Constitucionalismo Da Inimizade
Constitucionalismo Da Inimizade
Constitucionalismo Da Inimizade
Constitucionalismo da Inimizade
The Constitucionalism of Emnity
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Resumo
O artigo apresenta o conceito de Constitucionalismo da Inimizade como categoria que
explicita o modelo constitucional historicamente adotado no Brasil. São discutidos os
duplos da herança constitucional francesa e estadunidense e apresentada a experiência
política Palmarina como um modelo de constitucionalismo amefricano. Por fim, analisa
aspectos da Constituição de 1824 e as dinâmicas que inauguram o Constitucionalismo da
Inimizade.
Palavras-chave: Constitucionalismo da Inimizade; Amefricanidade; Colonialidade.
Abstract
This article presents the concept of Constitutionalism of Enmity as a category that explains
the constitutional model historically adopted in Brazil. The silenced dimensions of the
French and American constitutional heritage are discussed and the political experience of
Palmares is presented as a model from Amefrican Constitutionalism. Finally, it analyzes
aspects of the 1824 Constitution and the dynamics that inaugurate the Constitutionalism
of Enmity.
Keywords: Constitucionalism of Emnity; Amefricanity; Coloniality.
Introdução
1Tal como explicitado em trabalho anterior (PIRES, 2021), utilizamos a noção de oríentação para significar o
que guia/referencia/oríenta, reúne intelecto/memória/pensamento, articulando presente/ passado/futuro.
Tal construção se realiza através do significado de orí para religiosidades de matrizes africanas.
país, e ostentava uma pequena e próspera elite negra. Mas havia outro lado;
um surto de febre amarela em 1793 havia delimitado fronteiras raciais na
cidade. Os moradores negros foram culpados pela propagação da epidemia,
recrutados para cuidar dos doentes e transportar os mortos, e em seguida
incriminados por atos de roubo e extorsão que supostamente aconteceram
durante a crise. A Penitenciária Estadual do Leste abriu em 1829 e inaugurou
a prática do confinamento solitário. Seu primeiro prisioneiro foi Charles
Williams, um negro. Em 1838, os negros perderam o direito de voto depois
que o Legislativo decidiu que cidadãos negros e brancos não eram iguais
perante os olhos da lei e modificaram as qualificações para o sufrágio, antes
previsto para todo homem livre e agora para todo homem branco, livre, de
21 anos ou mais, e que pagasse impostos. Os levantes raciais de 1839, 1842,
1849 e 1871 agitaram a cidade e atestaram o significado de escravidão e
liberdade, de cidadão e estrangeiro em solo nortista. Os homens negros não
recuperaram o direito de voto até 1870, quando a décima quarta e a décima
quinta emendas foram ratificadas. [...] Após o compromisso de 1876 que deu
fim à Reconstrução e restituiu a escravidão no Sul sob os disfarces da
escravidão por dívida, parceria rural, servidão doméstica e o sistema de
arrendamento de condenados, ondas de migrantes negros começaram a
chegar na cidade. Eles fugiam da plantation e se juntavam nas ruas.
[...] A cada ano mais e mais negros inundavam o distrito, o que concentrava
as mortes e a pobreza da cidade no quarteirão negro e tornava mais difícil
enxergar além do gueto ou sonhar em escapar dele algum dia. [...] Três
décadas após a Emancipação, a liberdade era um experimento aberto.
[...] O longo e contínuo movimento dos negros em direção às cidades do
Norte deixou claro as implicações políticas da fuga, embora a ideia de que a
recusa da plantation fosse uma greve geral ainda não tivesse lhe ocorrido [Du
Bois]. [...] Incapazes de moldar o mundo segundo seus próprios termos, ao
menos elas podiam resistir ao mundo que lhes era imposto. O movimento
coletivo contra a servidão e a dívida, a fuga coreografada do estupro, do
terror e do linchamento era uma reiteração, uma segunda onda de um êxodo
anterior das pessoas escravizadas que deixaram a plantation durante a
Guerra Civil. Décadas mais tarde, ele [Du Bois] descreveria a greve geral [...]
Era uma greve fundada em uma base ampla contra as condições de trabalho.
Uma greve geral que, no fim, envolveu diretamente meio milhão de pessoas,
talvez. Elas queriam parar a economia do sistema da plantation, e para tanto
a deixaram.
[...] A greve geral era um grande experimento humano. As pessoas negras
“buscavam asilo político dentro das fronteiras de seu próprio país.”
[...] Os verbos contam a história: rebelar, debandar, vacilar, fugir e paralisar.
No Sétimo Distrito, “tudo é bom e humano e belo e feio e mau, ainda que a
Vida esteja em outro lugar”.
Ainda que tal descrição se aproxime mais da realidade vivenciada por pessoas
negras e indígenas no Brasil, estejam elas nos campos, nas cidades ou nas florestas, não
representam a percepção predominante sobre como o constitucionalismo estadunidense
2 Disponível em
https://www.ufsm.br/app/uploads/sites/414/2018/10/DeclaraDirMulherCidada1791RecDidaPESSOALJNETO
.pdf. Acesso em 15 de setembro de 2020.
do Haiti e de projetos políticos de vida negra livre na diáspora africana ganha novos
contornos. Muito, mas muito antes de Caetano Veloso, os constituintes de 1823 no Brasil
já tinham percebido que o “Haiti é aqui” e que, portanto, uma revolução correlata a que
tinham levado a cabo na Pérola do Caribe deveria ser impossibilitada a todo custo
(QUEIROZ, 2017).
Com tudo isso na cabeça e rememorando algumas falas de Lélia Gonzalez (2020,
p.51) e Abdias Nascimento (2019, p. 305), que se referiam à República Negra de Palmares,
passamos a buscar entre nós uma inspiração para pensar teoria do estado e
constitucionalismo. O racismo é mesmo muito perverso. Passamos a educação formal
toda tomando estuprador como exemplo de civilidade, invasor/dominador como modelo
de moralidade e saqueador de vida/memória/liberdade/natureza como exemplo de
desenvolvimento. Com uma experiência político-jurídica concreta como a de Palmares
entre nós, pelo menos desde finais do século XVI, passamos muito tempo tomando como
ponto de referência modelos de extermínio.
Para tentar recuperar parte do tempo perdido, o que podemos aprender com Palmares?
Muitas coisas! Vamos indicar alguns aspectos que podem ampliar a nossa imaginação
político-constitucional. A um só tempo, Palmares nos oferece a experiência concreta de
um projeto político livre na diáspora africana – no século XVII como no XXI; nos confronta
com a responsabilidade política do que fomos, somos e seremos para sermos
possibilidade; e, ainda, nos diz que mais do que escravização, há uma história de luta pela
afirmação plena de nossa humanidade que nos constitui (PIRES, 2021).
Antes do Haiti, Palmares emperrou a máquina do tempo moderna, cujas
engrenagens foram construídas para inviabilizar de todas as formas a vida negra livre e
autônoma. A despeito de todas as tentativas de extermínio empreendidas pelas
autoridades coloniais portuguesas e holandesas, por mais de um século se vivenciou
naquele corpo-território a experiência de uma liberdade anticolonial amefricana.
A primeira referência documentada sobre Palmares que se tem notícia data de
01/05/1597, uma carta do padre Pero Rodrigues ao padre João Álvares, ambos da Cia. de
Jesus. O documento apresenta uma narrativa das/os Palmarinas/os como as/os
primeiras/os inimigas/os das autoridades coloniais. Esse é um ponto central, que será
desenvolvido no próximo item do artigo. Antes, precisamos trazer algumas características
importantes sobre Palmares.
Os documentos levantados por Flavio Gomes indicam que o Estado Negro
Palmarino3 foi iniciado com a ousadia de cerca de 40 cativos que promoveram uma
insurreição em um engenho próximo a Porto Calvo nas últimas décadas do século XVI, na
capitania de Pernambuco (GOMES, 2005, p. 48). A sua existência alimentava e era
alimentava pelas fugas coletivas dos engenhos e latifúndios que se multiplicaram no início
do século XVII.
Palmares se entremeava em montanhas e florestas de difícil acesso, aliando
proteção natural contra invasores, ambiente de caça, pesca, colheita de raízes e plantas
em abundância com estratégias militares de resistência baseadas na capacidade de se
integrar com e se movimentar na floresta.
Do ponto de vista de sua conformação social, é possível caracterizar Palmares
como um ambiente de fraternidade racial, pluricultural e pluriétnica da qual participavam
“em maioria os negros, mas que contava também com mulatos e índios” (CARNEIRO,
2011, p. XL). Diante da prevalência de africanos fugidos e seus descendentes, distintos
povos indígenas conviviam livremente em Palmares, enquanto outros se aliaram com as
autoridades coloniais para a destruição do quilombo. Do que os documentos revelam, em
Palmares conviviam pessoas comprometidas com a construção de uma sociedade
pluriétnica livre e contra-colonial.
Palmares nos obriga a pensar a noção de povo sem recorrer à noção de
homogeneidade. Ao abrigar etnias africanas e indígenas muito distintas entre si, o grau
de autonomia conferido aos mocambos que formavam o corpo-território Palmarino
garantiu a preservação de formas de vida e cosmosensações distintas que, reunidas pelo
exercício concreto da luta por liberdade, passavam a performar um povo,
palmarino/palmarista, quilombola, amefricano (PIRES, 2021).
A liberdade não era, e não poderia ser, tomada em abstrato. Um território que se
constitui da fuga e da recusa permanente da economia política do latifúndio, oferece uma
3 De acordo com Flávio Gomes (2005, p. 42), a documentação sobre Palmares faz referência a seus habitantes
como “negros de Palmares”, “negros do Palmar”, “negros alevantados” ou “negros da Guiné”. Flavio Gomes
utiliza a expressão “palmaristas”, referência correlate a encontrada por ele no documento “Relação das
Guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do Governador Dom Pedro de Almeida (1675 a 1678)”.
Nesse trabalho, vamos manter a referência a “palmarinos/as”, por ser um termo mais recorrentemente
mobilizado pelos movimentos negros e de mulheres negras no Brasil.
4 Ganga-Zumba mobilizou sua corte e ingressou em Recife para negociar um acordo de paz cuja cláusula
central era a liberdade para os nascidos em Palmares. Mas, o descaramento das cláusulas exigidas por
Portugal criavam as seguintes condicionalidades: (1) liberdade para os negros nascidos em Palmares; (2)
concessão de terras, demarcadas pela Coroa, para viverem e cultivarem; (3) garantia de comércio e relação
com os moradores, taberneiros, comerciantes e vendeiros da região. (4) novos(as) cativos que fugissem para
Palmares deveriam ser imediatamente devolvidos para as autoridades coloniais e seus respectivos senhores;
(5) a partir da assinatura do tratado, os habitantes de Palmares passariam à condição de vassalos do rei
(NASCIMENTO, 2021, p. 96; GOMES, 2005, p. 131). A atitude considerada unilateral de Ganga-Zumba, em sua
incapacidade de garantir liberdade e autonomia para as pessoas que viviam em Palmares, provocou violenta
reação na comunidade militar do quilombo. Zumbi, representando os grupos contrários ao acordo firmado
por Ganga-Zumba foi aclamado o governador das armas e estabeleceu estado de guerra: submeteu homens
ao adestramento intensivo, multiplicou as sentinelas nos limites do quilombo, intensificou a produção agrícola
e a metalurgia e decretou a lei marcial para os que tentassem desertar (NASCIMENTO, 2021, p. 99). Muitas
foram as tentativas de eliminação de Palmares pelas autoridades coloniais portuguesas (e holandesas). Mas,
Zumbi nos diz que apesar do Estado brasileiro decretar o nosso fim, resistimos.
3. Constitucionalismo da Inimizade
Destacamos no item anterior que o primeiro documento que se tem acesso e que informa
sobre a existência de Palmares é uma carta de 01/05/1597, em que o padre jesuíta Pero
Rodrigues apresenta ao também integrante da Cia. de Jesus, o padre João Álvares uma
narrativa das/os Palmarinas/os como as/os primeiras/os inimigas/os das autoridades
coloniais.
Conforme ensina Mbembe (2017), o conceito de inimigo deve ser entendido na
sua acepção concreta e existencial, não como metáfora ou abstração vazia. Nesse sentido,
define o inimigo como "aquele a quem se pode provocar a morte física, porque ele nega,
de modo existencial o nosso ser" (MBEMBE, 2017, p. 82). O inimigo representa o
antagonismo em nome do qual o Estado pode "dar a alguns o poder de ferir e de matar
outros homens" (idem).
Da penetração colonial à colonialidade contemporânea, "o ódio ao inimigo, a
necessidade de neutralizá-lo, bem como o desejo de evitar o perigo de contágio, do qual
ele seria o vetor" (idem, p. 84) tem orientado a atuação das autoridades coloniais e do
Estado Constitucional.
Essa equação é muito ilustrativa para nosso quadro de análise. Afinal, ela nos
ensina que a garantia da liberdade e da integridade física das pessoas negras não passa
por qualquer dimensão da gramática constitucional liberal. Nem mesmo quando o
posicionamento político se transforma e a letra da lei expressa os preceitos da
humanidade para esses corpos, ocorre um resguardo efetivo do direito assegurado. A
marinha não é interpelada por autoridades competentes que, de posse do arcabouço
jurídico liberal, questiona a imposição da chibata como um meio ilegal de punição dos
marinheiros. Na esteira dos processos de séculos de resistência negra, cabe aos
marinheiros, a partir de seus próprios esforços, garantirem algum tipo de efetividade da
lei. A Revolta da Chibata não usa a arena jurídica como o cerne de sua agenda de luta.
Trata-se de uma performance de força, conduzida por João Cândido e outros revoltosos,
que durante cinco dias transformam o Rio de Janeiro, então capital do Brasil, num
iminente cenário de guerra com possíveis consequências desastrosas para as elites.
(MOREL, 2009)
Esse não é um dado menor. Aparentemente, nos marcos do Constitucionalismo
da Inimizade, a materialização de qualquer avanço efetivo para as pessoas negras passa
por um tipo de articulação que depende de seus próprios esforços e na criação de
embaraços tangíveis para as elites. Ou seja, no Constitucionalismo da Inimizade, o
arcabouço jurídico, no seu pior, é usado expressamente para vedar o acesso das pessoas
negras e indígenas aos seus direitos básicos e sua humanidade, e na sua faceta
complacente, é instrumentalizado como promessa de um futuro igualitário que nunca
chega. O que a história tem nos ensinado é que a interrupção desse quadro perverso, só
se dá com a invocação dos pressupostos Palmarinos de resistência.
Considerando esse horizonte, cabe pontuar não só como as promessas da
Constituinte de 1824 operaram de forma a resguardar os sentidos de um país que, apesar
da brutalidade da escravidão, queria afirmar sua civilidade, como avaliar a leitura que se
perpetuou no tempo a partir desse tipo de arranjo.
Para tanto, se seguirmos analisando a dimensão da tortura e da forma como essa
tem sido uma companhia dileta para as comunidades negras desde o período colonial, é
fácil evidenciar que há uma narrativa em torno desse período histórico que garante que
o projeto central do Constitucionalismo da Inimizade siga intocado até os dias atuais.
De saída, nos parece importante lembrar que a própria forma como se entende a
tortura tende a afastar de seu caráter intensamente racializado. É preciso compreender
Considerações finais
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