável dependente o /S/ pós-
vocálico que pode realizar-se como alveolar surda (fe[s]ta), alveolar sonora (me[z]mo),
palatal surda (fe[Σ]ta), palatal sonora (me[Ζ]mo), fricativa laríngea (me[h]mo) ou zero
fonético (meømo). No entanto, o que será de fato analisado nesse trabalho são as ocorrências
alveolares e palato-alveolares dessa consoante. Como variáveis independentes, temos os
diferentes contextos linguísticos em que a consoante ocorre e as variáveis sociais.
Acreditamos que estamos lidando com uma variação estável, e não com processos que
evidenciam uma mudança fonética e/ou fonológica.
As variáveis linguísticas escolhidas, que constituem os diferentes contextos em que a
consoante fricativa /S/ ocorre, foram definidas de modo a abranger diversos fatores que
poderiam ser relevantes na palatalização ou na sua inibição. Essas variáveis são as seguintes:
a) Posição na sílaba
Engloba as posições em que o /S/ pós-vocálico pode ocorrer: contextos mediais e os
contextos de final de palavra absoluto ou seguido de outra palavra, envolvendo processos de
ressilabação. Essas posições são: posição medial, posição final absoluta, posição final não
absoluta seguida de vogal e consoante.
Partimos da hipótese de que a posição medial será a favorecedora, visto que, na
maioria dos estudos já feitos, como Callou e Marques (1975), Callou e Moraes (1995),
Brescancini (1996), Scherre e Macedo (2000), essa posição foi destaque. A motivação
linguística para esse fato pode não estar exclusivamente nessa variável, mas pode estar
relacionada a outras variáveis, tais como ‘contexto seguinte’ e ‘vozeamento’.
b) Contexto seguinte
Procura englobar o maior número de contextos que seguem o /S/ em posição de coda.
Os contextos de consoantes foram divididos de acordo com o ponto de articulação.
- labiais: [p, b, f, v, m]
- coronais: [t, d, l, n], todas com o traço [+anterior]
-dorsais: [k, g, x]
Além desses contextos seguintes, temos ainda Ø, quando a fricativa coronal estiver em
final absoluto, e vogal, encontrada no início da palavra seguinte.
Em termos fonéticos, há a retração do corpo da língua na realização das palato-
alveolares, por isso acreditamos que as consoantes dorsais, por também promoverem a
retração do corpo da língua, sejam favorecedoras. O contexto labial, como atestam os estudos
de Bhat (1978), também pode ser favorecedor, uma vez que há o envolvimento de uma
articulação labial, também presente na consoante palato-alveolar.
c) Contexto precedente
Incluem-se nesse contexto todas as vogais que podem preceder o /S/ e as semivogais
/j/ e /w/. As vogais são agrupadas em labiais [υ,ο, ], coronais [ι,ε,Ε], dorsal [α] (conforme o
modelo de Geometria dos Traços), de modo que não serão analisadas as ocorrências em
relação a uma vogal em específico.
Acreditamos que a vogal dorsal, assim como as consoantes dorsais, seja favorecedora.
Por outro lado, as vogais labiais também são [+posteriores], isto é, há a retração do corpo da
língua, além de terem a protusão labial, o que nos permite levantar a hipótese de que elas
também podem favorecer a aplicação da regra. Resta saber em que medida as vogais labiais e
a dorsal são condicionadoras da produção palato-alveolar da fricativa coronal /S/.
d) Vozeamento
Essa variável diz respeito ao traço [±voz] da consoante seguinte. Para a produção de
uma consoante como o traço [-voz] é usado mais força articulatória do que para uma
consoante [+voz]. Esse fato nos permite levantar a hipótese de que o contexto [-voz] será
favorecedor, visto que a consoante palato-alveolar tem intensidades maiores que a alveolar.
e) Tonicidade
Para essa variável não criamos novas frases, fazemos apenas um reagrupamento das
frases usadas para as variáveis anteriores. As frases são divididas de acordo com a sílaba em
que o /S/ da palavra em questão ocorreu, isto é, em três grupos: tônicas, monossílabas e
átonas. No caso das átonas, não se considerou relevante dividi-las em pretônicas e postônicas,
pois a ocorrência destas últimas foi muito pequena.
Partindo do mesmo princípio usado para tratar da variável ‘vozeamento’ de que [Σ, Ζ]
são mais intensas, acreditamos que contextos mais fortes sejam favorecedores, ou seja, as
sílabas tônicas.
Conscientes da necessidade de também avaliar as questões sociais nos fenômenos da
linguagem, temos os seguintes grupos de fatores:
a) idade: indivíduos de 15 a 24 anos, de 25 a 50 anos e de mais de 50 anos;
b) grau de escolaridade: até 8 anos, inclusive, e mais de 8 anos. Pensamos em incluir o
fator até 4 anos, mas devido à natureza do corpus, decidimos deixar esse fator de lado;
c) sexo: masculino e feminino.
Tecemos as seguintes hipóteses:
1- o fenômeno não é estigmatizado e, portanto, não esperamos encontrar diferenças
significativas entre homens e mulheres;
5 Resultados e discussão
No total, foram analisadas 1833 palavras. O trabalho com o pacote de programas do
VARBRUL nos mostrou quais foram os fatores estatisticamente mais relevantes para o
fenômeno. A ocorrência total da variante palato-alveolar, em nosso corpus, foi de 66%,
correspondendo à nossa expectativa de que a palatalização é um fenômeno recorrente em
Florianópolis, além de estar de acordo com os estudos anteriores de Brescancini (1996, 2003).
O programa IVARB do pacote VARBRUL considerou as seguintes variáveis estatisticamente
relevantes: escolaridade, contexto seguinte, gênero, idade e contexto antecedente, nesta
ordem.
A escolaridade foi o grupo de fatores mais significativo. Observando a tabela abaixo,
constatamos que o fator ‘até 8 anos de escolaridade’ favorece o fenômeno, pois o peso
relativo é bem alto, enquanto que o fator ‘mais de 8 anos’, não.
Ao cruzarmos esse grupo de fatores com a escolaridade, vemos que as mulheres mais
escolarizadas palatalizam bem menos do que os homens. Já no grupo dos menos
escolarizados, isto é, com até 8 anos, não houve diferenças entre homens e mulheres, ambos
preferem a variável palatalizada.
Esses dados podem ser melhor visualizados no gráfico abaixo, em que fica evidente
que o grau de escolaridade atua no sentido da não palatalização para as mulheres, enquanto
que para os homens quase não há diferença.
90
80
70
60
50
mulheres
40
homens
30
20
10
0
até 8 anos de mais de 8 anos
escolaridade de escoalridade
Gráfico 1 – Aplicação da regra de palatalização por homens e mulheres segundo seu grau de
escolaridade
De acordo com muitos estudos sociolinguísticos, como Guy (1981) e Oliveira (1982),
as mulheres tendem a ser mais conservadoras, ou seja, aplicam menos a regra quando esta
forma não for a prestigiada, preferindo a forma padrão. Já em processos em que a regra se
refere a processos em mudança em que a variável em questão é padronizada, elas tendem a
liderar o processo.
Cabe a nós, agora, pensar a respeito do nosso fenômeno. Trata-se de uma forma não
padrão, estigmatizada? Poderíamos pensar que as mulheres aplicam menos a regra porque
esta não é a forma prestigiada. No entanto, não acreditamos que a variante palato-alveolar não
seja prestigiada, mas, como afirmamos acima, trata-se de um processo não muito difundido no
sul do país, o que faz dele uma marca capaz de identificar um nativo de Florianópolis. E como
essa cidade está recebendo muitas pessoas de outras cidades e estados, os resultados obtidos
nos fazem levantar a hipótese de que os homens mostram uma tendência de manter a marca
típica da região, enquanto que as mulheres tendem a se aproximar do padrão dos falantes de
fora, de forma a minimizar as diferenças. Por outro lado, podemos dizer que as mulheres mais
escolarizadas palatalizam menos, o que nos permite considerar a possibilidade de que elas
estejam sendo mais suscetíveis à ação da escola (SILVA, 1996), que, por ser um local onde se
encontram muitos alunos e professores de outras localidades, pode influenciar no sentido da
não-palatalização. Essa hipótese pode ser facilmente verificada na tabela 5, que mostra que as
mulheres com mais de 8 anos de escolaridade preferem a variante alveolar, enquanto os
homens aplicam a regra da palatalização.
O grupo de fatores ‘idade’ foi listado como sendo o quarto grupo estatisticamente mais
relevante.
Como podemos ver, os fatores ‘vogal labial’ e ‘vogal dorsal’ favoreceram a aplicação
da regra, enquanto que o fator ‘vogal coronal’ desfavoreceu. Esses resultados confirmam a
nossa hipótese e estão de acordo com a constatação de Bhat (1978) de que a palatalização é
favorecida por vogais posteriores e frontais, resultados que o autor obteve com a análise desse
fenômeno em 120 línguas de diferentes famílias e dialetos.
Em relação aos nossos dados, o fator ‘labial’ foi mais favorecedor que o fator ‘dorsal’,
porém com uma diferença de peso relativo muito pequena. Podemos concluir que, em nosso
corpus lido, tanto um certo grau de elevação da lâmina da língua promovido pelas vogais
labiais, quanto a retração do corpo da mesma decorrente da articulação das vogais dorsais
favorecem a aplicação da regra de palatalização. Em termos articulatórios, as consoantes
palato-alveolares e as vogais labiais têm em comum a protusão labial. O arredondamento,
associado a outros fatores, contribui para que o som fricativo tenha picos espectrais em faixas
de frequências mais baixas, característica das consoantes palato-alveolares, mais graves que
as alveolares (JESUS, 1999).
De posse desses resultados, passamos para uma discussão acerca do peso do detalhe
fonético na aplicação da regra de palatalização. Nossos resultados apontaram para o
favorecimento da aplicação da regra em contextos seguintes de consoante dorsal [k, g, x] e
labial [p, b, m, f, v]. A Fonologia da Geometria de Traços (GT), ao determinar a
representação dos segmentos, leva em conta essas características fonéticas, mas nem sempre
especifica detalhadamente todos os traços, uma vez que determinados movimentos
articulatórios estão sempre presentes em determinada classe de consoante, segundo seu ponto
de articulação, sendo, portanto, redundantes. Segundo Clements & Hume (1993), o ponto da
consoante pode ser labial, coronal ou dorsal. As consoantes labiais têm como articulador ativo
os lábios, as coronais, a parte frontal da língua e as dorsais envolvem o corpo da língua.
Outros traços que trazem maiores detalhes sobre o ponto de articulação, comumente usados
nas matrizes fonéticas do modelo gerativista, como [posterior] e [alto], não são especificados
Letrônica, Porto Alegre v.2, n.2, p. 16, dezembro 2009.
Haupt, Carine; Berri, André
na representação da GT. Na discussão apresentada por Clements (1985), o autor afirma que
esses traços só precisam ser especificados quando eles são responsáveis pela distinção
fonológica entre segmentos, como é o caso das consoantes com articulação secundária. Em
consoantes plenas esses traços não são especificados.
No entanto, consideramos o detalhe fonético e a questão articulatória importante para
a nossa discussão. A consoante palato-alveolar é [-anterior], traço que surge da presença da
articulação secundária. As consoantes dorsais não têm nenhuma especificação a respeito do
traço [±anterior], mas sabemos que elas são produzidas com a retração e elevação do corpo da
língua e, portanto, podemos dizer que são [-anteriores] e [+altas], assim como as consoantes
palato-alveolares. Quando a sibilante palato-alveolar ocorre em maior frequência nesses
contextos, podemos dizer que a realização de sons com traços em comum é favorecida, como
num processo de assimilação. Mas isso nem sempre ocorre. No caso do estudo feito em João
Pessoa (HORA, 2003), a consoante palato-alveolar é favorecida em contextos de consoante
seguinte que não tem traços em comum, as consoantes coronais [t,d], [+anteriores], tratando-
se, como o próprio autor diz, de um processo de dissimilação. Algo semelhante encontramos
em nossa amostra, em que um dos informantes usou as variantes coronais [-anteriores] [tΣ,
dΖ] e as consoantes alveolares [s,z], que são [+anteriores], em coda.
Em relação ao contexto seguinte labial, novamente, o detalhe fonético tem papel
importante. A configuração dos lábios para a produção dessas consoantes parece indutora
para a produção de uma consoante palato-alveolar, pois estas apresentam uma configuração
labial mais arredondada do que as alveolares [s, z]. Partindo dessas observações, podemos
dizer que as análises do nosso corpus apontam para o fato de que o fenômeno da palatalização
está sendo motivado no sentido de enfatizar semelhanças articulatórias.
Em relação ao contexto antecedente, também podemos fazer inferências semelhantes.
O processo de palatalização é favorecido em contextos antecedentes de vogais dorsais e
labiais. As vogais dorsais favorecem a retração do corpo da língua, enquanto as labiais, além
de também serem posteriorizadas, são produzidas tendo como articuladores ativos os lábios,
responsáveis pelo arredondamento.
A consistência dessas análises a partir da fonologia da GT e dos gestos articulatórios
pode ser reforçada se compararmos os nossos resultados com os de outros estudos,
especialmente a respeito da palatalização. Os resultados do estudo da Brescancini (1996) com
comunidades florianopolitanas e os nossos apontam para comportamentos semelhantes em
6
Essa comparação foi feita a partir dos valores absolutos da ocorrência da palatalização, pois os fatores
tonicidade e vozeamento não foram considerados estatisticamente relevantes na nossa amostra. O mesmo
aconteceu com o fator posição silábica.
- o fato de todas as variáveis sociais terem sido relevantes no processo de palatalização pode
indicar que o falante, mais consciente de sua fala, acabou evidenciando características de sua
faixa etária, escolaridade e gênero.
Com base nesses indícios, poderíamos, talvez, dizer que o fato de o corpus não ser de
fala espontânea tenha influenciado nos resultados referentes à relevância estatística das
variáveis. No entanto, mais estudos com dados de fala não espontânea teriam de ser feitos
para podermos fazer afirmações mais consistentes.
O que podemos avaliar, no momento, é se o uso variável da palatalização se comporta
como marcador linguístico, isto é, se há variação estilística (TARALLO, 1985) na aplicação
da regra. Para tanto, compararemos as porcentagens do uso da variante palato-alveolar nos
contextos das variáveis sociais gênero e escolaridade7. Consideramos o corpus de Brescancini
(1996) como informal, mais próximo do vernáculo; e o nosso, formal, como aquele que não
representaria o vernáculo. Segundo Tarallo (1985, p. 52) “se a escolha entre as variantes for
de natureza estigmatizada ou de prestígio, o estilo formal bloqueará a variante supostamente
estigmatizada”. Temos, então, os seguintes dados:
Observando essa tabela, percebemos que há variação na aplicação da regra nos dois
estilos. As mulheres mais escolarizadas palatalizam menos em situações mais formais. Esses
números apontam para uma provável estigmatização da variável, uma vez que as mulheres,
conforme muitos estudos revelam, preferem a forma padrão. O mesmo podemos dizer em
relação às pessoas mais escolarizadas que, em situações mais formais, em que há um maior
cuidado com a fala, tendem a usar mais a variante prestigiada.
Essas constatações nos fazem repensar a afirmação que fizemos anteriormente de que
a variante palato-alveolar não seria estigmatizada. A questão é complexa e um estudo de
cunho social mais aprofundado da região seria necessário, no entanto, não é nosso objetivo no
7
Não consideramos a variável idade, pois usamos uma estratificação diferente da usada no trabalho de
Brescancini (1996), de modo que não foi possível estabelecer parâmetros para a comparação. Já em relação à
escolaridade, juntamos dois fatores, a saber, ‘de zero a 4 anos’ e ‘de 4 a 8 anos de escolaridade’, da pesquisa da
autora referida em um único fator - ‘até 8 anos’ - para poder fazer um paralelo com o nosso estudo.
momento. O que podemos dizer, a partir do que pesquisamos até então, é que a Freguesia do
Ribeirão foi povoada por imigrantes açorianos, o que se reflete inclusive na arquitetura do
lugar, e que a localidade é do interior do município, tendo, ainda, como atividade econômica
mais difundida a pesca. Mas o progresso/crescimento econômico, o turismo, a migração estão
atingindo o local. Resta saber em que proporção isso acontece e até que ponto isso influi na
estigmatização da variante palatalizada do arquifonema /S/.
Vimos, portanto, com essa discussão acerca de nossos dados e da comparação dos
mesmos com um estudo de fala espontânea, que a Fonologia da Geometria de Traços é um
modelo capaz de fornecer subsídios básicos para explicar os fenômenos da palatalização, mas,
às vezes, é interessante ir um pouco além e se deter na questão dos gestos articulatórios
envolvidos na produção dos sons para apresentar explicações mais consistentes. Vimos
também que, apesar desses temas já terem sido estudados, questões novas ainda podem ser
discutidas, como por exemplo, o papel do monitoramento da fala nos processos envolvidos.
Referências
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Filologia da UFRJ. Tempo Brasileira: Rio de Janeiro, 1996.
Recebido: 04.07.2009
Aceito: 16.09.2009
Contato: [email protected] / [email protected]