Relatorio Chacinas-Policiais Geni 2023

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Estatização das mortes, mega

chacinas policiais e impunidade

Relatório de Pesquisa
Elaboração:
Daniel Hirata
Carolina Christoph Grillo
Renato Coelho Dirk
Diogo Azevedo Lyra
Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos - GENI
Universidade Federal Fluminense

Pesquisadores colaboradores:
Cinthia Alves
Marcelo Lopes
Rafaella Naves

Instituições parceiras:
Fogo Cruzado
Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da
Defensoria Pública do Rio de Janeiro

Apoio:

Projeto gráfico e diagramação:


Beto Paixão
[email protected]

Rio de Janeiro, abril de 2023


Apresentação | PÁg 4

1. Chacinas policiais: a estatização das mortes | PÁg 6

2. Direcionamento do uso da
forçA estatal em chacinas policiais | PÁg 11

3. Mega chacinas policiais | PÁg 14

4. Impunidade | PÁg 18

Considerações finais | PÁg 24

Nota metodológica | PÁg 25


Apresentação

No dia 6 de maio de 2021 ocorreu no bairro do Jacarezinho, zona norte da cidade do Rio de
Janeiro, a mais letal chacina policial da história do estado, que completa agora 2 anos. Uma
operação da Polícia Civil resultou em 28 mortes, parte delas com indícios de execução sumária,
contudo, até o presente nenhum dos policiais autores da chacina foi legalmente responsabili-
zado ou tampouco houve alguma ação reparatória por parte do Estado. Muito pelo contrário,
a resposta do governo estadual foi iniciar uma ocupação policial no Jacarezinho, intitulada
“Cidade Integrada”, que envolveu abordagens abusivas a moradores, invasão de suas casas e
subtração de seus bens, fazendo com que 69% relatassem maior insegurança com este tipo
de presença da polícia no bairro1. Até mesmo a memória das vítimas foi ultrajada pela ação de
policiais civis que realizaram uma operação para destruir o memorial erguido em homenagem
aos 28 mortos quando a chacina completou um ano. Por ocasião do segundo ano transcorrido
desde a Chacina do Jacarezinho, a fim de que esse massacre jamais seja esquecido, que seus
autores sejam responsabilizados e de que chacinas como essas parem de se repetir, apresenta-
mos aqui o segundo relatório do GENI/UFF sobre chacinas policiais.
As chacinas policiais são a face mais trágica da letalidade policial, que é um dos mais graves
e persistentes problemas públicos no Brasil e, em particular, no Rio de Janeiro. Neste estado,
grande parte dos homicídios são praticados por policiais em serviço, fenômeno que vem sendo
denominado “estatização das mortes”2. A violência policial está presente em todo o Brasil, con-
tudo, o estado do Rio de Janeiro concentrou 22,1% do total das mortes decorrentes da ação
policial registradas no país em 2021, ainda que tivesse participação de apenas 10% das mortes
violentas intencionais.
O processo de estatização das mortes ocorre de forma concentrada quando observamos a
frequência de chacinas policiais. No período entre 2007-2022, foram realizadas 19.198 opera-
ções policiais no Rio de Janeiro. Deste total, 629 operações policiais resultaram em chacinas,
totalizando 2554 mortos. Na Região Metropolitana do Rio de Janeiro as chacinas ocorreram
em 3,3% das operações policiais, mas são responsáveis por 40% das mortes em operações po-
liciais. Isso nos permite afirmar que as chacinas policiais são um fenômeno de alta concentra-
ção de mortes em eventos regulares específicos, visto que ocorrem em uma pequena parte da
imensa quantidade de operações policiais realizadas todos os dias no Rio de Janeiro, mas têm

1. Observatório Cidade Integrada. 2022. Avaliação do Programa Cidade Integrada. Relatório de Pesquisa. Rio de Janeiro. Disponível em: https://
www.observatoriocidadeintegrada.org/

2. Ver texto do Observatório da Segurança publicado em 2019 em: http://observatorioseguranca.com.br/operacoes-policiais-no-rio-mais-frequen-


tes-mais-letais-mais-assustadoras/
A p r ese n tação 5

um peso muito importante no total da letalidade em operações policiais. Desta forma, uma
possível atuação para evitar esse tipo de ocorrência teria um impacto importante não apenas
na própria ocorrência de chacinas, que são eventos por si só inaceitáveis, como também no
volume total da letalidade em operações policiais. Adicionalmente, as mortes em chacinas re-
presentam 17% do conjunto das mortes por intervenção de agentes do Estado no período, o
que nos indica também uma participação muito grande das chacinas na letalidade policial
como um todo.
Esta alta concentração indica uma característica bastante específica da letalidade policial
no Rio de Janeiro, que se perpetua e se agrava com a condescendência dos poderes públicos
estaduais. De um lado, destacamos a anuência por parte do Governo do Estado, que incentiva
a rotinização e institucionalização da violência de Estado sob a forma do fenômeno que desig-
namos aqui como mega chacinas policiais (chacinas com mais de 8 mortos). Por outro lado,
cumpre também destacar que o sistema de justiça vem falhando em sua tarefa de fiscalização
do uso da força pelo Estado e garantindo impunidade aos autores de chacinas policiais, contri-
buindo assim para estimular a brutalidade policial.
É com vistas a tematizar a questão das mega chacinas policiais e da impunidade que respal-
da o a rotinização das mortes que, no presente relatório, além de atualizar os dados descritivos
sobre as chacinas policiais divulgados anteriormente, acrescentamos também a características
das mega chacinas policiais e uma breve e suscinta análise do fluxo de processamento das 27
chacinas policiais mais letais ocorridas entre os anos de 2007 e 2022. Assim, este relatório se
dedica a caracterizar as chacinas policiais no que concerne a:

1. Participação das chacinas policiais no total de chacinas, incluídas as praticadas por grupos
armados e as motivações das operações que as ensejaram;

2. Distribuição das chacinas policiais por locais de ocorrência e grupo armado predominante;

3. Caracterização das mega chacinas policiais

4. Análise do processamento na justiça das 27 mega chacinas policiais (com 8 ou mais mortos)
ocorridas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro entre os anos de 2007 e 2022.
1. Chacinas policiais:
a estatização das mortes

No Brasil, o termo “chacina” é adotado por pesquisadores para se referir a ocorrências com
três ou mais mortes violentas intencionais. A expressão “chacina policial”, por sua vez, refere-se
exclusivamente às ocorrências com três ou mais mortes decorrentes de ações policiais. Portanto,
podem ocorrer chacinas praticadas por grupos armados, como as facções do tráfico de drogas,
milícias e grupos de extermínio – incluindo aquelas praticadas por policiais fora de serviço envol-
vidos nessas organizações –, como também chacinas policiais, perpetradas por agentes públicos
das forças policiais em horário de serviço e cujas ações são avalizadas pelas autoridades políticas
e policiais. Para situar a relevância da escolha das chacinas policiais como o objeto deste relató-
rio, mostramos abaixo a proporção dessas diante da quantidade total de chacinas, calculada com
base em dados do Instituto Fogo Cruzado. Como pode ser visto nos gráficos 1 e 2, deparamo-nos
com o surpreendente dado de que as polícias são responsáveis pela maior parte das chacinas e
das mortes em chacinas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

GRÁFICO 1
Porcentagem de chacinas policiais do total de chacinas
(Região Metropolitana do Rio de Janeiro, 2017-2022)

100

90 38,5 32,3 21,0 25,0 24,6 19,6

80

70 80,4
79,0
60 75,0 75,4
67,7
50
61,5
40

30

20

10

0
2017 2018 2019 2020 2021 2022

Porcentagem de chacinas sem participação das polícias

Porcentagem de chacinas com participação das polícias Fonte: Fogo Cruzado


1 . Ch aci nas po l i ci ai s: a estatização das m ortes 7

GRÁFICO 2
Porcentagem de mortos em chacinas policiais do total de mortos em chacinas
(Região Metropolitana do Rio de Janeiro, 2017-2022)

100
36,9 30,6 21,6 21,3 22,9 13,0
90

80 87,0

70 78,4 78,7 77,1

60 69,4
63,1
50

40

30

20

10

0
2017 2018 2019 2020 2021 2022

Porcentagem de mortos em chacinas sem participação das polícias

Porcentagem de chacinas com participação das polícias Fonte: Fogo Cruzado

Os dados do Instituto Fogo Cruzado mostram que, além de a Região Metropolitana do Rio
de Janeiro ser extremamente violenta, essa violência é impulsionada pelas forças policiais,
pois 252 das 341 chacinas notificadas entre 2017-2022 foram realizadas em ações/operações
policiais e 1024 dos 1342 mortos em chacinas perderam suas vidas nessas circunstâncias.
Ademais, a porcentagem de chacinas policiais e de mortos nessas situações vem aumentan-
do nos últimos anos, 2022 foi o ano em que 80,4% das chacinas e 87% das mortes em cha-
cinas foram perpetradas por policiais. Isto significa que as forças policiais cometem muito
mais chacinas com muito mais vítimas letais em eventos desse tipo do que todos os grupos
armados somados.

A principal justificativa para a realização de operações policiais de incursão em favelas e


bairros periféricos costuma ser justamente a de combater esses grupos, considerados os prin-
cipais responsáveis pela violência urbana. Por isso é fundamental compreender as motivações
das operações policiais que resultam em chacinas, para saber qual o peso que este enfrenta-
1 . Ch aci nas po l i ci ai s: a estatização das m ortes 8

mento ocupa no conjunto das motivações para operações policiais. Por meio da descrição das
motivações das operações policiais é possível inferir que tipo de circunstância antecede ou
desencadeia uma chacina.
Dentre as motivações classificadas na base do GENI/UFF estão: repressão ao tráfico de dro-
gas e armas, disputas entre grupos criminais, mandado de prisão ou busca e apreensão ou
prisão, retaliação por morte ou ataque a unidade policial, fuga ou perseguição, recuperação
de bens roubados, outros e sem informações. Para analisar a relação entre a motivação das
operações policiais e as chacinas policiais, calculamos com respeito ao total de operações rea-
lizadas sob cada uma das motivações registradas, qual porcentagem delas foi de chacinas. O
gráfico abaixo (gráfico 3) mostra que 13% das operações policiais motivadas por “disputa entre
grupos criminais” e 4,9% daquelas motivadas “fuga ou perseguição” resultam em chacinas, ao
passo que as operações motivadas por “recuperação de bens roubados” e “mandado de busca
e apreensão ou prisão” apresentam menor percentual de chacinas, sendo 1,7% e 2,2% respec-
tivamente. Em média 3,3% das operações resultam em chacinas.

GRÁFICO 3
Porcentagem de chacinas policiais do total de operações policiais segundo motivação
(2007-2021, Rio de Janeiro)

14,0 13,0

12,0

10,0

8,0

6,0 4,9
3,6 3,5
4,0
[média: 3,3]
2,0
2,2 1,8 3,0 2,5
0,0
Disputa entre Fuga/ Retaliação por Repressão ao Mandado de Recuperação Sem informação Outros
grupos criminais perseguição morte ou ataque tráfico de armas busca e de bens
e drogas apreensão
ou prisão
Fonte:
GENI/UFF Acima da média Na média Abaixo da média Outros
1 . Ch aci nas po l i ci ai s: a estatização das m ortes 9

Já o gráfico 4 mostra com relação à letalidade em operações realizadas sob cada motivação,
qual a porcentagem dessas mortes que ocorreram em chacinas policiais. Como pode ser visto,
“disputa entre grupos criminais” desponta como a motivação com maior percentual de mortos
em chacinas (68,5%), contudo, para a nossa surpresa, 64,7% das mortes em operações motivadas
por “mandado de busca e apreensão ou prisão” ocorreram em chacinas. Isso se deve ao fato de
essas operações serem geralmente menos letais, mas apresentarem como exceção algumas mega
chacinas policiais, como a do Jacarezinho, que apresentaram essa motivação como justificativa.

GRÁFICO 4
Porcentagem de mortos em chacinas policiais
do total de mortos em operações policiais segundo motivação
(2007-2021, Rio de Janeiro)

80,0

70,0
68,5
64,7
60,0

50,0
41,6 42,0
40,0 35,0 37,5 [média: 41,4]

30,0
37,7
31,4
20,0

10,0

0,0
Disputa entre Fuga/ Retaliação por Repressão ao Mandado de Recuperação Sem informação Outros
grupos criminais perseguição morte ou ataque tráfico de armas busca e de bens
e drogas apreensão
Fonte: ou prisão
GENI/UFF

Os gráficos acima revelam, portanto, que comparada às demais motivações, a “disputa


entre grupos criminais” apresenta maior probabilidade de resultar em chacinas e mortos em
chacinas. De fato, para intervir em zonas conflagradas por conflitos entre grupos armados, as
forças policiais muito frequentemente atuam com uso irrestrito da força, amparando-se na
justificativa de que se trata de uma guerra e tratando, portando, as áreas em disputa como
territórios hostis. Em vez de zelar pela segurança dos moradores que se encontram no “fogo
cruzados” desses confrontos, as polícias frequentemente colaboram para agravar ainda mais a
situação, praticando chacinas.
1 . Ch aci nas po l i ci ai s: a estatização das m ortes 10

Segundo os dados do Mapa Histórico dos Grupos Armados no Rio de Janeiro3, houve um
aumento de 131% da área do Grande Rio sob domínio territorial de grupos armados como as
facções do tráfico de drogas e as milícias entre os anos de 2006-2021. O fato é que, sob a jus-
tificativa do enfrentamento aos grupos armados em operações policiais, as polícias praticam
muito mais chacinas do que todos os grupos criminais armados somados, o que nos permite
questionar a eficiência dessa orientação política voltada para ações reativas e repressivas no
Rio de Janeiro. O mais correto seria dizer que a atuação policial vem se consolidando como
parte do problema da violência armada e não como parte da solução, uma vez que o vigente
processo de estatização das mortes coincidiu com a expansão do controle territorial armado.

3. Projeto desenvolvido em parceria entre o GENI/UFF e o Instituto Fogo Cruzado. Ver: Hirata, D. et al. 2022. Mapa Histórico dos Grupos Armados no
Rio de Janeiro. Relatório de Pesquisa. Disponível em: https://geni.uff.br/2022/09/13/mapa-historico-dos-grupos-armados-no-rio-de-janeiro/
2. Direcionamento do uso da
força estatal em chacinas policiais

Deve-se acrescer ao fato de a atuação policial no enfrentamento dos grupos armados ser um
impulsionador da violência letal, pormenorizar de que forma o direcionamento do uso da força
é feito para o conjunto dos grupos armados. Por esta razão é importante caracterizar os lugares
onde ocorrem essas ações, pois as chacinas policiais não ocorrem de forma homogênea em toda
a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Considerando o total de chacinas policiais realizadas,
63,4% ocorreram na capital (399 ocorrências, com 1706 mortos), 22,3% na Baixada Fluminense
(140 ocorrências, com 525 mortos) e 14,3% no Leste Fluminense (90 ocorrências, com 322 mor-
tos), portanto, a região que concentra o maior número de chacinas é a capital, seguida da Baixa-
da Fluminense e do Leste Fluminense. No Leste Fluminense, os municípios que concentram o
maior número de chacinas foram São Gonçalo (47 chacinas) e Niterói (39 chacinas), na Baixada
Fluminense Belford Roxo (41 chacinas) e Duque de Caixas (34 chacinas) apresentaram a maior
frequência de eventos registrados. A tabela abaixo (Tabela 2) traz a listagem dos 10 municípios da
Região Metropolitana do Rio de Janeiro com maior número de chacinas e de mortos em chacinas.

Tabela 1
Chacinas policiais e mortos em chacinas policiais por município
(Números absolutos e porcentagens, 2007-2022, Região Metropolitana do Rio de Janeiro)

Município Chacinas Chacinas Mortos em Chacinas Mortos em Chacinas


(Números absolutos) (Porcentagem) (Números absolutos) (Porcentagem)

1. Rio de Janeiro 399 63,4% 1706 66,8%


2. São Gonçalo 47 7,5% 165 6,5%
3. Belford Roxo 41 6,5% 159 6,2%
4. Niterói 39 6,2% 139 5,4%
5. Duque de Caxias 34 5,4% 131 5,1%
6. Nova Iguaçu 22 3,5% 79 3,1%
7. Japeri 18 2,9% 62 2,4%
8. Mesquita 6 1,0% 19 0,7%
9. São João do Meriti 6 1,0% 19 0,7%
10. Itaboraí 4 0,6% 18 0,7%

Fonte: GENI/UFF
2 . D i r eci o nam e nto do us o da força estatal em c h ac in as pol ic ia is 12

Dentre os 10 bairros com maior frequência de chacinas da capital, encontramos Costa Bar-
ros (27 chacinas e 106 mortes), Maré (23 chacinas e 107 mortes), Penha (22 chacinas e 118 mor-
tes), Vicente de Carvalho (20 chacinas e 93 mortes), Jacarezinho (19 chacinas e 112 mortes),
Santa Cruz (19 chacinas e 75 mortes), Senador Camará (18 chacinas e 73 mortes), Bangu (16
chacinas e 59 mortes), Complexo do Alemão (14 chacinas e 91 mortes) e Cidade de Deus (11
chacinas e 47 mortes).
Existem diversos fatores para compreender por que determinado município ou bairro apre-
senta uma ocorrência maior de chacinas e de mortes. Contudo, desde o relatório anterior do
GENI/UFF sobre as chacinas policiais, apontamos que o controle territorial armado é fator cen-
tral para interpretar a distribuição espacial das chacinas policiais. Nesta direção, procedemos
ao cruzamento dos dados sobre chacinas policiais com o Mapa dos Grupos Armados do Rio de
Janeiro, como é possível observar no gráfico abaixo (Gráfico 5).

GRÁFICO 5
Distribuição das chacinas policiais e mortos em chacinas
policiais segundo grupo armado predominante nos bairros
(Porcentagens, 2007-2021, Região Metropolitana do Rio de Janeiro)

62,7 63,3

13,7 13,1 12,9 13,0


10,8 10,6

CV Milícias TCP ADA

Porcentagem de chacinas policiais Porcentagem de mortos em chacinas policiais

Fonte: GENI/UFF e Fogo Cruzado


2 . D i r eci o nam e nto do us o da força estatal em c h ac in as pol ic ia is 13

A interpretação dos dados é inequívoca: os bairros em que o grupo predominante é o Co-


mando Vermelho concentram o maior número de chacinas e de mortos em chacinas. Todos
os demais grupos armados (ADA, TCP e milícias) apresentam uma distribuição bastante se-
melhante quando comparados ao CV, que apresenta uma ocorrência de chacinas policiais e
mortos nesses eventos que é bem maior que a soma de todos os demais juntos. Segundo o
Mapa Histórico dos Grupos Armados, o CV foi o grupo armado com maior extensão territorial
sob o seu domínio até o triênio 2016-2018, mas foi ultrapassado pelas milícias desde o triênio
2017-2019. Chama a atenção a imensa desproporção na ocorrência de chacinas e mortos nas
áreas controladas pelos dois grupos. Para oferecer um olhar mais atual acerca dos dados apre-
sentados, procedemos a análise mais detalhada do último triênio, entre 2019-2021. Neste pe-
ríodo as milícias controlavam 51,9% (263,7 km2) dos bairros dominado, mas aqueles nos quais
as milícias são o grupo predominante concentraram apenas 15,4% (25) das chacinas policiais
e 13,3% (85) dos mortos em chacinas registradas. Já o CV controlava 41,5% (211,2 Km2) dos
bairros dominados no referido triênio, mas 58,6% (95) das chacinas e 61,6% (393) dos mortos
em chacinas nos bairros onde o CV é o grupo predominante.
Assim, apesar de as milícias serem hoje o grupo armado com maior domínio territorial no
Grande Rio, ocorrem quase quatro vezes mais chacinas em áreas do CV do que em áreas de
milícias, e para cada pessoa morta em chacina em áreas de milícias temos 4,6 pessoas mortas
em chacina em territórios sob o controle do CV. Não se trata aqui de validar a crença de que
as chacinas são efetivas no combate ao crime, mas sim de chamar a atenção para o direciona-
mento do uso da força como um instrumento de favorecimento de alguns grupos armados em
relação aos seus rivais e seus impactos na letalidade em cada lugar. Isto porque as chacinas
repercutem nas dinâmicas de conflito entre os grupos armados e acabam por impactar desi-
gualmente territórios e populações sob o controle desses grupos.
3. Mega chacinas policiais

O parâmetro mais claro de entendimento do fenômeno de estatização das mortes é a par-


ticipação da letalidade policial no conjunto da letalidade violenta. As polícias foram responsá-
veis por 35,4% da letalidade violenta na RMRJ em 2019, 2021 e 2022, ao passo que eram res-
ponsáveis por 9,5% da letalidade violenta em 2013, ano menos letal da série. Como pode ser
visto no gráfico abaixo (Gráfico 6), a frequência de chacinas policiais varia de maneira bastante
próxima à participação da letalidade policial na letalidade violenta total.

GRÁFICO 6
Participação da letalidade policial na letalidade violenta e quantidade de chacinas policiais
(Porcentagem e números absolutos, 2007-2022, Região Metropolitana do Rio de Janeiro)

40,0 80
75 44 36
35,0 63 70
43
30,0 60
53
61 49
25,0 50
52 32
32 23
20,0 40

20 19 15
15,0 30
12
10,0 20

5,0 10

20,1 18,5 17,1 17,2 12,1 11,2 9,5 12,1 15,4 18,0 19,7 27,0 35,2 30,5 35,4 35,4
0,0 0
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022

Porcentagem da letalidade policial sobre a letalidade violenta Chacinas

Fonte: GENI/UFF
3 . M ega ch aci nas po l i c iais 15

A interpretação da evolução histórica da participação da letalidade policial na letalidade


violenta e a variação conforme das chacinas, segue alguns marcadores importantes que já
foram apresentados em outra oportunidade (Hirata et al. 2021). Cabe destacar, contudo, al-
guns pontos de inflexão claramente visíveis no gráfico acima (Gráfico 6): O primeiro ponto de
inflexão foi a implementação das UPP’s (2008) e o sistema de metas (2009), que coincidem
com a redução da participação do Estado na produção de mortes e da quantidade de chaci-
nas policiais. O segundo ponto de inflexão é o início da desmontagem dessas duas políticas
(2013-2014), aliada à grave crise que levou o Governo do Estado do Rio de Janeiro a falência
fiscal (2015). Observa-se no período posterior a esses marcos um crescimento constante da
participação da letalidade policial na letalidade violenta e no número de chacinas policiais,
inclusive muito superior à diminuição registrada anteriormente. Este aumento atravessou
o período da recuperação fiscal do estado do Rio de Janeiro, que melhorou a capacidade
operativa do Estado, da intervenção federal de 2018, que trouxe tropas do Exército para se
somar às já violentas polícias do Rio de Janeiro, e da extinção da SESEG em 2019, que confe-
riu maior autonomia às polícias. O terceiro ponto de inflexão veio somente com o a decisão
do STF de restringir as operações policiais em 2020, que se conseguiu frear este avanço da
estatização das mortes e das chacinas.
Apesar da Decisão do STF continuar em vigor, a participação da letalidade policial sobre
a letalidade violenta continuou muito alta desde 2020, mantendo o patamar mais alto de
toda a série. O número de chacinas, contudo, mostrou uma redução significativa. Como isso
foi possível? Observa-se que, embora a quantidade de chacinas policiais tenha diminuído,
uma parte delas se tornou extremamente letal, concentrando um número muito elevado de
mortes numa única ação policial. Nesse período ocorreram algumas das chacinas mais letais
da história do Rio de Janeiro. Para compreender esse fenômeno novo, a que denominamos
mega chacinas policiais, dividimos as chacinas segundo o número de mortos: de 3-4 mor-
tos, de 5-7 mortos e 8 ou mais mortos, as doravante chamadas mega chacinas. Em seguida,
procuramos compreender o peso percentual de cada um desses grupos nos períodos de-
marcados pelas inflexões históricas apontadas acima. É possível observar os resultados no
gráfico abaixo (Gráfico 7).
3 . M ega ch aci nas po l i c iais 16

GRÁFICO 7
Distribuição das chacinas policiais segundo a quantidade de mortos
(Porcentagem, 2007-2022, Região Metropolitana do Rio de Janeiro)

80,0
70,9
70,0
58,4 58,2
60,0 53,9
50,0

40,0 37,0
28,8
30,0 23,4 23,4
18,5
20,0
12,9
9,2
10,0 5,6

0,0
3-4 5-7 8 mortos 3-4 5-7 8 mortos 3-4 5-7 8 mortos 3-4 5-7 8 mortos
mortos mortos ou mais mortos mortos ou mais mortos mortos ou mais mortos mortos ou mais
Fonte:
GENI/UFF 2007 - 2009 2010 - 2013 2014 - 2019 2020-2022

Como é possível observar, o período de 2020-2022 é aquele no qual a porcentagem de


mega chacinas policiais (aquelas com mais de 8 mortos) é a mais elevada, chegando a 23,4%
das chacinas. Em períodos anteriores, a participação das mega chacinas no total de chacinas
policiais chegara no máximo a 12,9% no período de 2007-2009 e, entre 2014 e 2019, chegara
a ser quase cinco vezes menor do que entre 2020-2022. No gráfico abaixo (Gráfico 8), identifi-
camos o número de mortos em cada uma das 27 mega chacinas registradas, de modo que é
possível visualizar a grande concentração desses eventos no período de 2020-2022.
3 . M ega ch aci nas po l i c iais 17

GRÁFICO 8
Número de mortos por mega chacina policial
(Números absolutos, 2007-2022, Região Metropolitana do Rio de Janeiro)

30 27

25 23

19
20
16
15
15 13
12 12 12
11
10
9 9 9
8 8 8 8 8 8 8 8 8 8 8 8 8
10

0
abr/07

jun/07

jun/07

out/07

abr/08

abr/08

qgo/08

out/09

fev/10

nov/10

jun/11

jun/13

nov/17

mar/18

ago/18

fev/19

mai/19

jul/19

mai/20

out/20

jan/21

mai/21

nov/21

fev/22

mai/22

jul/22

nov/22
Fonte:
GENI/UFF 2007 - 2009 2010 - 2013 2014 - 2019 2020-2022

De todas as 629 chacinas que ocorreram entre 2007-2022, apenas 27 delas (4,2%) apresen-
taram 8 ou mais mortos, podendo ser caracterizadas como mega chacinas policiais. Um terço
dessas 27 mega chacinas (9) se concentram no período de 2020-2022, sendo que dessas, en-
contramos a mais letal (Jacarezinho, com 27 mortos civis, em maio de 2021), a segunda mais
letal (Penha, com 23 mortos, em maio de 2022) e a quarta mais letal (Alemão, com 16 mortos,
em julho de 2022). Podemos então dizer que o processo de estatização das mortes, no qual a
letalidade das polícias se torna cada vez mais significativa para o conjunto total das mortes, se
encontrou nos últimos anos com a realidade das mega chacinas policiais, que são não apenas
escandalosamente mortais, mas também cada vez mais recorrentes.
4. Impunidade

O poder executivo estadual tem sido bastante explícito ao endossar a suposta legitimidade
e legalidade das mega chacinas policiais ocorridas durante o seu mandato. Mas diante desse
total descontrole sobre o uso da força estatal, cabe indagar o que está sendo feito pelo sistema
de justiça para submeter as instituições policiais à Lei e, assim, assegurar o respeito do direito à
vida da população pobre, negra e favelada. Tal estado de coisas não poderia se perpetuar sem
a leniência do Ministério Público e da Justiça estaduais, instituições encarregadas, respectiva-
mente, da fiscalização da atividade policial e da responsabilização legal de criminosos.
A impunidade das mortes perpetradas por agentes de estado tem sido objeto de investiga-
ção de importantes pesquisas realizadas no Rio de Janeiro e outros estados, desde os traba-
lhos de Verani4 e Cano5 que trataram dos então chamados “autos de resistência” quando ainda
processados pela justiça militar. Muito anos após esses casos terem passado a ser de compe-
tência da justiça comum, estudos como o de Misse et al.6, Zaccone7, Araújo8, Farias9 e, mais
recentemente, do Fórum Justiça10 apontaram a indiferença legal e a impunidade como ele-
mentos centrais e determinantes para a continuidade da letalidade policial no Rio de Janeiro.
No estado do Rio de Janeiro, tamanha é a presunção de verdade da palavra do policial
que vige a Súmula nº 70, segundo a qual “o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos
de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação.”11 A mesma fé pública
que confere à palavra dos policiais o status de prova única e suficiente para condenar um réu
serve também como prova definitiva de que as mortes por intervenção por agentes do Estado
ocorrem sempre em legítima defesa. Não se trata aqui de negar que ocorram confrontos entre
polícia e grupos armados, mas de constatar que há desproporcionalidade no uso da força por
parte da polícia, ausência do emprego de cautelas destinadas à defesa da vida e que ocor-
rem execuções sumárias escamoteadas como legítimas defesas. As mega chacinas policiais,

4. Verani, S. 1996. Assassinatos em nome da lei: uma prática ideológica do direito penal. Rio de Janeiro: Aldebarã.

5. CANO, I. 1997. Letalidade da ação policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ISER.

6. Misse, M. et al. 2013. Quando a polícia mata: homicídios por “auto de resistência” no Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de Janeiro: Booklink.

7. Zaccone, O. 2015. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan.

8. Araújo, F. 2014. Das técnicas de fazer desaparecer corpos. Rio de Janeiro: Lamparina.

9. Farias, J. 2014. Governo de Mortes: Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro. unpublished thesis (phd in sociology).
Federal University of Rio de Janeiro.

10. Forum Justiça. 2022. Letalidade Policial no Rio de Janeiro e Respostas do Ministério Público. Relatório de Pesquisa. Disponível em: https://fo-
rumjustica.com.br/conhecimento/letalidade-policial-no-rio-de-janeiro-e-respostas-do-ministerio-publico/

11. Súmula da Jurisprudência Predominante (Art. 122 RI) nº 2002.146.00001 (Enunciado Criminal nº 02, do TJRJ) - Julgamento em 04/08/2003 -
Votação: unânime - Relator: Des. J. C. Murta Ribeiro - Registro de Acórdão em 05/03/2004 - fls. 565/572.
4 . I m p u ni dad e 19

com elevado número de vítimas, são emblemáticas nesse sentido. Como argumentar que 27
pessoas foram mortas em legítima defesa? A fórmula habitual da impunidade não pode ser
aplicada tão facilmente às chacinas.
No entanto, o que pudemos observar é que o mesmo padrão de impunidade característico
ao processamento legal dos casos ordinários de letalidade policial se repete no que tange as
mega chacinas policiais. A fim de proceder a uma análise do fluxo de processamento dos ca-
sos, identificamos na base de operações policiais do GENI/UFF as 27 maiores chacinas policiais
entre 2007 e 2022. Abaixo a listagem (Tabela 2).

Tabela 2
Listagem das mega chacinas policiais, número de mortos e localização do processo
(números absolutos, 2007-2022, Região Metropolitana do Rio de Janeiro)

Bairro Data Número Número de Localização


de civis mortos policiais mortos do processo

Jacarezinho Maio de 2021 27 1 Denunciado

Penha Maio de 2022 23 0 Inquérito em andamento

Alemão Junho 2007 19 0 Inquérito em andamento

Alemão Julho 2022 16 1 Inquérito em andamento

Santa Teresa Fevereiro 2019 15 0 Inquérito em andamento

Catumbi Abril 2007 13 0 Inquérito arquivado

Vila Isabel Outubro 2009 12 0 Não Localizado

Alemão Maio 2020 12 0 Não Localizado

Jd. América Outubro 2020 12 0 Não Localizado

Cidade de Deus Abril 2008 10 0 Inquérito em andamento

Jd. Leal Agosto 2008 10 0 Inquérito em andamento

Penha Abril 2008 9 0 Inquérito em andamento

Salgueiro Novembro 2021 9 0 Pic em andamento

Penha Fevereiro 2022 9 0 Não Localizado

Jacarezinho Junho 2007 8 0 Não Localizado


4 . I m p u ni dad e 20

Bairro Data Número Número de Localização


de civis mortos policiais mortos do processo

Costa Barros Outubro 2007 8 0 Não Localizado

Jacarezinho Fevereiro 2010 8 1 Denunciado

Parque Floresta Novembro 2010 8 0 Inquérito em andamento

Engenho da Rainha Junho 2011 8 0 Inquérito em andamento

Maré Junho 2013 8 1 Inquérito em andamento

Salgueiro Novembro 2017 8 0 Inquérito arquivado

Rocinha Março de 2018 8 0 Não Localizado

Penha Agosto 2018 8 0 Não Localizado

Maré Maio 2019 8 0 Não Localizado

Parque Guandu Julho 2019 8 0 Não Localizado

Parque Roseiral Janeiro 2021 8 0 Pic em andamento

Maré Novembro 2022 8 0 Não Localizado

Fonte: GENI/UFF

Todas as mortes em confronto com a polícia devem obrigatoriamente ser notificadas à


polícia civil por meio de um Registro de Ocorrência (RO), no qual os próprios policiais auto-
res do homicídio relatam o fato à autoridade policial. Em se tratando de homicídios com in-
contestável materialidade, esses ROs devem necessariamente resultar na instauração de um
Inquérito Policial (IP) para investigar as circunstâncias da morte. Ao término dessa etapa de
processamento, a autoridade policial redige um Relatório Final de Investigação e o IP é enviado
ao Ministério Público, que pode optar por devolver o inquérito à polícia para novas diligências,
solicitar à justiça o arquivamento do caso ou denunciar os responsáveis pelo fato à justiça. O
tribunal competente para esses casos é o Tribunal do Júri, cujos juízes decidem se aceitam ou
não a denúncia ou pedido de arquivamento. Se o juiz discordar de um pedido de arquivamen-
to, o caso é devolvido ao Procurador-Geral que decide se o MP denunciará ou não o caso. Os
casos denunciados pelo MP cujas denúncias são aceitas, seguem para as Audiências de Instru-
ção e Julgamento, em que o juiz ouve as testemunhas e decide se o caso será Pronunciado ou
Impronunciado. Se Pronunciado, o caso segue para uma audiência final em que uma bancada
de jurados composta por cidadãos comuns decide pela culpabilidade ou inocência do réu.
4 . I m p u ni dad e 21

Com base no caminho percorrido pelos casos de mega chacinas identificadas e na fase do
processamento legal em que cada um se encontra, elaboramos uma figura (Gráfico 9) para a
melhor visualização dos dados obtidos.

Gráfico 9
Situação do processamento legal das mega chacinas policiais
(2007-2022, Região Metropolitana do Rio de Janeiro)

Inquéritos PIC em Denunciado/


em andamento andamento ajj
(PCERJ) (MPRJ) (TJRJ)

arquivado
Não localizado (TJRJ)

Fonte: GENI/UFF

Como pode ser visto, dois processos foi encerrados até o presente, sendo eles arquivados.
Apenas 2 casos foram denunciados pelo Ministério Público à Justiça e nenhum deles concluiu
a fase de instrução e julgamento, isto é, nenhum deles chegou a ser pronunciado ou impro-
nunciado no Tribunal do Júri e, portanto, não foi ao julgamento decisivo pelos jurados. Há
dois casos que estão sendo investigados por meio de um Procedimento Investigatório Criminal
4 . I m p u n i dad e 22

(PIC)12 instaurado pelo próprio MP – logo distinto do inquérito policial, que é instaurado pela
Autoridade Policial – sendo que ambos se encontram em processamento no MP há cerca de
um ano. Outros nove casos ainda se encontram em fase de Inquérito Policial e o tempo médio
de processamento desses casos, em particular, é de dez anos e quatro meses, forte indicador
de que parte deles se encontra estagnado no “pingue-pongue” entre a PC e o MP13 ou perdidos
em delegacias. Cabe destacar que um número expressivo de casos (12) não foi localizado, o
que constitui um indicador da falta de transparência do Sistema de Justiça Criminal.
Não surpreende que seja elevado o número de inquéritos policiais em andamento ainda
que a mais recente dentre as chacinas consideradas tenha ocorrido há cerca de um ano. Se-
gundo relatório específico do Instituto de Segurança Pública sobre elucidação policial no Rio
de Janeiro (ISP-RJ, 2021), apenas 31,2% dos casos de morte por intervenção de agente do Es-
tado registrados no ano de 2018 tiveram seu inquérito policial concluído por meio da redação
de um Relatório Final de Investigação nos 24 meses subsequentes ao registro do fato. Esse
percentual é ainda menor (17,7%) quando se trata de homicídios dolosos e maior quando se
trata de policiais mortos em serviço (50%). O percentual a que o ISP se refere como “taxa de
elucidação policial” não se refere à resolução dos casos, pois se trata apenas de uma medida
para avaliar a produtividade policial para encerrar casos independentemente de haver ou não
indiciamento de algum suspeito.
A taxa que se usa internacionalmente para mensurar a resolução de casos é a “taxa de es-
clarecimento”, que se refere ao percentual de casos em que os autores do crime foram iden-
tificados e denunciados à justiça. Segundo pesquisa do Instituto Sou da Paz14 a taxa de es-
clarecimento dos homicídios em até dois anos no Brasil foi de 33% referente ao ano de 2017,
bastante abaixo da média mundial, que é 63%. O estado do Rio de Janeiro foi o que apresentou
o pior desempenho dentre os estados que enviaram dados, tendo esclarecido apenas 11% dos
homicídios registrados. A taxa de esclarecimento, contudo, não se aplica aos casos de morte
por intervenção de agentes do estado. Como advertido por Misse et al.15, estes são casos cuja
autoria é identificada desde a ocasião do Registro de Ocorrência, que é realizado pelo próprio
autor da morte. Não faz sentido calcular uma taxa de esclarecimento quando se trata de inqué-
ritos policiais instaurados para verificar se cabe ou não a aplicação da “excludente de ilicitude”.
No que se refere especificamente aos casos de mega chacinas policiais chama a atenção
o fato de haver tamanha morosidade no processamento de casos que, em tese, mereceriam
maior celeridade e atenção por parte do Sistema de Justiça Criminal, uma vez que se trata de

12. Segundo a Resolução 183 de 24 de janeiro de 2018 do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procedimento Investigatório Criminal é um
“instrumento sumário e desburocratizado de natureza administrativa e investigatória, instaurado e presidido pelo membro do Ministério Público
com atribuição criminal”. Ver: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resoluo-183.pdf

13. Misse et al. (orgs.) 2010. Inquérito Policial no Brasil: Uma pesquisa empírica. Rio de Janeiro: Booklink.

14. Instituto Sou da Paz. 2020. Onde mora a impunidade? 3ª edição. Relatório de pesquisa. Disponível em: https://soudapaz.org/wp-content/uplo-
ads/2020/09/Onde-Mora-a-Impunidade-3%C2%AA-edi%C3%A7%C3%A3o.pdf

15. Misse, M. et al. 2013. Quando a polícia mata: homicídios por “auto de resistência” no Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de Janeiro: Booklink.
4 . I m p u ni dad e 23

casos com um número escandaloso de vítimas letais mortas por agentes públicos que, en-
quanto não são denunciados, continuam atuando nas ruas armados e em nome da Lei e da
ordem. Ao que tudo indica, prevalece nas instituições encarregadas de investigar, fiscalizar e
punir os crimes praticados por policiais o descaso pela vida de pessoas pobres negras e favelas,
ao ponto de permitir que homicídios múltiplos com 8 ou mais vítimas sejam tratados como
legítima defesa ou simplesmente esquecidos.
Considerações finais

Como visto neste relatório, está em curso na Região Metropolitana do Rio de Janeiro um pro-
cesso de estatização das mortes associado à produção de mega chacinas, uma vez que as forças
policiais vêm impulsionando as mortes e atuando em operações altamente letais. Observou-se
também que a principal justificativa dessas operações, as “disputas entre grupos criminais”, são
aquelas nas quais se percebe uma ocorrência de mortes mais frequente, e de forma absurda, sob
esta motivação as polícias cometem muito mais chacinas que os próprios grupos armados. Ade-
mais, pode-se perceber que essa chacinas policiais, justificadas em grande parte como ações de
enfrentamento aos grupos armados são direcionadas a territórios, populações e grupos armados
específicos. Por fim, demonstramos com base na análise das 27 maiores chacinas policiais que a
impunidade é a regra, abrindo um cheque em branco à brutalidade policial.
Parte desse cenário pode ser atribuído ao que denominamos “desencapuzamento das cha-
cinas” 16. Se antes a maioria das chacinas eram praticadas por grupos de extermínio, em sua
maioria formado por policiais da ativa ou reserva, porém fora de serviço, hoje as chacinas são
praticadas principalmente por policiais em serviço, durante ações avalizadas por seus superio-
res hierárquicos e amparadas pela impunidade concedida pelo Sistema de Justiça Criminal.
Este processo histórico foi assentando uma oficialização das chacinas e tornando mais fre-
quente a ocorrência de mega chacinas, de forma que não se pode mais dirigir exclusivamente
a responsabilidade desta brutalidade aos policiais que participam diretamente das operações
que se convertem em chacinas policiais, mas toda a cadeia de comando e controle, incluindo
a autoridade política, também as formas de controle internos (corregedorias) e externos (Minis-
tério Público) e o Sistema de Justiça.
Por fim, uma das mais importantes arenas públicas na disputa política em torno do direito à
vida por parte da população pobre, negra e favelada tem sido a Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental de nº 635 – a chamada ADPF das favelas – que tramita no Supremo
Tribunal Federal desde 2019 e tem como objeto a letalidade policial. Importantes conquistas
de direitos humanos foram obtidas pelos movimentos que lideram a ADPF das favelas, mas o
Governo do Estado e as forças policiais têm oferecido forte resistência ao cumprimento das de-
cisões do STF. Face ao contraditório instalado entre poderes e esferas da federação ensejados
pela ADPF da Favelas, faz-se necessário que o Ministério Público e a Justiça estaduais adotem
uma postura mais firme no controle do uso da força pelas forças policiais.

16. Hirata, D. et al. 2022. Chacinas sem capuz e estatização das mortes. São Paulo: Piauí. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/chacina-sem-
-capuz-e-estatizacao-das-mortes/
Nota metodológica

A base de operações policiais do GENI/UFF serve de insumo para os dados de chacinas po-
liciais deste relatório, que se refere às operações onde ocorrem três ou mais mortes de civis. As
chacinas também foram contabilizadas pela base de tiroteios do Instituto Fogo Cruzado. Nesta
última, são contadas as chacinas envolvendo a presença de policiais – tanto em ação policial
quanto em operação policial – e mais as chacinas que não envolvem a presença da polícia. Já
a contagem de chacinas da base GENI/UFF é feita apenas quando há operação policial. Neste
relatório também consta os resultados da solicitação, à Defensoria Pública do Rio de Janeiro,
sobre a atual situação de cada caso que corresponde às 27 maiores chacinas da RMRJ, àquelas
que tinham oito ou mais mortos em cada evento. As categorias de classificação do fluxo de
justiça criminal se referem ao menos a um dos casos de mortos em chacinas por evento, não
considerando para análise possíveis casos de fraude processual, por exemplo, e, em determi-
nados casos, no mínimo uma das mortes múltiplas dos eventos.
Os dados de chacinas em operações policiais da base GENI/UFF foram conferidos com os
dados de chacinas envolvendo policiais em operações da base do Instituto Fogo Cruzado,
resultando em números e locais de ocorrência mais precisos. Ainda, os dados de operações
policiais com chacinas da base de dados do GENI/UFF foram comparados com dados advin-
dos dos registros de ocorrência da Polícia Civil, e disponibilizados pelo Instituto de Segurança
Pública, sobre “Mortes por Intervenção de Agentes do Estado”. Tal procedimento buscou por
consolidação e conferência do número de chacinas (três ou mais mortos) em cada base, au-
mentando a validade e confiabilidade dos dados do GENI/UFF por meio da checagem com
dados oficiais. Não houve tempo hábil para conferir os dados do ano de 2022 para os dados
do ISP, pois o mesmo não havia ainda disponibilizado os microdados para o público até a
realização do presente relatório.
Estatização das mortes, mega
chacinas policiais e impunidade

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