Capitalismo e Democracia Wood

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Capitalismo e democracia

Titulo

Meiksins Wood, Ellen - Autor/a;

Autor(es)

A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas

En:

Buenos Aires

Lugar

CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales

Editorial/Editor

2007

Fecha

Campus Virtual

Coleccin

Imperialismo; Teoria Politica; Capitalismo; Globalizacion; Democracia; Estado;

Temas

Economia;
Captulo de Libro

Tipo de documento

http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/formacion-virtual/20100715084411/cap18.p URL
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Ellen Meiksins Wood

Capitalismo e democracia

Professora de Cincia Poltica na Universidade de York, Toronto.


Traduo de Rodrigo Rodrigues
Recentemente ministrei uma conferncia sobre o novo imperialismo e seus efeitos
negativos para a democracia na medida em que os Estados Unidos continuam tentando
consolidar sua hegemonia global unilateral. Nessa ocasio, conclu sugerindo que a
democracia estava se convertendo, como no fazia h muito tempo, em uma ameaa
para o capitalismo. Apesar de tudo o que nos disseram sobre a globalizao e a
decadncia do Estado-nao, o capital global depende mais do que nunca de um sistema
global de mltiplos Estados locais. De modo que as lutas locais e nacionais por uma
democracia real e uma verdadeira mudana do poder de classe tanto no interior como
fora do estado podem oferecer uma ameaa real ao capital imperialista. Algum na
platia perguntou: por que o capitalismo no pode continuar tolerando este tipo de
democracia formal com a qual esteve convivendo durante um longo tempo no mundo do
capitalismo avanado? Por que esta deveria oferecer algum perigo real ao capitalismo
global?
A questo no era, de fato, irrelevante. Pelo contrrio, a histria da democracia
moderna, especialmente na Europa Ocidental e Estados Unidos, foi inseparvel do
capitalismo. Entretanto, isto foi assim somente porque o capitalismo criou uma relao
inteiramente nova entre poder poltico e econmico que torna impossvel que a
dominao de classe se mantenha coexistindo com os direitos polticos universais. o
capitalismo que tornou possvel uma democracia limitada, formal antes que
substantiva, algo que nunca foi factvel antes. E por isso que o capital pde tolerar
algum tipo de democracia. Meu objetivo nessa conferncia no era afirmar que o
capitalismo no pode tolerar a democracia formal embora no devssemos desprezar
os ataques sobre as liberdades civis que esto tendo lugar precisamente agora nos
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Estados Unidos. Aquilo que pretendia e pretendo sublinhar aqui que nas condies do
capitalismo global atual e do novo imperialismo, a democracia pode ameaar converterse em algo mais que um regime meramente formal. Para me explicar, retomarei
brevemente um argumento sobre a relao entre o capitalismo e a democracia que
aparece em meu livro Democracia contra o capitalismo.
Interessa-me deixar claro desde o comeo que para mim, o capitalismo em sua
anlise final incompatvel com a democracia, se por democracia entendemos tal
como o indica sua significao literal, o poder popular ou o governo do povo. No
existe um capitalismo governado pelo poder popular no qual o desejo das pessoas seja
privilegiado aos dos imperativos do ganho e da acumulao e, no qual, os requisitos da
maximizao do benefcio no ditem as condies mais bsicas de vida. O capitalismo
estruturalmente antittico em relao democracia, em princpio, pela razo histrica
mais bvia: no existiu nunca uma sociedade capitalista na qual no tenha sido atribudo
riqueza um acesso privilegiado ao poder. Capitalismo e democracia so incompatveis
tambm, e principalmente, porque a existncia do capitalismo depende da sujeio aos
ditames da acumulao capitalista e s leis do mercado das condies de vida mais
bsicas e dos requisitos de reproduo social mais elementares, e esta uma condio
irredutvel. Isso significa que o capitalismo necessariamente situa cada vez mais esferas
da vida cotidiana fora do parmetro no qual a democracia deve prestar conta de seus
atos e assumir responsabilidades. Toda prtica humana que possa ser convertida em
mercadoria deixa de ser acessvel ao poder democrtico. Isso quer dizer que a
democratizao deve ir da mo da desmercantilizao. Mas desmercantilizao por
definio significa o final do capitalismo.
Essa minha posio e quero deix-la aqui assentada com clareza. Entretanto, em
nossos dias estamos acostumados a usar a palavra democracia em um sentido
diferente ao at aqui expresso, e o capitalismo o que tem feito esta redefinio
possvel na teoria e na prtica. De modo que me permitam umas palavras sobre este
processo de redefinio.
Em primeiro lugar, simplesmente direi uma ou duas palavras sobre o tratamento
mais usual do termo democracia. Estamos todos familiarizados com os usos mais
defeituosos aquele que, por exemplo, admite que o governo dos Estados Unidos
considera o Chile de Augusto Pinochet como um regime mais democrtico que o Chile

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presidido por Salvador Allende, presidente popularmente eleito. Quero adicionar um


comentrio a respeito das definies mais benignas sobre a democracia. Aquelas noes
convencionais que tendem a identificar democracia com constitucionalismo, proteo
das liberdades civis, e um governo limitado a classe de noes que freqentemente
escutamos descritas como direitos democrticos. Ora, essas so todas concepes boas
diante das quais ns, os socialistas, deveramos estar muito mais atentos do que
freqentemente estivemos no passado. Mas as pessoas, o demos, como poder popular
esteve visivelmente ausente desta definio de democracia. Na verdade, no existe
inconsistncia fundamental alguma entre o governo constitucional, as normas do Estado
de direito e as regras das classes proprietrias.
O ponto central desta definio de democracia limitar o poder arbitrrio do
Estado a fim de proteger o indivduo e a sociedade civil das intervenes indevidas de
este. Mas nada se diz sobre a distribuio do poder social, quer dizer, a distribuio de
poder entre as classes. Em realidade, a nfase desta concepo de democracia no se
encontra no poder do povo, mas sim em seus direitos passivos, no assinala o poder
prprio do povo como soberano, mas sim no melhor dos casos aponta para a proteo
de direitos individuais contra a ingerncia do poder de outros. De tal modo, esta
concepo de democracia focaliza meramente o poder poltico, abstraindo-o das
relaes sociais ao mesmo tempo em que apela a um tipo de cidadania passiva na qual o
cidado efetivamente despolitizado.
Por exemplo, considerem os discursos dos governos das sociedades capitalistas
avanadas Gr-Bretanha, Estados Unidos, sobre as reformas democrticas quando
estas tendem a restringir os direitos dos sindicatos. Os representantes destes governos
dizem estar defendendo os direitos democrticos dos indivduos contra a opresso
coletiva (exercida pelo sindicato). Neste sentido lembro vivamente, como durante a
greve de mineiros britnicos a meados dos anos oitenta, o Partido Trabalhista atacou os
mineiros como se eles fossem inimigos da democracia essencialmente porque suas
aes eram excessivamente polticas. A poltica algo que fazem os representantes
eleitos no Parlamento. Os indivduos privados se comprometem politicamente s no
momento em que votam. Os trabalhadores e os sindicatos deveriam apegar-se a suas
prprias esferas de competncia e a suas lutas industriais em seus lugares de trabalho.
Neste marco, ainda o direito de votar no concebido realmente como um exerccio

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ativo do poder popular, mas sim como a execuo de mais um direito passivo.
De uma maneira ou de outra, ento, as concepes dominantes de democracia
tendem a: substituir a ao poltica com cidadania passiva; enfatizar os direitos passivos
em lugar dos poderes ativos; evitar qualquer confrontao com concentraes de poder
social, particularmente se for com as classes dominantes, e finalmente, despolitizar a
poltica. Para contar como isto aconteceu tratarei de sintetizar o relato de uma longa
histria.
Comecemos, por retomar a idia original grega de democracia. Tomemos, por
exemplo, a definio do Aristteles: democracia uma constituio na qual os
nascidos livres e pobres controlam o governo sendo ao mesmo tempo uma maioria. O
filsofo grego distinguiu a democracia da oligarquia, definindo a segunda como o
regime de governo no qual os ricos e bem nascidos controlam o governo sendo, ao
mesmo tempo, uma minoria. O critrio social pobreza em um caso, riqueza e nobreza
no outro desempenham um papel central em ambas as definies e preponderante
ainda em relao ao critrio numrico.
Um antigo historiador que conheo sugeriu inclusive que, ao menos para seus
oponentes (que podem ter sido aqueles que inventaram o termo), a democracia
significou algo anlogo ditadura do proletariado, em um sentido pejorativo do
termo. obvio, ele no quis dizer que existia um proletariado no sentido moderno na
Grcia antiga. Especificamente, o que apontava era sublinhar que para os oponentes da
democracia esta forma do poder do povo era uma forma de dominao, o poder da gente
comum sobre os aristocratas. Isto implicava a submisso da elite massa.
obvio, nesta trama, que devemos dizer que complexo aplicar a palavra
democracia a uma sociedade com escravido em grande escala e na qual as mulheres
no tinham direitos polticos. Mas importante compreender que a maioria dos
cidados atenienses trabalhava para viver; e trabalhavam em ocupaes que os crticos
da democracia consideravam como vulgares e servis. A idia de que a democracia
consistiu no imprio de uma classe ociosa dominando uma populao de escravos
simplesmente errnea. Esse foi o ponto central da oposio antidemocrtica. Os
inimigos da democracia odiavam este regime sobre tudo porque outorgava poder
poltico ao povo formado por trabalhadores e pobres.
Na verdade, poderamos dizer que o tpico que dividia os setores democrticos

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dos antidemocrticos era se a multido ou o povo trabalhador deviam ter direitos


polticos, se tais pessoas seriam capazes de elaborar julgamentos polticos. Este um
tema recorrente no s na Grcia antiga, mas tambm nos debates sobre a democracia
ao longo da maior parte da histria ocidental. A pergunta constante dos crticos da
democracia era basicamente a seguinte: se as pessoas que devem trabalhar para viver
possuem o tempo para refletir sobre poltica; mas, alm disso, se aqueles que nasceram
com a necessidade de trabalhar para sobreviver podem ser o suficientemente livres de
mente ou independentes de esprito para realizar julgamentos polticos. Para os
atenienses democrticos, por outro lado, um dos princpios primordiais da democracia
se sustentava na capacidade e no direito de tais pessoas de realizarem julgamentos
polticos e de falarem sobre eles em assemblias pblicas. Eles inclusive tinham uma
palavra para isto, isegoria, que significa igualdade e liberdade de expresso (e no s
esta ltima no sentido em que ns a entendemos na atualidade).
Esta idia distintiva que transcendeu da democracia grega, entretanto, no
encontra paralelo em nosso prprio vocabulrio poltico. Note-se, por exemplo, a
diferena entre a antiga idia de cidadania ativa e a atual variante mais passiva que
venho desenvolvendo. Inclusive, a noo de liberdade de expresso como ns a
conhecemos tem a ver com a ausncia de interferncias em nosso direito de difundir
nossas opinies. A noo de igualdade de expresso, tal como a entendiam os
atenienses, relacionava-se com o ideal de participao poltica ativa de pobres e
trabalhadores. De modo que a idia grega de igualdade de expresso sintetiza as
principais caractersticas da democracia ateniense: a nfase em uma cidadania ativa; e
seu enfoque sobre a distribuio do poder de classe.
Agora bem, as objees feitas pelos antigos antidemocrticos foram reiteradas
uma e outra vez nos ltimos sculos. Neste sentido, a democracia continuou sendo
simplesmente uma m palavra entre as classes dominantes. A pergunta ento: como a
democracia deixou de ser uma m palavra, ainda entre as classes dominantes? E
seguidamente: como se tornou possvel tanto como necessrio, ainda para essas classes
dirigentes reivindicar-se como democrticas?
Obviamente uma das principais respostas se relaciona com as lutas populares
que eventualmente fizeram impossvel continuar negando direitos polticos primitivos
s massas, e particularmente classe trabalhadora. Uma vez que isto aconteceu, as

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classes dominantes tiveram que adaptar-se s novas condies, tanto poltica como
ideologicamente. Com o incio das campanhas eleitorais de massas no final do sculo
XIX, os antidemocrticos dificilmente podiam ser abertamente honestos em relao a
seus sentimentos antipopulares. Que candidato podia dizer a seus votantes que os
considerava muito estpidos e ignorantes para escolher por eles mesmos o que era o
melhor em poltica e que suas demandas eram to absurdas como perigosas para o
futuro do pas? Perguntava-se Eric Hobsbawm. Assim, repentinamente, todos eram
democrticos.
Entretanto, h mais nesta histria. Muito ocorreu antes do sculo XIX que
habilitou a possibilidade desta nova estratgia ideolgica. Existiram mudanas materiais
e estruturais que modificaram o significado e conseqncias da democracia.
Precisamente estas mudanas asseguraram que, quando a democratizao moderna teve
lugar especialmente sob a forma do sufrgio universal no representasse tanta
diferena como a que poderia ter provocado previamente, ou como quem lutou por ela
tivessem esperado. Como tratarei de explicar, o capitalismo possibilitou que os direitos
polticos se convertessem em universais sem afetar fundamentalmente classe
dominante.
Consideremos as implicncias da democracia no mundo antigo. Em cada
sociedade prvia ao desenvolvimento do capitalismo, onde quer que a explorao tenha
existido foi alcanada pelo que Marx chamou meios extra-econmicos. Em outras
palavras, a capacidade de extrair mais-valia dos produtores diretos dependeu de uma
forma ou de outra da coero direta exercida pela superioridade militar, poltica e
jurdica da classe exploradora. Em muitas destas sociedades, os camponeses foram os
principais produtores diretos, e continuaram com a posse dos meios de produo, como
a terra. As classes dirigentes os exploravam essencialmente mediante a monopolizao
do poder poltico e militar, s vezes mediando alguma classe de estado centralizado que
cobrava impostos aos camponeses; ou inclusive mediante alguma outra classe de poder
militar e jurisdicional que lhes permitia extrair mais-valia destes por sua condio
dependente de serventes ou pees que lhes impunha aceitar um confisco na forma de
renda para seus senhores. Em outras palavras, o poder econmico e poltico se fundiam,
e houve sempre uma diviso, mais ou menos clara, entre dirigentes e produtores, entre
quem detinha o poder poltico e os que compunham a sociedade trabalhadora.

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Mas na antiga democracia ateniense, os camponeses e outros produtores


diretores participavam do poder poltico, e isto debilitava drasticamente o poder de
explorao dos ricos ou classes apropriadoras. Nesta democracia, as classes produtoras
no s tinham direitos polticos sem precedentes, mas tambm, e pela mesma razo, um
grau de liberdade igualmente sem antecedentes em relao explorao por meio de
impostos e renda. Ento, a importncia da democracia era econmica ao mesmo tempo
em que poltica.
Tudo isto mudou com o desenvolvimento do capitalismo. A capacidade de
explorao dos capitalistas no depende diretamente de seu poder poltico ou militar.
Certamente, os capitalistas necessitam do sustento do Estado, mas seus poderes de
extrao de mais-valia so puramente econmicos. Sustenta-se em um fato bsico: os
trabalhadores despossudos da propriedade de seus meios de produo esto forados a
vender sua fora de trabalho por um salrio para conseguir acessar a ditos mdios e
procurar sua subsistncia. O poder poltico e o econmico no esto unidos da mesma
forma em que estavam anteriormente.
Aps e at agora existe uma esfera econmica distintiva, com seu prprio
sistema de compulso e coero, suas prprias formas de dominao, suas prprias
hierarquias. O capital, por exemplo, controla o lugar de trabalho, e tem um manejo sem
precedentes do processo de trabalho. E, obvio, existem as foras do mercado,
mediante as quais o capital localiza o trabalho e os recursos. Nenhum destes elementos
est sujeito ao controle democrtico ou rendio de contas. A esfera poltica concebida
como o espao onde as pessoas se comportam em seu carter de cidado antes que
como trabalhadores ou capitalistas est separada do mbito econmico. As pessoas
podem exercitar seus direitos como cidados sem afetar muito o poder do capital no
mbito econmico. Ainda em sociedades capitalistas com uma forte tradio
intervencionista do Estado, os poderes de explorao do capital costumam ficar intactos
pela ampliao dos direitos polticos.
Destarte, bvio que a democracia nas sociedades capitalistas significa algo
muito diferente do que foi originalmente no simplesmente porque o significado da
palavra mudou mas sim porque tambm o fez o mapa social em sua totalidade. As
relaes sociais, a natureza do poder poltico e sua relao com o poder econmico, e a
forma da propriedade mudaram. Agora possvel ter um novo tipo de democracia que

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est confinada a uma esfera puramente poltica e judicial aquilo que alguns
denominam democracia formal sem destruir os alicerces do poder de classe. O poder
social passou s mos do capital, no s em razo de sua influncia direta na poltica,
mas tambm por sua incidncia na fabrica, na distribuio do trabalho e dos recursos,
assim como tambm via os ditames do mercado. Isto significa que a maioria das
atividades da vida humana fica fora da esfera do poder democrtico e da prestao de
contas.
Todas estas transformaes, obvio, no aconteceram da noite para o dia, e o
processo no teve uma evoluo natural e inevitvel. Foi desafiado a cada passo do
caminho. Nos dias iniciais do capitalismo, no era to claro que os efeitos do poder
poltico estariam ao final to limitados. Naqueles anos iniciais, no sculo XVII e ainda
no sculo XVIII, muitos dos temas bsicos, especialmente vinculados com os direitos de
propriedade, ainda estavam irresolutos ou eram ferventemente desafiados. A massa da
populao no era ainda um proletariado despossudo sujeito ao mero poder econmico
do capital. Os grandes proprietrios ainda dependiam muito do controle do Estado para
sustentar o processo de acumulao da terra, a expropriao dos pequenos produtores, a
extino dos direitos consuetudinrios das gentes e a mesma redefinio do direito de
propriedade. Naqueles dias, a soberania popular poderia ter marcado uma diferena
muito mais ampla que a que pode obter na atualidade. Naquele tempo, ainda parecia e
na verdade era essencial para a classe dirigente manter a antiga diferenciao entre
governantes e produtores, entre exploradores, politicamente privilegiados, e classes
exploradas, sem direitos polticos.
De todas as formas, em meados do sculo XIX, quando o desenvolvimento do
capitalismo foi muito mais avanado na Gr-Bretanha, a luta pelo voto foi uma parte
importante das lutas da classe trabalhadora especialmente para os Cartistas na
Inglaterra. Mas o mais interessante foi que depois da tentativa frustrada do Cartismo, a
luta pelos direitos polticos ou democrticos deixou de ser central para as lutas da classe
trabalhadora. No quer dizer que o povo abandonou toda luta poltica, mas os
movimentos da classe trabalhadora cada vez em maior medida desviaram sua ateno s
lutas de carter industrial. Certamente em parte por motivo da represso exercida pelo
Estado. Entretanto, no meu entender, existe uma razo estrutural mais profunda. Para a
segunda metade do sculo XIX, o mapa social tinha mudado j o suficiente para

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transformar as regras da poltica. Nesse contexto, a questo da propriedade tinha se


resolvido a favor do capital e existia na Inglaterra uma massa proletria de
trabalhadores, sem propriedade. Alm disso, o capitalismo industrial tinha avanado o
suficiente para que o capital ganhasse controle no local de trabalho e no processo
trabalhista. Em outras palavras, a conformao de uma esfera econmica mais ou menos
separada com seu prprio sistema de poder se realizou. De modo que o tema primordial
para a classe trabalhadora parecia estar concentrado na produo. Quando finalmente
apareceu o sufrgio, poderamos dizer foi um momento de anticlmax. Por sua vez,
costuma-se dizer que as revolues modernas no aconteceram neste tipo de capitalismo
industrial avanado, onde o centro da oposio se transladou ao local do trabalho e o
Estado tem a aparncia de neutralidade, mas sim em lugares onde o Estado ainda
muito claramente um instrumento de explorao.
At aqui descrevi principalmente o caso britnico, como primeiro sistema de
capitalismo industrial com um proletariado massivo. Mas o caso dos Estados Unidos
especialmente singular e importante para entender o que aconteceu com o conceito
moderno de democracia. Nos Estados Unidos, por razes histricas muito especficas,
os direitos polticos foram distribudos mais amplamente e muito antes no processo de
desenvolvimento capitalista inclusive com antecedncia ao surgimento de um
proletariado massivo. Quando a Constituio dos Estados Unidos foi redigida, as classes
proprietrias eram conscientes dos perigos da extenso dos direitos polticos, mas as
velhas estratgias usadas por outras classes dirigentes j no podiam ser utilizadas. A
existncia de um corpo cidado ativo surgido do perodo colonial e da Revoluo
tornava impossvel a opo de lhes negar seus direitos polticos na nova Constituio,
no podia manter-se nada parecido antiga separao entre dirigentes e produtores,
entre uma elite politicamente privilegiada e uma massa sem opo ao voto.
As classes proprietrias adotaram uma estratgia diferente, uma estratgia
ideolgica e constitucional que tornasse muito mais factvel limitar o dano que
ocasionaria a extenso dos direitos polticos. Precisamente esta estratgia teve
profundos e duradouros efeitos em nossa moderna definio de democracia.
Os pais fundadores (founding fathers) dos Estados Unidos redefiniram a
democracia. Efetivamente redefiniram seus dois componentes essenciais o demos ou o
povo e o kratos ou o poder. O demos perdeu seu significado de classe e se converteu em

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uma categoria poltica antes que uma social. E o kratos foi tornado compatvel com a
alienao do poder popular; quer dizer, o oposto ao que significava para os antigos
atenienses. Ainda que deixemos de lado a excluso de escravos e mulheres, a
redefinio americana de democracia implicou diluir o poder popular, incluindo o poder
dos cidados vares que constituam o povo ou a nao poltica.
Permitam-me, nesta instncia, deixar algo bem claro. Na verdade, a democracia
desagradava aos pais fundadores da Constituio norte-americana e estes no queriam
construir uma. Em rigor, diferenciavam claramente sua repblica da democracia como
esta era entendida convencionalmente. Entretanto, a ingerncia de elementos mais
democrticos pressionou o debate e eles foram forados a uma mutao retrica, assim
em certas ocasies eles denominavam a sua repblica como uma democracia
representativa. Nesta nova concepo de democracia, o demos ou povo era
crescentemente despojado de seu significado social. As novas condies histricas
tornaram possvel dotar o povo de um significado puramente poltico. O povo j no
era a gente comum, os pobres, mas sim um corpo de cidados que gozam de certos
direitos civis comuns. Sua particular concepo de representao procurou expandir a
distncia entre as pessoas e o poder, atuar como filtro entre as pessoas e o Estado e
inclusive identificar a democracia com o governo ou mandato dos ricos como por
exemplo, fez Alexander Hamilton quando argumentou contra a representao atual e
insistiu em que os comerciantes eram os representantes naturais dos artesos e
trabalhadores.
De modo que, os pais fundadores norte-americanos criaram um cidadania
passiva, uma coleo de cidados o povo concebido como uma massa de
indivduos atomizados no como uma categoria social como o demos ateniense mas
sim como um grupo de indivduos isolados com uma identidade poltica divorciada de
suas condies sociais, especialmente no que se refere a seu pertencimento de classe. As
eleies transformaram-se no todo as eleies aonde cada indivduo atua s, no
unicamente em termos de privacidade mas tambm em isolamento com relao a todos
os outros. Em tal circunstncia, o voto individual substitui qualquer tipo de poder
coletivo. Isso tambm, sem dvida, o que os governos trataram de obter com suas
propostas de reformas sindicais. Se os sindicatos devem existir, melhor que estejam
formados por membros isolados, sem contato entre si, em vez de membros que exercem

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seu poder como coletivo.


De maneira que nos Estados Unidos se inventou uma nova concepo de
democracia formada por muitos indivduos particulares e isolados que renunciavam a
seu poder para deleg-lo em algum mais e desfrutar de forma passiva de certos direitos
cvicos e liberdades bsicas. Em outras palavras, eles inventaram um conceito de
cidadania passiva, dissocializada e, inclusive, despolitizada. Mas pelo menos a
democracia era definida ainda como o governo do povo (governo do, por e para o
povo), ainda quando o povo se converteu em uma categoria social neutra e seu governo
era extremamente dbil e indireto. No sculo seguinte, haveria outros desenvolvimentos
no conceito de democracia.
O que observamos no sculo XIX a crescente identificao da democracia com
o liberalismo, a crescente tendncia para mudar o foco de discusso sobre a democracia
da idia de poder popular para os tipos de limites constitucionais e direitos passivos j
mencionados. Estes direitos e limites so, como disse, coisas boas em si mesmas, mas
no so por si mesmas necessariamente democrticos. Ao que me refiro aqui
estratgia ideolgica de reduo e identificao da democracia com tais limites e
direitos liberais. Precisamente com esta estratgia aparece toda uma nova histria da
democracia que em lugar de traar o progresso do poder popular orienta e convoca
nossa ateno para algo distinto.
No sculo XIX, a democracia foi tratada como uma ampliao dos princpios
constitucionais antes que como uma expanso do poder popular. Tratava-se de uma
disputa entre dois princpios polticos e no do resultado de uma luta de classes ou entre
foras sociais senhores versus camponeses, capital versus trabalho.
Por exemplo, o grande pensador liberal, J. S. Mill descreveu o progresso poltico
em termos do conflito entre autoridade e liberdade ou bem aquilo que em ocasies ele
denominou o imprio da violncia versus o imprio da lei ou a justia. No se tratava da
disputa entre ricos e pobres ou entre exploradores e classes exploradas. Nestas histrias,
a nfase no est posta na ascenso da gente comum, o demos, a altos nveis de poder
social. Pelo contrrio, o acento est posto na limitao do poder poltico e a proteo
contra a tirania e sobre a crescente liberao do cidado individual em relao ao
Estado, das regulaes comunais e das identidades e laos tradicionais. Os heris nestas
histrias no so quem tem lutado pelo poder das pessoas (os levellers, os chartists, os

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sindicatos, os socialistas, etc.). Em seu lugar, nossos heris pertencem s classes


proprietrias que conceberam para ns nossa Carta Magna a to lembrada Revoluo
Gloriosa de 1688 na Inglaterra e a Constituio dos Estados Unidos.
certo que, especialmente desde a Segunda Guerra Mundial, as sociedades
capitalistas avanadas algumas mais que outras adicionaram uma nova dimenso
idia de democracia, sob a forma de assistncia social. Algumas pessoas ainda falam
sobre o desenvolvimento dos direitos sociais e de uma cidadania social. Agora bem,
embora este fato tenha sido de grande importncia para corrigir o dano causado pelo
capitalismo, no final de nossa exposio, interessa-nos assinalar que inclusive esta
cidadania social concebida em termos de direitos passivos.
Novamente, todas estas mudanas no conceito de democracia foram possveis
devido s caractersticas do capitalismo, pela relao particular entre capital e trabalho e
tambm pela especfica relao capitalista entre as esferas econmica e poltica. Ento
onde estamos situados na atualidade? Pois bem, os movimentos anticapitalistas atuais
instalaram a democracia no centro de seus debates de uma forma que no foi sempre
verdadeiramente de esquerda. E esta identificao do anticapitalismo com a democracia
parece sugerir que estes movimentos vem uma contradio fundamental entre
capitalismo e democracia, mas isto no significa o mesmo para todos. De um lado, por
exemplo, esto aqueles para quem a democracia compatvel com um capitalismo
reformado, no qual as grandes corporaes so socialmente mais conscientes e prestam
contas vontade popular, e onde certos servios sociais so cobertos por instituies
pblicas e no pelo mercado, ou pelo menos so regulados por alguma agncia pblica
que deve prestar contas. Essa concepo pode ser menos anticapitalista que
antineoliberal ou antiglobalizao. Do outro lado, h aqueles que acreditam que, ainda
quando sempre crucial lutar por qualquer reforma democrtica possvel na sociedade
capitalista, o capitalismo em essncia incompatvel com a democracia pessoalmente
situo-me nesta ltima perspectiva.
Existe outro problema adicional. Muitos da esquerda anticapitalista acreditam
que o velho terreno das lutas polticas j no est em jogo por causa da globalizao. O
Estado-nao, que estava acostumado a ser a arena principal das polticas democrticas,
est abrindo caminho globalizao, de modo que teramos que encontrar alguma outra
possibilidade de nos opor ao capital se que cabe pensar nesta possibilidade.

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A variao mais recente neste tema a proposta feita por Hardt e Negri em seu
livro Imprio. Eles nos dizem que o poder do capital imperial est em todas partes e em
nenhuma. O Imprio, dizem, um no-lugar. E devido ao fato de no haver pontos
tangveis de concentrao do poder capitalista, no pode existir realmente um
contrapoder. Neste sentido, que temos que pensar as polticas de oposio em termos
diferentes, embora os autores nunca deixem de todo claro o que isto possa significar.
Hardt e Negri so muito mais especficos sobre o tipo de lutas que no acreditam
possveis e entre elas incluem os conflitos locais e nacionais, as lutas dos movimentos
de trabalhadores e algumas outras. Muita gente no movimento anticapitalista v em
Imprio um manifesto otimista para suas polticas, mas no meu entender trata-se
justamente do contrrio. Na minha opinio, parece expressar um profundo pessimismo
sobre a possibilidade de uma luta democrtica e anticapitalista. Acredito que esto
equivocados. simplesmente falso que no existam pontos tangveis de concentrao
do poder capitalista. No verdade que o estado territorial que conhecemos encontre-se
em declnio frente economia global. Pelo contrrio, acredito que o capital depende
mais do que nunca de um sistema de Estados locais que administrem o capitalismo
global.
O problema do Estado no capitalismo internacional mais complicado dado que
o capitalismo global no possui um Estado internacional que o sustente e, at o
momento tampouco acredito que construa tal Estado. A forma poltica da globalizao
no um Estado internacional, mas sim um sistema de vrios Estados nacionais; de
fato, considero que a essncia da globalizao uma crescente contradio entre o
alcance global do poder econmico capitalista e o muito mais limitado alcance dos
Estados territoriais que o capitalismo necessita para sustentar as condies de
acumulao. Precisamente esta contradio tambm possvel e necessria por aquela
diviso prpria do capitalismo entre economia e poltica.
Em resumo, meu argumento sustenta que o que estamos presenciando no novo
imperialismo norte-americano um esforo contnuo para lidar com a contradio entre
a esfera de ao do poder econmico e a contnua dependncia do capital de um sistema
global de Estados territoriais. Isto , sem dvida um perigo para o mundo em seu
conjunto, mas, por sua vez, est nos dizendo algo mais. Aqui estive explicando o que
torna o capitalismo compatvel com certo tipo de democracia e o que torna possvel que

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as classes dominantes aceitem esta circunstncia devido separao das esferas em


poltica e econmica. Essa situao tem tornado possvel a tolerncia dos partidos da
classe trabalhadora na poltica, inclusive sem ter estado nunca de acordo com esta idia.
Mas, alm disso, sustentei que esta velha separao foi desbaratada porque o capital
internacional necessita do Estado mais que nunca para organizar os circuitos
econmicos que o capital no pode dirigir por si prprio. Porque o capital depende,
talvez hoje mais que nunca, de um sistema global de Estados; as lutas verdadeiramente
democrticas entendidas como lutas para trocar o equilbrio de poder de classe tanto
dentro como fora do Estado podem chegar a ter um efeito muito maior que em pocas
anteriores.

Bibliografia
Aristotle 2003 Politics (Indianapolis: Hackett Publishing Company).
Hamilton, Alexander; Madison, James e Jay, John The Federalist (Indianapolis: Hackett
Publishing Company)
Hardt, Michael e Negri, Antonio 2000 Empire (Cambridge: Harvard University Press).
Hobsbawn, Eric 1987 A era dos imprios: 1875-1914 (Rio de Janeiro: Paz e Terra).
Wood, Ellen Meiksins 2004 Democracia contra capitalismo (So Paulo: Boitempo).

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