12 Des 2016 MS

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O DESAFIO DA GENTRIFICAÇÃO

NA CIDADE DE MAPUTO
REFLEXÕES SOBRE O SISTEMA HABITACIONAL,
A POLÍTICA SOCIAL DE HABITAÇÃO E A EXCLUSÃO
SOCIAL
Michael Godet Sambo

INTRODUÇÃO
O acesso à habitação condigna é uma necessidade com a qual a população de Maputo se depara
desde os primeiros anos após a independência nacional em Junho de 1975. Com a ocupação
arbitrária das casas deixadas pelo colono e a subsequente nacionalização e regulamentação da
ocupação, em 1977 já se registava um excesso da procura por casas (Forjaz, 1984), facto que foi
agudizado pelo deflagrar da guerra civil (1987-1992). Esta guerra acelerou significativamente o
êxodo rural e sobretudo a emigração para a cidade capital, aumentando a pressão sobre a oferta
de imóveis, o que resultou na concentração de famílias em espaços relativamente pequenos e
consequente sobrelotação de alguns edifícios residenciais, bem como no despontar de constru-
ções anárquicas sobre os prédios residenciais (vide Barros, Chivangue & Samagaio, 2013; Allen
& Johnsen, 2008). Com o Acordo Geral de Paz (AGP), em Outubro de 1992, e a transição do
sistema económico socialista para o sistema de economia de mercado aliados à estabilidade
«sociopolítica» e económica, verificou-se um elevado crescimento de investimentos aprovados
pelo Centro de Promoção de Investimentos (CPI), entre outros, na área de construção em
Maputo. Como resultado, tem-se verificado, nos últimos anos, a gentrificação de alguns bairros
periféricos da cidade de Maputo.
A gentrificação no contexto de Maputo alinha-se à definição de R. Glass (1964, apud Smith,
2002: 438), que refere a ocupação e transformação paulatina dos bairros pobres de classes
trabalhadoras por pessoas de classe média alta, que os transformam em bairros e residências
modernos e caros (vide Smith, 2002: 438). O fenómeno de gentrificação, que em Maputo
tende a acompanhar o crescimento económico do País, caracteriza-se principalmente pela
emergência de novos e modernos edifícios nas zonas centrais e adjacentes à cidade. Mesmo
assim, a cidade ainda mantém a sua estrutura dual, que data do período colonial. A caracte-
rização dual da capital reside no facto de no seu centro existirem edifícios relativamente
modernos com prédios altos e luxuosos, e à volta bairros e subúrbios de construções precárias,

O Desafio da Gentrificação na Cidade de Maputo Desafios para Moçambique 2016 355


com altos níveis de informalidade, falta ou elevada ineficiência na provisão dos serviços bási-
cos (vide Barros, Chivangue & Samagaio, 2013: 82; Carrilho & Lage, 2010). Esta dualidade
permeia uma série de novas construções, dando lugar a modernos edifícios nas regiões cen-
trais da cidade e a uma gradual transformação de alguns bairros outrora pobres, dos
arredores, em novos e luxuosos bairros (Barros, Chivangue & Samagaio, 2013). A título de
exemplo, os bairros do Triunfo e Sommershield 2 ilustram essas transformações, que se desig-
nam «gentrificação». Contudo, é importante não esquecer que este processo tem contribuído
para o aumento das desigualdades sociais, uma vez que se observa uma grande pressão das
elites sobre os outros grupos sociais menos favorecidos no processo de acesso aos espaços
para construção. Por outro lado, embora a gentrificação valorize os bairros outrora pobres
como uma expressão de desenvolvimento, também tem o efeito de agudizar a exclusão social
dos respectivos residentes, visto que estes tendem a realocar as suas residências em zonas
cada vez mais distantes do centro da cidade.
É no âmbito destas dinâmicas urbanas, caracterizadas pela exclusão no acesso à habitação,
que se torna relevante analisar o sistema habitacional moçambicano e a política social de habi-
tação, uma vez que o fenómeno de gentrificação tende a aumentar significativamente. Embora
este processo seja uma resposta capitalista ao problema de escassez de habitação, também
constitui um problema social habitacional para as camadas menos favorecidas, pois os novos
edifícios que emergem nos arredores da cidade tendem a excluir a maioria da população, res-
tringida pelos baixos salários incapazes de fazer face às elevadas rendas e preços para o seu
usufruto. Ademais, a existência de uma política social de habitação, bem como o seu funcio-
namento em Maputo, aparenta ser questionável, o que importa analisar no âmbito da sua
relação com aquelas dinâmicas de gentrificação e exclusão social. Na mesma lógica das trans-
formações urbanas, importa explorar a relação entre o sistema de habitação em Moçambique
e a marginalização social.
Este artigo insere-se nas discussões sobre o Programa Quinquenal do Governo (PQG) 2015-
-2019, uma vez que a habitação é referida, nos pontos introdutórios 1 e 7, como um dos
principais desafios e prioridades para o desenvolvimento socioeconómico do País e consta
como o objectivo estratégico número três (Governo de Moçambique, 2015). O artigo argu-
menta que a complexidade e onerosidade do actual sistema de habitação e a ambiguidade da
política de habitação contribuem positivamente e de forma indirecta para a gentrificação e,
consequentemente, para a exclusão e marginalização social das famílias de baixo rendimento.
O que, por sua vez, afecta negativamente o desenvolvimento do capital humano moçambicano.
Neste contexto, para além desta (i) introdução, o artigo faz um (ii) mapeamento do sistema de
habitação e da política social de habitação em Moçambique, com particular foco em Maputo,
seguido de (iii) uma análise social do sistema e da política de habitação, culminando com
(iv) conclusões e desafios.

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MAPEAMENTO DO SISTEMA DE HABITAÇÃO E DA POLÍTICA SOCIAL
DE HABITAÇÃO EM MOÇAMBIQUE, COM PARTICULAR FOCO
EM MAPUTO
Esta parte concentra-se na identificação do que já existe e da respectiva forma de funcionamento,
sem se escusar a análises preliminares. Nesta óptica, segue-se uma breve contextualização his-
tórica do sector da habitação em Maputo, que consta do mapeamento do sistema e da política
habitacionais, dos seus actores e da forma de funcionamento.

BREVE CONTEXTO HISTÓRICO DO SECTOR DA HABITAÇÃO EM MAPUTO


A estrutura dual de Maputo tem a sua génese no período colonial. Foi concebida para manter a
população trabalhadora negra em casas com condições precárias à volta da cidade alta, habitada
por estrangeiros não africanos (vide Barros, Chivangue & Samagaio, 2013: 73). Com a independência
em 1975, os colonos começaram a abandonar o País, o que criou espaço para uma ocupação, pelos
moçambicanos, dos edifícios deixados vazios. Posteriormente, em 1977, o Estado nacionalizou a
terra e os edifícios, decisão que foi tomada no 3.º Congresso da Frelimo. De acordo com Forjaz
(1984), este congresso definiu a primeira política habitacional através da qual os indivíduos seriam
responsáveis por construir as suas próprias casas, pois o Estado enfrentava uma escassez generali-
zada de recursos para fornecer habitação aos cidadãos. Deste modo, a responsabilidade do Estado
seria definir estratégias, elaborar e controlar a implementação de planos de urbanização, executar
projectos, principalmente de abastecimento de água e drenagem1 (Forjaz, 1984: 67-68).
Até cerca de 1977, a demanda por habitação no centro da cidade já excedia a oferta, sendo
que em 1983 o excesso era vinte vezes maior do que a oferta disponível (Forjaz, 1984: 68).
Esta situação foi agravada pela migração do campo para a cidade, que por sua vez foi acelerada
pela guerra civil entre a Frelimo e a Renamo. Consequentemente, surgiram circunstâncias
habitacionais dramáticas, em que três ou quatro famílias tinham de partilhar uma área menor
a 15 metros quadrados em bairros nos arredores da cidade (vide Barros, Chivangue & Samagaio,
2013: 79-80). Mais tarde, após a introdução do Programa de Reabilitação Económica (PRE),
em 1987, que assinalou a transição do sistema socialista para o sistema económico capitalista,
iniciou-se uma onda de privatizações, incluindo de edifícios residenciais. É no âmbito destas
transformações que a Administração do Parque Imobiliário do Estado (APIE) foi dissolvido,
dando lugar a construções anárquicas no topo de prédios habitacionais, principalmente para
fins de arrendamento (Barros, Chivangue & Samagaio, 2013; Allen & Johnsen, 2008). Após a
APIE, foi criado o Fundo de Desenvolvimento da Habitação Própria, ao abrigo do Decreto
37/87, de 23 de Dezembro. Posteriormente, em 1995, foi substituído pelo Fundo de Fomento
1
O número total de candidatos para ocupação de casas em 1983 era de 29 369 para apenas 1020 casas disponíveis e
distribuídas para arrendamento durante o período de escassez em referência (Forjaz, 1984: 71).

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à Habitação (FFH), como a instituição-chave para levar a cabo projectos de habitação social,
continuando actualmente com este mandato.

O SISTEMA HABITACIONAL E A POLÍTICA SOCIAL DE HABITAÇÃO


A política social de habitação insere-se no sistema nacional de habitação, que, embora seja
um conceito impreciso, permite que se faça uma referência ao aparato completo de inter-
-relações entre todos os intervenientes individuais ou corporativos, edifícios residenciais e
instituições envolvidas na produção, no consumo e na regulamentação da habitação (Hoekstra,
2010: 1). Por sua vez, a política social de habitação também é, per se, complexo de definir.
Porém, para simplificar, refira-se primeiro que: (i) a política que aqui se refere não é a parti-
dária ou a chamada «arte de governar», que é conhecida como politics, em inglês, mas sim a
policy, que, de acordo com Titmuss (1974), se refere ao conjunto de princípios que governam
as acções práticas orientadas para a mudança de uma certa realidade. Este termo é normal-
mente usado pelo Governo e orientado para a acção ou resolução de algum problema em
concreto (Titmuss, 1974: 138). Segundo, (ii) o termo social é comummente usado para se dis-
tanciar das definições do homem como ser pura e unicamente económico, ou seja, visa
mecanismos de resposta às necessidades de homens e mulheres e mecanismos alternativos
aos económicos (vide Titmuss, 1974: 139-140). Aqui enfatizam-se os conceitos de solidarie-
dade, altruísmo social, justiça social e igualdade, etc., que visam a humanização e o garante
do mínimo básico para todos. É nesse contexto que se surge o termo política social de habi-
tação para se referir ao conjunto de princípios governamentais que regem acções claras com
vista a solucionar o problema de escassez de habitação, assegurando que os menos favoreci-
dos e pessoas com baixo rendimento acedam a condições mínimas de habitabilidade, mesmo
não podendo, por si só, pagar por elas.
Embora haja relatos de aprovação da política e da estratégia habitacionais que convergem
com a política social de habitação de Moçambique, a sua existência continua encoberta. Pois,
apesar do anúncio público da sua aprovação em 8 de Maio de 2011 na 7.ª sessão ordinária do
Conselho de Ministros (Secretariado do Conselho de Ministros, 2011), não há indicações de
que tal política tenha sido divulgada ao público. Este facto tende a ser controverso, pois, por
um lado, foi divulgada a sua aprovação, mas, por outro, parece não ter sido publicada, o que
coloca incerteza sobre a existência ou não de uma política social de habitação em vigor no
País. Mesmo assim, alguns documentos oficiais e não oficiais do Governo, que precedem
aquela data, fazem referência a essa política (vide, por exemplo, Governo de Moçambique,
2006: 99; Comité de Conselheiros, 2003: 58, 110, 130; Guilande & Cumbe, 2001). Ou seja,
tudo indica que existe uma política social habitacional, porém, exclusiva do Governo, dado
que aparenta não ter sido publicada. A não publicação da política de habitação está na base
da controvérsia quanto à sua existência, levando alguns investigadores a afirmar que não existe

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(Barros, Chivangue & Samagaio, 2013: 81-82; Allen & Johnsen, 2008: 9). Todavia, importa
analisar essa política, visto que é oficialmente aceite.
Entretanto, importa acrescentar que a principal instituição criada para a implementação da
política social de habitação, isto é, o Fundo de Fomento de Habitação, foi criada e aditada
antes da aprovação da respectiva política. Na essência, o FFH foi criado em 1995 em subs-
tituição do Fundo para o Desenvolvimento Habitacional, pelo Decreto N.º 24/95, de 6 de
Julho (Governo de Moçambique, 1995; vide também Guilande & Cumbe, 2001), e aditado
em 2010 pelo Decreto N.º 65/2010, de 31 de Dezembro (Governo de Moçambique, 2010),
ou seja, antes da aprovação da respectiva política. Contudo, “é” desde a sua criação que o
FFH tem estado a funcionar. Adicionalmente, o documento publicamente disponível como
política social de habitação tanto aparenta ser um rascunho, como simplesmente uma apre-
sentação pelo director nacional de Habitação e Urbanismo, Zefanias Chitsungo, antes da
sua aprovação, em 9 de Setembro de 2009. Este é o único documento de política habitacio-
nal disponível no site da instituição e foi apresentado tanto na conferência anual da União
Africana para o Financiamento da Habitação como na respectiva reunião geral, decorridas
em Maputo. Não obstante todos estes constrangimentos, o mesmo documento será usado
para o mapeamento do sistema habitacional de Moçambique, com o suporte de outros
documentos e contributos relevantes.
Para além de a política habitacional enfrentar todas estas controvérsias existenciais, o sistema
habitacional é, por sua vez, relativamente complexo no que diz respeito ao processo de acesso
à habitação. O seu grau de complexidade varia de acordo com as formas de acesso à habitação
existentes. O acesso formal consiste em quatro formas distintas, nomeadamente arrendamento,
construção individual, aquisição e por herança. De entre estas, interessa-nos o processo de cons-
trução individual e a aquisição, por serem as mais comummente usadas e que garantem a
propriedade do imóvel e, assim, a estabilidade social do cidadão. Por sua vez, a aquisição e a
construção por vias de companhias especializadas ou empreiteiros na cidade e província de
Maputo são inacessíveis ao indivíduos com médio ou baixo rendimento, embora relativamente
mais fáceis. A facilidade consiste no facto de os processos de acesso à habitação serem, em
grande medida, absorvidos por um intermediário, o que de certo modo contribui para o seu
encarecimento.
Já o processo de autoconstrução acessível ao indivíduo de médio e baixo rendimento implica
que o interessado procure toda a assistência legal e técnica individualmente, através dos
meios de mercado. Em termos legais, o indivíduo deve primeiro ter o Direito de Uso e Apro-
veitamento de Terra (DUAT) ou uma declaração passada pela administração distrital, seguida
de uma licença de construção, que depende da prova de disponibilidade de terra e da apro-
vação do projecto de construção. Estes processos ocorrem em duas instituições públicas
diferentes e levam muito tempo (Comité de Conselheiros, 2003: 59; Barros, Chivangue &

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Samagaio, 2013). Acrescente-se que o indivíduo procura construtores informais, por serem
relativamente mais acessíveis, e ainda os serviços de um engenheiro devidamente licenciado
para supervisionar o processo de construção. Não obstante, a lei moçambicana preconiza
outra forma de adquirir casa para habitação, se considerado o Artigo 106.º da Constituição
da República, que rege a habitação como um direito em Moçambique (República de Moçam-
bique, 2004: Artigo 106.º). Logo, vinculando a existência e o funcionamento de uma política
social de provisão de habitação.

INTERVENIENTES DO SISTEMA E POLÍTICA DE HABITAÇÃO


A política social de habitação consiste em «proporcionar a cada família uma habitação ade-
quada, contribuindo desta forma para o desenvolvimento e a redução da pobreza», visando
«facilitar o acesso à habitação adequada conferindo dignidade a cada família através da coor-
denação dos diferentes segmentos da sociedade» (Anon, 2009). No entanto, no tocante ao
processo de provisão da habitação estão envolvidas cerca de 15 instituições, entre elas minis-
térios, entidades municipais e instituições da sociedade civil que participam, directa ou
indirectamente, no sistema. Estas instituições operam em três principais domínios, a saber:
(i) gestão de terra, (ii) promoção de habitação, e (iii) provisão de infra-estruturas básicas (ibid.).
Embora haja outras áreas mencionadas na política, estas são as que, directa ou indirectamente,
têm um impacto significativo nas populações alvo desta política, por serem as áreas com que a
população tem contacto.
No que respeita à provisão, as instituições públicas envolvidas também funcionam como enti-
dades privadas ou semipúblicas que executam serviços de construção por vias de contrato. Por
exemplo, o FFH funciona na base de contrato com o Governo — contrato-programa — para
execução da respectiva política social de habitação. Adicionalmente, executa obras privadas
por contrato de entidades não governamentais ou estatais, e também exerce um papel de fundo
ao conceder empréstimos aos beneficiários, ou, alternativamente, funcionando como interme-
diário entre o beneficiário e o banco, a fim de mobilizar empréstimos. De uma forma geral, o
FFH aparenta estar numa situação de conflito de interesses, pois sendo do Estado e ao serviço
do Estado, presta serviços remunerados ao mesmo Estado, bem como aos privados, por meca-
nismos de mercado. Como se não bastasse, na prossecução de objectivos ligados à visão de sua
criação, o FFH aparenta ser uma instituição isenta de fiscalização.
Ademais, parece não haver organizações da sociedade civil (OSC) envolvidas em monitoria
e advocacia na área habitacional. A única OSC identificada na área de habitação em
Moçambique é a Habitat for Humanity International (HFHI) e actuava em provisão de
habitação e crédito habitacional, em vez de na área da advocacia (Allen & Johnsen, 2008).
Finalmente, as famílias preenchem o lado receptor, como prevê a visão da política habita-
cional atrás mencionada.

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A seguir destacam-se as instituições envolvidas no lado da provisão e as respectivas áreas de
trabalho, dando maior atenção às mais relevantes, de acordo com o seu papel e as respectivas
influências no sistema.

(i) Gestão Territorial


No que toca à gestão de terras para habitação em Moçambique, são várias as instituições
envolvidas, entre elas: governamentais, municipais e comunitárias. As instituições governa-
mentais responsáveis pela gestão de terras para habitação são o Ministério de Agricultura
(Minag), a Direcção Nacional de Plano e Ordenamento Territorial (Dinapot), o Ministério
de Coordenação da Acção Ambiental (Micoa) (Anon, 2009). Para além destas, a política
habitacional reconhece nesta categoria outras instituições, como, por exemplo: municípios,
administração local, líderes comunitários, secretários de bairros, bem como a sociedade civil
(ibid.). Conjuntamente, estas instituições asseguram o objectivo estratégico de gestão de ter-
ras constante na política habitacional, que consiste em «garantir o acesso e assegurar a posse
de terras infra-estruturadas» (ibid.). É racional e óbvio que na gestão de terras para habitação
estejam envolvidas instituições governamentais, dado que a Constituição da República,
Artigo 109.º, N.º 1 e 2, refere que «a terra é propriedade do Estado», pelo que «não pode
ser vendida, (...) ou alienada (...)» (República de Moçambique, 2004), o que implica que as
pessoas apenas podem adquirir título de uso e aproveitamento da terra através das institui-
ções governamentais.
No entanto, o processo para a aquisição do DUAT nas zonas urbanas envolve tanto processos
formais quanto informais, em que, no formal, apenas algumas instituições são consultadas.
Uma vez que a terra pertence ao Estado e as pessoas apenas gozam do direito de ocupação,
quer por direito consuetudinário quer por formalização (DUAT), os que a adquirem pela pri-
meira vez a um ocupante fazem-no, regra geral, por compra informal ao respectivo ocupante.
Em geral, tal ocupante não possui um DUAT, no entanto é considerado o legítimo proprie-
tário. Após a «compra» informal, embora oficialmente em Moçambique «a terra não se vende
nem se compra», o comprador inicia um processo de formalização com as autoridades locais
(secretários do bairro, líderes comunitários e chefe do círculo), até chegar às autoridades
municipais ou à administração do distrito, que lhe conferem o título de uso, seja o DUAT
seja uma declaração. Neste caso, o Minag e o Dinapot operam ao nível do planeamento ter-
ritorial, aprovando apenas projectos que exigem talhões relativamente grandes com vista à
realização de projectos de investimento. Porém, dada a complexidade e os custos envolvidos
no processo de formalização (vide Banco Mundial, 2009: 179), grande parte da população
tende a adquirir a terra informalmente e a construir a sua habitação sem formalizar a sua ocu-
pação (vide Figura 1).

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FIGURA 1. FORMAS DE ACESSO À TERRA NOS BAIRROS DOS ARREDORES DE MAPUTO E MATOLA

11
Ocupação informal antes da independência
2
Arrendamento informal
11
INFORMAL 77

Oferta informal
29
Compra informal
22
Informal através da administração local
2
Informal através do Conselho Municipal de Maputo
7
Formal através do reassentamento
FORMAL 23

16
Aquisição formal através do Conselho Municipal de Maputo
0 5 10 15 20 25 30

Formas de acesso à terra (em%)

Fonte: Banco Mundial (2009).

A Figura 1 mostra que o acesso à terra até em 2002 foi principalmente feito por mecanismos
informais. Mais concretamente, o acesso por via informal constituía 77%, contra os 23% iden-
tificados como tendo acedido formalmente à terra, segundo o relatório de consultoria publicado
no site do município de Maputo (Banco Mundial, 2009). Além do mais, nota-se que a compra
informal dominou os mecanismos de acesso informal, seguido do acesso informal através das
administrações locais. Embora não haja dados correntes sobre estas formas de acesso à terra,
o mais provável é que as aquisições informais tenham continuado a ser as dominantes, por
serem a forma mais acessível de a população com baixo rendimento aceder à terra. Consequen-
temente, pode pensar-se que o acesso à terra em Maputo continua a ser feito, maioritariamente,
de forma informal, apesar dos crescentes esforços das entidades municipais em controlar os
novos acessos.

(ii) Promoção da habitação


O principal objectivo da promoção da habitação é garantir à população o acesso à habitação
adequada. As principais instituições envolvidas são: Ministério da Administração Estatal (MAE),
Ministério das Obras Públicas e Habitação (MOPH), Ministério da Indústria e Comércio (MIC),
Ministério do Trabalho (MITRAB), Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), Ministério de
Planificação e Desenvolvimento (MPD), municípios e administração distrital, instituições de
ensino técnico, universidades, sector privado e os órgãos de comunicação social (Anon, 2009).
Não obstante todas estas instituições, as que lidam com as famílias no dia-a-dia são, principal-
mente, os conselhos municipais e as administrações distritais, que têm o mandato de aprovar
os projectos de construção de moradias unifamiliares e de emitir as respectivas licenças de cons-
trução, após verificarem que tudo está conforme o regulamento (GIZ, 2008). Após a emissão
da licença pelas autoridades competentes, o processo de construção é inspeccionado até ao
fim. Finda a construção, o indivíduo deve submeter um pedido de licença de utilização, a ser

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emitida pela mesma entidade que passa a licença de construção (ibid.). Para além destes pro-
cedimentos, a autoconstrução formal de habitação exige que o indivíduo que constrói tenha de
recorrer aos serviços de um engenheiro formalmente autorizado pelo MOPH e devidamente
registado no conselho municipal, para desenvolver o seu trabalho no respectivo município
(vide GIZ, 2008). Entretanto, nem todos têm a capacidade de seguir estes procedimentos,
incluindo a financeira, para construir habitação própria.
Em relação às pessoas que não conseguem, per se, aceder a uma habitação condigna, o Estado
prevê a provisão de habitação, conforme o direito à habitação plasmado na Constituição,
enquadrado na política de provisão. A instituição responsável pela implementação da política
social é o Fundo de Fomento Habitação. No entanto, esta não é directamente mencionada no
documento de política e estratégia habitacional apresentada por Chitsungo em 2009, embora
conste na sua respectiva apresentação. O FFH é uma instituição pública legalmente reconhe-
cida com autonomia administrativa, financeira e patrimonial. Opera na base de
contratos-programas estabelecidos com o Governo e financiados pelo Ministério das Finanças.
Ademais, o FFH, como uma instituição pública, enquadra-se no MOPH, mas tem autonomia
e a responsabilidade de providenciar apoio financeiro a programas habitacionais orientados,
especialmente, para as pessoas economicamente activas, porém sem possibilidade de autofi-
nanciamento ou de acesso ao crédito bancário para construção das suas habitações.
Na realidade, o FFH vai além do seu mandato oficial, pois define projectos, subcontrata e super-
visiona a construção e distribui as respectivas casas, num processo monopolizado de selecção dos
respectivos beneficiários. As casas, por sua vez, são vendidas a créditos altamente subsidiados pelo
Estado. Outra instituição com especial relevância no seio do MOPH é a Direcção Nacional de
Habitação e Urbanismo, que é responsável pela promoção e definição de políticas e estratégias que
permitam a melhoria das condições de habitação (vide Figura 2; Anon, 2009; Gil, 2000: 9).
De acordo com o documento do Governo intitulado «Follow-Up» of the Habitat Agenda, por Gil
(2000: 9), os grupos alvo da política de provisão de habitação são três, nomeadamente: (a) pes-
soas com baixo rendimento, (b) trabalhadores qualificados, e (c) jovens recém-casados. Por outro lado,
o documento de política habitacional assume como um dos seus princípios a «habitação ade-
quada como um direito e vector de inclusão social como o estabelecido pela Constituição da
República e a Declaração Universal dos Direitos Humanos» (Anon, 2009). No entanto, no pro-
cesso de candidatura dos interessados, é pedida uma infinidade de dados, quer ao marido quer
à esposa, para aferir a sua posição social ou o seu estado, entre aquelas categorias prioritárias.
Entre eles, uma cópia do Bilhete de Identidade (BI), preenchimento de formulários com os
dados do BI e outros detalhes (como, por exemplo, estado civil: regime de casamento, número
de dependentes; profissão: local de trabalho, salário que aufere, banco através do qual recebe
o salário, regime do contrato laboral, especificação de outras fontes de rendimento, etc.). Após
todos os dados serem colhidos, o FFH prossegue com a avaliação e a pré-selecção dos candi-

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datos para entrevista. Finalmente, os candidatos pré-seleccionados são chamados, e os que
forem seleccionados têm de formalizar o contrato de compra e venda (vide, FFH, 2013).

FIGURA 2. QUADRO INSTITUCIONAL DA POLÍTICA DE HABITAÇÃO E ENQUADRAMENTO DO FFH

Governo

Ministério das Ministério de


Obras Públicas e Coordenação da Acção
Habitação (MOPH) Ambiental (MICOA)

Direcção Nacional de Fundo de Fomento Direcção Nacional de


Habitação e Urbanismo Habitação (FFH) Ordenamento e Planeamento
(DNHU) Territorial (DINAPOT)

Fonte: Anon (2009).

(iii) Provisão de infra-estruturas básicas


No domínio da provisão de infra-estruturas básicas, o objectivo é o de «assegurar a provisão
mínima», isto é, a provisão de água, energia, saneamento básico, educação, saúde, segurança e vias
de acesso, «em todas zonas residenciais» (Anon, 2009; Governo de Moçambique, 2006: 85, 97).
São responsáveis neste domínio, no que concerne ao planeamento, à coordenação e à supervisão
dos processos de provisão, as seguintes instituições: Ministério da Administração Estatal (MAE),
Micoa, MOPH, Ministério da Saúde (Misau), Ministério da Educação (Mined), Ministério do Inte-
rior (Mint), MPD, municípios e administrações locais (ibid.). No entanto, o fornecimento destes
serviços básicos não é feito de forma linear e uniforme nas diferentes zonas urbanas e periurbanas.

UMA ANÁLISE SOCIAL DO SISTEMA E DA POLÍTICA DE HABITAÇÃO


Primeiro, é importante considerar que o documento da política e estratégia de habitação não
distingue o sistema habitacional e o seu funcionamento normal, da respectiva política social de
habitação. Entretanto, o documento descreve os vários intervenientes, os respectivos campos
de acção e os aspectos ligados à habitação e à criação de condições de habitabilidade. No
entanto, a apresentação em PowerPoint do mesmo documento menciona que o FFH se ocupa
da execução da política de provisão ao atribuir a este a responsabilidade de promover moradias
condignas e de baixo custo. Assim sendo, fica claro que o FFH é a instituição do Estado criada
com vista à materialização da política social de provisão de habitação, sobretudo considerando
o âmbito da sua criação (vide Lei N.º 24/95, de 16 de Junho) e aditamento (vide Decreto
N.º 65/2010, de 31 de Dezembro, Artigo 1.º, ponto 1.f ).

364 Desafios para Moçambique 2016 O Desafio da Gentrificação na Cidade de Maputo


Segundo, considere-se que o facto de a política de provisão da habitação em Moçambique
permanecer ainda informal, visto que não foi oficialmente publicada, e é totalmente contro-
lada, gerida, executada e supervisionada pela mesma instituição do Estado, o FFH, que por
sua vez tem um alto grau de autonomia do Estado, o que a torna problemática. Por um lado,
a política habitacional não pode ser directamente questionada ou usada com propósitos de
advocacia, porque parece não existir legalmente. Por outro, a autonomia do FFH (vide De-
creto N.º 65/2010, de 31 de Dezembro, Artigo 2.º, pontos 1, 2 e 3) e a ambiguidade da
política protegem a instituição da obrigação de prestação de contas, bem como iliba o Estado
de pressões a favor de uma política habitacional funcional. As possíveis pressões podem ser
abafadas com a desculpa de haver uma entidade que cuida da política social de habitação, a
qual, por sua vez, não necessita de prestar contas. Estas situações contribuem para práticas
de corrupção e priorização por filiação partidária, como acusam Barros, Chivangue & Sama-
gaio (2013: 79), que por sua vez agudizam o problema da marginalização das pessoas com
baixo rendimento.
Terceiro, o sistema habitacional como um todo é bastante complexo na sua constituição à luz do
descrito no respectivo documento de política e estratégia habitacional, o que o torna o Sistema
bastante burocrático e confuso. No que diz respeito, por exemplo, à autoconstrução, independen-
temente dos processos administrativos para a obtenção de título de uso, existem outros actores
e processos que fazem parte das primeiras fases da aquisição do respectivo espaço. Após a nego-
ciação com o ocupante primário, este deve passar uma declaração de cedência, que será
testemunhada pelo secretário do bairro. Posteriormente, o documento tramitará para o chefe do
círculo, que emitirá uma outra declaração que será apresentada à administração do distrito. Estes
processos, embora onerosos, são informais, tanto que a administração, antes de proceder à devida
formalização, faz uma consulta comunitária no terreno para confirmação de pertença do espaço
ao respectivo indivíduo, o que por sua vez acarreta outros custos monetários e leva o seu tempo.
Porém, a partir desta fase é que o processo formal se inicia, muitas vezes não obedecendo ao
tempo regulamentado. Todos estes factores, como, por exemplo, custos elevados e arbitrários,
elevada burocracia e complexidade para compreensão dos processos, contribuem significativa-
mente para a informalidade da posse de terras, sobretudo no seio da população com baixo
rendimento. Simultaneamente, as respectivas construções são informais.
Em consequência desta informalidade na posse de terras e nas autoconstruções pelas famí-
lias com baixo rendimento, o risco de perderem as suas residências, ainda que por
mecanismos de mercado, é maior. Refira-se que este tipo de informalidade é característico
nos bairros de expansão em Maputo, sendo logo, a priori, propensos a gentrificação no
futuro. Porém, nos bairros circunvizinhos, já em gentrificação, o processo inicial de ocupa-
ção pelas vítimas deste fenómeno seguiu um processo similar (vide, Barros, Chivangue
& Samagaio, 2013: 80), que hoje deu lugar ao seu afastamento das proximidades da zona

O Desafio da Gentrificação na Cidade de Maputo Desafios para Moçambique 2016 365


central da cidade. Certamente, pode-se entender que, para além da pobreza e do aliciamento
com elevadas somas monetárias, o receio e o medo da sua presumível condição de ilegali-
dade joguem um papel importante na decisão de vender as residências, mudando-se para
bairros mais longínquos. Este receio e medo, por sua vez, tanto reduziria o poder de nego-
ciação destas populações como seria uma das razões explicativas da gentrificação, que
encontra a sua raiz na complexidade e onerosidade do sistema habitacional.
Quarto, apesar de a política e estratégia habitacional ter sido desenhada após o fenómeno da
gentrificação se notabilizar, a sua concepção aparenta não ter considerado a dimensão do pro-
blema para a respectiva solução. Assim, o documento em nada menciona o problema da
gentrificação ou mesmo da realocação e mobilidade das famílias. A título de exemplo, o bairro
da Polana Caniço está em crescente transformação, sendo ocupado por famílias de posses e
moradias luxuosas em comparação com as anteriores casas de caniço, que apelidaram o bairro.
Outro exemplo mais gritante é o bairro do Triunfo, que se tornou um bairro luxuoso após terem
sido retirados, gradualmente, os seus antigos moradores (vide, Barros, Chivangue & Samagaio,
2013: 80). Outros bairros um pouco mais distantes, como é o caso de Mahotas, Guava, etc.,
vão dando lugar a verdadeiras novas paisagens, à custa de novas ocupações e de afastamento
dos anteriores residentes.
Entretanto a movimentação de pessoas e a gentrificação podem ser previsíveis ao olharmos
para as tendências de investimento em projectos na área de construção para Maputo. Apesar
dessa possibilidade, não há indicações da existência de uma estratégia com vista a minimizar
os efeitos das referidas deslocações. Olhando para a tendência de investimento em construção
apenas para Maputo, verifica-se um crescimento acumulado de novos projectos aprovados
pelo Centro de Promoção de Investimento (CPI) ao longo dos quinquénios desde 1994. Espe-
cificamente, olha-se para as tendências tanto do Investimento Directo Estrangeiro (IDE) como
do Investimento Directo Nacional (IDN) (vide Figura 3). Porém, o volume de investimento
não significa apenas investimento em construção civil para fins habitacionais, ele reflecte-se
também no uso de terras, e, portanto, na redução de espaços habitacionais. A título de exem-
plo, a Knight Frank, uma empresa internacional que opera em consultoria e venda de edifícios,
revelou que em Maputo cerca 274 mil metros quadrados de espaço são actualmente ocupados
por centros comerciais e circuitos comerciais (vide Knight Frank, 2016: 7). Isto corresponde
a cerca de 609 terrenos convencionais de 450 metros quadrados, vulgo 15 por 30 metros, que
nos bairros adjacentes à cidade são, regra geral, partilhados por mais de uma família. Tal esti-
mativa não significa que todos os investimentos de género tenham resultado em
movimentação de famílias. Porém, estes ou resultam na tal movimentação, quer por reassen-
tamento das famílias afectadas, quer indemnização ou aquisição informal das suas moradias,
ou ocupam espaços que podiam ter sido habitáveis.

366 Desafios para Moçambique 2016 O Desafio da Gentrificação na Cidade de Maputo


FIGURA 3. ACUMULADO DOS INVESTIMENTOS APROVADOS PELO CPI
POR QUINQUÉNIO (1994-2011), EM USD

427 082 293

40 567 104
7 615 574 26 018 964 57 422 269 29 838 014 85 221 246
8 410 790

1994-1998 1999-2003 2004-2008 2009-2011

IDN para Maputo IDE para Maputo

Tendo em conta que os subúrbios e bairros nas redondezas de Maputo são habitados por famílias
de médio e baixo rendimento, que vendem a sua força de trabalho nas regiões centrais da cidade,
pode depreender-se as consequências das respectivas deslocações para locais longínquos. Para além
de muitas destas famílias já se terem desligado do trabalho agrícola, os espaços que passam a ocupar
não dispõem de margens consideráveis para agricultura familiar que as sustente, e os meios de trans-
porte interurbanos continuam a funcionar com limitações. Por conseguinte, a sua exclusão social
agudiza-se. Se a maioria da população afectada pela gentrificação é constituída por pessoas com
baixo rendimento, que sobrevivem do trabalho informal, doméstico e com salários mínimos no
sector formal em áreas como segurança, guardas-nocturnos, polícias, varredores de rua, etc.2 (vide
Figura 4), implica que tenham também fraca capacidade financeira de contornar as dificuldades
emergentes. Daí a possibilidade de perda dos seus empregos e de fontes alternativas de rendimento,
a degradação das condições de acesso aos serviços básicos de saúde, educação, segurança, vias de
acesso, iluminação e água potável. De salientar que estes aspectos são de particular importância para
a formação de capital humano, em concordância com a segunda prioridade do PQG. Ou seja, a
gentrificação, que é uma consequência do ineficiente sistema de habitação e da dúbia e ineficaz polí-
tica social de habitação, pode resultar em marginalização e pauperização das famílias com baixo
rendimento.
Adicionalmente, como foi descrito por Bagchi (2000) na sua revisão do trabalho de Amartya
Sen Capability Approach, «a falta de habitação [condigna], a fome e ausência do bem mais pre-
cioso — o respeito» — caberiam todos na análise de Sen sobre a privação das capacidades (Bagchi,
2000: 4412). Deste modo, a venda das casas apenas resolve, temporariamente, as suas situações
de carência, que mais tarde se tornam piores, tanto pelas difíceis condições de transporte como

2
Estas são algumas características constatadas durante uma pesquisa de campo anterior incluindo entrevistas a residentes
daqueles bairros. O referido trabalho de terreno decorreu no período entre Setembro e Novembro de 2013.

O Desafio da Gentrificação na Cidade de Maputo Desafios para Moçambique 2016 367


pelos respectivos custos explícitos e implícitos, degradando até a própria dignidade das pessoas.
Ademais, a falta de provisão de serviços públicos e de alternativas de subsistência nos lugares
periféricos para onde se dirigem piora as suas condições de vida, visto que continuam a depender
do emprego, quer formal ou informal, nos centros urbanos, e com muito mais esforço do que
anteriormente. Não obstante, e dado que o alvo da actual política e estratégia de habitação são
os trabalhadores qualificados, classificados por Allen & Johnsen (2008: 15) como de médio-alto
rendimento, então a actual política social de habitação exclui os que mais precisam.

FIGURA 4. GRUPOS POPULACIONAIS POR RENDIMENTOS ESTIMADOS NA BASE MENSAL POR FAMÍLIA,
EM RELAÇÃO À POPULAÇÃO TOTAL (URBANA E RURAL), EM USD

Grupo de alto rendimento, com mais de U$D1000:


0,5% da população

Grupo de rendimento médio alto, U$D500-1000:


4,5% da população

Grupo de rendimento médio baixo, U$D150-500:


10% da população Linha de pobreza nacional:
54% da população vivendo na linha da pobreza

Grupo de baixo rendimento,


Até U$D150: 85% da população

Fonte: Allen & Johnsen (2008: 15).

Finalmente, independentemente de a política e estratégia de habitação servir, efectivamente a,


um segmento populacional bastante minoritário, isto é, a classe média-alta, aquela não responde
sequer à demanda deste grupo, havendo ainda um excesso da procura, que encontra o seu
escape na autoconstrução. A título ilustrativo, durante os primeiros nove anos de existência, o
FFH conseguiu atribuir apenas mil novas casas e fornecer seis mil talhões com acesso às infra-
estruturas básicas (Allen & Johnsen, 2008: 7). O que, por sua vez, leva a que as novas metas
sejam consideradas demasiado ambiciosas, colocando a sua capacidade de materialização em
questão. No entanto, o funcionamento ineficiente do sistema de habitação e os longos períodos
de espera relacionados com os processos formais, que contrastam com as necessidades habi-
tacionais prementes, sobretudo entre os jovens, que se explicam pelas rendas elevadas, levam
a que as construções não regulamentadas continuem a crescer.

CONCLUSÕES E DESAFIOS
Este artigo argumentou que a complexidade e a onerosidade do sistema de habitação moçam-
bicano, bem como a ambiguidade da política social de habitação, contribuem de forma

368 Desafios para Moçambique 2016 O Desafio da Gentrificação na Cidade de Maputo


indirecta para a gentrificação e, através deste fenómeno, cooperam na exclusão e marginaliza-
ção social das famílias com baixo rendimento. O artigo começou por descrever o sistema
habitacional e a controvérsia da política de habitação de Moçambique com base, principal-
mente, em documentos oficiais do Governo, bem como em documentos vinculativos,
seguindo-se uma análise da política. O mapeamento ilustrou o sistema habitacional em vigor
e situou a política habitacional no sistema, identificando os principais intervenientes e estabe-
lecendo relações entre os mesmos com foco no papel da provisão. Por sua vez, a reflexão sobre
o sistema habitacional, na perspectiva do utente, revela o sistema como sendo complexo e one-
roso, desencorajando a maioria da população, especialmente com baixo rendimento, de seguir
o sistema para a formalização dos respectivos títulos de propriedade. Analogamente, a não for-
malização destes títulos constitui uma limitação ao pleno gozo dos seus direitos de habitação
consagrados pela Constituição da República, pois o medo da sua presumível ilegalidade cons-
trange-os. Este facto compele-os a vender as suas residências próximas da cidade e das suas
actividades produtivas aos respectivos proponentes, geralmente de classe média-alta, e aos cor-
porativos, deslocando-se para zonas longínquas de fraca infra-estruturação. Consequentemente,
estas famílias tendem a passar de uma condição de exclusão social para uma outra pior, isto é,
são marginalizados socialmente como efeito da gentrificação resultante da complexidade do
sistema habitacional e da onerosidade dos seus processos.
Por outro lado, apesar de ter sido aprovada a política social de habitação, não há indícios da
sua publicação ou divulgação oficial após a aprovação. Embora tenha sido sistematicamente
citada em alguns documentos oficiais publicamente disponíveis, a respectiva política não apa-
renta ter sido disponibilizada por mecanismos conhecidos, facto que a torna, de certo modo,
fictícia e controversa. No entanto, está disponível no site do Governo um documento intitulado
Política e Estratégia de Habitação para Moçambique, que foi apresentado em conferência datada
de antes da respectiva aprovação como política oficial. Porém, esta política tende a ser pouco
clara em relação a provisão, e sua respectiva implementação através do FFH não responde
satisfatoriamente às demandas impostas pelos grupos alvo, nem atenta para o problema da
gentrificação. Em resultado disso e da controvérsia existencial da respectiva política, a margi-
nalização das principais vítimas dos efeitos controversos da gentrificação, isto é, a população
com baixo rendimento, fica longe de ser ajudada pelas organizações da sociedade civil. Em
suma, a política habitacional em Moçambique continua uma miragem, agudizando assim a
pobreza, a exclusão e a marginalização social das famílias com baixo rendimento, vítimas da
gentrificação. Desta forma, para além de contribuírem negativamente para a formação do capi-
tal humano, isto é, a segunda prioridade do PQG, o sistema e a política habitacionais
concorrem indirectamente para o aumento das desigualdades sociais, pondo em perigo o
desenvolvimento socioeconómico uniforme das famílias moçambicanas e contrariando os
objectivos do PQG 2015-2019.

O Desafio da Gentrificação na Cidade de Maputo Desafios para Moçambique 2016 369


Para terminar, o artigo propõe os seguintes desafios de reflexão para a minimização do problema
da gentrificação e o seu impacto de marginalização social das populações com baixo rendimento
residentes nos bairros periurbanos de Maputo: (i) reflexão sobre as possibilidades de simplifica-
ção dos processos de legalização de terrenos para fins habitacionais, simplificação e facilitação
dos processos de legalização da autoconstrução bem como do registo de propriedade, e ainda
a redução dos ónus envolvidos nesses processos; (ii) reflexão sobre a equidade de divulgação
das leis de obrigatoriedade e os respectivos direitos dos cidadãos concernentes à habitação
(refira-se, por exemplo, à terra como propriedade do Estado, e ao direito à habitação plasmado
na Constituição da República), os seus mecanismos de aplicação, entre outros; (iii) reflexão pro-
funda sobre a política de habitação com foco em (a) a definição clara e objectiva dos seus alvos
e respectivos níveis de priorização; (b) a identificação precisa e coerente dos principais problemas
habitacionais do ponto de vista dos alvos e das famílias com baixo rendimento; (c) a avaliação
realista das capacidades de resposta dos órgãos implementadores da política e possibilidades de
melhoria das mesmas; (d) divulgação da política bem como dos mecanismos para o usufruto
dos seus benefícios; (iv) reflexão sobre o processo de urbanização em duas principais vertentes:
(a) das possibilidades de desconcentração dos serviços públicos, e (b) da possibilidade de imple-
mentação de projectos para a provisão habitacional às famílias com baixo rendimento em locais
relativamente próximos dos centros urbanos. Estas reflexões poderão auxiliar na materialização
do «objectivo estratégico III» do actual PQG, que destaca a habitação.

370 Desafios para Moçambique 2016 O Desafio da Gentrificação na Cidade de Maputo


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