Os Esquecidos Da Independencia Bastos Neves

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Almanack, Guarulhos, n.

25, ef00220, 2020


http://doi.org/10.1590/2236-463325ef00220

OS ESQUECIDOS NO PROCESSO
DE INDEPENDÊNCIA:
UMA HISTÓRIA A SE FAZER1
Lucia Maria Bastos Pereira das Neves2;3

Resumo

Este artigo propõe uma outra abordagem da história da Inde-


pendência do Brasil, para além das grandes personagens co-
nhecidas pela historiografia, que possibilite trazer à tona os in-
divíduos muitas vezes esquecidos desse processo. Tal questão
não significa, contudo, escolher uma personagem não original,
mas apenas um nome cuja trajetória se procura reconstituir,
sem inseri-lo no contexto mais amplo da conjuntura que mar-
cou a separação do Brasil de Portugal. Utilizando-se de peque-
nas histórias de vida, é possível encontrar aqueles que também
elaboraram argumentos que possibilitaram releituras do pro-
cesso. Estruturaram ainda um discurso que buscou decifrar as
linguagens da época e responder às questões por meio de prá-
ticas e princípios que, em certa medida, traduziam as culturas
políticas daquele momento.

Palavras-chave
Memória/Esquecimento – Independência – Império Brasílico –
biografia – culturas políticas.

1  Texto vinculado ao projeto Cientista do Nosso Estado/Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado


do Rio de Janeiro (Faperj), 2018-2021 (Guerra civil, motim e revolução nos primórdios do Império
do Brasil: os panfletos políticos de 1822-1825), à Bolsa de Produtividade do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e ao Prociência/Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Apoio da Faperj para a realização da tradução em inglês.
2  Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – Brasil.
3  Professora titular de História Moderna do Departamento de História do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: lubastos52@gmail.
com.

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THE FORGOTTEN IN THE


INDEPENDENCE PROCESS:
A HISTORY TO BE MADE

Abstract

This article proposes a different approach to the history of the


Independence of Brazil, one that goes beyond the greater cha-
racters known by historiography, and that allows to bring up
individuals many times forgotten in this process. However,
such a proposal does not mean choosing a non-original charac-
ter chosen for the purpose of reconstituting this event without
inserting them in the broader context of the conjuncture that
marked the separation of Brazil from Portugal. Using small life
histories, it is possible to find those who also elaborated argu-
ments that for rereading this process. They also structured a
discourse that sought to decipher the languages of the period
and to answer such questions by means of practices and prin-
ciples that somehow translated the political culture of that mo-
ment.

Keywords
Memory/Forgetfulness – Independence – Brazilian Empire –
biography – political cultures.

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uma história a se fazer

[…] le problème de toute mémoire officielle est celui de la crédibilité, de son


acception, et aussi de sa mise en forme. Pour qu’émerge dans les discours
politiques un fonds commun de références qui peuvent constituer une mémoire
nationale, un intense travail d’organisation et de mise en forme est indispen-
sable pour surmonter le simple bricolage idéologique, par définition précaire
et fragile.4

E
m uma fina e instigante resenha sobre livro de Alain Cor-
bin intitulado Le monde retrouvé de Louis-François Pina-
got, sur les traces d’un inconnu, 1798-1876, cujo objetivo era
escrever a biografia de um homem comum, que não possuísse traço
particular, hostilizando qualquer tipo de heroicidade, Sabina Loriga
faz uma crítica à ideia da “biografia invisível”, idealizada pelo autor,
que sacrifica a qualidade de vida das figuras individuais que não sur-
gem nunca como atores sociais, uma vez que não possuem nenhuma
singularidade, nenhuma identidade. Desse modo, para Loriga, a re-
descoberta da biografia deve “dar voz a uma grande variedade de in-
divíduos”, preferencialmente aqueles excluídos da memória. Devem
ser, contudo, indivíduos, que, de alguma forma, estejam inseridos
em seus contextos como atores sociais de um processo histórico que
lhes forneça alguma singularidade, ou seja, o seu pequeno x. Faz-se
necessário “dar aos homens do passado, não apenas um nome, mas
também algum traço de capacidade vital”5.
Essa perspectiva de análise explica, em parte, o que desejo salien-
tar neste artigo: uma outra abordagem da história da Independên-
cia do Brasil que possibilite trazer à tona os indivíduos esquecidos
e desconhecidos desse processo. Tal questão não significa, contudo,
escolher uma personagem não original, apenas um nome cuja traje-
tória se procura reconstituir sem inseri-lo no contexto mais amplo

4  POLLACK, Michael. Mémoire, oublie, silence. In: POLLACK, Michael. Vienne 1900: une identité
blessée. Paris: Métailié, 1993. p. 28-29.
5  Para as citações, ver LORIGA, Sabina. Alain Corbin: Le monde retrouvé de Louis-François Pinagot,
sur les traces d’un inconnu, 1798-1876. In: COMPTES rendus: approches de l’histoire. Annales:
Histoire, Sciences Sociales, Paris, ano 57, n. 1, p. 204-244, 2002. p. 240-242. Para o pequeno x, cf.
Idem. O pequeno X: da biografia à história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

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da conjuntura que marcou a separação do Brasil de Portugal. Trata-


-se de uma preocupação de encontrar outras figuras, além de José
Bonifácio, Pedro I, a imperatriz Leopoldina, José da Silva Lisboa,
Joaquim Gonçalves Ledo e tantas outras bastante conhecidas (que,
sem dúvida, ainda podem revelar novas contribuições), que também
fizeram a Independência. Perscrutar vidas e ações que continuam no
anonimato pode trazer desdobramentos, por meio de novas fontes e
abordagens, que possibilitem um repensar do processo da Indepen-
dência, voltado não apenas a suas fronteiras, mas a um diálogo que
encontra no Atlântico o ponto de união de suas ideias e ações6.
Nesse sentido, em que o campo do historiador, como afirma Ja-
cques Revel, nada tem a ver com a soberania do indivíduo, mas com
escolhas e estratégias sociais7, é possível encontrar figuras desconhe-
cidas, que não podem e não devem ser reduzidas a peças num campo
de forças impessoais, uma vez que deixaram rastros na formação de
um novo império – o do Brasil, a partir de 1822. Como, no entanto,
encontrar tais pistas e indivíduos?

1. Perspectivas no centenário da Independência (1822-1922)


Ao completar 100 anos de existência em 7 de setembro de 1922, a
história da construção do Império Brasílico ainda se voltava essen-
cialmente para o estudo dos fatos e das grandes personagens que
haviam realizado a Independência. Apesar dos festejos e comemo-
rações, que causaram certa desconfiança por parte da historiografia
posterior em função de seu caráter oficial, poucas novidades surgi-
ram para explicar o processo8. Sem dúvida, uma das obras funda-

6  ADELMAN, Jeremy. Sovereignty and revolution in the Iberian Atlantic. Princeton: Princeton University
Press, 2006.
7  REVEL, Jacques. Entrevista com Jacques Revel. Entrevistadora: Marieta de Moraes Ferreira.
Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 19, p. 121-140, 1997.
8  Para o estudo das comemorações dos 100 anos da Independência, cf. MOTTA, Marly Silva da. A
nação faz 100 anos: a questão nacional no centenário da Independência. Rio de Janeiro: Editora
da Fundação Getúlio Vargas, 1992.

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mentais que veio à luz naquele período foi o trabalho de Manuel de


Oliveira Lima9, iniciado pelo regresso de D. João e “as causas e efeitos
da Revolução Portuguesa de 1820” e finalizado com a coroação de D.
Pedro e as intrigas e tramas entre os grupos de José Bonifácio e de
Gonçalves Ledo. Apesar de utilizar uma narrativa minuciosa e erudi-
ta, porém uma “narrativa no melhor sentido” – fenômeno raro na his-
toriografia brasileira, na visão de Evaldo Cabral de Mello10 –, e pautar-
-se em rigorosa crítica documental de fontes ainda inexploradas dos
arquivos estrangeiros, bem como em cartas trocadas entre D. Pedro
e seu pai nas sessões das Cortes de Lisboa, em viajantes, periódicos
e panfletos, Oliveira Lima foi pioneiro ao demonstrar a importância
de se estudar a história do Brasil em coordenação, harmonia e mes-
mo confronto com as histórias de Portugal e do Império Português,
com os vizinhos americanos, da Espanha e da África portuguesa11.
Inovou, ainda, ao procurar ir além da narração, buscando uma visão
processual da Independência, em que estruturas e acontecimentos
se mesclavam12. Malgré tout, os indivíduos não deixavam de se fazer
presentes como os grandes responsáveis pela Independência: a pers-
picácia dos deputados brasileiros nas Cortes de Lisboa, a brilhante
compreensão da questão brasileira por José Bonifácio, “o infatigável

9  LIMA, Manuel de Oliveira. O Movimento da Independência (1821-1822). São Paulo: Ed. Melhoramen-
tos, 1922. Ver capítulos I e XXI. A obra foi criticada em vários aspectos à época por Capistrano de
Abreu; cf. carta de 3 de agosto de 1922 em ABREU, Capistrano de. Correspondência de Capistrano
de Abreu. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. v. 2. No sesquicentenário também mereceu
a crítica de RODRIGUES, José Honório. Independência: revolução e contrarrevolução: as Forças
Armadas. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1975. p. 16.
10  MELLO, Evaldo Cabral de. Prefácio. In: LIMA, Manuel de Oliveira. O Movimento da Independência:
1821-1822. 6. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 11-16. Última frase à p. 16.
11  LIMA, Alceu de Amoroso. O Jornal. Rio de Janeiro, n. 1247, 4 fev. 1923. Disponível em: https://bit.
ly/3dfGTLW. Acesso em: 20 dez. 2019. Parte desse artigo compõe a orelha de LIMA, Manuel de
Oliveira. O Movimento da Independência: 1821-1822. 6. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.
12  Para a análise da escrita da história em Oliveira Lima, cf. KÄFER, Eduardo Luis Flach. Entre
memória e história: a historiografia da Independência nos cem anos de emancipação. 2016. Dis-
sertação (Mestrado em História) – Escola de Humanidades, Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016. Disponível em: https://bit.ly/30V4Ndd. Acesso em: 30 jan.
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apostolado da opinião pública por um Ledo, um Januário, um Sam-


paio, um José Clemente” e a lucidez da “curiosa” Leopoldina13.
Quando se identificam as imagens e se leem os artigos de peri-
ódicos elaborados para a comemoração do Centenário da Indepen-
dência, constata-se a permanência dos grandes heróis: José Boni-
fácio, Gonçalves Ledo, Januário da Cunha Barbosa, Diogo Feijó, a
imperatriz Leopoldina e, sem dúvida, D. Pedro I. A gravura a seguir
(Figura 1), retirada da edição de 7 de setembro de 1922 da Gazeta de
Notícias pode testemunhar tal postura, ao apontar os grandes vultos
da Independência, bem como aqueles do Primeiro e do Segundo Rei-
nados:

13  LIMA, Alceu de Amoroso. O Jornal ... Op. Cit.

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Figura 1
Cem Anos da Independência do Brasil

Fonte: Gazeta de Notícias14.


Outras propostas de interpretação que alteraram a narrativa
histórica surgiram nos anos 1970. Inserida na dinâmica metrópole/
colônia nos circuitos da acumulação primitiva do capital, a Indepen-
dência passou a constituir o resultado da crise nos finais do século
XVIII do sistema colonial dos Tempos Modernos, cujo modelo pode
ser buscado na luta anti-imperialista de descolonização dos países

14  GAZETA DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro, n. 206, 7 set. 1922. p. 3. Disponível em: https://bit.ly/3d-
gQxhr. Acesso em: 3 jan. 2020.

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africanos e asiáticos15. Na mesma perspectiva, no início da década de


1970, outros estudos históricos interpretaram a independência como
o momento inicial de um longo processo de ruptura, resultado da de-
sagregação do sistema colonial e da montagem do Estado nacional16.
Em outra linha, Maria Odila Silva Dias17 demonstrou que a separação
política não trouxe em seu bojo qualquer ruptura, mas abriu caminho
para uma reelaboração do passado colonial que pode ser explicada
em função dos interesses das elites metropolitanas e coloniais, que
ganharam maior força com a vinda da Corte em 1808. A perspectiva
adquiriu maior amplitude com o trabalho inovador de José Murilo de
Carvalho18.
Nas últimas décadas do século XX, outras demandas da histo-
riografia, que constataram as permanências de longa duração da
formação social brasileira, possibilitaram o surgimento de uma série
de estudos, tanto no Brasil como em Portugal, e passaram a procu-
rar inserir a Independência na dinâmica mais profunda do Antigo
Regime, destacando os fatores políticos e culturais que provocaram
uma disputa pela hegemonia no interior do império luso-brasileiro19.
Dentro dessa ótica mais recente de trabalhos, outras preocupações

15  PRADO JUNIOR, Caio. Evolução política do Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1933.
16  NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec,
1979; MOTA, Carlos Guilherme. 1822: dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972.
17  DIAS, Maria Odila Silva Dias. A interiorização da metrópole (1808-1853). In: MOTA, Carlos Gui-
lherme. 1822: dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 160-184.
18  Cf. CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro:
Campus, 1980.
19  SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Movimento Constitucional e separatismo no Brasil: 1821-1823. Lisboa:
Horizonte, 1988; ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Império: questão nacional e questão colo-
nial na crise do Antigo Regime português. Porto: Afrontamento, 1993; LYRA, Maria de Lourdes
Viana. A utopia do poderoso império: Portugal e Brasil: bastidores da política: 1798-1822. Rio de
Janeiro: Sette Letras, 1994; NEVES, Guilherme Pereira. Do Império Luso-Brasileiro ao Império
do Brasil (1789-1822). Ler história, Lisboa, v. 27-28, p. 75-102, 1995; NEVES, Lucia Maria Bastos
Pereira. O Império Luso-Brasileiro redefinido: o debate político da independência (1820-1822).
Revista do IHGB, Rio de Janeiro, v. 156, n. 387, p. 297-307, 1995; NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira.
Corcundas e constitucionais: a cultura política da Independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan,
2003; BERBEL, Márcia Regina. A nação como artefato: deputados do Brasil nas cortes portuguesas

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afloraram – a participação das camadas populares; a independência


e a formação de identidades nacionais; o debate político e o estudo
do vocabulário político; a formação de espaços de sociabilidade20 –,
enriquecendo a qualidade do debate sobre a Independência21. Para
além dessas questões, surgiram também estudos acerca das várias
partes do Brasil no momento do processo da emancipação política22,
demonstrando a complexidade existente entre as diversas províncias
e a Corte fluminense, como já apontou com maestria Evaldo Cabral
de Mello, ao afirmar que a “fundação do Império é ainda hoje uma
história contada exclusivamente do ponto de vista do Rio de Janei-

(1821-1822). São Paulo: Hucitec, 1999; SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria coroada: o Brasil como
corpo autônomo 1780-1831. São Paulo: Editora Unesp, 1999.
20 Cf., entre outros, KRAAY, Hendrik. A invenção do Sete de Setembro, 1822-1831. Almanack Brazi-
liense, São Paulo, n. 11, p. 52-61, 2010; RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção: identi-
dade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2002; JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico (ou apontamentos para
o estudo da emergência da identidade nacional brasileira). In: MOTA, Carlos G. (org.). Viagem
incompleta: a experiência brasileira (1500-2000): formação: histórias. São Paulo: Ed. Senac, 2000.
p. 127-171; PIMENTA, João Paulo Garrido. Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no Prata (1808-
1828). São Paulo: Hucitec, 2002; OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles. A astúcia liberal: relações
de mercado e projetos políticos no Rio de Janeiro (1820-1824). São Paulo: Icone, 1999; COELHO,
Geraldo Mártires. Anarquistas, demagogos e dissidentes: a imprensa liberal no Pará de 1822. Belém:
CEJUP, 1993; NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira. A “guerra de penas”: os impressos políticos e
a independência do Brasil. Tempo, Rio de Janeiro, n. 8, p. 41-65, 1999; LUSTOSA, Isabel. Insultos
impressos: a guerra dos jornalistas na independência: 1821-1823. São Paulo: Companhia das Letras,
2000; MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabi-
lidades na cidade imperial (1820-1840). São Paulo: Hucitec, 2005; e BARATA, Alexandre Mansur.
Maçonaria, sociabilidade ilustrada e Independência do Brasil (1790-1822). São Paulo: Annablume, 2006.
21  Para outras análises sobre a historiografia da Independência, cf. COSTA, Wilma Peres. A In-
dependência na historiografia brasileira. In: JANCSÓ, István (org.). Independência: história e
historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005. p. 53-118; MALERBA, Jurandir (org.). A Independência
brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006; e PIMENTA, João Paulo Garri-
do. A Independência do Brasil: um balanço da produção historiográfica recente. In: CHUST,
Manuel; SERRANO, José Antonio (ed.). Debates sobre las independencias iberoamericanas. Madrid:
Iberoamericana, 2007. p. 143-157.
22  Sobre o estudo da Independência em outras províncias cf., sobretudo, os artigos que constituíram
o livro organizado por JANCSÓ, István (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo:
Hucitec, 2005.

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ro”23. Toda essa renovação da historiografia forneceu pistas inovado-


ras em relação ao processo de separação entre Brasil e Portugal, mas,
ao se referir aos vultos da Independência, avançou pouco em identi-
ficar aqueles que, membros dos mais diversos segmentos da socieda-
de, permaneceram na sombra, embora tenham lutado e interferido
de algum modo nos rumos da cisão. Sem dúvida, os estudos abriram
novas perspectivas para se analisar o papel das camadas médias e po-
pulares ao longo desses anos24. Mas muito ainda é necessário se fazer.

2. Anônimos da Independência e seus horizontes de


expectativas
Trazer à tona uma documentação rica, em sua maioria inédita
ou pouco explorada pelas pesquisas históricas sobre o período, como
pasquins, panfletos manuscritos e impressos, jornais ou mesmo cor-
respondências e documentos diversos, pode fornecer pistas novas
sobre o movimento constitucionalista que o Brasil conheceu em 1821,
bem como interpretações distintas sobre seu processo de separação
de Portugal. Esse material constitui a história de um tempo, pois os
fatos e personagens que aí se encontram narrados podem ser vistos
como registros com que os historiadores elaboram a reconstrução de
um momento do passado. São memórias, enfim, que, ao apresentar
distintas visões de um mesmo fato, servem como fundamentos da
história porque servem também para pensar e repensar a história do
Brasil. Nesse caso, algumas vezes é possível se deparar com perso-

23  MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São
Paulo: Editora 34, 2004. p. 11.
24  Como exemplo, para a questão dos escravos cf. REIS, João José. O jogo duro do dois de julho: o
“partido negro” na independência da Bahia. In: REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e
conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 79-98.
Para as camadas populares, cf. CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lucia; BASILE, Marcello
(org.). Às armas cidadãos! Panfletos manuscritos da Independência do Brasil (1820-1823). São
Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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nagens desconhecidas ou com uma gama de anônimos que também


foram protagonistas da Independência25.
Em primeiro lugar, é possível recuperar os anônimos. Aqueles
cujo rosto ou nome, muitas vezes, não se encontram, mas cujos tra-
ços que deixaram revelam outras interpretações da Independência
do Brasil. Refiro-me aqui aos autores realmente desconhecidos dos
panfletos manuscritos entre 1821 e 1823. Dificilmente, será possível
saber um dia quem foram26. Chamados algumas vezes de papelinhos
ou pasquins, pois se apresentavam em folhas soltas, ora verticais, ora
horizontais, eram colocados nas paredes e postes dos locais públicos,
como demonstram os restos de caliça nos poucos exemplares encon-
trados hoje nos arquivos. Sempre sem indicação de autoria, revela-
vam por meio de sua escrita um estilo simples e direto, buscando cau-
sar impacto sobre o receptor e facilitar a compreensão da mensagem.
Encontravam-se repletos de erros de grafia como, por exemplo, em
proclamação intitulada Às Armas Portugueses às Armas amantes da
Vossa Nação, em que se pode ler no manuscrito original: “Às Armas
avitantes desta Cidade já he tempo de quebrares os Grilhoins em q.
atanto tempo tendes Vivido…”27. Tal fato demonstra que se tratava,
provavelmente, de um escrito redigido por indivíduos que apresen-
tavam algum grau de estudo, mas não eram, certamente, letrados
diplomados em Coimbra ou versados nas ideias do século das Luzes
que, regra geral, são considerados como personagens-chave do pro-
cesso que permitiu a entrada do antigo Reino Luso-Brasileiro na mo-
dernidade política, conduzindo-o à formação de um novo Estado in-
dependente de Portugal. Por conseguinte, se os panfletos impressos
daquela mesma época revelam intenso debate político entre letrados

25  Para o estudo dos protagonistas anônimos, cf. VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da
História: micro-história. Rio de Janeiro: Campus, 2002.
26  Para o estudo dos panfletos manuscritos, cf. CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lucia; BASILE,
Marcello. Às armas cidadãos! … Op. cit.
27  RIO de Janeiro. Lata 195, maço 06, pasta 02. Rio de Janeiro: Arquivo Histórico do Itamarati, 1821.
Transcrito em CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lucia; BASILE, Marcello. Às armas cidadãos!
… Op. cit., p. 132-133.

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em torno das questões políticas mais significativas do constitucio-


nalismo e do separatismo, os manuscritos destacam-se por indicar a
presença dessa guerra literária nas ruas.
Este ponto pode ser confirmado pela natureza da linguagem
mais violenta e contundente do que aquela de tom mais moderado
dos escritos impressos. Nesse caso, também fornecem algumas pis-
tas da origem de cunho mais popular do que os primeiros. Deve-se
lembrar, contudo, que naquela época, no Brasil, havia uma distinção
entre povo e plebe. Na linguagem política da época, povo represen-
tava “a parte menos instruída e menos viciada da nação, a mais labo-
riosa e a mais pobre”28; a plebe representava a “populaça”, ou seja, as
camadas ínfimas da sociedade, que, no Brasil, incluíam os escravos e
alguns libertos29.
Assim, pode-se vislumbrar que se, de um lado, os condutores da
luta pela constitucionalização do reino e pela independência do Bra-
sil – proprietários de terra, negociantes, bacharéis, caixeiros e mili-
tares – preferiam agir com mais prudência, proclamando ao mesmo
tempo obediência ao soberano, à dinastia e à “conservação da san-
ta religião”, de outro começava a circular, por meio desses panfletos
manuscritos, uma linguagem mais enfática nas ruas da cidade do Rio
de Janeiro, da Bahia e do Maranhão, incitando o povo a aderir ao mo-
vimento constitucionalista de 1821, intimamente ligado ao processo
de 1822:

Às armas Cidadãos É tempo Às Armas


Nem um momento mais, perder deveis
Se à força da razão, os Reis não cedem
Das armas ao [sic] poder cedam os reis30

28  GÊNIO CONSTITUCIONAL. Porto, n. 41, 17 nov. 1821.


29  DIÁRIO DO GOVERNO. Rio de Janeiro, n. 86, 18 abr. 1823.
30  RIO de Janeiro. Lata 195, maço 06, pasta 13. Rio de Janeiro: Arquivo Histórico do Itamarati, [1821].
Transcrito em CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lucia; BASILE, Marcello. Às armas cidadãos!
… Op. cit., p. 128. Atribui-se a data de 1821, pois Mareschal, representante da Áustria no Brasil,
afirmava que, em setembro de 1821, começaram a aparecer cartazes sediciosos convocando os

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Essa provocação era permeada pela retórica31 dos textos da Re-


volução Francesa de 1789 – “Citoyens! Aux armes!” – ainda que não
refletisse o mesmo clima, pois o objetivo não consistia em destronar
a dinastia reinante – a de Bragança, já que acreditavam na inocência
do soberano –, mas, sim, afastar seus ministros e validos. A propos-
ta pretendia, portanto, quebrar os grilhões do despotismo que havia
tanto tempo, julgava-se, oprimiam os luso-brasileiros. Vislumbrava-
-se uma aceleração do tempo para esses homens que percebiam uma
nova proposta de organização da política na sociedade que se dife-
renciava do passado32. Aquele presente vivenciado por tais indivíduos
constituía-se em chave fundamental para construir o futuro.
Desse modo, por meio dessas fontes, produzidas em momentos
de turbulência política e ainda muito pouco exploradas, uma nova
dimensão dos acontecimentos se desvela, qual seja, o envolvimento
político das camadas populares nesse processo. Por conseguinte, no-
vos atores vêm à tona, tornando-se singulares por seu anonimato e
trazendo outras perspectivas que permitem explicações distintas do
passado.
Outro ponto que merece interesse e análise, pois ainda há par-
cos estudos sobre o assunto em função da raridade das fontes, é a
atuação dos escravos no processo de separação do Brasil de Portugal,
especialmente acerca de sua atuação nas guerras de Independência.
Anônimos, em sua maioria, formavam grupos distintos que muitas
vezes se opunham entre si – os escravos crioulos e pardos, nascidos
no Brasil, e os africanos. Para além do que já foi estudado por João
José Reis, o papel atribuído a um “partido negro” no movimento da
Independência, conforme relato de um informante francês, escrito
provavelmente depois de 1823, era que este “partido dos negros e das

portugueses às armas. Cf. MELO, Jeronymo de Avelar Figueira de (org.). A correspondência do


Barão de Wenzel de Mareschal. RHIGB, Rio de Janeiro, t. 77, v. 129, p. 165-244, 1914.
31  Para a questão da retórica, cf. CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica
como chave de leitura. Revista Topoi, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 123-152, 2000.
32  KOSELLECK, Reinhart. Los estratos del tiempo: estudios sobre la historia. Barcelona: Ediciones
Paidós, 2001.

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pessoas de cor” constituía-se como o mais perigoso, “pois [tratava-se]


do mais forte numericamente falando”33. Sem dúvida, em províncias
com forte presença de escravos, seu comportamento ante a situação
de conflito era contrário aos portugueses, que monopolizavam a ven-
da de produtos básicos de subsistência manipulando seus preços de
acordo com seus interesses. Claro que muitos também se opunham à
elite branca nascida no Brasil34.
Algumas vezes, os escravos tentaram obter um papel político
mais claro na vitória dos favoráveis à “causa brasileira”, como na
Bahia. Maria Bárbara Garcez Pinto, importante dama baiana, dona
de engenhos na Bahia, casada com Luís Paulino d’Oliveira Pinto da
França, deputado pela província da Bahia nas Cortes de Lisboa, ao lhe
escrever informava que: “a crioulada da Cachoeira fez requerimentos
para serem livres”, acreditando que de forma ordeira podiam ter uma
intervenção maior na cena pública. Ainda em sua carta, afirmava que
havia na Bahia alguns indivíduos, talvez brancos, que enviavam “às
Cortes requerimentos” sobre o assunto. No entanto, apesar da “mu-
latada” ser “infame” e “soberba” – uma “corja do diabo” – havia “boas
leis” que os podiam escutar, mas também castigar. Afinal, “estão to-
los, mas a chicote tratam-se!”35 Essa atitude de rebeldia era relatada
mais tarde, em 1823, pelo Idade d’Ouro do Brazil, que atribuía “esse
fenômeno preocupante [a possibilidade de alforria dos escravos] ao
mau exemplo dos senhores patriotas”36.
De outro lado, ao longo das guerras de independência, especial-
mente na Bahia, diversos escravos fugiram para se engajar nas for-
ças brasileiras. Acreditavam que, ao lutar pela liberdade do Brasil,
podiam lutar também por sua própria liberdade. Vislumbravam um

33  Um documento inédito para a história da Independência. Transcrito por Luiz Mott em MOTA,
Carlos Guilherme. 1822: dimensões ... Op. Cit., p. 482.
34  Cf. REIS, João José. O jogo duro ... Op. Cit.
35  FRANÇA, António d’Oliveira Pinto da; CARDOSO, Antônio Monteiro. Cartas baianas: 1821-1824:
subsídios para o estudo dos problemas da opção na Independência brasileira. São Paulo: Com-
panhia Editora Nacional, 1980, p. 36 e 39.
36  IDADE D’OURO DO BRAZIL. Salvador, n. 8, 28 jan. 1823.

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novo “horizonte de expectativa”37. Inclusive, mais tarde o governo im-


perial procurou recompensar esses homens, recomendando que seus
senhores dessem sua alforria por meio de um pagamento justo com
recursos da Junta Provincial da Fazenda38. Dessa forma, muito ain-
da há por descobrir por detrás das sombras desses rostos anônimos,
embora alguns avanços tenham sido realizados por estudos, como o
já citado de João José Reis e o de Hendrik Kraay39.
Na linguagem figurada também dos periodistas e dos redatores
de panfletos um outro ponto fundamental vinha à luz em relação à
escravidão e ao processo de Independência: o Brasil como escravo de
Portugal. Nesse caso, a ideia fomentada inúmeras vezes por adeptos
da causa portuguesa era a da possibilidade de uma revolução no Bra-
sil aos moldes do Haiti caso se configurasse a sua separação da antiga
metrópole.
Às vésperas da eleição dos procuradores de província, em abril de
1822, a agitação era intensa, especialmente no Rio de Janeiro. Diver-
sos pasquins apareceram na cidade conclamando “o povo às armas
para depor o ministério paulista”40. Determinou-se que a tropa da
polícia verificasse os ajuntamentos de “pessoas suspeitas e perturba-
doras do sossego e segurança pública” que podiam praticar algum ato
contra as ditas eleições. Seguiram-se uma série de prisões de portu-
gueses suspeitos de ligações com o movimento, por serem perturba-
dores do “sossego e [da] tranquilidade dos habitantes desta capital”,
sendo obrigados a embarcar para Portugal munidos de passaportes

37  KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2006, p. 305-327.
38  BRASIL. Decisão 113, de 30 de julho de 1823. In: BRASIL. Colecção das decisões do governo do Império
do Brazil de 1823. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1887, p. 82.
39  REIS, João José. O jogo duro ... Op. Cit.; KRAAY, Hendrik. “Em outra coisa não falavam os pardos,
cabras e crioulos”: o “recrutamento” de escravos na guerra da Independência na Bahia. Revista
Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 43, p. 109-126, 2002.
40  MELO, Jeronymo de Avelar Figueira de (org.). A correspondência do Barão de Wenzel de Mares-
chal. RIHGB, Rio de Janeiro, t. 80, v. 134, p. 10-148, 1920. Ofício 20 abril 1822, p. 58.

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que as autoridades se apressavam em fornecer. Outros portugueses


partiram de livre e espontânea vontade41.
Paralelamente, algumas notícias vieram à luz e contribuíram
para tornar ainda mais carregado o ambiente. O Correio do Rio de
Janeiro, por exemplo, acusava um dos presos, o padre José Pinto da
Costa Macedo, conhecido pelo pseudônimo de Filodemo, de tramar
uma terrível conspiração contra os brasileiros.

Este demo, diabo ou coisa mais abaixo, ou mais acima, preparava o


maior de todos os flagelos, que poderiam sugerir para nossa desgraça
os gênios maus deliberando reunidos em conselho.
[…]
indo a casa de tal demo um preto, oficial de sapateiro, levar umas bo-
tas por ordem de seu mestre, e sendo recebido com muita urbanidade
pelo mesmo demo, este, depois de fechar a porta, o mandou assentar
junto à sua pessoa em igual cadeira e lhe disse – que não se admirasse
porque todos eram iguais e cidadãos! Que as Cortes tinham decretado
a liberdade da escravatura, e que S. A. R. ocultava esses papéis, a fim
de conservar o infame cativeiro dos cidadãos! Que ele participasse es-
tas verdades a todos os seus conhecidos e parceiros, a fim de que se
aprontassem para matarem a seus senhores, quando ele demo, diabo
ou monstro de humana figura, lhe declarasse que era tempo; e lhe ofe-
receu dinheiro e armas!!!.42

Considerado por suas posturas de um liberalismo mais radical, é


improvável que o Correio do Rio de Janeiro pretendesse atemorizar
os partidários da autonomia brasileira com essa notícia implausível,
calcada sobre os medos mais profundos da mentalidade escravocra-
ta, especialmente após a Revolução Francesa e a revolta de São Do-
mingos. No entanto, é curioso que, ao valer-se do principal argumen-
to de diversos autores portugueses para justificar a necessidade de
o Brasil manter-se unido à antiga metrópole, transforme os liberais

41  Ibidem, p. 58-59.


42  CORREIO DO RIO DE JANEIRO. Rio de Janeiro, n. 13, 24 abr. 1822.

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portugueses em jacobinos radicais, com o efeito evidente de acirrar a


animosidade já presente contra as Cortes.
Assim, vários redatores portugueses contrários à cisão entre
Brasil e Portugal traziam à tona o temor de uma revolta de escravos,
como José Liberato de Carvalho, redator de O Campeão Português
em Lisboa43. Em seu ponto de vista, a possibilidade de independên-
cia naquele momento era uma ideia prematura, uma vez que nem
todas as províncias estavam de acordo com essa separação, o que po-
dia acarretar perigos fatais. O novo governo do Brasil seria débil e
fraco, porque havia “naturais barreiras” que separavam as províncias
e a possibilidade de uma guerra civil, da qual poderia facilmente de-
correr o desmembramento do país. Essa guerra civil, na opinião de
O Campeão, despovoaria e arruinaria todas as riquezas da preciosa
agricultura do Brasil. Além disso, haveria de expor o Brasil ao

mais fatal de todos os perigos, que é o passar de senhor a ser escravo;


ou a ter por senhores esses mesmos escravos africanos e negros, que
por hora só pode conter apoiado na antiga e venerada égide do poder
de Portugal. Com efeito, quem, como o Brasil tem atualmente dentro
de si tão poderosa gangrena política, não pode em seu juízo perfeito
ou ainda com o mais pequeno amor da pátria, expor-se ao perigo fu-
nesto de ver reduzido seu belo país a uma bárbara colônia de negros
Africanos.44

E, para melhor elucidar suas opiniões, citava o “exemplo terrível”


do Haiti, tentando espalhar um medo social entre as elites dirigentes,
que viviam em um país em que “há seis escravos, ao menos, para um
senhor”45.

43  O CAMPEÃO PORTUGUÊS OU O AMIGO DO POVO E DO REI CONSTITUCIONAL. Lisboa, v. 1,


1822.
44  Ibidem.
45  Ibidem. Cf. também o escrito de MENEZES, Francisco d’Alpuim. Portugal e o Brazil: observações
politicas aos ultimos acontecimentos do Brazil. Rio de Janeiro: Imp. Nacional, 1822, p. 14, grifo
nosso: “Quem lhe afiançaria que o pavoroso flagelo da anarquia, esta assoladora peste das sociedades,
não arvorava o seu negro pavilhão?”.

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Nesse sentido, sob vários nomes – crioulos, pardos, negros, afri-


canos –, os escravos e libertos constituíram-se em figuras importan-
tes no processo de separação, fosse na própria atuação na luta a fa-
vor da Independência nas províncias, como Bahia e Maranhão, fosse
como uma força ameaçadora, ou seja, uma nova representação46 da
revolta do Haiti, de que os portugueses lançavam mão para evitar o
desenlace final da separação entre os dois povos outrora irmãos.

3. Redatores de panfletos e sua atuação entre os anos de


1821 e 1824
Se há os anônimos, outras fontes podem revelar atores e proces-
sos originais na Independência. Os panfletos impressos, bem como
os periódicos que pulularam a partir da relativa liberdade de impren-
sa em 1821, também trazem à tona vultos que tiveram significativa
participação naquela conjuntura. Tais escritos de circunstâncias
transmitiam os acontecimentos políticos a uma plateia mais ampla
de forma até então inédita, permitindo uma discussão pública de
todo esse processo e trazendo à tona personagens pouco comentadas
entre os anos de 1821 e 1822. Embora muitos sendo anônimos ou es-
critos a partir de pseudônimos, é possível identificar alguns de seus
autores, inserindo-os em uma rede de sociabilidades e identificando
sua participação no processo de ingresso do Império Brasílico na po-
lítica moderna, quando de sua cisão com a pátria-mãe.
Uma figura instigante bastante desconhecida da historiografia
foi José Anastácio Falcão, português nascido provavelmente em 1786.
Foi autor de panfletos, periódicos e manuscritos entre a época das
invasões francesas e a ascensão de D. Miguel ao trono português em
1828. Regra geral, em seus escritos defendeu as ideias constitucio-

46  O conceito é utilizado na perspectiva de CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e
representações. 2. ed. Lisboa: Difel: 2002, p. 13-28. Para a ideia de medo social em tempos de
comoção, cf. LEFEBVRE, Georges. O grande medo de 1789: os camponeses e a Revolução Francesa.
Rio de Janeiro: Editora Campus, 1979.

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nais, apresentando uma peculiaridade fundamental: em sua trajetó-


ria circulou entre Portugal, África e Brasil, envolvendo-se em inúme-
ras polêmicas no momento da implantação do constitucionalismo no
Império Português e de sua dissolução. Preso em Lisboa por ter falsi-
ficado bilhetes da loteria da Santa Casa de Misericórdia, segundo re-
latório do oficial da polícia em 1828, foi condenado à pena de degredo
para Angola. Com as primeiras notícias da Revolução de 1820, tentou
implantar naquela parte do reino português as bases da Constituição
de Portugal para quebrar os ferros do despotismo. Veio, em seguida,
para o Brasil, Rio de Janeiro, onde obteve perdão do príncipe regente
D. Pedro47. Segundo Raphael Rocha de Almeida, em estudo recente
que retoma tal personagem, pode-se levantar a hipótese de que Anas-
tácio Falcão receberia dinheiro para publicar textos favoráveis ao go-
verno em Portugal, para onde regressou48.
No Rio, escreveu O alfaiate constitucional e Os anti-constitucionais49.
O primeiro impresso podia ser encontrado em várias livrarias da
Corte Imperial e vendido no Ultramar, conforme anúncio publicado
na Gazeta do Rio50, o que evidencia a ampla circulação de impressos
e de informações políticas de um lado a outro do Atlântico. A obra
obteve sucesso, como descrevia o anúncio: “Tendo-se concluído com

47  NOTA de que consta nesta Intendência Geral da Polícia acerca de José Anastácio Falcão, datada
em 24 de março de 1828. In: MARTINS, Rocha (coord.). Correspondencia do 2º visconde de Santarém:
I volume: 1827-1828. Lisboa: A. Lamas Motta & Cia, 1918. p. 41-43. Disponível em https://bit.ly/3e-
e1B0d. Acesso em: 18 jun. 2020.
48  ALMEIDA, Raphael Rocha de. A trajetória política e as ideias de José Anastácio Falcão em meio
à crise do império atlântico português (1808-1828). In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA,
30., 2019, Recife. Anais […]. São Paulo: Anpuh, 2019. Disponível em: https://bit.ly/3ehgVt0. Acesso
em: 18 jun. 2020.
49  Cf. FALCÃO, José Anastácio. O alfaiate constitucional: diálogo entre o alfaiate e os freguezes.
Partes I-IV. Rio de Janeiro: Tip. Nacional, 1821; Idem, Os anti-constitucionaes: prova-se que são
maos christãos, maos vassallos: e os maiores inimigos da nossa patria. Parte I. Rio de Janeiro:
Tip. Regia, 1821.
50 GAZETA DO RIO DE JANEIRO. Rio de Janeiro, n. 97, 13 out. 1821. A subscrição da obra foi noticiada
pelo DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO. Rio de Janeiro, n. 23, 25 jun. 1821. No anúncio afirmava-se
que a obra devia agradar igualmente ao Público, pois era concebida “em um tal sentido, que só
poderá estimular aquele que lhe servir de carapuça”.

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brevidade incrível a primeira parte do Alfaiate constitucional, donde se


colige evidentemente grande aceitação que mereceu do Respeitável
Público, se mandou reimprimir O alfaiate constitucional e já se acha à
venda na Loja da Gazeta”. O panfleto discutia os principais temas do
constitucionalismo vintista, por meio de instigante diálogo satírico e
ficcional, como confirmava o anúncio: “esta é uma severa crítica con-
tra os abusos e perversidade dos Déspotas sendo ao mesmo tempo
agradável pelo estilo jocoso”. A personagem principal – um alfaiate
defensor das ideias constitucionais – realiza o seu principal ofício
em casa, onde recebia vários fregueses, tipos ideais da sociedade do
tempo: um corcunda, um constitucional, clérigos, um comerciante,
um fidalgo, um mercador, um letrado e um comendador, à maneira
de The Spectator de 171151. O tema central dos diálogos é a adesão às
ideias liberais e à moda constitucional, simbolizada no uso das ca-
sacas, principal especialidade do alfaiate. A repercussão do panfleto
trouxe problemas ao redator, pois nos relatórios da Intendência de
Polícia do Rio de Janeiro consta ter sido ele repreendido severamente
por João Inácio da Cunha, em novembro de 1821, pela publicação do
folheto52. Embora opositor da separação do Brasil de Portugal, José
Anastácio Falcão é exemplo de uma personagem, como muitos da
época, que circulou pelas distintas regiões do antigo Império Portu-
guês. Da mesma forma, em alguns momentos, ainda que esparsos,
aderiu novamente à realeza, após o movimento da Vila Francada em
1823, para depois voltar a defender um governo representativo. Em
1826 redigia uma longa exposição em português e francês sobre o
estado de Portugal, denunciando um governo arbitrário e solicitan-
do apoio para uma mudança política ao Corpo Diplomático daquela
Corte53. Sofreu, assim, inúmeros constrangimentos, revelando o ca-

51  Cf. PALHARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. The Spectator: o teatro das luzes: diálogo e imprensa
no século XVIII. São Paulo: Hucitec 1995, p. 52-55.
52  POLÍCIA da Corte. Códice 323, v. 6, fl. 101. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional do Rio de Janeiro,
1821. Cf. também SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824).
São Paulo: Hucitec, 2006, p. 149-150.
53  Nota de que ... Op. Cit.

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ráter transatlântico das lutas em torno da nova ordem constitucional


e liberal em espaços políticos herdeiros da antiga e então parcialmen-
te fragmentada “monarquia pluricontinental dos Bragança”, na ex-
pressão de António Manuel Hespanha54.
Outro exemplo refere-se ao autor de três cartas – redigidas em
forma de panfletos, inclusive duas em resposta aos redatores da Ma-
lagueta e do Espelho55. Assinava seus panfletos como Trezgeminos
Cosmopolitas. A mais marcante e original foi a carta intitulada “O
Brasil visto por cima: carta a huma senhora sobre as questões do tem-
po”, publicada no Rio de Janeiro em 1822. Tal escrito continha dois
pontos originais: primeiro, era endereçada a uma senhora e, segundo,
empregava o artifício do uso do balão para apresentar a situação do
Brasil naquele momento. Para José Murilo de Carvalho, a inspiração
do texto vinha certamente de Jacques Garnerin (1769-1823), balonista
francês que causou sensação quando propôs fazer um voo acompa-
nhado por sua mulher56. O texto mesclava uma narrativa geográfica
com as posturas políticas de um liberal moderado, mas que não de-
monstrava grande entusiasmo pelas democracias. Era um panfleto
instigante que levantava, inclusive, a possibilidade do perigo de uma
guerra racial no Brasil. Quem era Tresgeminos Cosmopolitas? Sob o
nome estranho escondia-se o comerciante português José Silvestre
Rebello, bastante conhecido a partir de 1824, quando foi designado
encarregado de negócios em Washington em janeiro com a missão
de obter o reconhecimento da independência do Brasil pelos Estados
Unidos. O fato foi alcançado em maio do mesmo ano, apesar de suas
desavenças com outro agente consular brasileiro – Antônio Gonçal-

54  HESPANHA, António Manuel (ed.). Poder e instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1984.
55  COSMOPOLITAS, Tresgeminos. Carta ao redactor da Malagueta. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
[1822]; REBELLO, José. Carta ao redactor do Espelho sobre as questões do tempo. Rio de Janeiro: Tip.
Santos & Sousa, 1822.
56  CARVALHO, José Murilo de. Introdução ao volume I. CARVALHO, José Murilo de; BASTOS,
Lucia (MEU NOME NÃO TEM ACENTO); BASILE, Marcello (org.). Guerra literária: panfletos
da Independência do Brasil (1820-1823). Vol. 1: Cartas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2014.
p. 69-70.

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ves da Cruz – o célebre Cabugá da Revolta de 181757. No entanto, para


atingir tal posto em 1824, nosso panfletário deixou suas marcas no
processo de constitucionalização e separação do Brasil. A documen-
tação sobre Rebello é escassa, mas sabe-se que veio para o Brasil ain-
da moço, dedicando-se ao comércio, provavelmente, no início, como
caixeiro. Mas como se enredou na política?
Em fevereiro de 1821, Silvestre Rebello foi nomeado por D. João
VI como Juiz da Comissão Mista entre Portugal e Grã-Bretanha. Essa
Comissão era uma espécie de tribunal que tratava dos navios negreiros
ilegais aprisionados, localizando-se no Rio de Janeiro e em Freetown, na
Serra Leoa. Em meio à sua atividade panfletária, em que defendia a ideia
de um governo constitucional cuja soberania fosse partilhada entre o Rei
e a Nação, fundou em 1822, junto com José Bonifácio (seu presidente) e o
Conde da Palma, a sociedade Philotechnica, tornando-se seu secretário.
Segundo Oliveira Lima, era uma agremiação que, por de trás de seu ver-
niz de conhecimento, possuía um viés político com o objetivo de reunir
as distintas províncias no Brasil em uma comunidade de ideias parti-
lhadas da qual deviam fazer parte os espíritos mais ilustrados da época;
assim, ainda na visão do mesmo autor, procurava-se usar inteligência
para encaminhar e disciplinar os “espíritos”58. O seu funcionamento foi
autorizado pelo então príncipe regente D. Pedro. Naquele mesmo ano, a
Sociedade publicou o impresso Annaes Fluminenses de Ciências, Artes e
Literatura, prefaciado anonimamente por José Bonifácio. Todavia, as
atividades desta sociedade não prosseguiram, sendo extinta juntamen-
te com seu periódico. Afinado com os ideais políticos do Patriarca da In-
dependência, foi um dos primeiros a aderir à causa brasileira, sendo um
dos cidadãos constitucionais que contribuíram para as celebrações do
Império, como se verifica no Diário do Rio de Janeiro de 11 de novembro
de 1822. Desse modo, com essa trajetória e atuação no processo da In-
dependência, alinhada à postura de José Bonifácio, é compreensível sua

57  BRASIL-Estados Unidos, 1824-1829. Rio de Janeiro: Centro de História e Documentação Diplo-
mática, 2009, p. 9-15.
58  LIMA, Manuel de Oliveira. O Movimento da Independência: o Império Brasileiro (1821-1889). 4. ed.
São Paulo: Ed. Melhoramentos, 1962, p. 137, nota de rodapé 12.

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indicação para encarregado dos negócios dos EUA. Sua postura indica
ainda que a velha dicotomia portugueses versus brasileiros nem sempre
foi seguida à risca, demonstrando os múltiplos interesses dos comer-
ciantes nesse processo de separação59. Anos mais tarde, foi junto com
Januário da Cunha Barbosa e Raimundo da Cunha Matos, um dos só-
cios-fundadores do IHGB. Verifica-se, por conseguinte, que nosso sim-
ples comerciante e negociante, autor de uma importante obra publicada
em 1820, intitulada Comércio oriental – um repertório de informações
sobre os portos, mercadorias, pesos e medidas da rota do Cabo da Boa
Esperança ao Japão –, tornou-se homem político de atuação na Indepen-
dência e no primeiro Reinado, sem dúvida não só por seus méritos, mas
igualmente por sua rede de sociabilidades.
São também instigantes os autores que fazem comentários acerca
das juntas governativas autorizadas pelas Cortes no decreto de 18 de
abril de 1821, depois de jurada a Constituição e suas bases. As juntas
foram, segundo correspondência inserida no periódico Revérbero
Constitucional Fluminense, “um ato necessário, como de acessão e
de identificação às ideias gerais e à reforma constitucional do go-
verno da Nação”60. Para a historiografia, elas transformaram-se no
alicerce do Brasil constitucional61. No entanto, a formação dessas
juntas trouxe inúmeras tensões e conflitos ao governo do regente
Pedro I. Elas se estabeleceram motivadas por um espírito dividido
entre a anuência às Cortes e a repulsa ao controle central, exercido
pela regência de D. Pedro. Compostas pelas elites políticas locais,
organizaram-se supondo ampla autonomia nos negócios internos,
transformando-se, na expressão R. Barman, no governo de “peque-

59  Há uma dissertação de mestrado sobre o autor, voltando-se sobretudo para sua atuação nos
Estados Unidos, defendida em 2015: CRUZ, Abner Neemias da. As práticas políticas de Silvestre
Rebello: um diplomata brasileiro nos Estados Unidos da América, 1824-1829. 2015. Dissertação
(Mestrado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual
Paulista, Franca, 2015. Disponível em: https://bit.ly/3eeWY5Y. Acesso em: 28 dez. 2019.
60 REVÉRBERO CONSTITUCIONAL FLUMINENSE. Rio de Janeiro, n. 7, 15 dez. 1821.
61  Cf. LIMA, Manuel de Oliveira. O Movimento da Independência: 1821-1822. Belo Horizonte: Itatiaia,
1989, p. 96-97.

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nas pátrias”62. Situaram-se, por conseguinte, na origem da influência


local na administração e nos assuntos fiscais das províncias, que veio
a caracterizar a estrutura política do Brasil no Império, procurando
impedir qualquer tentativa de um poderoso governo centralizado no
Rio de Janeiro.
Um dos envolvidos nesses imbróglios foi Cassiano Espiridião de
Melo e Matos. Natural da Bahia, formado em leis em Coimbra em
1819, retornou ao Brasil, sendo despachado como juiz de fora de Ouro
Preto63. Assim, à medida que o movimento de 1821 tomava conta das
principais regiões do Brasil, Cassiano Espiridião assumiu uma pos-
tura favorável à formação de uma junta governativa, em oposição
ao capitão-general Manoel de Portugal e Castro, que acusava essa
tentativa de ser um tumulto organizado por “revolucionários, amo-
tinadores da tropa e do povo”, que desejavam a “independência ab-
soluta da província de Minas Gerais”, tendo ele tomado providências
imediatas para sufocar a rebelião64. Os ânimos, no entanto, não se
acalmaram, surgindo conflitos entre a antiga administração e os que
apregoavam um sistema constitucional, nos moldes daquele implan-
tado pelas Cortes de Lisboa. Tais desentendimentos transpareceram
em uma polêmica nos jornais do Rio de Janeiro, envolvendo cartas
e opiniões diversas. Em uma dessas polêmicas, encontrava-se Espi-
ridião de Melo e Matos. Em carta ao redator da Gazeta do Rio de Ja-
neiro, nossa personagem fazia críticas à atitude anticonstitucional
de seu redator, ressaltando que os governos provisórios não tinham
sido instalados com o único fim “de fazerem jurar a Constituição e

62  BARMAN, Roderick. Brazil: the forging of a nation (1798-1852). Stanford: Stanford University
Press, 1988, p. 75.
63  Na Universidade de Coimbra, foi colega de Almeida Garrett, sendo mais tarde uma das persona-
gens invocadas em sua obra com o nome de Spiridião Cassiano di Mello i Matoôs. Cf. RIBEIRO,
Maria Aparecida. Imagens do Brasil na obra de Garrett: invocações e exorcismos. Revista Camões,
Lisboa, n. 4, p. 115-127, 1999. Disponível em: https://bit.ly/37DT5VM. Acesso em: 18 jun. 2020.
64  MEMÓRIA Explicativa do Anti-Constitucional o Excellentissimo Senhor D. Manoel de Portugal
e Castro, Governador e Capitão General de Minas Geraes, tanto no Acto do Juramento das Bases
da Constituição no dia 17 de julho, como no das Eleições de Comarca nos dias 19 e 20 de agosto
deste anno de 1821. [S. l.: s. n.], 1821, p. 2.

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mandarem deputados às Cortes”; visavam a outros objetivos, “talvez


ainda mais precisos [sic] fins”, como o de “extirpar abusos, extinguir
despotismos, tirar o bastão aos generais e umas fardas bonitas e fazê-
-los vestir conformemente com os povos”65. Dessa forma, evidencia-
va-se que Cassiano Espiridião era partidário do constitucionalismo
português, vendo no sistema colonial apenas uma opressão do Anti-
go Regime. Mais tarde, afastado de seu cargo, colocou-se contra a in-
dependência do Brasil – um voto contra a mais nobre das causas, nas
palavras de Joaquim Manoel de Macedo, o que se “podia tolerar em
um Madeira ou em um Avilez, mas nunca em um brasileiro”66. Autor
de carta panfletária, embora já conhecido na política, é interessante
acompanhar a trajetória posterior desse brasileiro contrário à causa
“nacional”. Perdoado pelo Imperador, foi designado para a Relação
de Pernambuco em 1824, no momento da Confederação do Equador.
Colocando-se a favor de Paes Barreto et pour cause de Pedro I foi pre-
so. Mais tarde, foi ainda desembargador da Relação da Bahia (1830),
mantendo-se no período da abdicação e da Regência como um fiel
defensor da monarquia e da Coroa, sendo alçado a senador do Impé-
rio em 183667.
Uma das mais instigantes e curiosas personagens, não por sua
trajetória enquanto ator do processo, mas como formulador de ideias
e pelas mensagens que trazem seu texto, foi Antônio Barbosa Correa
– um mineiro rústico, como se autointitulava em seu panfleto Mani-
festo ao Grão Brasil68. Apesar de publicado em 1824, descreve a histó-

65  MATTOS, Cassiano Spiridião de Mello e. Snr. redator da Gazeta do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Tip. de Moreira & Garcez, 1821, p. 4. Há uma resposta a este artigo, redigida por Francisco Adjuto
Garcia, acusando Cassiano de corcunda. Cf. CARTA dirigida a Cassiano Spiridião de Mello e
Mattos, pedindo a definição de corcunda ou constitucional, datada de 17 de dezembro de 1821.
Rio de Janeiro: Imp. Nacional, [1821].
66  MACEDO, Joaquim Manoel de. Anno Biographico Brazileiro, 1876. Vol. III. Rio de Janeiro: Typogra-
phia e Litographia do Imperial Instituto Artistico, 1876, p. 56.
67  Ibidem.
68  CORREA, António Barbosa. Manifesto ao Grão Brasil, Império dos Impérios do Mundo, oferecido à S.
M. Imperial Defensor Perpetuo do Brazil por António Barbosa Correa Mineiro Rústico: ligado às profecias
do Bandarra, e de outros profetas. Org. Loryel Rocha. Rio de Janeiro: Instituto Mukharajj, 2017.

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ria de Portugal e a história do Brasil baseado na literatura profética e


em crônicas portuguesas, especialmente nas profecias de Bandarra.
Gonçalo Annes Bandarra foi sapateiro português do século XVI e au-
tor de trovas que ficaram ligadas ao sebastianismo e ao milenarismo
português. A cada momento de tensão e de crise em Portugal, as tro-
vas eram reeditadas, como na época das invasões napoleônicas, reto-
mando-se o mito do Encoberto, ou seja, o retorno do rei D. Sebastião
para tirar o reino da crise profunda que vivenciava69. Pouco se sabe
acerca de Barbosa Correa, autor do panfleto, exceto o que o próprio
descreve em seu panfleto. Oriundo de Minas Gerais, dizia-se uma
“ovelha vítima de lobos”, como as profecias de Bandarra indicavam:
“Vejo os lobos comer / As ovelhas degoladas / As vacas montadas / E
os cordeiros gemer”70. Possuía uma lavoura em Minas, que cultivava
com 12 escravos, o que lhe permitia sobreviver. Desde 2 de março de
1819, no entanto, época em que foi para a Corte do Rio de Janeiro,
teve que empenhar um escravo de nome Fortunato para pagar suas
despesas. Tal situação era fruto da prisão de seu cunhado por ordem
do Comandante de Ordenanças do Distrito. Barbosa Correa havia to-
mado o partido do cunhado, chamando publicamente o comandan-
te de incapaz. Apesar de ter representado queixa ao governador da
província – D. Manoel de Portugal e Castro –, sofreu perseguições,
sendo este seu grande crime, que fez de sua mulher viúva, embora
tivesse marido, e de seus filhos, órfãos tendo pai71. Mas o que pregava
Antônio Barbosa Correa? Como interpretava o processo de Indepen-
dência do Brasil?

69  Para a análise do sebastianismo, cf. HERMANN, Jacqueline. O sebastianismo e a Restauração


Portuguesa. Voz Lusíada, Lisboa, n. 11, p. 3-16, 1999. HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado: a
construção do sebastianismo em Portugal, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras,
1998. Para a reedição das trovas de Bandarra na época das invasões napoleônicas, cf. NEVES,
Lucia Maria Bastos Pereira. Napoleão Bonaparte: imaginário e política em Portugal: c. 1808-1810.
São Paulo: Alameda, 2008, p. 251-254.
70  CORREA, António Barbosa. Manifesto ao Grão Brasil ... Op. cit. p. 102-103.
71  Ibidem, p. 103-104.

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Baseado nas profecias de Bandarra, que considerava “sumamen-


te verdadeiras”, embora misteriosas, pois não se equivocavam em um
só ponto dos fatos premeditados, Antônio Barbosa fazia uma extra-
ordinária interpretação do processo de separação do Brasil de Portu-
gal, diferente de todas as outras. Para ele, a Independência do Brasil
assegurava a continuidade dinástica, a legitimidade, a soberania po-
pular e um aspecto messiânico-providencialista. De um lado, o pro-
cesso acarretava laços estreitos com um projeto revolucionário, idea-
lizado, em grande parte, pela Maçonaria. De outro, a Independência
mostrava-se muito mais do que uma simples ruptura com Portugal.
Ao instaurar um modelo de poder envolto em mística profética e apo-
calíptica, que pretendia “materialmente Divino”, o Brasil convertia-
-se em “um novo Portugal”72. Desse modo, a Independência do Brasil
identificava-se com a história de Portugal e, especialmente, com as
profecias de Bandarra. Pedro I assumia o carisma providencial de D.
Sebastião, enquanto o Brasil tornava-se o sucessor legítimo de Portu-
gal, como sede do Quinto Império, tal qual colocava a literatura pro-
fética e apocalíptica que perpassou toda a história portuguesa. Por
conseguinte, para Antônio Barbosa, o verdadeiro Encoberto não era
mais D. Sebastião, mas Pedro I. E a realização do Quinto Império,
já preconizado por Antônio Vieira, assumia a forma do Império do
Brasil: “Inda o tronco está por vir / Já nos vejo erguido a Cedro / Pouco
vai de Pedro a Pedro / Se a rama do tronco medir”73. A ilha encoberta
descrita nas trovas, que de lá chegaria o verdadeiro rei, não era Por-
tugal; nem o rei era D. Sebastião, como sempre fora interpretado. A
ilha era o “feliz Brasil”, escolhido pela divina providência para nele
“arvorar o Poderosíssimo Monarca dos Monarcas do Mundo”74. Este
rei era D. Pedro que, em breve, levaria seu domínio também a Por-
tugal. A feliz época era o ano de 1826, ano em que, por acaso ou não,
se deu a morte de D. João VI, trazendo todo o imbróglio da sucessão

72  Ibidem, p. 6-7, grifo do autor.


73  Ibidem, p. 55.
74  Ibidem, p. 65.

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uma história a se fazer

em Portugal. Eram profecias: “sumamente verdadeiras, além de mis-


teriosas; e com evidência se tem verificado nas competentes épocas
assinaladas, sem faltar um só ponto, dos fatos premeditados”75. Pro-
fecias, sem dúvida, mas não os prognósticos da linguagem moderna,
na perspectiva de Koselleck: “a história concreta amadurece em meio
a determinadas experiências e determinadas expectativas”76. No caso
de Antônio Barbosa, não era essa visão que norteava seu horizonte de
expectativa.

4. Mulheres: membros participantes da sociedade civil?


Por fim, ainda pode ser destacado um grupo de esquecidas – as
mulheres no processo de independência. Em uma sociedade profun-
damente hierarquizada como a do Antigo Regime, é possível imagi-
nar o papel quase invisível dessas senhoras. No entanto, sua presença
pode ser detectada, além da efetiva atuação nas lutas de separação do
novo Império, por cartas em jornais, por correspondência privada e
até pela escrita de panfletos políticos. No último caso, por exemplo,
encontram-se na Bahia os lamentos de uma baiana pela crise em que
vira sua pátria, devido ao despotismo constitucional da Tropa Auxi-
liadora de Portugal, comandada pelo general Madeira de Melo. Dizia
que se tratava de uma menina de 13 anos de idade que, em seu ano-
nimato e fechada em seu quarto, escrevera versos “lavada em lágri-
mas”77. Outra, Maria Clemência da Silveira Sampaio, foi considerada
a primeira poetisa do Rio Grande do Sul78.
A participação de mulheres enquanto membros integrantes da
sociedade política, contudo, não deixou de ficar igualmente consig-
nada em petições, requerimentos e cartas que reivindicavam seus

75  Ibidem, p. 57.


76  KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição ... Op. Cit., p. 309.
77  LAMENTOS de huma bahiana na triste crise, em que vio sua patria oppressa pelo despotismo
constitucional da tropa Auxiliadora de Portugal. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1822, p. 3-4.
78  MOREIRA, Maria Eunice (org.). Uma voz ao sul: os versos de Maria Clemência da Silveira Sampaio.
Florianópolis: Ed. das Mulheres, 2003.

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direitos civis. Em 1823, diante do clima de antagonismo entre por-


tugueses e brasileiros, encontra-se uma representação escrita por
mulheres dirigida ao imperador Pedro I. Essas mulheres – brasilei-
ras – pediam por seus maridos portugueses, ameaçados de expulsão
das terras brasileiras. Estavam sobressaltadas “ao ouvir dizer” que
“alguns malvados e ambiciosos” queriam reduzi-las “a um estado
novo na história humana: isto é, sermos casadas sem esposo, viúvas
com marido, termos filhos sem pais, órfãos com eles”. O argumento
utilizado era direto: se as mulheres europeias casadas com brasilei-
ros não eram perseguidas, por que motivo os europeus casados com
senhoras brasileiras, que tivessem jurado a Independência, deviam
perder a pátria? E indagavam de José Bonifácio de Andrada e Silva,
casado com uma europeia, se aquilo era justo. Afinal, “que privilégio
devem ter os homens neste caso?” Lamentavam ainda não possuírem
“certos foros civis”, o que era “uma moda universal” e, provavelmen-
te, “uma tirania do sexo masculino”, demonstrando nas entrelinhas a
injustiça social que se praticava. Ainda que afirmassem que seguiam
“as lições da antiga moral universal”, não sendo filósofas, mas pos-
suindo “alma, Religião e coração”, reivindicavam serem reconheci-
das, no fundo, como cidadãs efetivas, capazes de também passarem
pelo sangue aos maridos a nova nacionalidade. Bem verdade, não so-
licitavam o reconhecimento de direitos políticos, mas na argumen-
tação ficava clara a possibilidade de adquirirem direitos civis a fim
de garantir a integridade de seus maridos. Como em quase todas as
petições e requerimentos redigidos no Império do Brasil, porém, ter-
minavam com a clássica abreviatura “E. R. M.”, ou seja, “E receberá
mercê”79. Assinavam uma terça parte das senhoras brasileiras. Uma
representação anônima, pois os nomes das senhoras não vinham à
tona, mas que demonstrava o sentimento das mulheres de elite da-
quela época80.

79  NEVES, Guilherme Pereira. E receberá mercê: a Mesa da Consciência e Ordens e o clero secular
no Brasil, 1808-1828. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.
80 REQUERIMENTO, rasão e justiça: representação dirigida a D. Pedro I de mulheres no Brasil.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1823, f. 1.

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Em 1823, após a independência do Brasil, já no bojo das discus-


sões e tensões da Assembleia Constituinte, outro tipo de documento
foi o de cartas escritas por mulheres que, algumas vezes, eram ende-
reçadas a políticos e panfletários. Por exemplo, o caso daquelas de
mulheres paraibanas publicadas no jornal Sentinela da Liberdade na
Guarita de Pernambuco, naquele ano, de autoria de Cipriano Barata
e reproduzidas em outro periódico no Rio de Janeiro. A primeira era
assinada por Leocádia de Melo Moniz, redigida em julho, que agrade-
cia pelos escritos do redator que ensinavam a usar do Direito Nacio-
nal, excomungando o corcundismo e despotismo81. Mais duas cartas
foram publicadas nesse periódico. Apesar de não reivindicarem di-
reito de voto ou participação política, depreende-se dessas missivas
que essas mulheres se colocavam em pé de igualdade com os homens
em função de seu patriotismo e da luta pela liberdade82. Além disso,
as cartas revelavam igualmente que essas senhoras acompanhavam
as discussões políticas da época, haja vista que a mencionada dona
Leocádia solicitava tornar-se assinante dos folhetos de Cipriano Ba-
rata, que denominou essas mulheres de “espartanas valorosas da
Paraíba”. Deve-se ressaltar que Cipriano Barata era considerado um
liberal radical que, eleito deputado à Assembleia Constituinte de 1823
pela Bahia, negou-se a participar, preferindo utilizar-se da imprensa
para defender seu ideário83.
Por fim, vale lembrar a já mencionada Maria Bárbara Garcez Pin-
to, senhora do engenho de Aramaré, na Bahia. Nascida em Portugal,
lá se casou com o brasileiro Luís Paulino d’Oliveira Pinto da França,
deputado pela província da Bahia nas Cortes de Lisboa. Aqui, criaram
família. Sua atuação foi marcante ao longo das guerras de Indepen-
dência, quando seu marido, acusado de favorável aos portugueses,

81  SENTINELA DA LIBERDADE NA GUARITA DE PERNAMBUCO. Recife, nº 32, 23 de julho de


1823.
82 Ibidem, n. 39, 19 ago. 1823; Ibidem, n. 50, 24 set. 1823.
83  Ibidem, n. 32, 23 jul. 1823. Não foi possível encontrar ainda dados sobre Leocádia de Melo Moniz.
Para um estudo de Cipriano Barata, cf. BARATA, Cipriano Sentinela da liberdade e outros escritos.
Org. e ed. Marco Morel. São Paulo: Edusp, 2008.

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permaneceu em Portugal após a separação do Brasil. Era conhecida


no Recôncavo, onde tinha sua casa, como mulher severa e enérgica.
Por meio da intensa correspondência com seu esposo, há possibili-
dade de averiguar alguns pontos considerados como consagrados a
respeito da Independência do Brasil. Em suas cartas, verificam-se
questões pessoais, como a intensa paixão pelo marido, que nunca
afastou seu senso de responsabilidade a ponto de tudo abandonar
para regressar a Portugal e viver em paz em uma quinta do norte com
Luís Paulino. De outro, questões políticas, quando, com sensatez e
objetividade, analisa os acontecimentos políticos daquela época, con-
denando tanto “os extremistas brasileiros” como “os radicais portu-
gueses”. Com uma perspectiva arguta afirmava que a distinção entre
brasileiros e portugueses, ou “europeus”, já era uma realidade antes
da Independência. Tratava-se apenas de uma questão de “pátria de
nascimento”84. Seu marido era “brasileiro”, porque nascera em Ca-
choeira; ela portuguesa, porque originária de Penafiel. Tal ponto de
vista não significava, no entanto, que os nascidos em Portugal fossem
obrigatoriamente contrários à Independência, e os oriundos do Bra-
sil adeptos da causa nacional. Uma de suas frases revela o equilíbrio
de suas posições: “amo Portugal, gosto do Brasil e desejo o bem, pois
não sou egoísta, nem ambiciosa”85. Em várias missivas, criticava as
atitudes brutais do general português Madeira de Melo contra os bra-
sileiros: “não se iludam aí: nada fazem com os brasileiros pela força.
Doçura e mais doçura, igualdade e mais igualdade”. E concluiu, com
veemência: “Os brasileiros não são enteados, são filhos”86. Enfrenta
as dificuldades da guerra e toma decisões por si só, apesar de ter dois
filhos, nascidos em Portugal – Bento e Luís –, nos momentos mais di-
fíceis, como nas crises financeiras e nas lutas políticas. Contra a opi-

84  Para o conceito, cf. CANECA, Frei Joaquim do Amor Divino. Dissertações sobre o que se deve
entender por pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria. In: MELLO, Evaldo
Cabral de (org.). Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 53-99.
85  FRANÇA, António d’Oliveira Pinto da; CARDOSO, Antônio Monteiro. Cartas baianas: 1821 ... Op.
cit., p. 37, carta de 13 de abril de 1822.
86  Ibidem, p. 82, carta de 24 de agosto de 1822.

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nião de seu filho Bento, defensor da causa constitucional portuguesa,


saiu de Salvador e partiu para o interior a fim de assegurar a posse
de seu engenho no ápice da guerra civil, quando lhe parecia perdi-
da a causa portuguesa. Seu outro filho, Luís, adotou o Brasil como
“pátria de direito”87, aderindo às forças fiéis a Pedro I, fazendo parte
do exército de Labatut. Ainda tinha duas filhas: uma casada com um
brasileiro nato e que seguiu desde cedo a causa da Independência, e a
outra, ainda criança, que acompanhava sempre sua mãe.
Maria Bárbara ainda viveu por muito anos no Brasil. O marido
faleceu em 1824, quando, como representante de Portugal, veio ao
Brasil na missão Rio Maior (1823), acabando proibido de desembar-
car na Bahia e morrendo em alto mar na viagem de volta a Portugal.
Viúva, porém, apesar de sua opção por Portugal, ela acabou por reco-
nhecer o papel de D. Pedro como fundamental para salvar o Brasil da
anarquia88. Há registros de sua presença nos salões da capital baiana
como uma grande dama, louvada por sua gentileza. Como descreve
Wanderley Pinho, era presença marcante nos salões, sendo conside-
rada por alguns como uma deusa a quem se dedicavam muitas ofe-
rendas89.

***
A partir desse mosaico de instigantes indivíduos – agentes so-
ciais –, algumas questões podem ser levantadas, possibilitando abor-
dagens distintas e novas fontes para rediscutir a Independência do
Brasil. Volta-se para o exame do passado, que, por definição, não
mais existe e que, portanto, cabe ao historiador reconstituir a partir
do lhe restou de mais seguro – suas fontes que se encontram no pre-
sente.

87  Para o conceito, cf. CANECA, Freio Joaquim do Amor Divino. Dissertações sobre o ... Op. cit.
88  Cf. FRANÇA, António d’Oliveira Pinto da; CARDOSO, Antônio Monteiro. Cartas baianas: 1821
... Op. Cit., p. 125-126.
89  Cf. PINHO, Wanderley. Salões e damas do Segundo Reinado. 3. ed. São Paulo: Martins, 1959, p. 296.

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Em primeiro lugar, verifica-se que, por meio da análise dos pan-


fletos manuscritos, encontram-se redatores anônimos, cuja lingua-
gem era mais violenta e contundente do que aquela usada nos panfle-
tos impressos, justificando a origem de cunho popular dos primeiros.
Nesse sentido, as informações que contêm esse material oferecem
perspectivas distintas sobre o movimento constitucionalista que o
Brasil conheceu em 1821, bem como dá pistas inesperadas sobre seu
processo de separação de Portugal. Amplia-se a base social de tais
movimentos, consagrados pela historiografia como um processo em
que apenas as elites políticas e intelectuais tiveram atuação. Claro
que tais elites foram os condutores do movimento, mas não se pode
esquecer que o político aumentava seu espectro passando a ser discu-
tido nas praças públicas.
Para além da questão do medo do haitianismo, ameaça constante
por parte de deputados e periodistas portugueses, que insuflavam o
medo de um levante escravo no Brasil, tal conjunto ainda deve ser
ampliado com a presença de escravos e libertos. Notícias circulavam
nos panfletos e jornais sobre tal temática, tanto que o Revérbero
Constitucional Fluminense rebatia tais boatos, argumentando que
era

seguramente bem estólida esta ameaça contínua de sublevação de es-


cravos. Como não veem essas toupeiras que a sublevação de escravos
em que tanto falam lhes [aos portugueses] há de ser mais fatal que a
nós. […] os pardos e os pretos no Brasil dividem-se em duas classes –
forros e cativos – dos primeiros têm bastante que temer os autômatos
fardados de Portugal; dos segundos nada receiam os brasileiros.90

Ou seja, a ameaça de rebelião escrava não impedia a expectativa


do Brasil como estado independente e constitucional, uma vez que
manter a escravidão representava a única possibilidade de garantir
a ordem na monarquia constitucional em construção. Envolvia, no
entanto, uma outra fundamental: a discussão do conceito de inde-

90 REVERBERO CONSTITUCIONAL FLUMINENSE. Rio de Janeiro, n. 16, 10 set. 1822.

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pendência naquele momento se limitava ao da política para o Brasil


ou incluía a do indivíduo para o escravo?
O segundo ponto a destacar é o papel das mulheres. Tais perso-
nagens merecem ser mais esmiuçadas, pois, quando não requerem
um novo olhar, como as conhecidas Soror Joana Angélica ou Maria
Quitéria, permanecem no limbo do desconhecimento. Nesse sentido,
o estudo de algumas redatoras de panfletos, de representações que
apresentaram ou das cartas privadas que escreveram pode contribuir
muito. Encontram-se nesse caso as cartas de Maria Bárbara, a gran-
de senhora de engenho da Bahia, que demonstram a facilidade e a
originalidade de expressão numa mulher que nasceu em família da
aristocracia rural portuguesa. Maria Bárbara demonstrava uma forte
personalidade e exerceu um papel que normalmente se vê negado às
mulheres na época. Capaz de citar Camões e reproduzir máximas la-
tinas, conhecia os novos conceitos da linguagem do constitucionalis-
mo, como pátria, nação, independência e poder constitucional, e não
hesitou em tomar decisões próprias nos momentos difíceis sem se
sujeitar à orientação dos filhos. Suas cartas ainda revelam as múlti-
plas independências que ocorreram, colocando abaixo a ideia de um
processo mais amplo e unificado do Brasil, por meio de um acordo
amigável entre colônia e metrópole91. Verifica-se a descrição de uma
realidade bastante complexa em que, se, de início, portugueses e bra-
sileiros constitucionalistas estavam unidos, mais tarde se multiplica-
ram as divisões que ultrapassam a velha dicotomia entre portugueses
e brasileiros. Dicotomia que justificou, por longos anos, o processo
de separação e constituição do novo Império do Brasil. Além disso, as
cartas ainda permitem vislumbrar que a Independência não se resu-
me ao 7 de setembro, mas envolve um processo iniciado com o mo-
vimento constitucional de 1820, que pode ser considerado, em parte,
finalizado em 1825 com o Tratado de Reconhecimento por parte de
Portugal do novo Império. Trazem, portanto, à tona um processo

91  Cf. CARDOSO, António Manuel Monteiro. Introdução. In: FRANÇA, António d’Oliveira Pinto da;
CARDOSO, António Manuel Monteiro (org.). Cartas baianas: o liberalismo e a Independência do
Brasil (1821-1823). Lisboa: Imprensa Nacional, 2008, p. 33-45.

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nada “amigável”, que envolveu lutas e disputas, como as guerras de


independência e a tensão da Confederação de 1824, apesar de muito
desses atores proclamarem que a união das províncias passava a re-
presentar a força do novo Estado Brasílico.
Por último, convém insistir nos panfletos políticos impressos e
o estudo de seus redatores. Ao se transformarem em instrumentos
de debate público, tais escritos permitiram a instrução de leitores e
a formulação de questões que representavam interesses de setores
distintos da sociedade, compreendidos a partir da vivência que os
contemporâneos experimentavam do passado, levando ao acúmulo
de experiências e à possibilidade do surgimento de um horizonte de
expectativa diferente, formulado por meio das novas linguagens po-
líticas disponíveis – a do constitucionalismo e a do liberalismo. Ao
ignorá-los, corre-se o risco de fazer interpretações anacrônicas.
A identificação e o conhecimento de seus redatores, muitas vezes
anônimos, contribui, por sua vez, para mapear aqueles que integra-
ram esse jogo. Agentes fundamentais, eles elaboraram argumentos
que viabilizaram releituras do processo, embora, com frequência, te-
nham ficado esquecidos. Não à toa, dos muitos autores citados não
foi possível encontrar sequer um retrato. Eram homens, no entanto,
que, regra geral, conheciam as novidades da época e pretendiam as-
segurar um futuro distinto daquele que tinham vivenciado na políti-
ca do Antigo Regime. Esses indivíduos galgaram postos políticos ao
longo do Primeiro Reinado em função dos laços de sociabilidade que
adquiriram e possibilitam perceber como o antigo Império Portu-
guês encontrava-se interligado entre a Europa, a América e a África.
Trata-se, portanto, de uma direção de investigação que pode levar a
apreender os homens em sua diversidade e experiência concreta.
Para concluir, vale salientar que o estudo desses esquecidos per-
mite ultrapassar as fronteiras de uma história cujo fulcro encontra-
-se na ideia de nação. Por meio de encontros, trocas e contatos entre
as diversas partes do Império Português, as narrativas de suas ações
apontam para a necessidade de conhecer e analisar comparativa-
mente os processos de separação da América Inglesa e da América
Hispânica. Desse esforço podem surgir novas suposições sobre o

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conceito de independência (ou independências) naquela época. No


fundo, dessa ótica, o que se constata é quanto o Império luso-brasi-
leiro não ficou indiferente aos abalos que o Ocidente conheceu entre
finais do século XVIII e inícios do século XIX. Ou seja, não ficou in-
diferente a essa Sattelzeit, quer dizer – para R. Koselleck e os demais
autores do Dicionário de conceitos históricos fundamentais 92– esse
período-sela, que se situa na transição das sociedades tradicionais de
antigo regime para o mundo moderno. Contudo, ao contrário do que
algumas interpretações recentes têm procurado demonstrar, em pa-
ralelo a uma multiplicidade de linguagens novas – a do constitucio-
nalismo antigo, a da economia política e a do direito natural –, per-
maneceram ativos e, muitas vezes, preponderantes, valores antigos,
como essa surpreendente tentativa de enxergar, por meio das trovas
do Bandarra, o Império do Brasil como a realização do V Império, e
Pedro I como o rei encoberto. Afinal, até hoje boa parte dos habitan-
tes do Brasil parecem continuar desprezando prognósticos para lidar
com profecias…93.

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92  KOSELLECK, Reinhardt. Futuro passado: contribuição ... Op. cit., p. 97-118.
93  KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição ... Op. cit., p. 31-39.

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Fórum
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Recebido em: 08/04/2020 – Aprovado em: 12/05/2020

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