Democracia e Doutrina Social Da Igreja

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Democracia e Doutrina Social da Igreja

Paulo Fernando Carneiro de Andrade

1. O Paradigma Democrático

Ao abordar a questão da Democracia e a Doutrina Social da Igreja cabe em primeiro lugar


aprofundar o sentido dado aqui ao conceito de Democracia e refletir sobre os seus fundamentos
contemporâneos para em seguida vermos como se desenvolveu ao longo dos últimos 150 anos a
reflexão do Magistério e a prática pastoral da Igreja em torno a esta questão.

Como ponto de partida podemos destacar, seguindo os passos do filósofo italiano Norberto
Bobbio, as diferentes concepções de Democracia que se encontram entre os Antigos e os
Modernos1. A Democracia surge no ocidente entre os gregos. Indica-se entre eles, por esse
conceito, sobretudo, a prática do que chamamos hoje de democracia direta. Para os Antigos, a
Democracia está baseada na concepção de uma igualdade fundamental de direitos e da soberania
de todos os que pertenciam ao demos, isto é, os cidadãos da Polis, aqueles que tinham direito de
cidadania ou, então, aqueles que se atribuíam tal direito e neste caso poderia até mesmo se tratar
dos pobres da Polis. Deste modo, quando falavam de Democracia pensavam, sobretudo, no povo
reunido em uma praça ou em assembléia (Eclésia) nas quais eram tomadas em comum as
decisões que lhes diziam respeito2. Não se tratava de democracia representativa no sentido que
temos hoje. Na Democracia dos Antigos e durante muitos séculos a escolha dos que governam
(Magistrados) poderia ser feita não pelo voto, mas por outros meios, como o sorteio. O que
caracterizava para eles a Democracia não era a eleição para a escolha dos governantes, mesmo
porque o processo eleitoral em si é também compatível com as duas outras formas clássicas de
governo: a monarquia e a aristocracia. Cabe lembrar que embora estejamos mais habituados à
monarquia hereditária, também existem monarquias eletivas e a forma como se escolhem os
governantes na aristocracia pode ser eletiva, sem que o processo eleitoral por si só defina o

1
N. Bobbio, Democracia: os fundamentos, em Bobbio, N. (org. M. Bovero), Teoria Geral da Política, Ed. Campos,
Rio de janeiro, 2000, p. 371-415
2
Ibidem, p.372
2

caráter democrático ou não de um Estado. No Brasil basta recordar o período da ditadura militar
onde se mantiveram, entre 1964 e 1986, eleições regulares para o Legislativo e eleições indiretas
via parlamento para a Presidência da Republica dentro de um regime ditatorial no qual as
liberdades democráticas mais fundamentais estavam suspensas, os direitos humanos não eram
respeitados, se realizavam prisões arbitrárias apoiadas por uma legislação de exceção e se
torturava ordinariamente muitos daqueles que ousavam se opor ao regime.

N. Bobbio destaca o fato de que foi exatamente a compreensão quase que exclusiva da
Democracia como democracia direta que gerou na antiguidade um juízo preponderantemente
negativo da mesma. Destaque-se o fato que esta era compreendida como um governo exercido de
modo direto pelo demos que, conforme assinalado, podia significar não só os cidadãos (em
contraposição aos colonos), mas todo o conjunto de habitantes ou então os pobres3. Em
Aristóteles, na sua conhecida classificação das formas boas e más de governo, o termo
Democracia serve para designar o mau governo popular, a degeneração da República, sendo o
povo neste regime prisioneiro de aduladores e corruptores (demagogos). A Democracia então é
para ele nada melhor do que a Tirania (Política, Livro IV). Na verdade, a Tirania aparece já em
Platão como um governo forte, necessário para corrigir de tempos em tempos os excessos
provocados pela Democracia. Esta inevitavelmente levaria depois de certo tempo à desagregação
social em virtude mesmo do ideal de igualdade que está em seu fundamento. Para Platão, a
liberdade baseada na igualdade civil, desenvolvida ao seu extremo, transforma-se em um
igualitarismo que destrói todo princípio de autoridade, inclusive moral, impossibilitando os
processos políticos, atingindo até a família, célula mater da Polis: "o pai se acostuma a igualar-
se com os filhos e a temê-los, e os filhos a igualar-se com os pais e não lhes ter respeito nem
temor algum, porque se sentem um homem livre; um colono se considera igual a um cidadão e
um cidadão igual a um colono, e assim também ocorre com o forasteiro...Estes abusos e outros
menores se verificam em outros ambientes similares. O Mestre, por exemplo, teme e adula os
estudantes e os estudantes riem dos Mestres e dos pedagogos; os jovens se metem em tudo,
igualando-se aos anciãos e com estes debatem de igual para igual enquanto os anciãos se
submetem a eles, mostrando-se cheios de cortesia e procuram imitar seus modos, para não
parecerem antipáticos e autoritários" (A República, Livro VIII, xiv).

3
Ibidem, p. 375
3

Esta percepção negativa da Democracia se arraiga na cultura ocidental e perdura por


séculos atravessando a idade média, amalgamando-se com a cultura cristã. Deve-se, entretanto,
destacar a contribuição da tradição romana sobre a soberania popular que se desenvolvendo
posteriormente no pensamento medieval fornece elementos importantes para o ulterior conceito
de Democracia entre os Modernos. A teoria da soberania popular foi elaborada pelos juristas
medievais, tendo como ponto de partida algumas passagens do Digesto, a compilação de
fragmentos de jurisconsultos da antiguidade clássica, também conhecida pelo nome grego de
Pandectas, elaborada no século VI por ordem do imperador Justiniano I. Ali se encontra a
conhecida afirmação de Ulpiano de que “o príncipe tem autoridade porque o povo lhe deu” e de
Juliano que afirma por sua vez que o povo cria direito, não apenas pelo voto, mas também dando
vida aos costumes. Estas afirmativas levaram à elaboração do conceito de soberania popular e à
distinção entre a titularidade do poder e o exercício do mesmo, dando também lugar à elaboração
dos princípios da democracia representativa que se imporá entre os Modernos.

Cabe aqui também ressaltar as afirmações de São Tomás em sua Suma Teológica sobre as
formas de governo. Na Suma Teológica I-II, q 105, a 1, afirma São Tomás que: “Para a boa
constituição do poder supremo em uma cidade ou nação é necessário observar duas coisas: a
primeira, que todos tenham alguma parte no exercício do poder, pois assim se consegue a
melhor paz do povo, e que todos amem a constituição e a guardem como se diz em II Polit”.
Afirma ainda o aquinate que “a melhor constituição em uma cidade ou nação é aquela na qual
um é o depositário do poder e tem a presidência sobre os demais, de tal sorte que alguns
participam deste poder e, sem dúvida, este poder seja de todos enquanto todos podem ser
escolhidos e tomam parte nesta escolha”. São Tomás conclui citando o exemplo da organização
de Israel nos tempos de Moisés, tido por ele como uma articulação entre Monarquia (Moisés e
seus sucessores gozavam de um poder singular), Aristocracia (os 72 anciãos escolhidos para o
exercício do poder, Dt 1,15) e Democracia (a multidão de sábios e varões escolhidos pelo povo
para auxiliar na administração e justiça, Dt 1,13; Ex 18,21). Tal constituição teria sido
estabelecida para São Tomás pela Lei Divina e seria a ideal por sintetizar as três formas de
governo. Note-se que aqui a Democracia é compreendida como a faculdade de escolher os que
serão detentores do poder e não como soberania popular.
4

O conceito de soberania popular recolhido no Digesto, desenvolvido ao longo do


pensamento medieval e aprofundado pelos Modernos já se encontrava, de algum modo, entre os
gregos como atesta a conhecida passagem de Platão em Menêxemos onde Sócrates afirma que:
“mas em substância, a autoridade soberana reside no povo que confia os encargos e o poder
àquelas que lhes parecem os melhores” (Menêxemos 239). O fundamento desta soberania
encontra-se, segundo o discurso de Sócrates, nesta passagem, na igualdade de origem: “...
nascidos de uma mesma mãe não nos consideramos nem servos nem patrões uns dos outros, mas
nossa igualdade natural de origem nos constringe a procurar uma igualdade legal e a não
admitir entre nós nenhuma superioridade a não ser aquela da virtude e da inteligência”
(ibidem). Esta idéia da igualdade de natureza constitui o fundamento da Democracia Moderna e
foi aprofundada pela concepção de cristã da pessoa humana. A idéia central no cristianismo de
que todos somos Filhos e Filhas de um mesmo e único Deus, irmãos e irmãs que têm uma
mesma e única origem possuindo uma natureza comum e em decorrência a mesma dignidade,
permitiu universalizar o conceito de igualdade para além do círculo restrito da igualdade de
nascimento como se encontra no texto de Platão.

No conceito dos Modernos de Democracia devem ser destacados três elementos


fundamentais:
I. O conceito de soberania popular
II. A Democracia compreendida, sobretudo, como democracia representativa que
incorpora algumas práticas da democracia direta
III. A Democracia como Estado de Direito fundado no respeito aos Direitos Humanos
em suas quatro dimensões: política, civil, econômica e social, às quais deve-se
ainda acrescentar hoje os direitos ecológicos como uma quinta dimensão.

A questão da soberania popular encontra-se de algum modo ligada à teoria do contrato


social, embora existam pensadores que se identificaram com o princípio do Contrato Social, mas
foram fortes críticos da Democracia (por exemplo Hobbes, Kant) ou também, do outro lado,
teóricos da Democracia na contemporaneidade que não partem do contratualismo. Entretanto,
pode-se dizer que a teoria da soberania popular e o contratualismo encontram-se estreitamente
5

ligados. O povo como conjunto de cidadãos que detém em conjunto e individualmente a


soberania institui o Governo na forma de contrato.

A soberania popular é concretizada nas democracias contemporâneas, sobretudo, na forma


do sufrágio universal, através do qual são eleitos os membros do poder executivo e legislativo
(democracia representativa). Em caráter extraordinário também se concretiza em práticas de
democracia direta quanto os eleitores são convocados a responder a plebiscitos e a referendos.
Hoje se busca aumentar a prática da democracia direta através de novos mecanismos como, por
exemplo, o orçamento participativo.

A soberania popular é também intrinsecamente ligada ao conceito de Direitos Humanos e


hoje não se pode conceber a Democracia sem o respeito aos Direitos Humanos. Onde estes não
são respeitados não existe Democracia, mesmo que exista regularmente a prática do sufrágio
universal. A Declaração Universal dos Direitos Humanos promulgada pelas Nações Unidas em
10 de dezembro de 1948 constitui-se em um marco singular da consciência sobre os direitos
universais e inalienáveis de que cada homem e mulher são detentores em razão apenas de sua
humanidade. A consciência acerca dos direitos humanos e a luta por sua afirmação possui uma
longa trajetória. A idéia da existência de uma lei natural e universal encontra-se já entre os
gregos e floresceu também no direito romano. Porém, como reconhecem mesmo filósofos de
tradição não cristã, foi a concepção de pessoa humana trazida ao Ocidente pelo Cristianismo4
que permitiu a grande guinada na qual se passa paulatinamente de um paradigma jurídico
centrado no dever àquele que tem como centro os direitos. Enquanto o primeiro paradigma busca
salvaguardar o grupo social em seu conjunto impedindo a desagregação, o segundo busca
proteger o indivíduo dentro do grupo e frente ao grupo.

A concepção de direito natural que se desenvolve na modernidade, entre os séculos XVII e


XVIII, de Hobbes a Kant, pode ser considerada em muitos aspectos como uma secularização da
ética cristã que ultrapassa a concepção de lei natural dos Antigos5. Nela se desenvolve uma visão
do indivíduo como sede de direitos naturais, que não podem ser anulados ou subtraídos pela

4
Cf N. Bobbio, (org. M. Bovero), op. cit, 2000, p.478
5
Ibidem p. 478
6

sociedade. Reconhecem-se em Locke e Voltaire formulações importantes que firmam a idéia de


uma igualdade fundamental de todos os seres humanos que, independentemente de sua condição
social e política, possuem os mesmos e inalienáveis direitos naturais, entre os quais se sobressai
o direito à liberdade de consciência. É a mesma idéia de uma natureza comum que garante uma
igualdade e dignidade fundamental a todos os seres humanos que funda seja a idéia de soberania
popular, seja de Direitos Humanos. Um novo marco foi alcançado pela Declaração da
Independência dos Estados Americanos de 1776 que afirmou: “Consideramos incontestáveis e
evidentes em si mesmas as seguintes verdades: que todos os homens foram criados iguais, que
eles foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre esses direitos estão,
em primeiro lugar, a vida, a liberdade, e a busca da felicidade”. Poucos anos depois, na França,
promulgava-se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), na qual de modo
semelhante afirmava-se: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais nos direitos”. No
âmbito dessas declarações os princípios afirmados pelos filósofos iluministas deixavam de ser
uma teoria filosófica ou uma exigência colocada como um ideal e tornavam-se um princípio
político-jurídico capaz de ser traduzido em uma série de prescrições legais.

Desde a promulgação dessas duas Declarações no último quartil do século XVIII muitas
etapas têm sido percorridas6. Em primeiro lugar, deu-se ao logo dos séculos XIX e XX a
progressiva incorporação do princípio dos Direitos Fundamentais nas Constituições Nacionais
transformando esses direitos naturais em direito positivo. Em segundo lugar, observou-se um
alargamento substancial na compreensão da abrangência desses direitos e na luta pelo seu
reconhecimento e tradução em preceitos legais. A primeira expansão deu-se em torno à própria
questão da liberdade na direção de garantir o direito não só de expressão e liberdade religiosa,
mas também de associação, permitindo a criação de agremiações, sindicatos e partidos. Em
seguida, os direitos civis se estendem na direção dos direitos políticos, transformando os Estados
Liberais em Estados Democráticos com a universalização do voto. Em uma outra frente, os
direitos passam a se estender na direção também dos direitos sociais e econômicos, incluindo a
proteção do mundo do trabalho frente ao Capital e a garantia ao acesso à saúde, à educação e ao
amparo social. Em termos mais recentes também os direitos relativos ao meio ambiente e ‘a
ecologia passaram a integrar a pauta dos Direitos Humanos.

6
Ibidem, p.481-483.
7

Uma segunda dimensão dessa expansão tem se dado em torno ao alargamento dos grupos
humanos que passam a ser protegidos por esses direitos e a transposição de uma esfera interna
aos Estados Nacionais para sua internacionalização. Desde seus primórdios uma tensão se
colocou em torno à universalização dos direitos. A afirmação da igualdade fundamental entre os
homens na Declaração da Independência Americana não impediu a escravidão e a segregação
racial que se manteve por um largo período. O direito de voto estendido às mulheres e a todas as
classes sociais é uma conquista recente mesmo em muitos países ocidentais que incorporaram
cedo, em suas constituições nacionais, o princípio dos Direitos Humanos. A criação de tribunais
internacionais para o julgamento de crimes contra os Direitos Humanos ainda não se concretizou
em sua plenitude. Não obstante, tem ocorrido uma progressiva internacionalização e cresce a
consciência acerca do aspecto universal dos Direitos Humanos.

Uma terceira dimensão dessa expansão liga-se à própria percepção dos limites das
formulações iniciais dos Direitos Humanos. Por Direitos dos Homens e do Cidadão muitas vezes
se compreendiam apenas Direitos dos Homens (em sentido masculino) brancos, adultos,
ocidentais. Neste sentido falar em Direitos dos Homens não é mais suficiente nem mesmo
possível. Trata-se agora de afirmar não apenas os direitos gerais, mas também os direitos
específicos, que contemplam e reconhecem para além da igualdade fundamental a realidade de
uma diversidade que não gera privilégios nem restringe direitos de outros, como antes, mas, ao
contrário, é fonte de direitos próprios. Assim, surgem as reivindicações para promover a
igualdade dos direitos e oportunidades no campo social, político, civil e econômico, sem
discriminação de gênero, etnia, ou qualquer outra, enquanto, ao mesmo tempo, se afirmam os
direitos específicos das mulheres e dos diferentes grupos étnicos e o direito à diversidade
cultural. Afirmam-se também os direitos ligados à sexualidade e às escolhas do estilo de vida,
assim como os direitos específicos das crianças e dos idosos, bem como dos portadores de
deficiências e dos enfermos. Na afirmação do conjunto de todos esses direitos constrói-se hoje a
luta pela plena cidadania.

Na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, os estados membros da ONU


consubstanciaram em âmbito mundial o que a partir de então pode ser considerado o patamar
8

mínimo do reconhecimento dos Direitos que cada pessoa deve esperar serem respeitados e
garantidos por todos os Estados Nacionais e pelos organismos internacionais. Entre esses direitos
encontra-se o direito à igualdade perante a lei, o direito à liberdade de consciência, de religião,
de escolha de seu estado de vida, de cada pessoa ser respeitada em sua integridade física e moral
e de não ser sujeita a qualquer tipo de ingerência ou coação na esfera não pública de sua vida e
em sua privacidade. Também se reconhece o direito de cada um de participar de forma direta ou
indireta da formação das normas e leis que regem a esfera pública da vida e de não ser obrigado
a nada a não ser em função da norma legal. Também nessa declaração são reconhecidos o direito
à autodeterminação dos povos, à igualdade entre os gêneros e o direito de cada um de ser
protegido contra toda forma de discriminação racial ou de qualquer tipo. Alguns direitos sociais,
como o direito ao trabalho, a uma justa remuneração, ao acesso à saúde e educação básica e a
uma moradia digna são também afirmados. Posteriormente, em 1966, após um longo período de
19 anos de debate a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou por unanimidade mais dois
acordos relativos aos Direitos Humanos, civis e políticos, ratificados somente dez anos depois,
em 1976, na forma de duas convenções, uma econômica e social e a outra política e civil, que
representam, cada uma, mais um passo importante na internacionalização dos Direitos
Fundamentais da Pessoa Humana e na luta pela cidadania.

2. O Magistério da Igreja e a resistência ‘a aceitação do Paradigma Democrático

Embora a concepção de Democracia dos Modernos e a doutrina dos Direitos Humanos


tenha, de certa forma, sua origem no Cristianismo, em sua ética, e na concepção de pessoa
humana da qual é portador, houve por parte da Igreja Católica, e das Igrejas Cristãs em geral,
forte relutância em aceitar sua formulação. Essa dificuldade liga-se em grande parte ao modo e
ao contexto como surgiu inicialmente a formulação filosófica do paradigma democrático e do
paradigma dos Direitos Humanos. O contexto iluminista, anticlerical, e freqüentemente
agnóstico ou ateu, ao abordar os então chamados Direitos do Homem colocava o acento,
sobretudo, na liberdade religiosa, sendo que, em termos práticos, principalmente no contexto
europeu, a defesa da liberdade religiosa vinha quase sempre acompanhada de ações contra a
religião e a Igreja. No âmbito da Revolução Francesa fomentaram-se políticas francamente hostis
à Igreja. Neste contexto a Igreja Católica assume um paradigma antimodernista, condenando sem
9

matizes a razão moderna, o Iluminismo e o Liberalismo. Neste momento o adversário a ser


combatido é o Estado Liberal que compreende seja o Estado Capitalista Liberal que tem como
principal sujeito a burguesia, seja o Estado Socialista reivindicado pelo movimento operário. A
Igreja mantinha-se ligada fortemente ao Regime Antigo e à Nobreza, apoiando como ideal a
Restauração da Monarquia e o Absolutismo. Neste paradigma se rejeita os princípios de
separação entre Igreja e Estado (Pio IX, Silabo 55, DS 2955), a liberdade religiosa (Pio IX,
Silabo 15, DS 2915), bem como o princípio da soberania popular (Pio IX, Quanta Cura, DS
2890).

A ascensão de Leão XIII ao papado em 1878 marca a constituição de um novo


paradigma, que pode ser chamado de paradigma tomista-leoniano. Neste momento as
transformações iniciadas no século anterior já eram uma realidade irreversível. Não se colocava
mais a ilusão de um retorno ao Antigo Regime. A unificação italiana ocorrida em 1870
acarretando o fim dos Estados Pontifícios, o avanço do movimento liberal burguês e do
socialismo seja na Europa seja nas Américas exigia uma redefinição do paradigma vigente. O
novo paradigma é constituído passo a passo na promulgação de uma série de sete encíclicas que
entre 1878 e 1891 redefinirão o papel da Igreja no mundo moderno para as décadas seguintes e
que se tornou vigente até o Pontificado de João XXIII e a promulgação de sua primeira encíclica
social em 1961. Em 1878 Leão XIII promulga a Encíclica Quod Apostolici Numeris que
redefine o adversário primário no campo político como sendo o Socialismo, agora distinto do
Capitalismo, do qual se admite a possibilidade da existência de uma versão não Liberal, tornando
possível estabelecer uma aliança com a nova classe dirigente, a burguesia. Em 1879, a Encíclica
Aeterni Patris redefine o programa cultural. Da condenação na sua totalidade da razão moderna
passa-se à aceitação de um realismo moderado e ao neotomismo como alternativa ao
racionalismo radical representado pelo Positivismo, bem como pelo Cientificismo e pelo
Marxismo. O programa político é delineado em quatro encíclicas entre 1881 e 1890: Diuturnum,
1881, sobre a natureza do poder político; Imortale Dei, 1885, sobre a teoria cristã do Estado;
Libertas, 1888, sobre a natureza da liberdade humana; Sapientia Christianae, 1890, sobre o
significado da cidadania. Passa-se aqui do ideal de restauração da Monarquia e do Absolutismo
ao programa de reforma dos Estados Liberais. Por fim em 1891 a Encíclica Rerum Novarum
completa o paradigma traçando o programa econômico social onde em alternativa à economia
10

feudal do Antigo Regime se propõe o catolicismo social como expressão econômica dos Estados
Liberais reformados.

Nesse novo paradigma, embora de modo mais matizado que no paradigma anterior,
tende-se a não se diferenciar o Estado da Sociedade. O Estado é compreendido como sendo
natural, necessário e um bem. O ser humano é compreendido como um ser social por natureza, e
o Estado é compreendido como uma estrutura necessária para a realização da vida social. Sua
finalidade é a promoção do bem comum, da justiça, da ordem e da felicidade de seus membros.
Nesse paradigma a autoridade civil (o governo do Estado) é uma exigência que decorre da ordem
da criação, sendo por isso afirmado que o fundamento dessa autoridade não se encontra em uma
delegação de poder dada pelos membros da sociedade aos governantes, mas em Deus (Leão XIII,
Enc. Diuturnum Illud, 5; Enc. Immortale Dei, 4-5). A teoria do pacto social e a perspectiva
contratualista são frontalmente rejeitadas, sendo mesmo afirmado que o “pacto que predicam é
claramente uma ficção inventada” que “não serve para dar à autoridade política a força, a
dignidade e a firmeza que requer a defesa da República e a utilidade comum dos cidadãos. A
autoridade só terá esta majestade e fundamento universal se se reconhece que provem de Deus
como de fonte Augusta e Santíssima” (Diuturnum Illud 8). Estas afirmativas não significam,
entretanto, que para Leão XIII, o governante não possa ser escolhido por diversos meios,
inclusive o do voto da maioria (Diuturnum Illud, 6), com a ressalva de que mesmo nesse caso, a
maioria estaria apenas designando quem exercerá autoridade, mas não estaria conferindo
autoridade ao governante, mantendo-se o princípio de que a origem última do poder encontra-se
em Deus, nesse caso, de modo mais próprio, na ordem que Deus dispôs para o criado, onde o
princípio de autoridade faz-se natural, necessário e um bem para a humanidade, pois sem ele não
poderia esta alcançar o fim natural para o qual foi criada. Note-se que aqui, embora se aceite o
princípio da escolha da autoridade civil pelo voto majoritário, não se aceita o princípio
fundamental das democracias modernas da soberania popular, ou seja, de que o poder civil tem
origem na própria sociedade e se exerce como mandato representativo, dentro de limites
estabelecidos por lei, conforme o parágrafo único do primeiro artigo da Constituição Brasileira:
“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,
nos termos desta Constituição”.
11

Nessa perspectiva o Estado, entretanto, não é compreendido como ominiabrangente,


excluindo-se o totalitarismo. A afirmação no paradigma tomista-leoniano do princípio de
subsidiariedade, da precedência da família sobre as demais instituições sociais, e da dignidade da
pessoa humana, sempre colocaram um limite à ação do Estado. A família é compreendida como
a primeira célula social e matriz das estruturas superiores. O Estado, por sua vez, não deve
assumir para si aquilo que pode ser realizado pelas estruturas mais simples da sociedade, não
podendo absorver o indivíduo ou a família (Rerum Novarum 52). Nesse sentido a organização
social é pensada de baixo para cima, isto é, de seus níveis menos complexos aos níveis
superiores, devendo cada instância esgotar suas possibilidades de realizar aquilo que lhe é
próprio. A dignidade da pessoa humana coloca por sua vez um limite à ação do Estado que não
pode violar os limites impostos pela dignidade de cada pessoa, e deve promover a justiça
garantindo certos direitos inerentes à pessoa. Foi baseado nesses princípios que Leão XIII na
Rerum Novarum afirmou ser dever do Estado garantir um conjunto de direitos dos trabalhadores
contra a exploração e a injustiça (Rerum Novarum 52-54).

Nesse paradigma a relação entre Lei e Moral é pensada a partir de alguns princípios: o
erro não gera direito, e a Verdade deve ser traduzida em Lei, isto é, a Lei Humana deve ser
derivada da Lei Divina e Natural seja transformando-a diretamente em direito positivo, seja
tornando específico aquilo que por vezes encontra-se de modo geral ou indeterminado na Lei
Natural. Por sua vez, entende-se por Lei Natural a participação da Lei Eterna (o plano da Criação
em Deus) na natureza racional dos homens e por Lei Divina as prescrições reveladas por Deus
aos seres humanos. Foi essa perspectiva a levar Leão XIII a se opor vigorosamente ‘a “liberdade
religiosa” (O Catolicismo deve ser reconhecido como Religião Oficial por ser a única
Verdadeira, Immortale Dei, 11, 32) e a defender limites estreitos para a liberdade de opinião e
expressão (Não se pode propagar e defender o erro, Immortale Dei 38, 59). A Lei humana é
compreendida nesse contexto como um meio legítimo e necessário de imposição da moralidade
pública e individual, sendo o Estado com seu poder coercitivo um instrumento fundamental para
se fazer cumprir por todos as exigências da Lei Natural e Divina e assim zelar pelo Bem Comum
e pelo Bem de cada indivíduo. Nessa perspectiva, uma Lei Humana baseada em um princípio
errôneo pode ser apenas tolerada quando for estritamente necessário para se atingir um bem
maior. Assim, por exemplo, pode-se tolerar a liberdade religiosa em uma região onde o
12

Catolicismo for minoritário, como na Ásia ou África, pois caso contrário a Missão se tornaria
grandemente prejudicada.

Neste contexto cabe também tecer algumas observações sobre as importantes


rádiomensagens de Natal de Pio XII em 1942, 43 e 44. Em Pio XII ocorrem algumas inovações
no interior do paradigma tomista-leoniano sem que estas representem uma ruptura ou a
instauração de um novo paradigma. Entre os novos elementos devemos destacar a clara distinção
entre o Estado e Sociedade já presente na rádiomensagem de Natal de 1942, assim como uma
menção a alguns direitos fundamentais, inalienáveis, de que todos são portadores. Por sua vez, a
rádiomensagem do Natal de 1944 reserva um largo espaço à reflexão sobre a Democracia.
Embora esta seja apresentada de forma positiva não é verdadeiramente aceita em seus
fundamentos, como concretização da soberania popular. Para a sua plena aceitação falta ainda,
neste momento, também desenvolver no catolicismo uma recepção profunda da doutrina dos
Direitos Humanos, incluindo a questão central da liberdade de pensamento e expressão e da
liberdade religiosa.

3. A recepção Católica da Democracia e dos Direitos Humanos: João XXIII, o


Concílio Vaticano II e Paulo VI

Nos anos 60 coube ao Papa João XXIII estabelecer, na Encíclica Pacem in Terris, uma
verdadeira recepção católica do paradigma dos Direitos Humanos. Nos parágrafos iniciais da
primeira parte da Encíclica Pacem in Terris, o Papa afirma: “Em uma convivência humana bem
constituída e eficiente, é fundamental o princípio de que cada ser humano é pessoa; isto é,
natureza dotada de inteligência e vontade livre. Por essa razão, possui em si mesmo direitos e
deveres, que emanam direta e simultaneamente de sua própria natureza. Trata-se, por
conseguinte, de direitos e deveres universais, invioláveis, e inalienáveis”. Ocorre aqui uma
notável mudança de paradigmas. Até então, inclusive na Rerum Novarum e nas rádiomensagens
de Natal de Pio XII, aceitava-se que homens e mulheres, sendo seres criados à imagem e
semelhança de Deus, possuem uma Dignidade própria e por isso são sede de certos direitos
inalienáveis. Entretanto, o paradigma vigente no pensamento social cristão continuava a
13

conceber a organização jurídico-política do Estado e da Sociedade a partir do pólo dos deveres.


Na Encíclica Pace in Terris ocorre uma ruptura. Assume-se o paradigma dos Direitos, onde o
arcabouço jurídico-político é construído visando a defesa da pessoa e sua proteção. Trata-se de
um passo fundamental para a aceitação plena do paradigma Democrático na Doutrina Social da
Igreja.

O conjunto de Direitos afirmados nessa Encíclica ultrapassa os constantes na Declaração


Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, desdobrando-se em quatro dimensões:
direitos políticos, civis, econômicos e sociais. Distingue assim da visão liberal dos Direitos
Humanos ao integrar os direitos individuais aos sociais, a partir do princípio da responsabilidade
social e do dever de solidariedade que liga as pessoas humanas. Entre os direitos principais
listados encontram-se em primeiro lugar o “direito à existência, à integridade física, aos
recursos correspondentes a um digno padrão de vida”, o que inclui também os direitos sociais:
ser amparado na doença, na velhice, assim como na viuvez, na invalidez e em caso de
desemprego forçado. João XXIII também afirma a existências de direito morais e culturais que
incluem os direitos civis: a liberdade de pensar e expressar o pensamento, de receber
informações verídicas sobre acontecimentos públicos, bem como o direito à educação e à
formação técnica e profissional. Afirma-se também nessa Encíclica o direito à liberdade religiosa
e à escolha do estado de vida. Outro campo de direitos é constituído pelos direitos econômicos,
que incluem o direito ao trabalho e à justa remuneração e pelos direitos políticos: participar
ativamente da vida pública, o direito de reunião e associação, assim como o direito de emigração
e imigração.

A Encíclica Pacem in Terris marca a afirmação de um novo paradigma que será também
desenvolvido ao longo do Concílio Vaticano II e por Paulo VI. Neste paradigma a Igreja
reconcilia-se com a Modernidade, e não só aceita os fundamentos da Democracia, mas torna-se
ela mesma uma das mais importantes instâncias mundiais na defesa das liberdades democráticas,
assim como na defesa da Justiça e dos Direitos Humanos. O Documento Conciliar Gaudium et
Spes afirma que a Igreja, “Sacramento Universal da Salvação” é uma realidade a serviço da
salvação da humanidade e da recapitulação de todas as coisas em Cristo (GS 45a). A Boa Nova,
o anúncio do Reino de Deus, que lhe foi confiado, diz respeito não só aos homens e as mulheres,
14

mas a todo o criado, pois “O Senhor é o fim da história humana, ponto para o qual convergem
as aspirações da história e da civilização, centro da humanidade, alegria de todos os corações e
plenitude de todos os seu desejos” (GS 45b). Nessa perspectiva, salvaguardando a distinção entre
as duas ordens, a temporal e a espiritual, e a autonomia da ordem temporal afirmada pelo
Concílio (GS 36), o que embasa a diferença fundamental entre Igreja e Estado, afirma-se ao
mesmo tempo a existência de uma relação entre as duas ordens, na qual a Igreja atua no mundo
não só como oferta de salvação às pessoas, mas também à história humana. Conforme afirma a
Gaudium et Spes, em decorrência de sua missão salvífica, “A Igreja, sem dúvida alicerçada no
amor do Redentor, contribui para que a justiça e a caridade floresçam mais amplamente no seio
de cada nação e entre as nações” (GS 76). Essa ação em favor da justiça e da caridade tem não
apenas uma dimensão ética, mas também escatológica: “Por isso, ainda que o progresso terreno
deva ser cuidadosamente distinguindo do reino de Cristo, contudo é de grande interesse para o
Reino de Deus, na medida em que pode contribuir para organizar a história humana....O Reino
já está presente em mistério aqui na Terra. Chegando o Senhor ele se consumará” (GS 39).

Por isso o envolvimento no desenvolvimento dos povos e na luta pela justiça não é para a
Igreja apenas uma conseqüência de sua missão evangelizadora, mas parte integrante dessa
mesma missão, conforme Paulo VI afirmará também em sua primeira encíclica social,
Populorum Progressio: “O desenvolvimento dos povos, especialmente daqueles que se esforçam
por afastar a fome, a miséria, as doenças endêmicas, a ignorância; que procuram uma
participação mais ampla nos frutos da civilização, uma valorização mais ativa das suas
qualidades humanas; que se orientam com decisão para o seu pleno desenvolvimento, é seguido
com atenção pela Igreja. Depois do Concílio Ecumênico Vaticano II, uma renovada
conscientização das exigências da mensagem evangélica traz à Igreja a obrigação de se pôr ao
serviço dos homens, para os ajudar a aprofundarem todas as dimensões de tão grave problema e
para os convencer da urgência de uma ação solidária neste virar decisivo da história da
humanidade” (PP 1) ....“Nos desígnios de Deus, cada homem é chamado a desenvolver-se,
porque toda a vida é vocação. E dado a todos, em germe, desde o nascimento, um conjunto de
aptidões e de qualidades para as fazer render: desenvolvê-las será fruto da educação recebida
do meio ambiente e do esforço pessoal, e permitirá a cada um orientar-se para o destino que lhe
propõe o Criador. Dotado de inteligência e de liberdade, é cada um responsável tanto pelo seu
15

crescimento como pela sua salvação. Ajudado, por vezes constrangido, por aqueles que o
educam e rodeiam, cada um, sejam quais forem as influências que sobre ele se exerçam,
permanece o artífice principal do seu êxito ou do seu fracasso: apenas com o esforço da
inteligência e da vontade, pode cada homem crescer em humanidade, valer mais, ser mais. Por
outro lado, este crescimento da pessoa humana não é facultativo. Como toda a criação está
ordenada em relação ao Criador, a criatura espiritual é obrigada a orientar espontaneamente a
sua vida para Deus, verdade primeira e soberano bem. Assim o crescimento humano constitui
como que um resumo dos nossos deveres. Mais ainda, esta harmonia, pedida pela natureza e
enriquecida pelo esforço pessoal e responsável, é chamada a ultrapassar-se. Pela sua inserção
em Cristo vivificante, o homem entra num desenvolvimento novo, num humanismo transcendente
que o leva a atingir a sua maior plenitude: tal é a finalidade suprema do desenvolvimento
pessoal” (PP 15-16).

Na Declaração Dignatis Humanae, sobre a liberdade religiosa, aprovada em 1965, ao


final do Concílio Vaticano II, ocorre uma substancial mudança de paradigma na concepção da
relação Igreja-Estado e na forma de conceber a relação Verdade-Moral-Lei. Essa mudança foi
possível graças ao trabalho teológico do teólogo jesuíta norte-americano John Courtney Murray,
e representa o ultrapassar da última barreira na direção da plena aceitação do paradigma
democrático contemporâneo pela Doutrina Social da Igreja: a recepção plena da legitimidade das
liberdades democráticas, incluindo a liberdade religiosa, superando o paradigma tomista-
leoniano. John Courtney Murray havia ao longo das décadas de 1940-50 e no início dos anos 60
desenvolvido um novo paradigma da relação Igreja e Estado que foi assumido pelos Padres
Conciliares na Declaração Dignatis Humanae. A argumentação fundamental do paradigma de
Murray se desenvolve em torno a quatro pontos (entre os muitos escritos de J. C. Murray sobre o
tema, veja-se de modo especial The Problem of Religious Freedom em Theological Studies 25
(Dezembro 1964): 503-575 e On the Structure of the Church-State Problem" em W. Gurian e M.
A. Fitzsimons (ed.), The Catholic Church in World Affairs, p. 11-32, University of Notre Dame
Press, Notre Dame, 1954):
a. Murray assume como ponto de partida a distinção entre a ordem espiritual e a
temporal. Igreja e Estado têm diferentes finalidades, segundo as duas distintas
ordens a que pertencem. Na história estão sempre presentes dois riscos. O
16

primeiro é o do monismo, que reduz seja o temporal ao espiritual, seja o


espiritual ao temporal. O segundo risco é o de transformar essa dualidade em
dualismo, construindo um paralelismo entre as duas ordens, de tal modo que o
espiritual e o temporal encontram-se não apenas distintos, mas totalmente
separados e mesmo em oposição. Entre as duas distintas ordens existe uma
articulação que se encontra na realidade mesma da Igreja: “Sacramento
Universal da Salvação”.
b. Murray faz também uma importante distinção entre o Estado e a Sociedade.
Estado e Sociedade não são co-extensivos. O Estado possui o poder coercitivo
e o exerce em benefício da sociedade. O fim da Sociedade Civil é maior e
qualitativamente diferente do que o do Estado. Este em um regime
democrático possui um papel restrito e delimitado pelos princípios
constitucionais. Além disso, segundo o princípio de subsidiariedade
consagrado na Doutrina Social da Igreja, a Sociedade-Estado deve ser pensada
de sua base para cima.
c. A distinção entre Sociedade e Estado permite por sua vez que se distinga o
Bem Comum da Ordem Pública. Para Murray, o fim da Sociedade é a
construção do Bem Comum, enquanto o do Estado é a promoção da Ordem
Pública para que a Sociedade possa chegar ao Bem Comum. Por Ordem
Pública, entende Murray, a garantia da justiça, da paz (harmonia social) e da
moralidade publica. A moralidade pública difere da moralidade privada e
envolve, para Murray, certos padrões mínimos de moralidade que afetam a paz
pública e a justiça. A justiça abarca, por sua vez, os Direitos Fundamentais da
pessoa humana e, se levarmos em conta o Desenvolvimento da Doutrina sobre
o Direito que ocorre na Encíclica Pacem in Terris (João XXIII, 1963),
teríamos uma aproximação maior entre o fim do Estado e da Sociedade, uma
vez que nesse caso a promoção da ordem pública se aproximaria do
entendimento hodierno do Bem Comum. Entretanto, a distinção entre o fim
do Estado que é basicamente a garantia da Justiça, ou seja, dos Direitos
Fundamentais em suas quatro dimensões: políticos, civis, econômicos e
17

sociais aos quais se deve hoje acrescentar uma quinta dimensão, a ecológica, e
o fim da Sociedade, que é a construção do Bem Comum é fundamental.
d. Por fim, Murray enuncia um quarto princípio, que é de certo modo um
corolário dos três princípios anteriores: o Estado Democrático Constitucional
deve garantir tanta liberdade, pessoal e social, quanto possível, e restringir a
liberdade, pessoal e social, apenas naquilo que for necessário para a ordem
pública (Justiça). Esse princípio constitui-se em um ponto fundamental da
Declaração Dignatis Humanae: “Além disso, uma vez que a sociedade civil
tem o direito de se proteger contra os abusos que, sob pretexto de liberdade
religiosa, se poderiam verificar, é sobretudo ao poder civil que pertence
assegurar esta proteção. Isto, porém, não se deve fazer de modo arbitrário, ou
favorecendo injustamente uma parte; mas segundo as normas jurídicas,
conformes à ordem objetiva, postuladas pela tutela eficaz dos direitos de
todos os cidadãos e sua pacífica harmonia, pelo suficiente cuidado da
honesta paz pública que consiste na ordenada convivência sobre a base duma
verdadeira justiça, e ainda pela guarda que se deve ter da moralidade
pública. Todas estas coisas são parte fundamental do bem comum e
pertencem à ordem pública. De resto, deve manter-se o princípio de
assegurar a liberdade integral na sociedade, segundo o qual se há de
reconhecer ao homem o maior grau possível de liberdade, só restringindo
esta quando e na medida em que for necessário.” (DH 7, grifos nosso)

Pode-se reconhecer no modo como na Octogesima Adveniens se estabelece a relação entre


a Comunidade Cristã, Sociedade e Estado, o paradigma da Liberdade Religiosa. Em primeiro
lugar, a relação entre os grandes valores e princípios éticos e as opções concretas que devem ser
tomadas em um dado contexto não é direta e nem unívoca, o que supõe o reconhecimento da
necessidade de mediações concretas e da contingência de todo processo histórico (“sem dúvida
que são muito diversas as situações nas quais, voluntária ou forçosamente, se encontram
comprometidos os cristãos, conforme as regiões, conforme os sistemas sócio-políticos e
conforme as cultura”, OA 3). Enquanto a Verdade é uma, as opções legítimas, em um dado
contexto histórico concreto, são múltiplas e simultaneamente limitadas, e nenhuma opção será
18

em si mesma a concretização total da Verdade (“Nas diferentes situações concretas e tendo


presentes as solidariedades vividas por cada um, é necessário reconhecer uma variedade
legítima de opções possíveis. Uma mesma fé cristã pode levar a assumir compromissos
diferentes” OA, 50). A decisão sobre qual opção tomar dá-se após a análise objetiva da realidade,
o exame dessa realidade à luz do Evangelho e do Ensinamento Social da Igreja e de um processo
de discernimento feito pela Comunidade em comunhão com seus Pastores e em diálogo com
outros cristãos e todos os homens de boa vontade (OA 4). Tais opções são feitas entre aquelas
historicamente possíveis em um determinado contexto e não simplesmente como tentativa de,
desprezando as mediações, buscar concretizar na história um ideal absoluto, que, nesse caso,
deixa de ser inspiração e referência para ação e transforma-se em ideologia. O Papa Paulo VI
afirma a legitimidade dessa pluralidade de opções como uma questão de princípio e não apenas
como um fato tolerado, mas indesejável. Além disso, segundo a Octogesima Adveniens a ação
política, por parte dos cristãos se faz como forma de viver o compromisso cristão, como serviço
ao outro, na busca de construir o bem comum e uma sociedade mais justa (OA 23-24 e 46) e não
para impor, através do Estado, uma particular convicção. Nas palavras da Octogesima
Adveniens: “A ação politica - será necessário acentuar que se trata prevalentemente de uma
ação e não de uma ideologia? - deve ter como base de sustentação um esquema de sociedade,
coerente nos meios concretos que escolhe e na sua inspiração, que deve alimentar-se numa
concepção plena da vocação do homem e das suas diferentes expressões sociais. Não compete
nem ao Estado, nem sequer aos partidos políticos, que estariam fechados sobre si mesmos,
procurar impor uma ideologia, por meios que viessem a redundar em ditadura dos espíritos, a
pior de todas. É sim aos grupos culturais e religiosos - salvaguardada a liberdade de adesão
que eles pressupõem - que assiste o direito de, pelas suas vias próprias e de maneira
desinteressada, desenvolverem no corpo social essas convicções supremas acerca da natureza,
da origem e do fim do homem e da sociedade. Neste ponto, é oportuno recordar o princípio
proclamado no recente Concílio Vaticano II: "A verdade não se impõe de outro modo senão
pela sua própria força de verdade, que penetra nos espíritos, ao mesmo tempo suave e
fortemente [Dignitatis Humanae 1]” (OA 25, grifos nossos).
19

Com a recepção do chamado “paradigma da liberdade religiosa” chega-se na Doutrina


Social da Igreja ‘a plena aceitação do paradigma contemporâneo da Democracia, que inclui uma
nova perspectiva na relação entre Moral e Lei. Em um Estado Democrático de Direito a Lei não
é pensada como garantia da moralidade individual, mas da Justiça, ou seja, ela deve restringir a
liberdade individual e coletiva apenas para garantir a Justiça, isto é, os Direitos Fundamentais.

4. Democracia e Justiça em João Paulo II e Bento XVI

O Magistério Social de João Paulo II dá plena continuidade ao paradigma democrático.


De modo especial, a Encíclica “Centesimus Annus” promulgada em 1991, apenas três anos
depois da queda do Muro de Berlim que marca a derrocada do Coletivismo Soviético, aborda o
tema da Democracia. Trata-se de uma afirmação clara de que a organização Democrática dos
Estados não é apenas uma opção entre outras, mas uma necessidade que decorre da própria
Dignidade Humana: “Não é lícito do ponto de vista ético, nem praticável menosprezar a
natureza do homem que está feito para a liberdade. Na sociedade onde a sua organização reduz
arbitrariamente ou até suprime a esfera em que a liberdade legitimamente se exerce, o resultado
é que a vida social progressivamente se desorganiza e definha” (CA 25).

Para João Paulo II também é claro o nexo entre Democracia e Direitos Humanos: “Após a
queda do totalitarismo comunista e de muitos outros regimes totalitários e de «segurança
nacional», assistimos hoje à prevalência, não sem contrastes, do ideal democrático, em conjunto
com uma viva atenção e preocupação pelos direitos humanos. Mas, exatamente por isso, é
necessário que os povos, que estão reformando os seus regimes, dêem à democracia um
autêntico e sólido fundamento mediante o reconhecimento explícito dos referidos direitos. Entre
os principais, recordem-se: o direito à vida, do qual é parte integrante o direito a crescer à
sombra do coração da mãe depois de ser gerado; o direito a viver numa família unida e num
ambiente moral favorável ao desenvolvimento da própria personalidade; o direito a maturar a
sua inteligência e liberdade na procura e no conhecimento da verdade; o direito a participar no
trabalho para valorizar os bens da terra e a obter dele o sustento próprio e dos seus familiares;
o direito a fundar uma família e a acolher e educar os filhos, exercitando responsavelmente a
sua sexualidade. Fonte e síntese destes direitos é, em certo sentido, a liberdade religiosa,
20

entendida como direito a viver na verdade da própria fé e em conformidade com a dignidade


transcendente da pessoa” (CA 47).

Deste modo pode-se afirmar que o paradigma contemporâneo da Democracia que foi
assumido por João XXIII, o Concílio Vaticano II e Paulo VI encontra seu seguimento em João
Paulo II. Percebe-se também que a questão da relação entre Verdade, Lei e Moral, central no
pensamento de João Paulo II, segue o paradigma da liberdade religiosa. A Lei deve estar de
acordo com a Verdade não para impor um comportamento individual, mas para garantir os
Direitos Fundamentais e o respeito à Dignidade Humana: “Também nos Países onde vigoram
formas de governo democrático, nem sempre estes direitos são totalmente respeitados. Não se
trata apenas do escândalo do aborto, mas de diversos aspectos de uma crise dos sistemas
democráticos, que às vezes parecem ter perdido a capacidade de decidir segundo o bem comum.
As questões levantadas pela sociedade não são examinadas à luz dos critérios de justiça e
moralidade, mas antes na base da força eleitoral ou financeira dos grupos que as apóiam.
Semelhantes desvios da prática política geram, com o tempo, desconfiança e apatia e
conseqüentemente diminuição da participação política e do espírito cívico, no seio da
população, que se sente prejudicada e desiludida. Disso resulta a crescente incapacidade de
enquadrar os interesses particulares numa coerente visão do bem comum. Este efetivamente não
é a mera soma dos interesses particulares, mas implica a sua avaliação e composição feita com
base numa equilibrada hierarquia de valores e, em última análise, numa correta compreensão
da dignidade e dos direitos da pessoa” (CA 47).

Observe-se, porém, que João Paulo II não distingue claramente o fim do Estado e da
Sociedade, como ocorre no paradigma da “liberdade religiosa”. Muitas vezes, para o pontífice,
Estado e Sociedade parecem ter o mesmo fim: o Bem Comum. Esta distinção entre Estado e
Sociedade será, entretanto, retomada pelo Papa Bento XVI em sua Encíclica “Deus Caritas Est”:
“Para definir com maior cuidado a relação entre o necessário empenho em prol da justiça e o
serviço da caridade, é preciso anotar duas situações de fato que são fundamentais: a) A justa
ordem da sociedade e do Estado é dever central da política. Um Estado, que não se regesse
segundo a justiça, reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrões, como disse Agostinho uma vez:
21

« Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia? ». Pertence à estrutura
fundamental do cristianismo a distinção entre o que é de César e o que é de Deus (cf. Mt 22, 21),
isto é, a distinção entre Estado e Igreja ou, como diz o Concílio Vaticano II, a autonomia das
realidades temporais. O Estado não pode impor a religião, mas deve garantir a liberdade da
mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiões; por sua vez, a Igreja como expressão
social da fé cristã tem a sua independência e vive, assente na fé, a sua forma comunitária, que o
Estado deve respeitar. As duas esferas são distintas, mas sempre em recíproca relação. A justiça
é o objetivo e, conseqüentemente, também a medida intrínseca de toda a política. A política é
mais do que uma simples técnica para a definição dos ordenamentos públicos: a sua origem e o
seu objetivo estão precisamente na justiça, e esta é de natureza ética. Assim, o Estado defronta-
se inevitavelmente com a questão: como realizar a justiça aqui e agora? Mas esta pergunta
pressupõe outra mais radical: o que é a justiça?” (DCE 28).

Neste contexto cabe uma especial referência ao “Compêndio da Doutrina Social da


Igreja” publicado em 2004 pelo Pontifício Conselho para a Justiça e a Paz, por solicitação de
João Paulo II. Neste Documento encontramos claramente uma distinção entre Estado e
Sociedade Civil e uma aceitação explícita do princípio da soberania popular: “O sujeito da
autoridade política é o povo considerado na sua totalidade como detentor da soberania. O
povo, de modos diferentes, transfere o exercício da sua soberania para aqueles que elege
livremente como seus representantes, mas conserva a faculdade de a fazer valer no controle da
atuação dos governantes e também na sua substituição, caso não cumpram de modo satisfatório
as suas funções. Se bem que este seja um direito válido em qualquer Estado e em qualquer
regime político, o sistema da democracia, graças aos seus procedimentos de controlo, consente
e garante uma melhor realização do direito sobredito. No entanto, o mero consenso popular
não é suficiente para que as modalidades de exercício da autoridade política sejam
consideradas justas” (CDSI 395).

Deste modo pode-se dizer que o Magistério da Igreja de João XXIII em diante fez uma
ampla recepção católica do conceito moderno de Democracia em seus três elementos
fundamentais: soberania popular, representatividade e Direitos Humanos. Este notável percurso
feito pelo Magistério foi acompanhado de um profundo envolvimento da Igreja com a defesa do
22

Direitos Fundamentais. Na seção seguinte, a título de conclusão teceremos algumas observações


sobre o envolvimento da Igreja no Brasil com a defesa da Democracia e dos Direitos Humanos.

5. A Igreja no Brasil e a defesa da Democracia e os Direitos Humanos

A crescente tensão social e política no início dos anos 60 no Brasil dividiu o episcopado
católico. Embora majoritariamente identificado com o horizonte das oligarquias agrárias
contrário às transformações sociais, encontravam-se também, em seu meio, não poucos Bispos
que aderiram a uma perspectiva desenvolvimentista ou mesmo mais profundamente
transformadora. Diante da ameaça, ao menos imaginária, de que por ação do então presidente
João Goulart, um regime comunista viesse a se implantar no Brasil, o episcopado,
majoritariamente, acaba por apoiar o golpe militar de 1964, que interrompeu o processo
democrático e instaurou uma ditadura no país. Deve-se destacar que, apesar do apoio dado ao
golpe, alguns setores do episcopado mostravam-se preocupados com a necessidade de que o
governo militar desse curso às reformas sociais que este mesmo grupo vinha defendendo, como
imprescindíveis para o futuro do Brasil, já à época do governo João Goulart, assim como
insistiam que se devia restaurar a Democracia em um curto espaço de tempo7.

O período do golpe militar coinciduiu com o do Concílio Vaticano II e da grande obra de


aggiornamento da Igreja Católica. Como reflexo direto do Concílio firma-se neste momento, no
interior da Igreja latino-americana, uma crescente preocupação com o povo pobre e as causas
sociais. Como parte deste movimento, inúmeros sacerdotes e religiosas passam a morar nas
periferias e zona rural, em pequenas comunidades, partilhando as condições de vida dos
empobrecidos. Essa mudança de condições sociais aliada a uma maior sensibilidade para com os
valores da justiça social e dos direitos humanos da modernidade leva amplos setores da Igreja a
um rápido distanciamento do governo militar. Em 1968 muitos padres, religiosos e religiosas
participam, no Rio de Janeiro, da “Marcha dos Cem Mil”, um grande ato de contestação, a favor
do fim do Governo Militar. No final do mesmo ano, o governo responde com o recrudescimento
de suas posições autoritárias e proclama o “Ato Institucional n.5”, que lhe amplia os poderes

7
Cf. S. Bernal, CNBB. Da Igreja da Cristandade à Igreja dos pobres, Loyola, São Paulo, 1989, especialmente p.
48-56.
23

ditatoriais, fecha o Congresso, e desencadeia uma onda de repressão ainda maior, com emprego
amplo e sistemático de práticas contrárias às mais elementares normas do direito, inclusive a
tortura8.

Na medida em que as prisões arbitrárias e a tortura passaram a atingir membros do clero,


religiosos e religiosas, leigos ligados à hierarquia e parentes diretos de alguns Bispos, amplos
setores da hierarquia, mesmo aqueles de posição moderada e muitas vezes conservadora, dão-se
conta da necessidade de intervir contra o Governo e colocar-se na defesa do Estado de Direito. A
Conferência Episcopal dos Bispos do Brasil (CNBB) passa a assumir um papel central na luta
pelos direitos humanos e constitui-se em um foco permanente de resistência democrática. A
tensão entre o Governo militar e a hierarquia católica cresce até um ponto de quase ruptura.
Mesmo alguns membros da alta hierarquia da Igreja que inicialmente tinham manifestado seu
apoio ao golpe militar, por seu caráter anticomunista, são hostilizados pelos militares por se
oporem a alguns atos mais autoritários, como acontece com D. Agnelo Rossi, na época Cardeal
Arcebispo de São Paulo, quando em dezembro de 1968, após alguns meses antes ter se recusado
a receber o título da Ordem do Mérito Nacional devido à invasão de sua casa feita por militares e
policiais para prender um padre estrangeiro com o objetivo de deportá-lo, é impedido de celebrar
a missa de primeira comunhão para os filhos de militares em sua diocese9.

Vários Bispos, como D. Waldir Calheiros de Volta Redonda e D. Helder Câmera de Recife,
passam por situações constrangedoras. Militares de alta patente fazem discursos e dão
depoimentos e entrevistas acusando a hierarquia da Igreja e a CNBB de estarem a serviço do
comunismo internacional. Padres são presos e muitas vezes torturados, alguns são condenados
por tribunais militares e outros, por serem estrangeiros, são expulsos do Brasil; um comando de
extrema direita, de origem militar, assassina em abril de 1969 Pe. Antônio Henrique Pereira
Neto, assistente de D. Helder para a juventude na Diocese de Recife10. Em 1970, D. Aloísio
Lorscheider, na época Secretário Geral da CNBB, é detido por cerca de quatro horas na sede da
entidade e impedido de comparecer a uma reunião com o Ministro da Justiça11.

8
Z. Ventura, 1968. O ano que não terminou. Edição Revisada, Planeta, são Paulo, 2008, p. 130-160.
9
Cf. R. Azzi, Presença da Igreja Católica na Sociedade Brasileira em Cadernos do ISER 13(1981), p.90-91.
10
Ibidem, p.93.
11
Ibidem, p.98.
24

A ação dos Bispos brasileiro contra a violação dos direitos humanos foi amplamente
respaldada pelo Vaticano. Não apenas a Radio Vaticano e L’Osservatore Romano (órgão oficial
da Santa Sé) denunciavam os abusos cometidos pelo governo militar e chegaram a publicar nota
da CNBB, mas o próprio Papa Paulo VI manifestou publicamente seu apoio aos Bispos
brasileiros e condenou a tortura12. Apesar da tensão crescente nunca se produziu uma total
ruptura entre os militares e a Igreja. Alguns canais de comunicação foram deixados abertos,
como a chamada Comissão Bipartide, criada em novembro de 1970 no Rio de Janeiro, então
cidade sede da CNBB. A Comissão, que não tinha caráter oficial, era composta, do lado da
Igreja, pela cúpula da CNBB, pelo Núncio Apostólico, pelos Cardeais de São Paulo (D. Paulo
Evaristo Arns) e do Rio de Janeiro (D. Eugenio Salles) e pelo assessor da CNBB, Prof. Candido
Mendes; do lado da situação encontravam-se o General Antonio Muricy, o Ten. Cel. Roberto
Pacífico o Maj. Leone da Silveira Lee e o Prof. Tarcisio Padilha. Embora o brasilianista K.
Serbin tenha dado grande destaque ao papel desta comissão13, esta não deve ser compreendida
como um instrumento isoladamente eficaz. Sua importância se fundava menos sobre algum tipo
de respeito que os militares pudessem nutrir pela Igreja ou por membros da hierarquia católica, e
mais pela pressão sobre o governo causada pela ação de denúncia pública, nacional e
internacional, que contava com o apoio do Vaticano, exercida pela CNBB e por membros
destacados da hierarquia como D. Paulo Cardeal Arns, cujo papel solidário e incondicional a
favor dos presos políticos, dos direitos humanos e do Estado de Direito resta insubstituível. A
Comissão interessava ao governo, principalmente aos seus setores menos radicais, como
instrumento para manter algum tipo de entendimento que evitasse a total ruptura que agravasse
sobremaneira o conceito do Brasil no exterior. Neste sentido sua limitada eficácia era fortemente
dependente da ação dos Bispos e Cardeais que, fazendo, ou não, parte da Comissão, tinham
papel público inequívoco e internacionalmente destacado na denúncia da tortura, na defesa dos
direitos humanos e das liberdades civis.

Durante os anos mais repressivos foram de fundamental importância alguns documentos


promulgados pela hierarquia católica brasileira. Além das dezenas de comunicados coletivos e

12
Ibidem, p.98.
13
K. Serbin, Diálogos na Sombra. Bispos e Militares, Tortura e Justiça Social na Ditadura, Companhia das Letras,
São Paulo, 2001.
25

individuais, de homilias lidas nas missas dominicais de todas as paróquias de uma Diocese, de
notas públicas de protestos feitas pelo episcopado nacional e do estudo de D. Cândido Padin que
analisava criticamente a Doutrina da Segurança Nacional à luz da Doutrina Social da Igreja e foi
apresentado a Assembléia da CNBB de 1968 e se tornou um marco referencial, os seguintes
documentos merecem destaque: “Eu ouvi os Clamores do Meu Povo” dos Bispos do Nordeste,
de maio de 1973, “Comunicação Pastoral ao Povo de Deus” da Comissão Representativa da
CNBB de 1976 e “Exigências Cristãs de uma Ordem Política” de 1977. Estes documentos,
elaborados em diferentes épocas e contextos constituíram-se em uma das poucas oportunidades
de se romper com o silêncio imposto pela censura e com a mordaça que nestes anos pretendia
calar qualquer voz crítica ao regime militar, a seus atos e à sua ideologia.

O forte posicionamento da hierarquia católica a favor dos Direitos Humanos e do Estado


Democrático de Direito, expresso nos documentos e ações, tanto pessoais quanto coletivas, era
acompanhado de um intenso movimento pastoral promotor de uma verdadeira cidadania, seja
através das chamadas Pastorais Específicas, tais como a Pastoral dos Trabalhadores, da Terra
(com a CPT, Comissão Pastoral da Terra), dos Indígenas (com o CIMI, Conselho Indigenista
Missionário), seja através das Comunidades Eclesiais de Base que começaram a ser criadas em
meados dos anos 60, em algumas dioceses e logo se espalharam por todo o Brasil14. Estas
pequenas comunidades se engajaram em lutas transformadoras, seja no nível local seja
nacional15.

Em 1994 foi conduzida uma pesquisa que congregou o Centro de Estatísticas Religiosas e
Investigações Sociais (CERIS) e a Equipe de Assessoria do Instituto de Estudos da Religião
(ISER) que estimou naquele momento o número de comunidades no país como da ordem de cem
mil16. Outras pesquisas, feitas pelo ISER/Assessoria ao longo de dez anos (1984-1995) com o
intuito de avaliar pastoralmente dez Dioceses de diferentes pontos do país que requisitaram este
tipo de trabalho, permitem observar como através das CEBs católicos pertencentes a grupos
populares, do ponto de vista sócio-econômico, tomaram parte em diversas lutas sociais e

14
R. Caramuru de Barros, Comunidade Eclesial de Base, uma opção Pastoral decisiva, Vozes, Petrópolis, 1967.
15
Cf. I. Lesbaupin (org.), Igreja. Comunidade e massa, Paulinas, São Paulo, 1996.
16
Cf. R. Valle, e M. Pitta, Comunidades eclesiais católicas: resultados estatísticos no Brasil, VOZES/CERIS,
Petrópolis, 1994.
26

inclusive entraram para a participação político partidária, principalmente nos partidos mais
ligados às transformações sociais tal como o Partido dos Trabalhadores (PT)17. Estes dados
foram também confirmados por uma nova pesquisa feita em 2004 nos Estados de Minas Gerais e
Rio de janeiro pelo ISER/Assessoria18. Deve-se considerar que durante os anos mais repressivos
do governo militar, por um longo período, quase todos os canais de participação democráticos
foram bloqueados. As CEBs constituíram-se neste momento em um espaço de aprendizado
participativo, onde se desenvolviam práticas democráticas, com decisões obtidas após exaustivo
debate e se exercia a crítica social19. Neste sentido pode-se dizer que as CEBs tiveram
importante papel na resistência democrática ao governo militar e no restabelecimento
democrático que se dá no país após 1996, de modo especial ao fornecer excelentes quadros
populares aos Movimentos Sociais, Sindicatos e Partidos Políticos20. Pesquisas feitas por ocasião
dos Encontros Intereclesiais de CEBs em 1981, 2000 e 2005, permitem concluir que não
obstante sua menor visibilidade na mídia, as CEBs continuam a crescer e a manter vitalidade
eclesial e social21. Dados recolhidos junto aos 2395 delegados/participantes do 10o Encontro
Intereclesial de CEBs realizado em Ilhéus, Bahia, em 2000, indicam que pelo menos 84% dos
1439 delegados/participantes que retornaram o questionário haviam participado de alguma luta
social, e 76% têm participação em alguma organização da sociedade civil; ao menos 58%
haviam sofrido algum tipo de perseguição tal como ameaça, ou mesmo prisão ou violência física
em decorrência das lutas sociais22. Os mesmos dados recolhidos no 11o Encontro Intereclesial de
CEBS realizado em 2005 em Ipatinga, Minas Gerais, com a presença de 3210 delegados, dos
quais 2419 responderam ao questionário apontam para resultados bastante semelhantes em
termos de número de delegados envolvidos em alguma organização da sociedade civil. Muda,
entretanto, o tipo de participação com uma nova ênfase no cooperativismo e nas organizações de

17
Cf. VVAA, As Comunidades de Base em Questão, Paulinas, São Paulo, 1997.
18
I. Lesbaupin, et Alli, Síntese de uma pesquisa em Minas Gerais e Rio de Janeiro, ISER Assessoria e CEBI, Rio de
Janeiro, 2004
19
Cf. L. Wanderley, Comunidades de Base e educação popular, em, REB 164 (1981): 686-707.
20
Das Comunidades estudadas pelo ISER/Assessoria, mais de 60% afirmavam já ter participado de lutas
revindicativas, que abrangiam um longo leque, desde luta pela terra, sindicatos, associações de bairros, etc. Cf. I.
Lesbaupin, As Comunidades de Base e a Transformação Social, em, VVAA, As Comunidades de Base em Questão,
Paulinas, São Paulo, 1997, p.47-74.
21
Cf. P. Oliveira, Perfil social e político das lideranças das CEBs no Brasil, em, REB 245 (2002): 172-184. P.
Oliveira, Lideranças de CEBs no Brasil – um estudo comparativo: 1981-2000-2005, Texto inédito, Juiz de Fora,
2008.
22
Cf. P. Oliveira, Perfil social e político ..., p.179-182.
27

economia solidária. Cerca de 51% dos delegados continuam a afirmar terem sofrido algum tipo
de violência ou ameaça em função de sua militância23.

Em termos da participação político-partidária, a mesma pesquisa mostra um crescimento do


número de filiados a partidos políticos entre 1981 e 2000 e um pequeno decréscimo em 2005
(48% dos delegados encontram-se filiados em 2005, 56% em 2000 e 30% em 1981)24.
Entretanto, manteve-se um grande número de delegados filiados ao PT. Dos delegados filiados,
85% o são ao PT em 2005 e 75% em 200025. A força eleitoral da CEBs tem provocado
diferentes interpretações. Alguns autores relacionam a expressiva vitória de candidatos do PT
em regiões tradicionalmente muito conservadoras como o Acre, Amazonas, parte do Nordeste e
Minas Gerais à sua atuação26.

Deve-se aqui recordar que no momento da redemocratização brasileira, quando ocorreu a


reforma partidária e saiu-se do bipartidarismo que havia sido imposto pelo governo militar,
chegou-se a discutir a conveniência de se fundar um partido católico, aos moldes da Democracia
Cristã italiana. A hierarquia católica brasileira mostrou-se majoritariamente refratária a essa
perspectiva, incentivando uma participação plural dos católicos e procurando agir sempre no
campo dos valores e da formação política suprapartidária. Mais recentemente católicos ligados
ao Movimento de Renovação Carismática fundaram um partido próprio, o Partido da
Solidariedade Nacional inspirado no solidarismo católico27.

Particularmente na última década, tem ocorrido um movimento mais intenso de participação


na pastoral política de diferentes setores da Igreja. Fundaram-se Escolas de Formação Política,
seguindo modelos diferenciados em várias Dioceses. Na CNBB foi fundado, no ano de 2005, o
Centro D. Hélder Câmera de Fé e Política, que entre outras ações propõe-se a articular uma rede
nacional de assessores e a oferecer cursos regulares para formadores das Escolas Diocesanas e
Regionais. Por ocasião das eleições, tem crescido no Brasil a publicação de cartilhas locais e

23
Cf P. Oliveira, Lideranças de CEBs no Brasil..., p.6.
24
Ibidem, p. 8.
25
Cf. P. Oliveira, Perfil social e político ..., p.183. Idem, Lideranças de CEBs no Brasil..., p.9.
26
Cf. J. Iulianelli, Eleições e algumas lições, em, Eleições 98: encaixam-se as peças, Tempo e Presença, 302
(1998):17-19.
27
Ibidem, p.17.
28

regionais para a orientação do voto católico. Outra iniciativa que tem também crescido é a de
fomentar a criação de comitês eleitorais para a aplicação da legislação contra a corrupção nas
eleições e de comitês para o acompanhamento do voto parlamentar, seguindo e divulgando a
ação e os votos dos parlamentares, permitindo que o eleitor saiba como age o político que
recebeu o seu voto.

A realidade de crescente pluralidade do campo religioso brasileiro não significa que o


Catolicismo tenha perdido sua relevância social. A Igreja Católica permanece ainda como a
grande instituição capaz de propor valores no campo social. Seu passado recente de
compromisso com os direitos humanos, sua luta a favor dos direitos dos pobres, dos indígenas e
marginalizados lhe garante credibilidade perante a sociedade, mesmo para os não católicos. Sua
ação durante os anos difíceis da repressão brasileira salvou muitas vidas e foi fundamental para a
volta à normalidade democrática e a pastoral social continua a ser um fator importante na
construção da cidadania e na conquista de avanços sociais que possam tornar o Brasil mais justo.
O exemplo da Igreja Católica no Brasil é revelador de como a Igreja tornou-se hoje uma das
Instituições de maior relevância na defesa dos Direitos Fundamentais não apenas no âmbito de
algumas nações, mas no plano mundial.

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