Relatorio Chacinas-Policiais Geni 2023
Relatorio Chacinas-Policiais Geni 2023
Relatorio Chacinas-Policiais Geni 2023
Relatório de Pesquisa
Elaboração:
Daniel Hirata
Carolina Christoph Grillo
Renato Coelho Dirk
Diogo Azevedo Lyra
Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos - GENI
Universidade Federal Fluminense
Pesquisadores colaboradores:
Cinthia Alves
Marcelo Lopes
Rafaella Naves
Instituições parceiras:
Fogo Cruzado
Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da
Defensoria Pública do Rio de Janeiro
Apoio:
2. Direcionamento do uso da
forçA estatal em chacinas policiais | PÁg 11
4. Impunidade | PÁg 18
No dia 6 de maio de 2021 ocorreu no bairro do Jacarezinho, zona norte da cidade do Rio de
Janeiro, a mais letal chacina policial da história do estado, que completa agora 2 anos. Uma
operação da Polícia Civil resultou em 28 mortes, parte delas com indícios de execução sumária,
contudo, até o presente nenhum dos policiais autores da chacina foi legalmente responsabili-
zado ou tampouco houve alguma ação reparatória por parte do Estado. Muito pelo contrário,
a resposta do governo estadual foi iniciar uma ocupação policial no Jacarezinho, intitulada
“Cidade Integrada”, que envolveu abordagens abusivas a moradores, invasão de suas casas e
subtração de seus bens, fazendo com que 69% relatassem maior insegurança com este tipo
de presença da polícia no bairro1. Até mesmo a memória das vítimas foi ultrajada pela ação de
policiais civis que realizaram uma operação para destruir o memorial erguido em homenagem
aos 28 mortos quando a chacina completou um ano. Por ocasião do segundo ano transcorrido
desde a Chacina do Jacarezinho, a fim de que esse massacre jamais seja esquecido, que seus
autores sejam responsabilizados e de que chacinas como essas parem de se repetir, apresenta-
mos aqui o segundo relatório do GENI/UFF sobre chacinas policiais.
As chacinas policiais são a face mais trágica da letalidade policial, que é um dos mais graves
e persistentes problemas públicos no Brasil e, em particular, no Rio de Janeiro. Neste estado,
grande parte dos homicídios são praticados por policiais em serviço, fenômeno que vem sendo
denominado “estatização das mortes”2. A violência policial está presente em todo o Brasil, con-
tudo, o estado do Rio de Janeiro concentrou 22,1% do total das mortes decorrentes da ação
policial registradas no país em 2021, ainda que tivesse participação de apenas 10% das mortes
violentas intencionais.
O processo de estatização das mortes ocorre de forma concentrada quando observamos a
frequência de chacinas policiais. No período entre 2007-2022, foram realizadas 19.198 opera-
ções policiais no Rio de Janeiro. Deste total, 629 operações policiais resultaram em chacinas,
totalizando 2554 mortos. Na Região Metropolitana do Rio de Janeiro as chacinas ocorreram
em 3,3% das operações policiais, mas são responsáveis por 40% das mortes em operações po-
liciais. Isso nos permite afirmar que as chacinas policiais são um fenômeno de alta concentra-
ção de mortes em eventos regulares específicos, visto que ocorrem em uma pequena parte da
imensa quantidade de operações policiais realizadas todos os dias no Rio de Janeiro, mas têm
1. Observatório Cidade Integrada. 2022. Avaliação do Programa Cidade Integrada. Relatório de Pesquisa. Rio de Janeiro. Disponível em: https://
www.observatoriocidadeintegrada.org/
um peso muito importante no total da letalidade em operações policiais. Desta forma, uma
possível atuação para evitar esse tipo de ocorrência teria um impacto importante não apenas
na própria ocorrência de chacinas, que são eventos por si só inaceitáveis, como também no
volume total da letalidade em operações policiais. Adicionalmente, as mortes em chacinas re-
presentam 17% do conjunto das mortes por intervenção de agentes do Estado no período, o
que nos indica também uma participação muito grande das chacinas na letalidade policial
como um todo.
Esta alta concentração indica uma característica bastante específica da letalidade policial
no Rio de Janeiro, que se perpetua e se agrava com a condescendência dos poderes públicos
estaduais. De um lado, destacamos a anuência por parte do Governo do Estado, que incentiva
a rotinização e institucionalização da violência de Estado sob a forma do fenômeno que desig-
namos aqui como mega chacinas policiais (chacinas com mais de 8 mortos). Por outro lado,
cumpre também destacar que o sistema de justiça vem falhando em sua tarefa de fiscalização
do uso da força pelo Estado e garantindo impunidade aos autores de chacinas policiais, contri-
buindo assim para estimular a brutalidade policial.
É com vistas a tematizar a questão das mega chacinas policiais e da impunidade que respal-
da o a rotinização das mortes que, no presente relatório, além de atualizar os dados descritivos
sobre as chacinas policiais divulgados anteriormente, acrescentamos também a características
das mega chacinas policiais e uma breve e suscinta análise do fluxo de processamento das 27
chacinas policiais mais letais ocorridas entre os anos de 2007 e 2022. Assim, este relatório se
dedica a caracterizar as chacinas policiais no que concerne a:
1. Participação das chacinas policiais no total de chacinas, incluídas as praticadas por grupos
armados e as motivações das operações que as ensejaram;
2. Distribuição das chacinas policiais por locais de ocorrência e grupo armado predominante;
4. Análise do processamento na justiça das 27 mega chacinas policiais (com 8 ou mais mortos)
ocorridas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro entre os anos de 2007 e 2022.
1. Chacinas policiais:
a estatização das mortes
No Brasil, o termo “chacina” é adotado por pesquisadores para se referir a ocorrências com
três ou mais mortes violentas intencionais. A expressão “chacina policial”, por sua vez, refere-se
exclusivamente às ocorrências com três ou mais mortes decorrentes de ações policiais. Portanto,
podem ocorrer chacinas praticadas por grupos armados, como as facções do tráfico de drogas,
milícias e grupos de extermínio – incluindo aquelas praticadas por policiais fora de serviço envol-
vidos nessas organizações –, como também chacinas policiais, perpetradas por agentes públicos
das forças policiais em horário de serviço e cujas ações são avalizadas pelas autoridades políticas
e policiais. Para situar a relevância da escolha das chacinas policiais como o objeto deste relató-
rio, mostramos abaixo a proporção dessas diante da quantidade total de chacinas, calculada com
base em dados do Instituto Fogo Cruzado. Como pode ser visto nos gráficos 1 e 2, deparamo-nos
com o surpreendente dado de que as polícias são responsáveis pela maior parte das chacinas e
das mortes em chacinas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
GRÁFICO 1
Porcentagem de chacinas policiais do total de chacinas
(Região Metropolitana do Rio de Janeiro, 2017-2022)
100
80
70 80,4
79,0
60 75,0 75,4
67,7
50
61,5
40
30
20
10
0
2017 2018 2019 2020 2021 2022
GRÁFICO 2
Porcentagem de mortos em chacinas policiais do total de mortos em chacinas
(Região Metropolitana do Rio de Janeiro, 2017-2022)
100
36,9 30,6 21,6 21,3 22,9 13,0
90
80 87,0
60 69,4
63,1
50
40
30
20
10
0
2017 2018 2019 2020 2021 2022
Os dados do Instituto Fogo Cruzado mostram que, além de a Região Metropolitana do Rio
de Janeiro ser extremamente violenta, essa violência é impulsionada pelas forças policiais,
pois 252 das 341 chacinas notificadas entre 2017-2022 foram realizadas em ações/operações
policiais e 1024 dos 1342 mortos em chacinas perderam suas vidas nessas circunstâncias.
Ademais, a porcentagem de chacinas policiais e de mortos nessas situações vem aumentan-
do nos últimos anos, 2022 foi o ano em que 80,4% das chacinas e 87% das mortes em cha-
cinas foram perpetradas por policiais. Isto significa que as forças policiais cometem muito
mais chacinas com muito mais vítimas letais em eventos desse tipo do que todos os grupos
armados somados.
mento ocupa no conjunto das motivações para operações policiais. Por meio da descrição das
motivações das operações policiais é possível inferir que tipo de circunstância antecede ou
desencadeia uma chacina.
Dentre as motivações classificadas na base do GENI/UFF estão: repressão ao tráfico de dro-
gas e armas, disputas entre grupos criminais, mandado de prisão ou busca e apreensão ou
prisão, retaliação por morte ou ataque a unidade policial, fuga ou perseguição, recuperação
de bens roubados, outros e sem informações. Para analisar a relação entre a motivação das
operações policiais e as chacinas policiais, calculamos com respeito ao total de operações rea-
lizadas sob cada uma das motivações registradas, qual porcentagem delas foi de chacinas. O
gráfico abaixo (gráfico 3) mostra que 13% das operações policiais motivadas por “disputa entre
grupos criminais” e 4,9% daquelas motivadas “fuga ou perseguição” resultam em chacinas, ao
passo que as operações motivadas por “recuperação de bens roubados” e “mandado de busca
e apreensão ou prisão” apresentam menor percentual de chacinas, sendo 1,7% e 2,2% respec-
tivamente. Em média 3,3% das operações resultam em chacinas.
GRÁFICO 3
Porcentagem de chacinas policiais do total de operações policiais segundo motivação
(2007-2021, Rio de Janeiro)
14,0 13,0
12,0
10,0
8,0
6,0 4,9
3,6 3,5
4,0
[média: 3,3]
2,0
2,2 1,8 3,0 2,5
0,0
Disputa entre Fuga/ Retaliação por Repressão ao Mandado de Recuperação Sem informação Outros
grupos criminais perseguição morte ou ataque tráfico de armas busca e de bens
e drogas apreensão
ou prisão
Fonte:
GENI/UFF Acima da média Na média Abaixo da média Outros
1 . Ch aci nas po l i ci ai s: a estatização das m ortes 9
Já o gráfico 4 mostra com relação à letalidade em operações realizadas sob cada motivação,
qual a porcentagem dessas mortes que ocorreram em chacinas policiais. Como pode ser visto,
“disputa entre grupos criminais” desponta como a motivação com maior percentual de mortos
em chacinas (68,5%), contudo, para a nossa surpresa, 64,7% das mortes em operações motivadas
por “mandado de busca e apreensão ou prisão” ocorreram em chacinas. Isso se deve ao fato de
essas operações serem geralmente menos letais, mas apresentarem como exceção algumas mega
chacinas policiais, como a do Jacarezinho, que apresentaram essa motivação como justificativa.
GRÁFICO 4
Porcentagem de mortos em chacinas policiais
do total de mortos em operações policiais segundo motivação
(2007-2021, Rio de Janeiro)
80,0
70,0
68,5
64,7
60,0
50,0
41,6 42,0
40,0 35,0 37,5 [média: 41,4]
30,0
37,7
31,4
20,0
10,0
0,0
Disputa entre Fuga/ Retaliação por Repressão ao Mandado de Recuperação Sem informação Outros
grupos criminais perseguição morte ou ataque tráfico de armas busca e de bens
e drogas apreensão
Fonte: ou prisão
GENI/UFF
Segundo os dados do Mapa Histórico dos Grupos Armados no Rio de Janeiro3, houve um
aumento de 131% da área do Grande Rio sob domínio territorial de grupos armados como as
facções do tráfico de drogas e as milícias entre os anos de 2006-2021. O fato é que, sob a jus-
tificativa do enfrentamento aos grupos armados em operações policiais, as polícias praticam
muito mais chacinas do que todos os grupos criminais armados somados, o que nos permite
questionar a eficiência dessa orientação política voltada para ações reativas e repressivas no
Rio de Janeiro. O mais correto seria dizer que a atuação policial vem se consolidando como
parte do problema da violência armada e não como parte da solução, uma vez que o vigente
processo de estatização das mortes coincidiu com a expansão do controle territorial armado.
3. Projeto desenvolvido em parceria entre o GENI/UFF e o Instituto Fogo Cruzado. Ver: Hirata, D. et al. 2022. Mapa Histórico dos Grupos Armados no
Rio de Janeiro. Relatório de Pesquisa. Disponível em: https://geni.uff.br/2022/09/13/mapa-historico-dos-grupos-armados-no-rio-de-janeiro/
2. Direcionamento do uso da
força estatal em chacinas policiais
Deve-se acrescer ao fato de a atuação policial no enfrentamento dos grupos armados ser um
impulsionador da violência letal, pormenorizar de que forma o direcionamento do uso da força
é feito para o conjunto dos grupos armados. Por esta razão é importante caracterizar os lugares
onde ocorrem essas ações, pois as chacinas policiais não ocorrem de forma homogênea em toda
a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Considerando o total de chacinas policiais realizadas,
63,4% ocorreram na capital (399 ocorrências, com 1706 mortos), 22,3% na Baixada Fluminense
(140 ocorrências, com 525 mortos) e 14,3% no Leste Fluminense (90 ocorrências, com 322 mor-
tos), portanto, a região que concentra o maior número de chacinas é a capital, seguida da Baixa-
da Fluminense e do Leste Fluminense. No Leste Fluminense, os municípios que concentram o
maior número de chacinas foram São Gonçalo (47 chacinas) e Niterói (39 chacinas), na Baixada
Fluminense Belford Roxo (41 chacinas) e Duque de Caixas (34 chacinas) apresentaram a maior
frequência de eventos registrados. A tabela abaixo (Tabela 2) traz a listagem dos 10 municípios da
Região Metropolitana do Rio de Janeiro com maior número de chacinas e de mortos em chacinas.
Tabela 1
Chacinas policiais e mortos em chacinas policiais por município
(Números absolutos e porcentagens, 2007-2022, Região Metropolitana do Rio de Janeiro)
Fonte: GENI/UFF
2 . D i r eci o nam e nto do us o da força estatal em c h ac in as pol ic ia is 12
Dentre os 10 bairros com maior frequência de chacinas da capital, encontramos Costa Bar-
ros (27 chacinas e 106 mortes), Maré (23 chacinas e 107 mortes), Penha (22 chacinas e 118 mor-
tes), Vicente de Carvalho (20 chacinas e 93 mortes), Jacarezinho (19 chacinas e 112 mortes),
Santa Cruz (19 chacinas e 75 mortes), Senador Camará (18 chacinas e 73 mortes), Bangu (16
chacinas e 59 mortes), Complexo do Alemão (14 chacinas e 91 mortes) e Cidade de Deus (11
chacinas e 47 mortes).
Existem diversos fatores para compreender por que determinado município ou bairro apre-
senta uma ocorrência maior de chacinas e de mortes. Contudo, desde o relatório anterior do
GENI/UFF sobre as chacinas policiais, apontamos que o controle territorial armado é fator cen-
tral para interpretar a distribuição espacial das chacinas policiais. Nesta direção, procedemos
ao cruzamento dos dados sobre chacinas policiais com o Mapa dos Grupos Armados do Rio de
Janeiro, como é possível observar no gráfico abaixo (Gráfico 5).
GRÁFICO 5
Distribuição das chacinas policiais e mortos em chacinas
policiais segundo grupo armado predominante nos bairros
(Porcentagens, 2007-2021, Região Metropolitana do Rio de Janeiro)
62,7 63,3
GRÁFICO 6
Participação da letalidade policial na letalidade violenta e quantidade de chacinas policiais
(Porcentagem e números absolutos, 2007-2022, Região Metropolitana do Rio de Janeiro)
40,0 80
75 44 36
35,0 63 70
43
30,0 60
53
61 49
25,0 50
52 32
32 23
20,0 40
20 19 15
15,0 30
12
10,0 20
5,0 10
20,1 18,5 17,1 17,2 12,1 11,2 9,5 12,1 15,4 18,0 19,7 27,0 35,2 30,5 35,4 35,4
0,0 0
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022
Fonte: GENI/UFF
3 . M ega ch aci nas po l i c iais 15
GRÁFICO 7
Distribuição das chacinas policiais segundo a quantidade de mortos
(Porcentagem, 2007-2022, Região Metropolitana do Rio de Janeiro)
80,0
70,9
70,0
58,4 58,2
60,0 53,9
50,0
40,0 37,0
28,8
30,0 23,4 23,4
18,5
20,0
12,9
9,2
10,0 5,6
0,0
3-4 5-7 8 mortos 3-4 5-7 8 mortos 3-4 5-7 8 mortos 3-4 5-7 8 mortos
mortos mortos ou mais mortos mortos ou mais mortos mortos ou mais mortos mortos ou mais
Fonte:
GENI/UFF 2007 - 2009 2010 - 2013 2014 - 2019 2020-2022
GRÁFICO 8
Número de mortos por mega chacina policial
(Números absolutos, 2007-2022, Região Metropolitana do Rio de Janeiro)
30 27
25 23
19
20
16
15
15 13
12 12 12
11
10
9 9 9
8 8 8 8 8 8 8 8 8 8 8 8 8
10
0
abr/07
jun/07
jun/07
out/07
abr/08
abr/08
qgo/08
out/09
fev/10
nov/10
jun/11
jun/13
nov/17
mar/18
ago/18
fev/19
mai/19
jul/19
mai/20
out/20
jan/21
mai/21
nov/21
fev/22
mai/22
jul/22
nov/22
Fonte:
GENI/UFF 2007 - 2009 2010 - 2013 2014 - 2019 2020-2022
De todas as 629 chacinas que ocorreram entre 2007-2022, apenas 27 delas (4,2%) apresen-
taram 8 ou mais mortos, podendo ser caracterizadas como mega chacinas policiais. Um terço
dessas 27 mega chacinas (9) se concentram no período de 2020-2022, sendo que dessas, en-
contramos a mais letal (Jacarezinho, com 27 mortos civis, em maio de 2021), a segunda mais
letal (Penha, com 23 mortos, em maio de 2022) e a quarta mais letal (Alemão, com 16 mortos,
em julho de 2022). Podemos então dizer que o processo de estatização das mortes, no qual a
letalidade das polícias se torna cada vez mais significativa para o conjunto total das mortes, se
encontrou nos últimos anos com a realidade das mega chacinas policiais, que são não apenas
escandalosamente mortais, mas também cada vez mais recorrentes.
4. Impunidade
O poder executivo estadual tem sido bastante explícito ao endossar a suposta legitimidade
e legalidade das mega chacinas policiais ocorridas durante o seu mandato. Mas diante desse
total descontrole sobre o uso da força estatal, cabe indagar o que está sendo feito pelo sistema
de justiça para submeter as instituições policiais à Lei e, assim, assegurar o respeito do direito à
vida da população pobre, negra e favelada. Tal estado de coisas não poderia se perpetuar sem
a leniência do Ministério Público e da Justiça estaduais, instituições encarregadas, respectiva-
mente, da fiscalização da atividade policial e da responsabilização legal de criminosos.
A impunidade das mortes perpetradas por agentes de estado tem sido objeto de investiga-
ção de importantes pesquisas realizadas no Rio de Janeiro e outros estados, desde os traba-
lhos de Verani4 e Cano5 que trataram dos então chamados “autos de resistência” quando ainda
processados pela justiça militar. Muito anos após esses casos terem passado a ser de compe-
tência da justiça comum, estudos como o de Misse et al.6, Zaccone7, Araújo8, Farias9 e, mais
recentemente, do Fórum Justiça10 apontaram a indiferença legal e a impunidade como ele-
mentos centrais e determinantes para a continuidade da letalidade policial no Rio de Janeiro.
No estado do Rio de Janeiro, tamanha é a presunção de verdade da palavra do policial
que vige a Súmula nº 70, segundo a qual “o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos
de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação.”11 A mesma fé pública
que confere à palavra dos policiais o status de prova única e suficiente para condenar um réu
serve também como prova definitiva de que as mortes por intervenção por agentes do Estado
ocorrem sempre em legítima defesa. Não se trata aqui de negar que ocorram confrontos entre
polícia e grupos armados, mas de constatar que há desproporcionalidade no uso da força por
parte da polícia, ausência do emprego de cautelas destinadas à defesa da vida e que ocor-
rem execuções sumárias escamoteadas como legítimas defesas. As mega chacinas policiais,
4. Verani, S. 1996. Assassinatos em nome da lei: uma prática ideológica do direito penal. Rio de Janeiro: Aldebarã.
5. CANO, I. 1997. Letalidade da ação policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ISER.
6. Misse, M. et al. 2013. Quando a polícia mata: homicídios por “auto de resistência” no Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de Janeiro: Booklink.
7. Zaccone, O. 2015. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan.
8. Araújo, F. 2014. Das técnicas de fazer desaparecer corpos. Rio de Janeiro: Lamparina.
9. Farias, J. 2014. Governo de Mortes: Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro. unpublished thesis (phd in sociology).
Federal University of Rio de Janeiro.
10. Forum Justiça. 2022. Letalidade Policial no Rio de Janeiro e Respostas do Ministério Público. Relatório de Pesquisa. Disponível em: https://fo-
rumjustica.com.br/conhecimento/letalidade-policial-no-rio-de-janeiro-e-respostas-do-ministerio-publico/
11. Súmula da Jurisprudência Predominante (Art. 122 RI) nº 2002.146.00001 (Enunciado Criminal nº 02, do TJRJ) - Julgamento em 04/08/2003 -
Votação: unânime - Relator: Des. J. C. Murta Ribeiro - Registro de Acórdão em 05/03/2004 - fls. 565/572.
4 . I m p u ni dad e 19
com elevado número de vítimas, são emblemáticas nesse sentido. Como argumentar que 27
pessoas foram mortas em legítima defesa? A fórmula habitual da impunidade não pode ser
aplicada tão facilmente às chacinas.
No entanto, o que pudemos observar é que o mesmo padrão de impunidade característico
ao processamento legal dos casos ordinários de letalidade policial se repete no que tange as
mega chacinas policiais. A fim de proceder a uma análise do fluxo de processamento dos ca-
sos, identificamos na base de operações policiais do GENI/UFF as 27 maiores chacinas policiais
entre 2007 e 2022. Abaixo a listagem (Tabela 2).
Tabela 2
Listagem das mega chacinas policiais, número de mortos e localização do processo
(números absolutos, 2007-2022, Região Metropolitana do Rio de Janeiro)
Fonte: GENI/UFF
Com base no caminho percorrido pelos casos de mega chacinas identificadas e na fase do
processamento legal em que cada um se encontra, elaboramos uma figura (Gráfico 9) para a
melhor visualização dos dados obtidos.
Gráfico 9
Situação do processamento legal das mega chacinas policiais
(2007-2022, Região Metropolitana do Rio de Janeiro)
arquivado
Não localizado (TJRJ)
Fonte: GENI/UFF
Como pode ser visto, dois processos foi encerrados até o presente, sendo eles arquivados.
Apenas 2 casos foram denunciados pelo Ministério Público à Justiça e nenhum deles concluiu
a fase de instrução e julgamento, isto é, nenhum deles chegou a ser pronunciado ou impro-
nunciado no Tribunal do Júri e, portanto, não foi ao julgamento decisivo pelos jurados. Há
dois casos que estão sendo investigados por meio de um Procedimento Investigatório Criminal
4 . I m p u n i dad e 22
(PIC)12 instaurado pelo próprio MP – logo distinto do inquérito policial, que é instaurado pela
Autoridade Policial – sendo que ambos se encontram em processamento no MP há cerca de
um ano. Outros nove casos ainda se encontram em fase de Inquérito Policial e o tempo médio
de processamento desses casos, em particular, é de dez anos e quatro meses, forte indicador
de que parte deles se encontra estagnado no “pingue-pongue” entre a PC e o MP13 ou perdidos
em delegacias. Cabe destacar que um número expressivo de casos (12) não foi localizado, o
que constitui um indicador da falta de transparência do Sistema de Justiça Criminal.
Não surpreende que seja elevado o número de inquéritos policiais em andamento ainda
que a mais recente dentre as chacinas consideradas tenha ocorrido há cerca de um ano. Se-
gundo relatório específico do Instituto de Segurança Pública sobre elucidação policial no Rio
de Janeiro (ISP-RJ, 2021), apenas 31,2% dos casos de morte por intervenção de agente do Es-
tado registrados no ano de 2018 tiveram seu inquérito policial concluído por meio da redação
de um Relatório Final de Investigação nos 24 meses subsequentes ao registro do fato. Esse
percentual é ainda menor (17,7%) quando se trata de homicídios dolosos e maior quando se
trata de policiais mortos em serviço (50%). O percentual a que o ISP se refere como “taxa de
elucidação policial” não se refere à resolução dos casos, pois se trata apenas de uma medida
para avaliar a produtividade policial para encerrar casos independentemente de haver ou não
indiciamento de algum suspeito.
A taxa que se usa internacionalmente para mensurar a resolução de casos é a “taxa de es-
clarecimento”, que se refere ao percentual de casos em que os autores do crime foram iden-
tificados e denunciados à justiça. Segundo pesquisa do Instituto Sou da Paz14 a taxa de es-
clarecimento dos homicídios em até dois anos no Brasil foi de 33% referente ao ano de 2017,
bastante abaixo da média mundial, que é 63%. O estado do Rio de Janeiro foi o que apresentou
o pior desempenho dentre os estados que enviaram dados, tendo esclarecido apenas 11% dos
homicídios registrados. A taxa de esclarecimento, contudo, não se aplica aos casos de morte
por intervenção de agentes do estado. Como advertido por Misse et al.15, estes são casos cuja
autoria é identificada desde a ocasião do Registro de Ocorrência, que é realizado pelo próprio
autor da morte. Não faz sentido calcular uma taxa de esclarecimento quando se trata de inqué-
ritos policiais instaurados para verificar se cabe ou não a aplicação da “excludente de ilicitude”.
No que se refere especificamente aos casos de mega chacinas policiais chama a atenção
o fato de haver tamanha morosidade no processamento de casos que, em tese, mereceriam
maior celeridade e atenção por parte do Sistema de Justiça Criminal, uma vez que se trata de
12. Segundo a Resolução 183 de 24 de janeiro de 2018 do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procedimento Investigatório Criminal é um
“instrumento sumário e desburocratizado de natureza administrativa e investigatória, instaurado e presidido pelo membro do Ministério Público
com atribuição criminal”. Ver: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resoluo-183.pdf
13. Misse et al. (orgs.) 2010. Inquérito Policial no Brasil: Uma pesquisa empírica. Rio de Janeiro: Booklink.
14. Instituto Sou da Paz. 2020. Onde mora a impunidade? 3ª edição. Relatório de pesquisa. Disponível em: https://soudapaz.org/wp-content/uplo-
ads/2020/09/Onde-Mora-a-Impunidade-3%C2%AA-edi%C3%A7%C3%A3o.pdf
15. Misse, M. et al. 2013. Quando a polícia mata: homicídios por “auto de resistência” no Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de Janeiro: Booklink.
4 . I m p u ni dad e 23
casos com um número escandaloso de vítimas letais mortas por agentes públicos que, en-
quanto não são denunciados, continuam atuando nas ruas armados e em nome da Lei e da
ordem. Ao que tudo indica, prevalece nas instituições encarregadas de investigar, fiscalizar e
punir os crimes praticados por policiais o descaso pela vida de pessoas pobres negras e favelas,
ao ponto de permitir que homicídios múltiplos com 8 ou mais vítimas sejam tratados como
legítima defesa ou simplesmente esquecidos.
Considerações finais
Como visto neste relatório, está em curso na Região Metropolitana do Rio de Janeiro um pro-
cesso de estatização das mortes associado à produção de mega chacinas, uma vez que as forças
policiais vêm impulsionando as mortes e atuando em operações altamente letais. Observou-se
também que a principal justificativa dessas operações, as “disputas entre grupos criminais”, são
aquelas nas quais se percebe uma ocorrência de mortes mais frequente, e de forma absurda, sob
esta motivação as polícias cometem muito mais chacinas que os próprios grupos armados. Ade-
mais, pode-se perceber que essa chacinas policiais, justificadas em grande parte como ações de
enfrentamento aos grupos armados são direcionadas a territórios, populações e grupos armados
específicos. Por fim, demonstramos com base na análise das 27 maiores chacinas policiais que a
impunidade é a regra, abrindo um cheque em branco à brutalidade policial.
Parte desse cenário pode ser atribuído ao que denominamos “desencapuzamento das cha-
cinas” 16. Se antes a maioria das chacinas eram praticadas por grupos de extermínio, em sua
maioria formado por policiais da ativa ou reserva, porém fora de serviço, hoje as chacinas são
praticadas principalmente por policiais em serviço, durante ações avalizadas por seus superio-
res hierárquicos e amparadas pela impunidade concedida pelo Sistema de Justiça Criminal.
Este processo histórico foi assentando uma oficialização das chacinas e tornando mais fre-
quente a ocorrência de mega chacinas, de forma que não se pode mais dirigir exclusivamente
a responsabilidade desta brutalidade aos policiais que participam diretamente das operações
que se convertem em chacinas policiais, mas toda a cadeia de comando e controle, incluindo
a autoridade política, também as formas de controle internos (corregedorias) e externos (Minis-
tério Público) e o Sistema de Justiça.
Por fim, uma das mais importantes arenas públicas na disputa política em torno do direito à
vida por parte da população pobre, negra e favelada tem sido a Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental de nº 635 – a chamada ADPF das favelas – que tramita no Supremo
Tribunal Federal desde 2019 e tem como objeto a letalidade policial. Importantes conquistas
de direitos humanos foram obtidas pelos movimentos que lideram a ADPF das favelas, mas o
Governo do Estado e as forças policiais têm oferecido forte resistência ao cumprimento das de-
cisões do STF. Face ao contraditório instalado entre poderes e esferas da federação ensejados
pela ADPF da Favelas, faz-se necessário que o Ministério Público e a Justiça estaduais adotem
uma postura mais firme no controle do uso da força pelas forças policiais.
16. Hirata, D. et al. 2022. Chacinas sem capuz e estatização das mortes. São Paulo: Piauí. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/chacina-sem-
-capuz-e-estatizacao-das-mortes/
Nota metodológica
A base de operações policiais do GENI/UFF serve de insumo para os dados de chacinas po-
liciais deste relatório, que se refere às operações onde ocorrem três ou mais mortes de civis. As
chacinas também foram contabilizadas pela base de tiroteios do Instituto Fogo Cruzado. Nesta
última, são contadas as chacinas envolvendo a presença de policiais – tanto em ação policial
quanto em operação policial – e mais as chacinas que não envolvem a presença da polícia. Já
a contagem de chacinas da base GENI/UFF é feita apenas quando há operação policial. Neste
relatório também consta os resultados da solicitação, à Defensoria Pública do Rio de Janeiro,
sobre a atual situação de cada caso que corresponde às 27 maiores chacinas da RMRJ, àquelas
que tinham oito ou mais mortos em cada evento. As categorias de classificação do fluxo de
justiça criminal se referem ao menos a um dos casos de mortos em chacinas por evento, não
considerando para análise possíveis casos de fraude processual, por exemplo, e, em determi-
nados casos, no mínimo uma das mortes múltiplas dos eventos.
Os dados de chacinas em operações policiais da base GENI/UFF foram conferidos com os
dados de chacinas envolvendo policiais em operações da base do Instituto Fogo Cruzado,
resultando em números e locais de ocorrência mais precisos. Ainda, os dados de operações
policiais com chacinas da base de dados do GENI/UFF foram comparados com dados advin-
dos dos registros de ocorrência da Polícia Civil, e disponibilizados pelo Instituto de Segurança
Pública, sobre “Mortes por Intervenção de Agentes do Estado”. Tal procedimento buscou por
consolidação e conferência do número de chacinas (três ou mais mortos) em cada base, au-
mentando a validade e confiabilidade dos dados do GENI/UFF por meio da checagem com
dados oficiais. Não houve tempo hábil para conferir os dados do ano de 2022 para os dados
do ISP, pois o mesmo não havia ainda disponibilizado os microdados para o público até a
realização do presente relatório.
Estatização das mortes, mega
chacinas policiais e impunidade