BERSTEIN, Serge. A Cultura Política

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 9

---- - ---- Mセ

RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean- François. Para uma história cultural.


Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

direcção de
Jean-Pierre Rioux
Jean-François Sirinelli
PARA UMA HISTÓRIA
CULTURAL
Belas-Artes - ou dos Monumentos Históricos -, não conseguiu
à altura das suas ambições.
A função comemorativa teve o mérito de dar uma segunda vida à
ュ・ゥッウセ@ j'
A CULTURA POLÍTICA

Serge Berstein
antiga necrópole: as actividades litúrgicas e musicais e as visitas aos l

túmulos reais tinham um sentido, de culto ou político para uns, l1


cultural para os outros. A função «Belas-Artes» do museu, com a
apresentação de vestígios arqueológicos, não pôs tanto as obras em
primeiro plano como suprimiu a perspectivação. Por assim dizer,
expulsou a poesia que rodeava as palavras: apagou a história em
proveito do artefacto. Resta inventar uma terceira forma de recupera-
ção para voltar a dar alma a Saint-Denis.
Falar de cultura política é a muitos títulos colocar-se num campo
de componentes antagónicas. A história cultural, cuja riqueza é con-
siderável desde há alguns anos, situa-se no centro dessa renovação
Orientação bibliográfica
em profundidade do estudo das sociedades humanas, a partir da
convergência das ciências sociais de que a École des Annales mostrou
Sobre a Revolução
Bernard Deloche e Jean-Michel Leniaud, La Culture des sans-coulottes, a via. Referir-se ao político é trabalhar num campo a que os profetas
Paris-Montpellier, Presses du Languedoc, 1989. desta mesma escola lançaram o anátema, caricaturando-o, antes que
Édouard Pommier, L' Art de la liberté, Paris, Gallimard, 1991. alguns dos seus membros soberbamente o ilustrassem 1• Do mesmo
modo, a evocação da cultura política inscreve-se na renovação da
Sobre o Panteão no século XIX
Barry Bergdoll, «Le Panthéon/Sainte Geneviêve au XIXe siecle. La história política, operada sob a inspiração de René Rémond e de que
monumentalité à 1'épreuve des révolutions idéologiques», Le a universidade de Paris-X-Nanterre e o Instituto de Estudos Políticos
Panthéon, symbole des révolutions, Paris, Caixa Nacional dos Monu- de Paris foram os lugares de eleição2• Com efeito, é no quadro da
mentos Históricos, 1989, p. 175-233. investigação, pelos historiadores do político, da explicação dos com-
portamentos políticos no decorrer da história, que o fenómeno da
Sobre o túmulo de Napoleão
Michael Paul Driskell, As Befits a Legend. Building a Tomb for Na- cultura política surgiu como oferecendo uma resposta mais satisfatória
poléon, 1840-1861, Kent, Kent State University Press, Ohio-Londres, do que qualquer das propostas até então, quer se tratasse da tese
1993. marxista de uma explicação determinista pela sociologia, da tese
Sobre Saint-Denis no século XIX idealista pela adesão a uma doutrina política, ou de múltiplas teses
Jean-Michel Leniaud, Saint-Denis aux XIXe et xxe siecles, Paris, avançadas pelos sociólogos do comportamento e mesmo pelos psi-
Gallimard, 1995. canalistas. Forçoso é verificar que o historiador, aplicando a situações
Sobre a política do património 1 Pensamos, em particular, nos trabalhos de François Furet sobre a Revolução
Françoise Choay, L'Allégorie du patrimoine, Paris, Le Seuil, 1992.
Francesa ou, mais recentemente, sobre o comunismo, ou nos de Marc Ferro,
Jean-Miche1 Leniaud, L' Utopie française, essai sur le Patrimoine, Paris, sobre a Rússia ou a Primeira Guerra Mundial.
Menges, 1992. 2
Encontra-se uma exposição das grandes linhas desta renovação na obra
colectiva publicada sob a direcção de René Rémond, Pour une histoire politique,
Paris, Le Seuil, 1988.

348 349
políticas precisas estas grelhas de análise, é levado a concluir que elas
não lhe permitem explicar, salvo de maneira parcial, fenómenos com-
l ' a maior parte das vezes expressa sob a forma de uma vulgata acessível
ao maior número, uma leitura comum e normativa do passado histó-
plexos que tenta compreender. E se a cultura política responde melhor rico com conotação positiva ou negativa com os grandes períodos do
à sua expectativa é porque ela é, precisamente, não uma chave uni- passado, uma visão institucional que traduz no plano da organização
versal que abre todas as portas, mas um fenómeno de múltiplos política do Estado os dados filosóficos ou históricos precedentes, uma
parâmetros, que não leva a uma explicação unívoca, mas permite concepção da sociedade ideal tal como a vêem os detentores dessa
adaptar-se à complexidade dos comportamentos humanos. cultura e, para exprimir o todo, um discurso codificado em que o
vocabulário utilizado, as palavras-chave, as fórmulas repetitivas são
portadoras de significação, enquanto ritos e símbolos desempenham,
O que é a cultura política? ao nível do gesto e da representação visual, o mesmo papel significante.
Foi a encenação de uma das culturas políticas dominantes do úl-
Porque a noção é complexa, a sua definição não poderia ser sim- timo século que constituiu o objecto da obra colectiva Le Modele
ples. Pode-se admitir, com Jean-François Sirinelli, que se trata de républicain 5 , em que os autores verificavam que a cultura republicana
«uma espécie de código e de um conjunto de referentes, formalizados se inscrevia na linhagem filosófica das Luzes e do positivismo, recla-
no seio de um partido ou, mais largamente, difundidos no seio de uma mava a herança histórica idealizada da Revolucão Francesa, tirando
família ou de uma tradição políticas» 3• Desta definição, reteremos a conclusão institucional da adequação total destas referências com
dois factos fundamentais: por um lado, a importância do papel das um regime de tipo parlamentar, preconizava uma sociedade de pro-
representações na definição de uma cultura política, que faz dela outra gresso gradual no seio da qual a acção do Estado, combinada com o
coisa que não uma ideologia ou um conjunto de tradições; e, por outro mérito dos indivíduos, devia levar à criação de um mundo de peque-
lado, o carácter plural das culturas políticas num dado momento da nos proprietários, senhores dos seus instrumentos de trabalho, ou a
história e num dado país. uma promoção de que a escola seria o motor, encontrando finalmente,
É, porém, evidente que não é possível satisfazer-se com uma de- para se exprimir, um vocabulário do qual os termos «cidadãos»,
finição global, necessariamente abstracta, e que é indispensável exa- «grandes antepassados», «princípios imortais» ou «progresso» consti-
minar o conteúdo da noção, se se quiser poder utilizá-la e testá-la na tuíssem palavras-chave, enquanto o barrete frígio, a bandeira tricolor,
sua eficácia explicativa. Não voltaremos ao pormenor deste conteúdo o hino da Marselhesa, a representação da Mariana, tão sagazmente
que, em seu tempo, foi objecto de uma proposta que permitia delimi- analisada por Maurice Agulhon 6 , estabeleciam uma linguagem simbó-
tar-lhe a abordagem 4• O objectivo era mostrar que a cultura política lica adequada aos dados importantes desta cultura política. É dizer que
constituía um conjunto coerente em que todos os elementos estão em a cultura política supre ao mesmo tempo «uma leitura comum do
estreita relação uns com os outros, permitindo definir uma forma de passado» e uma «projecção no futuro vivida em conjunto»7 •
identidade do indivíduo que dela se reclama. Se o conjunto é homo-
géneo, as componentes são diversas e levam a uma visão dividida do
5 Serge Berstein e Odile Rudelle dir., Le Modele républicain, Paris, PUF,
mundo, em que entram em simbiose uma base filosófica ou doutrinal,
1992.
6
Maurice Agulhon, Marianne au pouvoir, l'imagerie et la symbolique
3 É a definição que çle propõe in Jean-François Sirinelli dir., Histoire des républicaines de 1880 à 1914, Paris, Flammarion, 1989.
7
droites, t. 2, Cultures, Paris, Gallimard, 1992, pp. III-IV. Jean-François Sirinelli, «Pour une histoire des cultures politiques», Voyages
4 Serge Berstein «L'historien et la culture politique», Vingtieme siecle. Revue en histoire. Mélanges offerts à Paul Gerbod, Besançon, Annales littéraires de
d'histoire, n. 0 35, Jui.-Set. 1992, pp. 67-77. l'Université de Besançon, 1995.

350 351
Esta proposta de grelha de leitura do político através da cultura cultura, se inscreve no quadro das normas e dos valores que determi-
política só tem evidentemente interesse se oferecer a possibilidade de nam a representação que uma sociedade faz de si mesma, do seu
melhor fazer compreender a natureza e o alcance dos fenómenos que passado, do seu futuro. Ora, esta noção, largamente utilizada pelos
é suposto explicar. Sem o que só seria mais um termo, acrescentado politólogos americanos da escola «desenvolvimentista» 10 , foi viva-
sem proveito à gíria técnica dos historiadores. Foi a verificação ex- mente criticada, ao ponto de se encontrar hoje completamente rejei-
perimental tentada pela revista Vingtieme siecle, ao propor num nú- tada pela ciência política. Observamos, porém, que a crítica incide
mero especial 8 a uma quinzena de historiadores e de politólogos a sobre dois pontos totalmente alheios à cultura política tal como a
aplicação desta noção ao estudo das grandes _famílias polít_icas da encaram os historiadores: em primeiro lugar, a ideia de que existiria
França contemporânea (o comunismo,, o gaulhsmo, セ@ セョエウュッL@ o uma cultura política nacional própria de cada povo e, por conseguinte,
socialismo, a Frente Nacional), mas também das sensibilidades filo- transmitida por herança de geração em geração; em segundo lugar, o
sóficas ou religiosas (a cultura laica, o catolicismo), novas correntes pressuposto de uma hierarquia destas culturas políticas nacionais, que
surgidas no campo do político (a ecologia ou as mulheres), especifi- levaria a libertar as vias da modernização, isto é, a alinhar as culturas
cidades infra ou supranacionais (a cultura política do Norte ou da políticas das diversas nações com as normas e os valores das demo-
Aquitânia, ou a Europa face à cultura política ヲイ。ョ」・ウセN@ A fecundidade cracias liberais do Ocidente, que se supõe representarem o modelo
dos resultados surpreende. Não só confirmam a validade da grelha, acabado da modernização das sociedades.
trazendo mais uma prova ao que se podia evidentemente supor por É evidente que a segunda ideia, implicando um juízo de valor, é
intuição ou deduzir de estudos anteriores 9 , como permitem ainda alheia à abordagem histórica que procura conhecer e compreender,
afirmar que, no estado actual das coisas, a ecologia ou a corrente não a exprimir um juízo ou a traçar o sentido da história. Em contra-
feminista não possuem cultura política constituída, aliás como o partida, a primeira merece exame. A ideia é ao mesmo sedutora e
centrismo, e que não existe cultura política europeia. O que não pro- pouco satisfatória. Não é absurdo pensar que, encontrando-se a cultura
mete de momento a estas correntes mais que um futuro precário, como política solidária com a cultura global de uma sociedade, se possam
se verá ao examinar as funções da cultura política. discernir normas e valores comuns que exprimissem as da comunida-
de nacional, pelo menos na sua maioria. Acontece que, de maneira
não menos evidente, todos sentem que a cultura da elite é diferente
Cultura política ou culturas políticas? da cultura de massas (e os desenvolvimentistas americanos reconhe-
cem-no de boa mente), mesmo quando o que mais difere é a expressão
Tal como surge aos olhos dos historiadores, a noção de 」オャエセイ。@ e não o fundo cultural"11 • Além disso, é claro que a história de um país
política está pois estreitamente ligada à cultura global de uma socie- como a França desmente largamente a ideia segundo a qual o debate
dade, sem todavia se confundir totalmente com ela, porque o ウセオ@ político se limitaria aos processos de gestão de uma sociedade da qual
campo de aplicação incide exclusivamente sobre o político. Não ーッ、・セ。@ ninguém poria em causa as normas e a organização. Foi de facto o
pois haver antinomia, uma vez que a cultura política, como a própna projecto global desta que, até uma época recente, constituiu o próprio
objecto das lutas partidárias.
s Vingtieme siecle. Revue d' histoire, n. 0 44, Out.-Dez. 1994, número especial
10
La Culture politique en France depuis de Gaulle. ,. . e Ver, em especial, Lucian W. Pye, Sydney Verba (ed.), Politicai Culture
9 Pensamos em esP.ecial na importância de uma cultura poht1ca sohdament and Politicai Development, Princeton University Press, 1969 (Studies in Politicai
constituída, a do 」ッュセョゥウL@ e na brilhante demonstração que dela fez mセイ」@ Development, 5).
11
Lazar no seu livro Maisons rouges. Les Partis communistes français et itallen Para debate e crítica da noção de cultura política, ver Bertrand Badie,
de la Libération à nos jours, Paris, Aubier, 1992. Culture et Politique, Paris, Economica, 1983.

352
1 353
Para os historiadores, é evidente que no interior de uma nação sua versão barresiana, aceita uma parte da herança republicana, dife-
existe uma pluralidade de culturas políticas, mas com zonas de rentemente da corrente maurrassiana, que estabelece a sua identidade
abrangência que correspondem à área dos valores partilhados. Se, na rejeição global desta.
num dado momento da história, essa área dos valores partilhados se . eセエ。@ osmose entre culturas políticas muito afastadas na origem
mostra bastante ampla, temos então uma cultura política dominante iュセャ」。@ que, .longe de constituir um dado fixo, sinónimo de tradição
que faz inflectir pouco ou muito a maior parte das outras culturas politica, esteJamos em presença de um fenómeno evolutivo que cor-
políticas contemporâneas. Pode-se assim admitir que, no primeiro responde. a um dado momento da história e de que se pode identificar
terço do século XX, a cultura política republicana desempenhou um o aparecimento, verificar o período de elaboração e acompanhar a
papel dominante, definindo um conjunto de referências, acima evolução no tempo.
evocadas. É esta cultura política dominante que explica a sorte do
Partido Radical, que com ela se identifica amplamente 12 • No entanto,
ao lado desta, existem outras culturas políticas, cujas referências e Um fenómeno evolutivo
visões de futuro não são de forma alguma comuns: a cultura política
socialista sonha com uma revolução proletária que levaria ao apare- ッセ@c e. porquê nasce a cultura política? A complexidade do fenó-
cimento de uma sociedade sem classes, a cultura política nacionalista meno Implica que o seu nascimento não poderia ser fortuito ou aci-
preconiza a criação de um Estado autoritário, eventualmente dental, mas que corresponde às respostas dadas a uma sociedade face
monárquico, que assentaria nas comunidades naturais, a cultura polí- aos grandes problemas e às grandes crises da sua história, respostas
tica católica procura as vias da realização do cristianismo na cidade, com fundamento bastante para que se inscrevam na duração e atraves-
sem as gerações.
através de organizações políticas diversas e por vezes opostas. Mas
nenhuma destas culturas antagónicas do modelo republicano se en- Foi por ocasião da grande crise de legitimidade que marca os anos
contra ao abrigo da influência deste e todas devem, mais ou menos, 、セ@ QWセY@ a 1815 que nascem as culturas políticas republicana e tradi-
concordar com os seus princípios. O socialismo é obrigado a conjugar cioョ。セウエL@ as quais representam as respostas antagónicas a essa vasta
socialismo e república, e consegue-o de certo modo através da síntese s.acudidela. A Revolução Industrial do século XIX fará nascer 0 socia-
jauresiana, de que se pode dizer, para simplificar, que adere no ime- lismo e o seu antagonista, o liberalismo conservador, enquanto as
diato à cultura republicana, remetendo o socialismo para o futuro 13 • profundas transformações das técnicas e dos modos de vida dos anos
A cultura republicana favorece a emergência, no seio da nebulosa de 1875 セ@ QセYP@ permitirão a expansão das correntes apoiadas na
?emocracia directa das massas que, de futuro, estarão integradas no
católica, de uma democracia cristã que retém alguns dos seus prin-
jセァッ@ político que o nacionalismo e o socialismo renovado do fim do
cípios, mas não a totalidade 14• Finalmente, o próprio nacionalismo, na
ウセオャッ@ XIX constituem. As dificuldades de adaptação da religião ca-
t!lhca ao mundo moderno estão na origem da cultura democrata-cristã.
12 Ver, sobre este ponto, Serge Berstein, Histoire du Parti radical, Paris, E a grande crise nacional de 1940-1945 que dá oportunidade ao
Presses de Ia Fondation nationale des sciences politiques, I 980- I 982. gaullismo, etc.
13 Alain Bergounioux, «Socialisme et République», in Serge Berstein e Odile
pセイアオ・@ surgem ousadas ou inovadoras, estas respostas levam tem-
Rudelle dir., Le Modele républicain. op. cit.
14
Jean-Dominiquí{ Durand, L' Europe de la démocratie chrétienne, Bruxeiies,
po a Impor-se. Da nova solução que propõem à sua transformação em
Complexe, !995; Jean-Marie Mayeur, Des partis 」。エィッセゥアオ・ウ@ à la démocratie corrente estruturada, que provoca o nascimento de uma política
chrétienne, XIXe-xxe siecle, Paris, Armand Colin, I 980; Pierre Letamendia, La
normativa, · · longo. Foram precisos três quartos
o prazo pode ser mmto
Démocratie chrétienne, Paris, PUF, I 977. de século entre o nascimento da ideia republicana e a implantação na

----------------
354
1 355

________________ . .,
NLMセ@

sociedade de uma cultura política republicana verdadeiramente coe- França e que tende a sê-lo cada vez mais ainda. Pelo contrário, não
rente15. Será preciso meio século para que a conjunção das ideias de se poderia subestimar o papel dos media, em especial audiovisuais,
solidariedade e das exigências de justiça social do socialismo dê vida nessa difusão de representações normalizadas que é uma cultura po-
a uma cultura política de esquerda de que o Estado-providência cons- lítica. Sem dúvida que é preciso evitar ver as coisas de maneira
titui o tabuleiro social. Se se considerar que o mendesismo representa excessivamente simplista. Nenhum destes vectores da socialização
uma cultura política do socialismo moderno muito distinta do marxis- política procede por doutrinação. Não obstante, a sua multiplicidade
mo, é forçoso verificar que ele não dá lugar a uma transformação da proíbe pensar que se exerce sobre um dado indivíduo uma influência
cultura política socialista (e ainda muito parcialmente) senão com 0 exclusiva. A acção é variada, por vezes contraditória, e é a compo-
nascimento do PS em Épinay, em 1971, e que está longe de ter sição de influências diversas que acaba por dar ao homem uma cultura
conquistado hoje esta corrente de opinião. política, a qual é. mais uma resultante do que uma mensagem unívoca.
Noutros termos, é necessário o espaço de pelo menos duas gera- Esta adquire-se no seio do clima cultural em que mergulha cada
ções para que uma ideia nova, que traz uma resposta baseada nos indivíduo pela difusão de temas, de modelos, de normas, de modos
problemas da sociedade, penetre nos espíritos sob forma de um con- de raciocínio que, com a repetição, acabam por ser interiorizados e
junto de representações de carácter normativo e acabe por surgir como que o tornam sensível à recepção de ideias ou à adopção de compor-
evidente a um grupo importante de cidadãos. tamentos convenientes. Que o cultural prepara o terreno do político
Não menos que a extensão do prazo, os vectores pelos quais passa aparece desde já como uma evidência de que alguns retiraram estra-
a integração dessa cultura política merecem que se lhes dê atenção. tégias. É a observação de que o domínio cultural da esquerda, desde
Verificar-se-á sem surpresa que estes canais são precisamente os da a Libertação, constituía um obstáculo à penetração na opinião das
socialização política tradicional. Em primeiro lugar, a família, onde ideias de direita que leva, nos anos setenta, à criação do GRECE, a
a criança recebe mais ou menos directamente um conjunto de normas, «Nova Direita», que fixa assim um objectivo «metapolítico», o de
de valores, de reflexões que constituem a sua primeira bagagem política, preparar, através de uma conquista cultural dos espíritos, o terreno
que conservará durante a vida ou rejeitará quando adulto. Depois, a para uma futura conquista política 16 .
escola, o liceu, a universidade, que transmitem, muitas vezes de ma- A cultura política assim elaborada e difundida, à escala das gera-
neira indirecta, as referências admitidas pelo corpo social na sua maioria ções, não é de forma alguma um fenómeno imóvel. É um corpo vivo
e que apoiam ou contradizem a contribuição da família. Vêm depois que continua a evoluir, que se alimenta, se enriquece com múltiplas
as influências adquiridas em diversos grupos onde os cidadãos são contribuições, as das outras culturas políticas quando elas parecem
chamados a viver. O exército desempenhou, durante muito tempo, um trazer boas respostas aos problemas do momento, os da evolução da
papel importante, que tende a declinar com a pouca duração do serviço conjuntura que inflecte as ideias e os temas, não podendo nenhuma
militar, o número reduzido de jovens a que se dirige de futuro e as cultura política sobreviver a prazo a uma contradição demasiado forte
formas civis que tende a revestir para os estudantes. Em contrapartida, com as realidades.
o meio de trabalho continua a desempenhar um papel essencial, mesmo A cultura política republicana que, no fim do século XIX, coloca
se a sindicalização, dantes factor importante de socialização política, o seu ideal social no culto do «pequeno», sonhando com uma sacie-
não tem mais que um efeito marginal. O mesmo acontece com a
pertença a partidos políticos, fenómeno que foi sempre minoritário em
16
Anne-Marie Duranton-Crabol, Visages de la Nouvelle Droite. Le GRECE
15
Serge Berstein,' «La culture républicaine», in Serge Berstein e Odile Rudelle et son histoire, Paris, Presses de la Fondation nationale des sciences politiques,
dir., Le Modele républicain, op. cit. 1988.

356 357

------------'1
dade de pequenos proprietários independentes que realizaria as pro- que então se dá entre a cultura política socialista tradicional, a que
messas da Revolução Francesa, tem de verificar que tal surge em total aderem os militantes e que constitui a própria base da identidade do
inadecjuação com a evolução económica. Também sem renunciar Partido Socialista, e essa adopção do liberalismo que alguns socialis-
formalmente, encontra no solidarismo uma estratégia de substituição, tas desejam inscrever no tempo, mas que os governos socialistas
mais adaptada ao facto importante da concentração industrial e do praticam sem ousar anunciá-lo abertamente, caracterizam bastante
desenvolvimento do salariado, e que desde já insiste na necessidade bem o processo de evolução das culturas políticas, obrigadas a trans-
para o Estado, em nome do quase-contrato que liga o indivíduo à formar-se, mas que só podem fazê-lo confrontando-se com tradições
cadeia das gerações e à sociedade do seu tempo, de exigir dos mais de que retiram precisamente uma grande parte da sua força 17 •
ricos que realizem, através da fiscalidade, o seu dever social a favor Resta perguntar qual o interesse que pode revestir o estudo, pelo
dos mais pobres e mais desfavorecidos. Lógica social que devia con- historiador, desta nebulosa complexa que é a cultura política, colocada
duzir à criação, depois da Segunda Guerra Mundial, do Estado-provi- na encruzilhada da história cultural e da história política e que tenta
dência que, embora nunca se tendo reclamado do solidarismo, realiza uma explicação dos comportamentos políticos por uma fracção do pa-
à evidência o seu desígnio. À falta de adaptação, uma cultura política trimónio cultural adquirido por um indivíduo durante a sua existência.
só pode ter um declínio inelutável. A esclerose da cultura comunista,
ligada a um modelo de operariado do século XIX e a uma leitura
dogmática do marxismo, muito afastada da realidade das sociedades Para que servem a cultura política e o seu estudo?
evoluídas do século XX provenientes do crescimento, tem muito a ver
com a sua perda de influência e, por conseguinte, com o declínio do Recordamos mais uma vez que a verdadeira aposta está em com-
Partido Comunista. Noutros termos, ainda que as representações di- preender as motivações que levam o homem a adoptar este ou aquele
firam da realidade objectiva, elas não podem estar em contradição comportamento político. A questão, que mal agitou os historiadores,
com ela, a menos que se perca toda a credibilidade e se desapareça. está, pelo contrário, no centro do questionamento dos politólogos, que
Mas a evolução das culturas políticas não resulta apenas de uma colocam geralmente o problema em termos muito contemporâneos
adaptação necessária a circunstâncias forçosamente mutáveis. Ela sob a forma de um entendimento do fenómeno de participação ou de
depende também da influência que possam exercer as culturas polí- compromisso político 18 • A hipótese das investigações sobre a cultura
ticas vizinhas, na medida em que estas parecem trazer respostas ba- política é que esta, uma vez adquirida pelo homem adulto, constituiria
seadas nos problemas que se depararam às sociedades num dado o núcleo duro que informa sobre as suas escolhas em função da visão
momento da sua evolução. É assim que, a partir de meados dos anos do mundo que traduz. O estudo da cultura política, ao mesmo tempo
setenta, a cultura socialista sofre uma verdadeira crise ligada, ao mesmo resultante de uma série de experiências vividas e elemento determi-
tempo, à ineficácia demonstrada da economia administrada dos países nante da acção futura, retira a sua legitimidade para a história da dupla
de Leste e às dificuldades do Estado-providência confrontado com a função que reveste. É no conjunto um fenómeno individual, interio-
recessão ou com o fraco crescimento económico, que já não permite
libertar os excedentes necessários ao financiamento da protecção social.
17
Desde logo se vê surgir no seu seio uma corrente favorável à adopção, Alain Bergounioux, Gérard Grunberg, Le Long Remords du pouvoir. Le
pelo liberalismo, da confiança cega nos mecanismos do mercado, Parti socialiste français, 1905-1992, Paris, Fayard, 1992.
18
Ver, sobre este ponto, a posição do problema pelos politólogos em Nonna
adopção que causa um drama de consciência, porque um dos funda-
Mayer, Pascal Perrineau, Les Comportements politiques, Paris, Armand Colin,
mentos da identidade socialista é a crença na aptidão do Estado para 1992, ou in Pascal Perrineau dir., L'Engagement politique, déclin ou mutation?,
conduzir a economia, que se encontra posta em questão. O divórcio Paris, Presses de la Fondation nationale des sciences politiques, 1994.

358 359

Gセ@
rizado pelo homem, e um fenómeno colectivo, partilhado por grupos menos, a adesão a uma análise proposta e que, se o compromisso é
numerosos. um acto do ser profundo, ele não é nem impulsivo, nem irreflectido.
A força da cultura política como elemento determinante do com- Simplesmente, e todos têm consciência disso, a interiorização das
portamento do indivíduo resulta, em primeiro lugar, da lentidão e da razões de um comportamento acaba por criar automatismos que são
complexidade da sua elaboração. Adquirida no decurso da formação apenas o atalho da diligência racional anteriormente realizada.
intelectual, beneficia do carácter de certeza das primeiras aprendiza- Se a cultura política acaba por fazer integralmente parte do ser
gens. Reforçada pela confrontação destas com os acontecimentos humano, significa isso que, passada uma certa idade, se tomou intan-
surgidos durante a existência humana, continua a aumentar em poder gível? Sem aí chegar, pode-se pelo menos admitir que, uma vez
de convicção e no papel de chave da leitura do real. A habituação do alcançada a idade madura, é dificil pô-la em questão, salvo traumatismo
espírito à sua utilização como grelha de análise acaba por tomá-la um grave. Pode-se considerar que a derrota de 1940, o fenómeno da
fenómeno profundamente interiorizado e que, como tal, é impermeá- deportação durante a Segunda Guerra Mundial ou, de maneira menos
vel à crítica racional, porque esta faria supor que uma parte dos dramática, o movimento de Maio de 1968 para os universitários ou
postulados que constituem a identidade do homem fosse posta em intelectuais, na medida em que põem em causa identidades, trouxeram
causa. Assim, Édouard Herriot, intelectualmente formado numa famí- efectivamente a mutação, o abandono de culturas políticas solida-
lia da classe média patriota, depois pela universidade positivista e mente instaladas ou a adesão a novas formas de cultura política.
kantiana dos anos de 1880-1890, que se tomou por sua vez professor Ora, se a cultura política retira a sua força do facto de, interiorizada
e partidário do ideal laico, republicano e reformista ligado à herança pelo indivíduo, determinar as motivações do acto político, ela inte-
da Revolução Francesa dos meios em que viveu, vai encontrar no caso ressa ao historiador por ser, em simultâneo, um fenómeno colectivo,
Dreyfus ocasião para pôr concretamente em prática a sua cultura partilhado por grupos inteiros que se reclamam dos mesmos postula-
política, entrando para a Liga dos Direitos do Homem, militando nas dos e viveram as mesmas experiências. Se existe um domínio em que
universidades populares e aderindo depois ao Partido Radical, expres- o fenómeno de geração encontra justificação plena e total, é bem
são partidária adequada da cultura política de que se reclama. A partir este20 • Submetido à mesma conjuntura, vivendo numa sociedade com
de então, e para o resto da sua existência, é à medida dessa cultura normas idênticas, tendo conhecido as mesmas crises no decorrer das
política e dessa experiência de juventude que considerará os aconte- quais fizeram idênticas escolhas, grupos inteiros de uma geração
cimentos políticos, arriscando-se a ficar ultrapassado quando as refe- partilham em comum a mesma cultura política que vai depois deter-
rências que constituem as bases dessa cultura se deslocaram por efeito minar comportamentos solidários face aos novos acontecimentos. Pode-
da modificação das circunstâncias 19• A partir daí, uma bagagem tão -se assim evocar a geração do caso Dreyfus, a que pertencem homens
solidamente integrada, e que beneficia do peso da experiência, da como Léon Blum, Édouard Herriot, Maurice Viollette ou Joseph Paul-
dedicação às causas pelas quais se milita, não poderia ser atingida por -Boncour, detentores da cultura republicana, para quem a fidelidade
críticas provenientes da argumentação racional. Quer isto dizer que a ao ideal da Revolução Francesa, a crença no progresso, o primado do
cultura política só proviria do instinto, do emocional, da sensibili- indivíduo e a defesa dos seus direitos, o regime parlamentar, a von-
dade? Isso seria esquecer que a sua aquisição faz supor um raciocínio, tade de reforma social constituem um conjunto coerente e homogéneo
que pô-la em prática com um dado facto implica análise ou, pelo
20 Sobre o fenómeno de geração, ver a utilização que dela fez Jean-François
19
É a 、・ュッョウエイ。￧ ̄セ@ tentada na nossa obra Édouard Herriot ou la République Sirinelli, Génération intellectuelle, Paris, Fayard, 1988. Consultar igualmente o
en personne, Paris, Presses de la Fondation nationale des sciences politiques, número especial Les Générations, Vingtieme siecle. Revue d' histoire, n.o 22,
1985. Abril 1989.

360 361

I -
T
que guiará, durante a sua vida, o seu comportamento político. A partir um património indiviso, fornecendo-lhes, para exprimir tudo isto, um
do fim dos anos vinte, chega às posições importantes uma geração que vocabulário, símbolos, gestos, até canções que constituem um verda-
viveu, nas trincheiras ou na retaguarda, o traumatismo da Primeira deiro ritual 23 •
Guerra Mundial e que vai, por reacção a esta, repudiar amplamente No centro da nova atenção dada doravante pelos historiadores ao
a cultura republicana em proveito dos dois elementos chave que vão fenómeno cultural, a cultura política ocupa pois um lugar particular.
conduzir a sua acção e que são o pacifismo e o realismo 21 • Aristide Ela é apenas um dos elementos da cultura de uma dada sociedade, o
Briand é o seu inspirador e esta corrente é ilustrada por homens como que diz respeito aos fenómenos políticos. Mas, ao mesmo tempo,
Joseph Caillaux, Pierre Lavai ou Marcel Déat, que não têm decerto revela um dos interesses mais importantes da história cultural, o de
a mesma idade, mas que parecem ter retirado as mesmas lições das compreender as motivações dos actos dos homens num momento da
experiências vividas e que desenvolvem uma cultura política sem tabu sua história, por referência ao sistema de valores, de normas, de
e sem fronteiras, para uso dos sobreviventes do grande massacre. Por crenças que partilham, em função da sua leitura do passado, das suas
oposição a esta «geração realista», que se ilustrará pela resignação à aspirações para o futuro, das suas representações da sociedade, do
derrota de 1940, vê-se aparecer depois desta uma nova cultura política lugar que nele têm e da imagem que têm da felicidade. Todos os
marcada por um retorno ao ideal patriótico, à vontade de renovação elementos respeitantes ao ser profundo, que variam em função da
económica e social, à união dos Franceses, que marca uma nova sociedade em que são elaborados e que permitem perceber melhor as
cultura republicana, de que o gaullismo será o principal vector22 • razões de actos políticos que surgem, pelo contrário, como epifenó-
Para o historiador, o interesse de identificação desta cultura polí- menos.
tica é duplo. Permite em primeiro lugar pelo discurso, o argumentário,
o gestual, descobrir as raízes e as filiações dos indivíduos, restituí-las
à coerência dos seus comportamentos graças à descoberta das suas
motivações, em resumo, estabelecer uma lógica a partir de uma reu-
nião de parâmetros solidários, que respeitam ao homem por uma
adesão profunda, no que a explicação pela sociologia, pelo interesse,
pela adesão racional a um programa se revela insuficiente, porque
parcial, determinista e, portanto, superficial. Mas, em segundo lugar,
passando da dimensão individual à dimensão colectiva da cultura
política, esta fornece uma chave que permite compreender a coesão
de grupos organizados à volta de uma cultura. Factor de comunhão
dos seus membros, ela fá-los tomar parte colectivamente numa visão
comum do mundo, numa leitura partilhada do passado, de uma pers-
pectiva idêntica de futuro, em normas, crenças, valores que constituem

21 Jean-François Sirinelli, Génération intellectuelle, op. cit., O repúdio do


idealismo republicano está descrito in Jean Luchaire, Une génération réaliste,
Paris, Valois, 1928. " 23 Serge Berstein, «Rites et rituels politiques», in Jean-François Sirinelli dir.,
22 Serge Berstein, «La ye République: un nouveau modele républicain?», in Dictionnaire historique de la vie politique française au xxe siecle, Paris, PUF,
Serge Berstein e Odile Rudelle dir., Le Modele républicain, op. cit.. 1995.

362 363

セM@

Você também pode gostar