Desenvolvimento Emocional Do Individuo

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RESUMO

Este trabalho apresenta uma reflexão sobre o holding e o


desenvolvimento emocional do indivíduo, com base nas idéias do psicanalista
Donald W. Winnicott e tendo como suporte o filme “Onde mora o coração” (Where
the heart is).
A partir do contexto cinematográfico, são verificadas as possibilidades
de desenvolvimento emocional da personagem principal a partir do
processo de holding que lhe é oferecido pelo ambiente em um determinado
momento de sua história.
A reflexão tem como fundamento o pensamento de Winnicott sobre
o desenvolvimento emocional do indivíduo e sobre as possibilidades de
transformação do psiquismo a partir da oferta de holding ambiental. É
destacada a importância que o autor dá ao holding como instrumento do
ambiente facilitador que possibilita ao indivíduo alcançar o
desenvolvimento emocional saudável de suas potencialidades. Apresentam-
se também as ideias winnicottianas sobre o caminho de maturação psíquica que
o indivíduo percorre, desde a condição de dependência absoluta do bebê,
passando pela dependência relativa rumo à independência do adulto assim
como o conceito de falso self, que pode ser compreendido como um mecanismo
de defesa psíquico organizado para preservar o indivíduo dos efeitos da privação de
cuidados sofrida na infância.
O método empregado, baseado na teoria psicanalítica, é composto
pela análise interpretativa de cenas específicas do filme seguida de uma reflexão
pessoal alcançada através do diálogo compreensivo entre a interpretação das

situações e a leitura crítica das obras de D. W. Winnicott.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................01

1. METODOLOGIA......................................................................11

2.1 Filme Onde mora o coração - Ficha Técnica......................14


2.2 Filme Onde mora o coração - Sinopse .............................14

2. ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DAS CENAS DO FILME....................15

3. DISCUSSÃO SOBRE A INTERPRETAÇÃO DO FILME......................35


3.1 O primeiro momento.....................................................35
3.2 O segundo momento.....................................................46
3.3 O terceiro momento......................................................51
3.4 Compreensão do desenvolvimento emocional de Novalee...59
3.5 Reflexão sobre a clínica winnicottiana..............................60

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................68

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................71

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INTRODUÇÃO

“(...) o que me permite tornar-me a pessoa que sou, que não é senão eu”

D. W. Winnicott

Uma inquietação me acompanhou, e ainda me acompanha, ao longo do curso


de Psicologia: as possibilidades de ser de um indivíduo, de se construir como um
ser. De ter um desenvolvimento emocional saudável, capacitando-se a tornar sua
vida produtiva, responsabilizando-se por ela e, assim, exercitar o seu ser. Sempre
acreditei que cada pessoa pode, sendo mesmo à sua maneira, ou seja, exercendo
sua auto-expressão verdadeira, livre e madura, gerar transformações positivas e
contribuir com a sociedade tornando o convívio entre os indivíduos mais humano e
rico. Penso, aliás, que a possibilidade de a pessoa contribuir com a sociedade se
assenta nos cuidados que ela realiza consigo própria e também com o outro.
Partindo dessas reflexões, me questiono, continuamente, sobre as condições que
capacitam o indivíduo a exercer esses cuidados especiais.
Para meu encantamento, ao entrar em contato com o pensamento do
pediatra e psicanalista inglês D. W. Winnicott nas aulas de Psicanálise, identifiquei-
me prontamente com as indagações que o nortearam ao longo da vida. Senti meus
próprios pensamentos acolhidos pelas ideias do autor sobre a saúde e, em
particular, a saúde mental. Principalmente quando ele refere a saúde à condição
que inclui a ideia de uma vida excitante, criativa e vivida na magia da intimidade e
da ética na convivência com as outras pessoas.
Ao me aprofundar na leitura de Winnicott, descobri que me interessava em
compreender melhor a relação entre os cuidados iniciais na infância e o
desenvolvimento emocional do indivíduo visando a saúde mental, o que
concomitantemente se casava com meu interesse, como psicóloga, em desenvolver
ferramentas para cuidar de crianças, adolescentes e seus cuidadores. Pois, me
preocupa e inquieta o fato de o mundo atual nos colocar, constantemente, diante
de histórias de desestruturação familiar, em que as condições de desamparo e de

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falta de segurança das mulheres grávidas prejudicam e, muitas vezes, impedem
que ofereçam cuidados satisfatórios a seus bebês. As situações de vida dessas
crianças que crescem marcadas pela privação dos cuidados e afetos iniciais das
mães nos convidam a pensar também sobre o papel do ambiente inicial no
desenvolvimento da saúde emocional do adulto.
Partindo desses questionamentos, resolvi me aprofundar na compreensão da
relação entre os cuidados ambientais e o desenvolvimento emocional, escolhendo,
para tanto, estudar o conceito winnicottiano de holding em uma produção artística.
O filme “Onde mora o coração” foi selecionado por permitir o
acompanhamento da personagem principal Novalee, desde quando era uma garota
grávida e abandonada até chegar a ser uma mulher autônoma e bastante
independente. Nesse processo, recebe da senhora Thelma, uma desconhecida que
acaba por se tornar uma grande amiga, um conjunto de cuidados especiais que
podem ser descritos sob os termos do conceito de holding.
O holding, conforme conceitua Winnicott, é o conjunto de cuidados
combinados que proporcionam ao indivíduo uma condição ambiental de segurança,
confiança e sustentação, possibilitando o exercício da continuidade e do senso de
ser (2005a). O autor apresenta o conceito de saúde mental como a manifestação
desse modo de ser, sempre levando em conta a maturidade relativa à idade do
indivíduo:
“A saúde (mental) inclui a idéia de uma vida excitante e de
magia da intimidade. Todas essas coisas andam juntas e combinam-
se, na sensação do se sentir real, de ser e de haver experiências
realimentando a realidade psíquica interna, enriquecendo-a, dando-lhe
direção. A conseqüência é que o mundo interno da pessoa saudável
relaciona-se com o mundo real ou externo, e mesmo assim é pessoal e
dotado de uma vivacidade própria.” (2005b, p. 14)

Ele complementa:

“A vida de um indivíduo saudável é caracterizada por medos,


sentimentos conflitivos, dúvidas, frustrações, tanto quanto por
características positivas. O principal é que o homem ou a mulher
sintam que estão vivendo sua própria vida, assumindo
responsabilidade pela ação ou inatividade, e sejam capazes de assumir
os aplausos pelo sucesso ou as censura pelas falhas. Em outras
palavras, pode-se dizer que o indivíduo emergiu da dependência para
a independência, ou autonomia.” (2005b, p. 10).
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Foi a partir das experiências acumuladas em mais de quarenta anos de
trabalho na observação e no tratamento de crianças que Winnicott pode afirmar
que o ambiente de cuidados facilitadores oferecido ao bebê por sua mãe no início
da vida é primordial para que o desenvolvimento emocional da criança ocorra no
sentido da saúde mental, tendo em vista que o movimento em direção à
independência e à saúde psíquica parte da condição de dependência total ou
absoluta. Devido à extrema dependência emocional do bebê, seu desenvolvimento,
bem como sua vida, dependem essencialmente dos cuidados que lhe são fornecidos
prematuramente. Isso coloca em foco a relação do indivíduo com o ambiente
facilitador e suficientemente bom que atua como catalisador do desenvolvimento
saudável a partir das tendências herdadas.
A idéia de que a saúde mental do ser humano assenta-se na primeira
infância e, particularmente, nos cuidados conjugados no conceito de holding,
constitui a base da teoria do desenvolvimento emocional proposta por Winnicott
(2005a). Ela destaca os estágios iniciais do desenvolvimento, pois, nesse período,
se dá a constituição dos alicerces para o desenvolvimento psíquico da criança,
posteriormente, do adulto.
Sua teoria se fundamenta em algumas concepções que podem ser
resumidamente apresentadas (2011c):
a. Todo indivíduo humano é dotado de uma tendência inata ao
amadurecimento e à integração em uma unidade. Para que essa tendência se
realize, o bebê depende fundamentalmente de um ambiente facilitador e
suficientemente bom que atenda suas necessidades;
b. O amadurecimento começa em algum momento após a concepção e
segue até a morte;
c. Quaisquer considerações que se possa tecer sobre os aspectos saudáveis
ou doentes da vida humana sempre estarão referidas a um momento
específico do desenvolvimento pessoal;
d. A saúde é um estado bastante complexo e não está restrito à ausência de
doenças. O autor assinala a existência de estar vivo e de amadurecer. Essa
concepção de saúde transpassa todo o pensamento winnicottiano e destaca o
fato de que a vida é difícil em si mesma e a tarefa de continuar vivo é uma
batalha que sempre permanece, por toda a vida.
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Com base nesses princípios, a teoria do amadurecimento de Winnicott
descreve e conceitua as diferentes tarefas e realizações inerentes ao crescimento
em cada uma das etapas da vida, desde o momento do início da vida intra-uterina,
estendendo-se pela infância, adolescência, idade adulta e velhice. O autor afirma
que o bebê nasce dotado de um potencial psicossomático e uma tendência para o
desenvolvimento (2007b). Há uma tendência inata ao desenvolvimento que
corresponde ao crescimento do corpo e ao desenvolvimento de algumas funções.
No entanto, esse crescimento natural não se verifica na ausência de
condições ambientais suficientemente boas e adaptadas, dinamicamente, ao bebê.
Winnicott reforça a importância fundamental do suprimento ambiental satisfatório,
lembrando que é ele que permite que o desenvolvimento do bebê ocorra segundo
as várias tendências herdadas individuais e suas predisposições. Ele diz: “Os
lactentes humanos não podem começar a ser exceto sob certas condições” (2007b,
p. 43).
O autor explica que, nas primeiras semanas de vida, o bebê é dependente ao
máximo dos cuidados ambientais e, portanto, se encontra numa fase de
dependência absoluta ou total em relação aos cuidados maternos. O meio ambiente
satisfatório é, nesse início, proporcionado através de uma adaptação máxima da
mãe às necessidades do bebê. Aos poucos, a adaptação vai diminuindo de acordo
com a necessidade crescente de o bebê experimentar novas situações e
frustrações. Ou seja, uma vez que a etapa de dependência absoluta tenha se
encaminhado satisfatoriamente, o bebê se encaminha para a dependência relativa
(2005a).
Durante esse caminhar, ocorrem os processos de integração psicossomática,
personalização, relativo ao habitar o próprio corpo, e a diferenciação do ”eu” e do
“não-eu”. Também se efetiva o processo de realização, que viabiliza o
estabelecimento das primeiras relações objetais. A partir dele, a criança se capacita
a relacionar-se com o espaço, com o tempo, com os objetos e com outros aspectos
da realidade.
Todos esses processos se suportam no ambiente facilitador proporcionado
pela mãe. Geralmente, ela é capaz de prover essa série de cuidados essenciais que
o bebê necessita nesse estágio por encontrar-se em um estado especial,
desenvolvido ao longo da gravidez e que continua atuando durante os primeiros
10
meses posteriores ao nascimento. Esse estado especial é denominado pelo autor
preocupação materna primária (2000). Ele é que permite que a mãe alcance uma
condição de quase total identificação com o bebê, tornando-a capaz de lhe oferecer
a porção satisfatória de cuidados, expressos pelo conceito de holding (2005b).
Winnicott lembra que o desenvolvimento emocional não ocorre linearmente, pois
algumas conquistas só são possíveis a partir da resolução de algumas anteriores. O
autor resume assim o processo de desenvolvimento do bebê:

“O desenvolvimento, em poucas palavras, é uma função da


herança de um processo de maturação, e da acumulação de
experiências da vida; mas esse desenvolvimento só pode ocorrer num
ambiente facilitador. A importância desse ambiente facilitador é
absoluta no início, e a seguir, relativa; o processo de desenvolvimento
pode ser descrito em termos de dependência absoluta, dependência
relativa e um caminhar rumo à independência.” (2005a, p. 27)

A afirmação de Winnicott de que a qualidade do ambiente inicial oferecida ao


bebê tem importância significativa por alterar substancialmente as potencialidades
emocionais do adulto me instigou a pesquisar também as ideias de outros autores
sobre os assunto.
Em verdade, as teorias que atribuem as origens dos distúrbios mentais a
acontecimentos ocorridos precocemente na vida de uma pessoa têm suas raízes no
trabalho de Sigmund Freud (2006b) e de outros psicanalistas que o seguiram na
escola psicanalítica, notadamente Melanie Klein (1975), J. Lacan (2011b), W. Bion
(2011b) e o próprio Winnicott (2000).
Ao mesmo tempo em que dá relevância ao trabalho pioneiro de Freud para a
associação de conflitos infantis com problemas psicológicos manifestados pelos
adultos, o próprio Winnicott, em discurso à Sociedade de Psicologia Britânica
realizado em 1948 sob o título “Pediatria e Psiquiatria”, manifesta sua contribuição
para a teoria do desenvolvimento emocional, defendendo a tese de que o distúrbio
mental tem uma base psicológica nos cuidados infantis. Ele afirma que “É possível
estabelecer uma vinculação clínica entre o desenvolvimento da criança e os
fenômenos psiquiátricos, assim como entre os cuidados ministrados na infância e o
cuidado aos doentes mentais.” (2000, p. 234)

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Na busca do pensamento de outros autores, deparei-me com o trabalho do
psicólogo inglês John Bowlby, responsável por inúmeras pesquisas que relacionam
saúde mental com cuidados maternos.
Com base nos pressupostos do pensamento psicanalítico, Bowlby produziu,
em 1950, um extenso trabalho para a ONU (Organização das Nações Unidas) sobre
as necessidades das crianças sem lar. Os resultados de suas pesquisas
concordaram diretamente com as postulações de Winnicott sobre os princípios
básicos da saúde mental infantil, levando-o a confirmar que a qualidade dos
cuidados parentais que uma criança recebe em seus primeiros anos de vida é de
importância vital para sua saúde mental futura.
Bowlby esclarece:

“Dentre os mais significativos avanços da psiquiatria neste


último quarto de século, [...] o que se acredita ser essencial à saúde
mental é que o bebê e a criança pequena tenham a vivência de uma
relação calorosa, íntima e contínua com a mãe, na qual ambas
encontrem satisfação e prazer. É esta relação complexa, rica e
compensadora com a mãe, nos primeiros anos, enriquecida de
inúmeras maneiras pelas relações com o pai e os irmãos e irmãs, que
os psiquiatras infantis e muitos outros profissionais julgam,
atualmente, estar na base do desenvolvimento da personalidade e
saúde mental.” (2006a, p. 3)

Inúmeras fontes de pesquisa continuaram oferecendo um elevado grau de


concordância sobre os efeitos prejudiciais originados por diversos graus de
“privação da mãe” (situação na qual uma criança não encontra os cuidados
mencionados acima pelo autor): estudos diretos, através de observação direta em
lares substitutos, abrigos e outros; estudos retrospectivos, que investigam a
história de adultos e adolescentes com problemas psicológicos e estudos de
acompanhamento, aqueles que acompanham o crescimento de crianças que
sofreram privação nos primeiros anos de vida.
Bowlby afirma que as conclusões de todos esses trabalhos confirmam-se e
apóiam-se mutuamente. E ressalta que aquilo que, eventualmente, pode faltar aos
estudos para serem considerados cientificamente precisos e confiáveis é
enormemente compensado pela concordância do todo.

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Uma atualização do trabalho de Bowlby é conduzida nas décadas seguintes
por renomados especialistas e publicada sob o título de “Deprivation of maternal
care: a reassessment of its effects” (1962). O mais longo artigo desse conjunto de
estudos é da Dra. Mary Ainsworth, no qual ela faz um levantamento abrangente
sobre o tema e termina propondo que inúmeros e importantes efeitos negativos
observados em adolescentes e adultos são derivados da privação da mãe em suas
diversas formas e graus (2006a). Os principais dentre eles relacionam-se aos
atrasos no desenvolvimento intelectual, social e da linguagem, às dificuldades de
adaptação com a realidade e o meio exterior, ao empobrecimento e retração
afetivos, à acentuada tendência à depressão e aos problemas de humor. Ela
acrescenta que a descontinuidade das relações, principalmente nos casos em que
ocorrem repetidas separações da mãe, tem como maior efeito a incapacidade de
estabelecer relações afetivas com outros ou consigo mesmo. Examinando as provas
acumuladas em seu trabalho, a Dra. Ainsworth conclui que:

“Não há dúvidas de que a privação da mãe nos primeiros anos


de vida exerça, de fato, um efeito prejudicial sobre o desenvolvimento,
durante a experiência de privação; [...] e de que experiências graves
de privação podem levar, em certos casos, a efeitos graves que
resistem a uma reversão. Esta conclusão é, essencialmente, a mesma
a que Bowlby chegou em 1951.“ (2006a, p. 197)

Todos esses estudos põem em evidência a teoria winnicottiana a respeito da


importância dos cuidados maternos iniciais para o desenvolvimento emocional
saudável do adulto. É com base nessas constatações que Winnicott mostra o
quanto o espírito da mãe pode ser determinante no desenvolvimento da realidade
psíquica da criança, e até caracterizar-se como um obstáculo na busca de sua
própria personalidade.
Em seu trabalho “Desenvolvimento Emocional Primitivo” de 1945, o autor
apresenta um relato sucinto sobre como vê a relação mãe-filho:

“Na relação do bebê com o seio da mãe, o bebê tem ímpetos


pulsionais e ideias predatórias. A mãe tem um seio, o poder de
produzir leite e a ideia de que gostaria de ser atacada por um bebê
faminto. Estes dois fenômenos não se relacionam até que a mãe e a
criança vivam uma experiência juntos. A mãe, sendo madura e
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fisicamente capaz, deve ser a parte que tolera e compreende, sendo
ela, portanto, quem produz uma situação que pode resultar no
primeiro vínculo estabelecido pelo bebê com um objeto externo. [...]
Poder-se-ia dizer que os bebês são construídos de modo a serem
cuidados desde o nascimento por sua própria mãe ou, na falta desta,
por uma mãe adotiva.” (2000, p. 227)

O autor acrescenta, lembrando a importância fundamental dessa relação


inicial para o desenvolvimento do bebê :

“Desde o início, mesmo quando o bebê está vivendo em um


mundo subjetivo, a saúde não pode ser descrita em termos individuais
[...] estou me referindo ao processo bidirecional em que a criança vive
num mundo subjetivo e a mãe se adapta, com o intuito de dar a cada
criança um suprimento básico da experiência da onipotência. Isso
envolve essencialmente uma relação viva.” (2005b, p. 5)

Massud Khan, psicanalista inglês e discípulo de Winnicott, vê nesses


trabalhos do autor os rudimentos dos conceitos fundamentais desenvolvidos ao
longo da sua obra e que relacionam o holding ao desenvolvimento emocional
(2010b).
Khan credita a esse modelo primário da relação mãe-filho a elaboração que
Winnicott faz da natureza e do caráter da transferência, do papel do setting
analítico e do trabalho terapêutico. É ainda no aspecto positivo dessa relação
original que ele fundamenta sua crença nas possibilidades de correção das falhas
primitivas, alcançada através de um ambiente especializado e voltada para um
novo desenvolvimento emocional.
Winnicott afirma:

“Sempre que compreendemos profundamente um paciente e


mostramos isso através de uma interpretação correta e oportuna,
estamos, de fato, oferecendo um holding ao paciente e tomando parte
de um relacionamento no qual o paciente está, em algum lugar
regredido e dependente.” (2010b, p. 261).

Seguindo o caminho proposto por Winnicott, meu estudo parte da hipótese


de que a oferta de holding, ainda que tardiamente, possibilita ao indivíduo
desenvolver-se emocionalmente no sentido de capacitá-lo a ser, vivenciando sua

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existência própria de maneira autêntica, plena e madura que, no final, pode ser
expressa como uma vida de saúde mental. Partindo dessa premissa, o processo de
análise, interpretação e reflexão sobre as cenas do filme “Onde mora o coração”
investiga as manifestações de holding na história da personagem principal Novalee
como condição necessária para que ela se desenvolva emocionalmente e se
capacite a cuidar de si e de seu bebê.
Acredito que a reflexão proporcionada por este estudo pode ajudar no
trabalho dos profissionais envolvidos na promoção da saúde mental por destacar as
condições que favorecem o cuidado satisfatório de bebês, bem como ajudar no
esclarecimento da necessidade de um ambiente seguro e de confiança para as
mulheres grávidas durante os processos de gestação, do nascimento e dos
primeiros cuidados com seus bebês. Pode, ainda, colaborar com psicólogos,
educadores, assistentes sociais, e demais profissionais de saúde na elaboração de
condutas mais favoráveis para o atendimento de adultos em situação de
vulnerabilidade emocional originada a partir da privação afetiva na infância.
Bowlby destaca que, graças à importância das descobertas para a assistência
à criança, o estudo dos efeitos da privação da mãe e de um ambiente facilitador
inicial chamou a atenção sobre a compreensão do desenvolvimento infantil,
despertando o interesse dos profissionais da saúde para essa questão fundamental.
O autor ressalta que tanto

“[...] governos, serviços sociais e público em geral devem estar


convictos de que o amor materno é tão importante para a saúde
mental do bebê e da criança pequena quanto o são as vitaminas e
proteínas para a saúde física.” (2006a, p. 232)

Como conclusão de suas extensas pesquisas, Bowlby afirma sua crença na


necessidade de se valorizar os cuidados maternos satisfatórios no período inicial da
vida da criança, em que ela está mais vulnerável aos efeitos da privação. Ele afirma
que todos os países têm pela frente a tremenda tarefa de preparar os profissionais
da saúde lançando mão dessas premissas como base de seu trabalho assistencial
(2006a).

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As palavras de Winnicott também nos servem de exemplo:

“Devido à nossa ação, nasce um novo ser, um ser humano


verdadeiro, capaz de viver uma vida independente. Minha tese é que,
na terapia, tentamos imitar o processo natural que caracteriza o
comportamento de qualquer mãe em relação à sua criança. [...] é o
par mãe-criança que pode nos ensinar os princípios básicos sobre os
quais deve fundar-se nosso trabalho terapêutico, quando estivermos
tratando de crianças cuja primeira relação com a mãe não foi boa o
suficiente, ou foi interrompida.” (2005a, p. 28).

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1. METODOLOGIA

Este estudo consiste na elaboração de uma reflexão pessoal obtida através


da articulação entre uma análise interpretativa de cenas do filme “Onde mora o
coração” e a teoria psicanalítica desenvolvida por D. W. Winnicott sobre o holding e
o desenvolvimento emocional.
A escolha em desenvolver este estudo através da análise de uma obra de
arte partiu da ideia de que as manifestações artísticas e as ofertas culturais são um
presente para o estudo do homem, pois, ao exibirem as representações que os
homens fazem da realidade, revelam a alma humana em suas mais distintas
nuances. A arte nos proporciona a oportunidade de apreciar as experiências
humanas em suas infinitas e únicas apresentações.
A esse respeito, Winnicott nos oferece uma interessante reflexão:

“Os artistas nos proporcionam algo de particularmente valioso,


pois estão constantemente engajados na criação de novas formas, que
são rompidas para serem por vez substituídas por formas mais novas.
Os artistas nos permitem permanecer vivos quando as experiências da
vida ameaçam destruir nosso sentido de uma existência real e viva.
Os artistas, melhor do que ninguém, lembram-nos de que a batalha
travada entre nossos impulsos e nosso sentido de segurança (ambos
vitais para nós), é uma batalha eterna, que se desenrola em nosso
interior por toda a extensão de nossa vida.” (2000a, p. 48).

Assim, estudar as artes implica em confrontar-se com as dinâmicas e


conflitos das vivências dos homens.
O cinema, em particular, é uma das formas artísticas que mais oferecem
oportunidade de aproximação com o real. As obras cinematográficas permitem
relacionar a teoria à prática do cotidiano da vida, possibilitando uma leitura mais
compreensiva, significativa e representativa das relações humanas.
Stanley Kubrick um dos mais respeitados cineastas da atualidade e um
artista visionário, nos revela que “A tela é um meio mágico. Tem tanto poder. Tanto
que pode reter interesse à medida que transmite emoções e humores, coisa que
nenhuma outra forma de arte pode esperar alcançar.” (2011e, p.37)

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O filme “Onde mora o coração” foi escolhido por oferecer uma aproximação
bastante efetiva com a realidade das situações do cotidiano contemporâneo,
expondo uma ampla gama sentimentos que prevalecem nas relações interpessoais,
tanto aqueles presentes nas relações familiares pontuadas pelo afastamento,
desamparo e individualismo quanto aqueles que se sobressaem nas relações de
amizade e solidariedade.
O critério adotado para selecionar as cenas partiu do pressuposto de que as
situações escolhidas permitissem verificar a correlação entre o processo de
maturação emocional de Novalee, a personagem principal, e as condições de
relacionamento que ela estabelece com as pessoas ao seu redor e com o contexto
global de sua realidade. Buscaram-se cenas que destacassem as alterações da
condição psíquica da personagem ao longo do filme de modo a oferecer uma visão
crítica de seu desenvolvimento emocional.
As cenas escolhidas mostraram-se representativas e bastante pertinentes
com o tema proposto, pois ofereceram circunstâncias adequadas para a observação
do holding como forma primordial de relacionamento entre as personagens e seu
efeito no desenvolvimento emocional da personagem principal.
Os itens 1.1. e 1.2., expostos a seguir, trazem, respectivamente, a
apresentação do filme e a sinopse.
O ítem 2. apresenta a descrição e a análise interpretativa das cenas ou
situações escolhidas. A descrição de cada cena expõe minuciosa e objetivamente as
situações significativas da história de Novalee. Nesta etapa, encontra-se o que se
pode considerar como sendo os conteúdos manifestos da saga da jovem. A análise
interpretativa das cenas, por sua vez, começa com uma apreciação criteriosa dos
conteúdos descritos anteriormente e segue através de um exame crítico dos
aspectos que relacionam os acontecimentos vivenciados pela garota e o tema
estudado, de maneira a explicitar os sentidos que se escondem e se revelam no
discurso dos personagens. Em seu artigo “Da linguagem, do símbolo e da
interpretação” (1965), Paul Ricoeur descreve que a obra de Freud tem o privilégio
de renovar não somente a psiquiatria, mas sobretudo a totalidade das produções
psíquicas relacionadas com a cultura, do sonho à religião, passando pela arte e pela
moral. Ele afirma que “É a esse título que a psicanálise pertence à cultura moderna.
É interpretando a cultura que ela a modifica. É conferindo-lhe um instrumento de
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reflexão que a marca de modo duradouro.” (1965, p.3). Nesse sentido, pode-se
considerar que o discurso humano está inscrito numa região da linguagem repleta
de significações complexas onde um outro sentido ao mesmo tempo se revela e se
oculta. Esse lugar do duplo sentido pode ser descrito como a região na qual se
inscreve a linguagem simbólica. Assim, em lugar de linguagens unívocas, o discurso
humano é carregado de expressões de duplo sentido, como se prestasse a
dissimular aquilo que pretende dizer o desejo. O exercício da interpretação é uma
inteligência do duplo sentido, é a revelação do que não é manifesto e imediato à
compreensão. A análise apresentada neste estudo parte dessa compreensão e
estabelece seu foco no exercício de desvelar o que há de simbólico e oculto na
linguagem expressa pelos personagens, tomando como referência os domínios da
teoria psicanalítica winnicottiana.
No ítem 3. é desenvolvida a discussão e elaborada a reflexão a partir da
análise das cenas. Nesta etapa, é produzido um diálogo entre a análise
interpretativa baseada na compreensão pessoal dos contextos cinematográficos e a
teoria psicanalítica. Relatos de vários outros autores, como Melanie Klein, John
Bowlby, Béatrice Dessain, Masud Khan, Elsa Dias, Conceição de Araújo e Orestes
Forlenza Neto, foram incluídos nas discussões. Suas ideias tanto contribuem para
enriquecer a compreensão das situações analisadas como auxiliam na construção
de uma releitura dos pensamentos principais de Winnicott a partir de diversas
perspectivas.
O item 4. apresenta as considerações finais em que se destacam as
impressões pessoais a respeito do processo de elaboração deste estudo e seus
desdobramentos.
Faz-se importante frisar que as considerações apresentadas neste trabalho a
respeito da infância precoce da personagem principal Novalee, e que não se
encontram explicitadas no filme, foram utilizadas como suposições e premissas
para as interpretações e as análises bem como para as posteriores discussões
referidas na teoria psicanalítica.

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1.1. FILME “ONDE MORA O CORAÇÃO” - FICHA TÉCNICA
Nome original: Where the heart is
Nome (Brasil): Onde mora o coração
Diretor: Matt Williams
Elenco: Natalie Portman, Ashley Judd, Joan Cusack
Produção: Susan Cartsonis, David McFadzean,
Patricia Whitcher, Matt Williams
Roteiro: Lowell Ganz, Babaloo Mandel
Baseado no Livro: Where The Heart Is , de
Billie Letts (romancista e educadora americana,
professora na Southeastern Oklahoma State
University)
Ano: 2000
Estúdio: Twentieth Century Fox Film
Corporation / Wind Dancer Productions

1.2. FILME “ONDE MORA O CORAÇÃO” - SINOPSE

Novalee Nation (Natalie Portman), 17 anos e grávida, nunca teve uma família
de verdade. O mais próximo que já teve disso foi com seu namorado egoísta, com
quem está viajando rumo a Califórnia. Ao chegar em Oklahoma, fazem uma parada
para ela ir ao banheiro em uma loja da rede Wal-Mart à beira da estrada. Quando
Novalee retorna ao estacionamento, não encontra o namorado, que, na verdade, a
havia abandonado. Novalee fica perambulando pelo supermercado, sem saber o
que fazer. Sozinha e sem dinheiro algum, resolve se instalar na loja. Passa a dormir
escondida nos corredores, pega suprimentos das prateleiras e usa o espaço do
supermercado como se fosse sua própria casa. Até a noite em que entra em
trabalho de parto e dá a luz à sua filha em pleno mercado. Esse fato as torna
personalidades instantâneas. Nessa nova situação, Novalee começa a fazer novos
amigos e se torna parte de uma família não convencional, que irá ajudá-la a se
transformar de uma adolescente sem-teto em uma mulher adulta e dona da própria
vida.
20
2. ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DAS CENAS DO FILME

Neste capítulo, algumas cenas do filme ou conjunto de cenas, que são


denominadas como “situações”, são descritas, analisadas e interpretadas a partir de
uma compreensão pessoal.
As primeiras cenas (Cenas 1, 2 e 3) descrevem a condição em que se
encontrava a personagem principal Novalee, no início da saga.
A seguir (Situação 4), é relatado o momento em que a jovem se refugia no
supermercado, isola-se da realidade e, lá, cria um mundo à parte, do qual é
praticamente a única personagem.
Seguem-se as cenas que prenunciam a transformação de Novalee: a Cena 5,
com a descrição do encontro significativo e marcante com Thelma, e a Cena 6, que
mostra o encontro com o fotógrafo profissional.
Depois, vem o conjunto das Cenas 7 e 8, mostrando o movimento da garota
em direção à aproximação com Thelma e seus amigos.
A Cena 9 descreve o nascimento do bebê, quando Novalee, em
circunstâncias penosas, é socorrida por uma pessoa quase desconhecida.
As Cenas 10 e 11 relatam o episódio do pós-parto no hospital seguido pelo
reencontro de Novalee com a mãe, após um longo período de afastamento.
Na Cena 12, Novalee se vê novamente abandonada pela mãe e, nesse
momento crítico, mais uma vez recebe ajuda da amiga Thelma.
As cenas seguintes (Cenas 13 a 18) marcam os momentos da nova vida de
Novalee, agora em condições de apoio e segurança fornecidas por Thelma e seu
grupo de amigos.
Em seguida, é relatado o desastre do furacão (Cena 19) e as reações de
Novalee ao terrível acontecimento (Cena 20).
As últimas cenas (Cenas 21 a 27) mostram o desfecho da saga de Novalee,
com a manifestação de seu novo modo de ser e existir no mundo, construído a
partir do conjunto de acontecimentos de sua história, passando por reviravoltas e
novas oportunidades proporcionadas pelo encontro com pessoas generosas e muito
especiais.

21
CENA 1 – NOVALEE E O NAMORADO PARTEM EM VIAGEM

DESCRIÇÃO:
Novalee, uma adolescente grávida e o namorado se despedem de amigos
antes de partir para uma viagem, enquanto ela detalha para eles sua relação
nefasta com o número “cinco”: a mãe a abandonou aos “cinco” anos para viver com
um juiz de beisebol e nunca mais voltou; após largar a escola, começa a trabalhar
em uma lanchonete até que, durante uma discussão, uma colega de trabalho corta
seu braço com uma faca o que lhe rende uma cicatriz com “cinqüenta e cinco”
pontos.
A garota constata aliviada que na placa do carro não consta o número
“cinco”. O namorado apressa a garota dizendo-lhe que são quase “cinco” horas.
Imediatamente, um desconforto ocupa a mente da garota. O carro arranca
deixando para trás um foco de fogo causado pela bituca de cigarro que o rapaz
lança pela janela e, em seguida, atinge a gasolina que vazou do carro velho.
Logo nos primeiros momentos da viagem, Novalee conta ao namorado seu
sonho de ter uma casinha com vista para o mar ou lago para que ela possa se
sentar sob um guarda-sol, tomando achocolatado, enquanto aprecia seu bebê
brincar; em seguida, lembra-se de que sua vida sempre esteve sobre duas rodas...

INTERPRETAÇÃO:
Nessa cena, o fogo parece prenunciar a sequência de acontecimentos que a
aguarda, uma situação de “incêndio” ou ainda, um “furacão” que pode destruir sua
vida, mas da qual ela não pode escapar. Principalmente, fica explícita a condição
existencial que lhe é própria: a condição de uma garota abandonada, sem amparo e
proteção, sem apego a nada, pois está sempre se mudando, sem ter “algo” fixo que
possa lhe oferecer segurança e continuidade. O único objeto de valor pessoal que
carrega consigo é a máquina fotográfica.

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CENA 2 - NA ESTRADA

DESCRIÇÃO:
Tomada pelo sono, Novalee dorme profundamente ao lado do namorado, que
se irrita e a acorda rudemente. Ela pede para fazer uma parada para ir ao banheiro.
Percebe que perdeu os sapatos pelo buraco que há sob seu banco, no carro.

INTERPRETAÇÃO:
O namorado, com sua atitude impaciente, mostra a inospitalidade com que o
ambiente se apresenta para Novalee. Parece que a mensagem que o ambiente lhe
impõe é que cuidar dela é penoso e inconveniente. O buraco no chão do carro
sugere a falta de sustentação e apoio que Novalee vivencia constantemente na
vida. Parece mesmo que seu bebê, assim como ela própria, podem deslizar pelo
buraco sem fim em direção ao ilimitado, ao nada, ao vácuo, à falta de tudo.

CENA 3 - NO ESTACIONAMENTO DO WALMART

DESCRIÇÃO:
Estacionam o carro em um supermercado Walmart à beira da estrada.
Enquanto Novalee está dentro da loja, o namorado vai embora sozinho,
abandonando-a. Ao sair do mercado, procurando pelo carro, a jovem se dá conta
de foi abandonada pelo namorado e que a única coisa que o rapaz deixou no chão
do estacionamento foi a sua velha máquina fotográfica. Novalee fica, então, por um
bom tempo tirando fotos dos chinelos que acabara de comprar.

INTERPRETAÇÃO:
Durante alguns minutos, Novalee permanece imóvel agarrada à sua máquina
fotográfica, enquanto tenta se apropriar do acontecimento.
Esta cena concretiza, para Novalee, sua queda no “poço sem fundo”. Sem
apoio, sem perspectivas e sem projeto de continuidade... Esse contexto
reapresenta a ocorrência do abandono. Essa situação é vivenciada como um
trauma, uma repetição da descontinuidade no cuidado. O que lhe resta é “reagir”
23
ao meio, pois uma “ação” criativa e transformadora fica indisponível pelo alto nível
de ansiedade gerado pelo momento aflitivo.
A jovem se imobiliza diante da situação traumática e, a partir de então,
passa a empregar um sofisticado e necessário sistema defensivo para dar conta da
situação.
De verdade, Novalee só pode contar nesse momento com um objeto externo,
a máquina fotográfica, para lhe dar conforto, pois carece de objetos bons
internalizados que lhe ofereçam sustentação na condição de desemparo.

“SITUAÇÃO” 4 - DENTRO DO MERCADO

DESCRIÇÃO:
Novalee entra no supermercado para almoçar e lá decide morar. Passa os
dias lendo e vagando pelos corredores e, durante as noites, usa um saco de dormir
retirado das prateleiras. Tudo o que pega do mercado é cuidadosamente anotado
como “compras” em um caderninho.
Novalee cria uma “casa” para si dentro do mercado. À noite, arruma sua
“cama” com travesseiro e cobertas; aciona despertadores para poder acordar antes
da entrada dos funcionários; lava-se e faz a higiene pessoal nos banheiros do
mercado; escolhe produtos das gôndolas para suas refeições; assiste aos
programas que passam nos aparelhos de televisão espalhados pela loja; segue até
mesmo uma rotina de exercícios físicos que aprende na programação de
condicionamento físico, utilizando equipamentos do próprio mercado. Segue um
regime de horários de forma a não ser notada e, consequentemente, incomodada,
pelos funcionários da loja.

INTERPRETAÇÃO:
Novalee parece se defender de uma situação altamente angustiante
adotando uma postura de alienação com a realidade exterior. Ela se fecha em seu
mundo e vive na “redoma de vidro” que criou para si, afastando-se dos perigos à
sua volta.

24
Parece que, pela impossibilidade de entrar em contato com uma ansiedade
insuportável, que é a de se reconhecer totalmente desamparada e sem apoio,
Novalee adota uma posição de onipotência, como se quisesse afirmar para si
mesma: “eu me basto neste ambiente que me proporciona as provisões necessárias
à minha sobrevivência”.
Utilizando-se da máscara da onipotência e da autossuficiência, ela atua um
falso self, uma defesa estabelecida e organizada como proteção ao seu estado de
abandono. Ela inventa um mundo fictício (em um espaço real) que a mantém
afastada da condição insegura e de desamparo na qual vivencia sua gravidez.
Desse modo, pode proteger o bebê também.
A realidade criada pela jovem no mercado é complexa e extremamente
organizada. Ela demonstra um senso de ordenação prático e bastante objetivo,
aparentando ter alcançado certa organização psíquica e temporal. Arruma e
organiza tanto seus poucos “pertences” como os horários de seu dia de modo a
criar uma rotina de tarefas diárias. No entanto, essa organização psíquica é
empregada por Novalee para se defender das ansiedades provenientes das
exigências do mundo externo.
Por outro lado, o controle sobre as tarefas cotidianas pode proporcionar a ela
e ao bebê as necessidades básicas de estabilidade e segurança, das quais
encontram-se privados pelo ambiente. A arrumação externa da “casa” sugere uma
tentativa de organizar o mundo interno. É como se, por meio da segurança da
rotina externa, ela pudesse garantir a permanência de algo bom (os objetos bons
internos) e, desse modo, vivenciar sua gravidez com mínima segurança.

CENA 5 - THELMA APRESENTA-SE À NOVALEE

DESCRIÇÃO:
Um dia, quando Novalee caminha pelo estacionamento do mercado, uma
senhora aproxima-se, apresenta-se como Thelma e diz lembrar-se da garota e do
seu nome: Ruth Ann Mott. Apesar de Novalee dizer que não é a pessoa a quem a

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senhora se refere, a mulher insiste, mostrando-se surpresa e bastante alegre
com a gravidez da garota.
Pausadamente, ela diz a Novalee: “No lar é onde começa sua história. O lar é
onde a pegam quando cai.” Em seguida, pergunta se a jovem lê a Bíblia. Com a
resposta negativa da garota, a senhora fica satisfeita e diz: “Os que lêem se
confundem. Por isso gosto de lidar com um capítulo por vez. Desse modo as
pessoas podem lidar com suas confusões pouco a pouco.”
Thelma, então, convida Novalee a seguir com ela: “Venha comigo, não vou
deixá-la ir de mãos vazias...” E continua, com voz solene: “Em nome da Associação
de Sequoyah, Oklahoma, eu te ofereço esta cesta com presentes.” Junto com a
cesta, a senhora presenteia Novalee com uma muda de castanheiro-da-índia, uma
árvore conhecida por conferir sorte a seu dono.
Despede-se, acaricia o rosto de Novalee, diz que foi muito bom ver a garota
e que ela será sempre bem vinda em sua casa. Aparentando certa desconfiança,
mas sem hesitar, Novalee aceita a mudinha.

INTERPRETAÇÃO:
Thelma, uma pessoa totalmente desconhecida, aproxima-se da jovem,
tratando-a como se fossem velhas amigas. Demonstra carinho e interesse genuíno
pela garota que acabou de conhecer. Essa atitude surpreende Novalee, tão
acostumada a ser negligenciada pelas pessoas.
Além disso, Thelma lhe presenteia com duas mensagens de grande
significância: a primeira diz respeito ao “lar”, explicando que é o lugar onde se
recebe apoio e segurança; a segunda, sobre os acontecimentos e o modo de lidar
com eles, respeitando o tempo da vida (quando afirma que “...as pessoas podem
lidar com suas confusões pouco a pouco”). Tudo isso é muito novo para Novalee
que, apesar disso, se disponibiliza a aceitar o acolhimento ofertado pela
desconhecida. Thelma, nessa circunstância, representa o ambiente acolhedor que
Novalee desconhece e, talvez por isso, a garota fica ao mesmo tempo receosa e
interessada pelo convite do ambiente.
Novalee tem que lidar com a ambiguidade da situação: algo bom se
apresenta e isso desperta nela o desejo de manter o sentimento agradável; por
outro lado, ela parece desconfiada e arredia com a atitude de Thelma, talvez
26
imaginando que esse algo bom possa vir a traí-la, restabelecendo o desamparo,
mais uma vez.
Para se distanciar desse tipo de sentimento de abandono, ela tem uma saída,
já tão conhecida sua: seu organizado sistema de defesas criado para protegê-la das
angústias assustadoras em que predominam o retraimento e a cisão com a
realidade.
Apesar do fato de Novalee ter se organizado defensivamente para enfrentar
sua dura realidade, parece que a ação amorosa de Thelma é capaz de transportá-la
para uma nova posição, resgatando um tipo de funcionamento psíquico que se
encontrava adormecido e estagnado dentro da jovem. A necessidade de ser tratada
com carinho e atenção se sobrepõe às suas defesas organizadas, abrindo uma
brecha de onde emerge a possibilidade de transformação do estado emocional em
que se encontra fixada.
E, assim, Novalee aceita a mudinha da planta e a oferta de amor do
ambiente.

CENA 6 - ENCONTRO COM O FOTÓGRAFO NO MERCADO

DESCRIÇÃO:
Novalee conhece um fotógrafo profissional que faz fotos de crianças dentro
do mercado. Ele fica seu amigo. Falam sobre a importância do nome de uma
criança.

INTERPRETAÇÃO:
Nesta cena, um novo personagem se junta como parte de sua rede de
cuidadores no futuro. A profissão do fotógrafo aproxima Novalee de um interesse
que ela já trazia consigo.
Antes de partir em viagem com o namorado, pede uma última foto com as
amigas, demonstrando ter uma ligação especial com a máquina e o registro de suas
memórias. Ao ser abandonada no supermercado, a única coisa (real) que resta e
permanece consigo, de toda sua história, o seu passado, é sua máquina fotográfica.

27
Essa relação com o fotógrafo prenuncia a descoberta do trabalho como
expressão criativa de vida, pois ela, no futuro, se torna fotógrafa profissional.

CENA 7 - NOVALEE NA BIBLIOTECA

DESCRIÇÃO:
Novalee vai à biblioteca da cidade buscar informações sobre o castanheiro-
da-índia e conhece o bibliotecário Forney.

INTERPRETAÇÃO:
Nessa cena, Novalee mostra uma disposição para a busca de algo novo para
si. Thelma possibilitou uma mudança significativa na vida de Novalee, marcada, até
recentemente, pela sobrevivência defensiva. Já no primeiro encontro entre as duas,
ela olhou Novalee como uma pessoa merecedora de atenção e cheia de potencial.
Ao “transformá-la” em cuidadora da mudinha de árvore, a senhora ressaltou a
capacidade da garota de cuidar de “algo” - de “si mesma”. Depois acolheu a
garota, convidando-a a frequentar sua casa e aproximar-se de seus amigos.
A oferta de holding feita por Thelma traz para Novalee uma nova
possibilidade de experimentar a realidade. Agora, surge algo bom que permeia suas
relações com as pessoas. Esse “objeto bom” que a realidade externa oferece pode
penetrar a casca defensiva que ela criou desde pequena, e transformar-se em um
“objeto bom internalizado”. O objeto externo deixou de ser unicamente
persecutório e ameaçador. O “objeto mau internalizado” não mais precisou ser
projetado para fora e mantido afastado por seu invólucro protetor. Novalee pode,
assim, começar a integrar os objetos externos aos internos, construindo uma nova
relação com a realidade. O objeto externo, antes tido como assustador e
terrificante e que, portanto, não permitia uma aproximação por conta de sua frágil
constituição psíquica, pode ser finalmente acessado, pois agora o ambiente passou
a oferecer apoio e sustentação.

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Na visita à biblioteca, a garota mostra um movimento de retribuição aos
acenos de aproximação de Thelma. Algo foi mobilizado dentro dela, indicando uma
possibilidade de transformação para um novo encontro consigo mesma.

CENA 8 - NOVALEE VAI À CASA DE THELMA PLANTAR A ÁRVORE

DESCRIÇÃO:
Novalee vai à casa de Thelma e conhece seu companheiro, o Sr. Sprock. Eles
a recebem calorosamente, convidam-na para lanchar e, antes da refeição, se unem
em uma reza na qual Thelma pede pela saúde da garota e de seu bebê. Depois, os
três se ajudam no plantio da árvore.

INTERPRETAÇÃO:
A cena em que plantam juntos a árvore é bastante marcante. Esse momento
traz a concretização da ideia de que a planta pode ser a representação da própria
Novalee. Ao inserir a mudinha na terra, em um meio fértil capaz de suprir as
necessidades básicas para seu crescimento, ela pode vir a desabrochar e seguir seu
caminho de crescimento.
O casal, assim como a terra para a muda da árvore, representa para a jovem
a base de nutrição e alimento básico necessário para fazer florescer seu potencial
de vida.

CENA 9 - NOVALEE DÁ À LUZ AO BEBÊ DENTRO DO MERCADO

DESCRIÇÃO:
Novalee dá a luz a seu bebê dentro do supermercado com a ajuda de Forney,
que quebra a janela de vidro do mercado e socorre Novalee e o bebê, levando-os
ao hospital.

29
INTERPRETAÇÃO:
Uma pessoa “praticamente” estranha, com quem ela mal estabeleceu
vínculo, surge para ajudá-la em um momento de crise caracterizado pelo
nascimento do bebê em um local inóspito como o supermercado. Forney se arriscou
para socorrê-la, em uma clara demonstração de respeito e, principalmente, de
amizade por Novalee.
Entretanto, Novalee tem um sentimento de ambivalência em relação ao
rapaz, pois no encontro da biblioteca, o rapaz se apresentara cheio de segredos.
Isso a perturbava por despertar um sentimento de insegurança com relação a algo
“não revelado” guardado pelo outro. Essa insegurança traz à memória a traição de
sua mãe. Ou ainda, o abandono do namorado, que ela imaginava, agora, ter sido
planejado por ele desde o início da viagem.
Nesse momento, o sentimento da garota é de reexperimentar a instabilidade
dos cuidados ambientais.

CENA 10 - NA MATERNIDADE, NOVALEE SE TORNA UMA CELEBRIDADE

DESCRIÇÃO:
Em seguida ao nascimento do bebê, Novalee passa a ser reconhecida como
uma celebridade. Torna-se a “mãe do Walmart”. Recebe dinheiro e presentes da
rede de supermercados.
Antes de perguntar sobre a filha, Novalee preocupa-se com outras questões,
como o pagamento que deve fazer ao Walmart e se o hospital ficará com seu bebê.
Somente depois de se certificar que não está em apuros, pergunta sobre seu bebê.
Lembra-se que precisa escolher um nome para a filha e decide-se por
Americus, afirmando ser um nome forte e significativo.

INTERPRETAÇÃO:
O comportamento de Novalee, tão centrado em si própria, demonstra que ela
ainda não foi capaz de estabelecer um contato total com seu bebê, mesmo depois
do nascimento. Ela continua exercendo certo isolamento defensivo, procurando

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saídas para sua sobrevivência. Suas preocupações estão voltadas para as questões
práticas e para as necessidades básicas como o pagamento do hospital.
Mais uma vez, Novalee confronta-se com o desamparo e a falta de
sustentação do ambiente. Ela não pode se “tornar mãe” sem o apoio satisfatório do
ambiente. Utiliza, novamente, o mecanismo defensivo como forma de se lidar com
a realidade, pois o ambiente é volúvel e não traz confiança. Ela alterna
sentimentos de apego e desapego com a realidade.

CENA 11 - NOVALEE CONVERSA COM A MÃE NO HOSPITAL

DESCRIÇÃO:
A mãe de Novalee chega ao hospital. Diz que enfrentou uma longa e
extenuante viagem para vê-la, pois estava preocupada com a situação da filha e da
neta. Ficou sabendo do nascimento da garotinha através de uma notícia na TV.

Quando Novalee pergunta se ainda mora com o juiz, a mãe se surpreende,


afirmando que nem se lembra mais dele. Novalee fica desapontada. A mãe zomba
da filha, dizendo que ela poderia ter tido o bebê em um supermercado mais
sofisticado que o Walmart e segue dizendo que está deveras preocupada com a
situação, porém não demonstra empatia pelos sentimentos da jovem.

Ao ficar sabendo que Novalee havia recebido quinhentos dólares do Walmart,


prontifica-se a encontrar um lugar para as três morarem. Prontamente a garota
pergunta se ela está se referindo ao fato de construir um “lar” e a mãe,
desconsiderando mais uma vez a sua inquietação, responde que, se ela quiser,
pode chamar assim, ou pode chamar de qualquer outra coisa, casa, apartamento...
Depois de pegar o dinheiro de Novalee, assegura que vem buscar as duas no
dia seguinte às nove horas da manhã e que precisa ir embora logo para poder
arranjar a casa, as fraldas e outras coisas para o bebê.

Sensibilizada pela atitude da mãe, Novalee a agradece por ter vindo ampará-
la. A mãe não dá atenção ao agradecimento da filha e se vai.

31
INTERPRETAÇÃO:

Na conversa com a mãe, Novalee se defronta com o passado e com todos os


sentimentos maus e dolorosos que a partir dele ressurgem.

A garota nota a falta de sensibilidade da mãe ao recordar o momento em que


abandonou Novalee ainda bem pequena. Percebe que a mãe não deu nenhuma
importância a um fato que, para ela, foi tremendamente marcante e significativo.
Ao se dar conta de que foi preterida por quem agora a mãe trata com tão
surpreendente descaso, a jovem realiza a insignificância que representa para ela.
Compreende, enfim, o motivo pelo qual carrega consigo o sentimento de decepção
que nutre pela mãe. Seus comentários insensíveis denotam o desprezo com que
tratou, e continua a tratar, a vida da filha e também a sua própria vida.

Nesse encontro, repetem-se as constantes falhas da mãe nos cuidados


iniciais: falta de sustentação, apoio e compromisso com a garota. Para Novalee,
esse encontro parece confirmar a falta de afeto e de confiança que sempre
permeou o relacionamento das duas.

CENA 12 - NA PORTA DO HOSPITAL, NOVALEE ESPERA A MÃE

DESCRIÇÃO:
Novalee permanece à espera da mãe durante toda a manhã, sentada em
uma cadeira de rodas com o bebê no colo. Tem o olhar perdido e sem espera
Após muita expectativa, já no início da tarde, Thelma vem ao encontro das
duas. Ela conversa e brinca com o bebê. Diz à Novalee que gostaria que elas
fossem morar em sua casa para ajudar a cuidar da mudinha plantada no quintal.
Além do mais, afirma que ela e o Sr. Sprock ficariam extremamente felizes se
pudessem cuidar das duas.
Sem dizer uma palavra, Novalee aceita e as três seguem juntas para a casa
de Thelma. Lá, ela e a filha se instalam e passam a morar definitivamente.

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INTERPRETAÇÃO:
Esta cena mostra o sentimento generalizado de desesperança que se apodera
de Novalee.
Ao se defrontar com a passagem de mais um “furacão” em sua vida, ela se
retrai. Fica sentada em uma cadeira de rodas, com o bebê recém-nascido no colo,
aguardando a ajuda e os cuidados da mãe que não se concretizam nunca. Novalee
permanece toda a manhã na mesma posição, sem ação perante uma falha
ambiental que, de alguma forma, já era esperada por ela, pois remetia às cenas
repetitivas e recorrentes do seu passado. Ela sempre experimentou a vida sem que
suas necessidades básicas de cuidado e de afeto fossem atendidas. Esse momento
só reinstala e enfatiza o estado de carência e total vulnerabilidade em que ela vive.
Novamente abandonada pela mãe, sua história se repete.
Desta vez, no entanto, a presença da amiga, oferecendo-lhe apoio, é
fundamental para que ela possa encontrar outra forma de se relacionar com a dura
realidade. Contando, agora, com o apoio e a sustentação ambiental, Novalee pode
desenvolver um sentimento de esperança em relação à uma nova realidade, desta
vez amistosa e conciliadora.
Assim como a mudinha da árvore se fixou na terra, Novalee se aloja
definitivamente no seio daquela família. Dela, recebe o atendimento às suas
necessidades de cuidados, afetos e proteção. Consegue se sentir segura, pois tem
confiança na nova família. E pode, agora, retomar seu processo de
desenvolvimento emocional.

CENA 13 - NOVALEE TIRA FOTOS COM AMERICUS E FORNEY

DESCRIÇÃO:
Novalee leva a filha para tirar fotos com o bibliotecário Forney. Usa a
máquina fotográfica que o amigo fotógrafo deu para Americus.

INTERPRETAÇÃO:
Nesta cena, Novalee parece querer agradecer ao rapaz que a ajudou no
parto. Escolhe para isso o seu objeto de maior valor e identificação, que é a sua
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velha máquina fotográfica. No ato de agradecimento, ela inclui o bebê, o que
sugere o início de uma aproximação emocional com sua filha.

CENA 14 - NOVALEE SAI PARA TRABALHAR

DESCRIÇÃO:
Novalee consegue um emprego no Walmart. Arruma-se para sair enquanto
Sr. Sprock prepara um lanche para ela levar ao trabalho. Ele e Thelma ficam em
casa cuidando do bebê.

INTERPRETAÇÃO:
A situação descreve uma cena típica de uma família generosa, em que as
pessoas cooperam umas com as outras. Novalee, agora, faz parte de um mundo
totalmente diferente e ao qual ela parece ir se ajustando, aos poucos. De qualquer
modo, faz isso com naturalidade. Participa dessa relação como se, há tempo,
fizesse parte desse grupo familiar. O ambiente passa, gradativamente, a oferecer a
sustentação necessária para que ela adquira confiança nele.

CENA 15 - NOVALEE DECIDE ESTUDAR FOTOGRAFIA

DESCRIÇÃO:
Novalee começa a estudar fotografia em livros que encontra na biblioteca do
bairro, com a ajuda de Forney. Aos poucos, aproxima-se do rapaz, formando um
laço de amizade estreita. Vão, juntos, a uma feira de antiguidades à procura de um
presente para o aniversário de seis anos de união entre Thelma e o Sr. Sprock. Lá,
encanta-se com uma antiga máquina fotográfica profissional. Compra o aparelho e
pede que seu amigo fotógrafo a recupere, pois pretende usá-la no futuro.
Envergonhada, Novalee confessa ao fotógrafo o sonho de se tornar uma fotógrafa.
Ele, bastante entusiasmado com a idéia, incentiva Novalee e se prontifica a ajudá-
la na concretização do sonho.

34
INTERPRETAÇÃO:
Novalee procura um presente para os dois amigos, indicando uma intenção
de estar sempre “presente” na vida dos dois e a necessidade de retribuir o carinho
dos amigos.
Por outro lado, o fato de ter a companhia de Forney no passeio parece deixar
Novalee à vontade para se aproximar do objeto estimado, que é representado pela
máquina fotográfica.
O sonho de se tornar fotógrafa se mostra mais uma vez, refletindo seu
desejo de se tornar autônoma, através do exercício de uma profissão.
A rede de cuidadores de Novalee se amplia, com a participação de Forney e
do fotógrafo.

CENA 16 - NOVALEE COMPRA UMA ÁRVORE DE NATAL

DESCRIÇÃO:
Novalee sai com Forney para comprar uma árvore de Natal.
Emocionada, ela conta ao amigo uma história da época em que tinha oito
anos de idade: “a mulher com quem eu morava me havia prometido uma árvore de
Natal. Mas, ao invés de cumprir o prometido, ela gastou todo o dinheiro comprando
gaitas. Percebendo que eu tinha ficado chateada, pintou uma árvore de Natal na
parede da sala de estar. Essa foi a única árvore de Natal que “tive” em toda minha
vida.” Em seguida, diz estar ansiosa para mostrar a árvore de Natal para Americus.

INTERPRETAÇÃO:
Aqui, Novalee se refere à qualidade de ambiente que teve durante a infância.
A senhora que é responsável pela menina faz uma promessa e não cumpre. Por
outro lado, a mesma mulher acena com algum cuidado ao substituir a árvore real
pela árvore pintada.
Novalee pode, finalmente, aproximar-se de sua história, pode reviver seu
passado, sem que haja um colapso defensivo. Pode também incluir sua filha na
nova história que ela começa a escrever para sua vida.
A simbologia da árvore se repete na história de Novalee.
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CENA 17 - A FAMÍLIA DE NOVALEE

DESCRIÇÃO:
Passa o tempo, Novalee continua morando com Thelma e progredindo na
profissão de fotógrafa. Americus completou três anos e ajuda Thelma a fazer uma
torta na cozinha. As duas brincam com a massa, imitando pequenos animais.
Novalee se arruma para fotografar um casamento. Forney se oferece para levá-la
ao local da festa. Novalee pergunta à Thelma se ela está bem vestida para a
ocasião e a senhora responde: “Você está linda!” Recomenda-lhe ter cuidado ao
dirigir. Novalee despede-se da filhinha, abraçando-a carinhosamente. Ela parte na
companhia de Forney.

INTERPRETAÇÃO:
Thelma age como se fosse a mãe de Novalee e de Americus. Ela estimula a
brincadeira na relação com a garotinha e apoia Novalee no exercício da profissão
que ela escolheu. Thelma transmite segurança e confiabilidade à mãe e à filha.
Todavia, a situação sugere que Novalee ainda não dá conta de cuidar
integralmente da filha, pois está no processo de tornar-se responsável pela própria
vida.

CENA 18 - NOVALEE REJEITA O AMOR DE FORNEY

DESCRIÇÃO:
Forney decide mudar para outro estado para continuar seus estudos na
universidade. Novalee fica muito triste.
Quando Forney volta à cidade, a jovem conta que estava muito chateada. O
rapaz diz que a ama e que quer muito ficar com ela e com Americus. Reticente, ela
diz que não sente interesse por ele, não o ama verdadeiramente e põe-se a
chorar. Diz que ele é somente um grande amigo, mas o melhor que teve na vida.
Novalee procura a amiga enfermeira Lexie e ela aconselha a jovem a confiar
em Forney. Diz que, pelo fato de não acreditar em si mesma, Novalee rejeita o
amor dele, que ela não é capaz de aceitar que alguém possa amá-la de verdade,
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porque fica presa no passado que sempre lhe apontou o oposto do amor e da
confiança: sua mãe abandonou-a na infância, o namorado sumiu, deixando-a
grávida e sozinha na beira da estrada... Lexie lembra Novalee de que essas atitudes
só confirmam que seus autores são pessoas “(...) imprestáveis, mas não se
referem a você, Novalee.”

INTERPRETAÇÃO:
Novalee parece não conseguir se desvencilhar de sua história passada.
Talvez por amar demais o amigo, ainda que não reconheça isso claramente, ela o
afasta, temendo uma rejeição. Novalee se defende. Desconhece a própria
capacidade de lidar com o que está por vir. O futuro sempre lhe trouxe notícias
ruins, aquelas mesmas que estavam relacionadas com o número “cinco”. Essa
previsão negativa do futuro, sempre relacionada a esse algarismo, permanecia
presente como “algo”, um objeto mau internalizado, que prendia Novalee às
experiências frustrantes do seu passado.
Na história com Forney, ela revive os momentos de insegurança e frustração
que experimentou quando pequena e não consegue se libertar para, enfim, lançar-
se a uma nova história.

CENA 19 - O FURACÃO

DESCRIÇÃO:
Certo dia, um furacão atinge a região onde vivem Novalee e seus amigos.
Thelma pede a todos que se protejam no esconderijo, enquanto sai para ajudar
uma família vizinha. Novalee aguarda ansiosa pela chegada de Thelma ao abrigo.
Após a passagem do furacão, que termina por destruir completamente a casa
em que moravam, descobre que a amiga morreu durante a tormenta.
Desolada, Novalee passa o dia a caminhar sobre os pedaços de madeira da
casa, espalhados pelo campo. Ela fotografa o que restou do seu lar e faz uma foto
especial da filha, abraçada ao ursinho de pelúcia em meio aos destroços, sob a
frondosa árvore na qual se transformou a inicialmente tímida mudinha, presente da
amiga Thelma.
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INTERPRETAÇÃO:
Outro “furacão” assola a vida de Novalee. Uma vez mais, ela se defronta com
a perda e a frustração. A amiga querida, que havia se transformado, a partir de
uma simples desconhecida, em uma pessoa de tamanha importância, se foi,
deixando-a sozinha para cuidar de si e da filha.
Ao tirar uma foto da filha sob a árvore, em meio aos destroços, Novalee
demonstra o carinho que tem pelas lembranças do lugar onde foi acolhida e amada
e ensaia uma despedida da amiga. Esses sinais indicam que ela adquiriu certa
capacidade para experimentar sentimentos depressivos de reparação. Em uma
demonstração de que é capaz de defender o que ama, ela fixa, através da imagem
congelada na câmera, a memória dos momentos bons passados com os amigos
queridos.

CENA 20 - A CONSTRUÇÃO DA NOVA CASA DE NOVALEE

DESCRIÇÃO:
Durante o processo do inventário de Thelma, Novalee fica sabendo que a
amiga a tornara sua única herdeira. Atônita, ela questiona o Sr. Sprock, pois
acredita que deveria ser ele o herdeiro de Thelma. Ele nega seu interesse pelo
dinheiro e diz que preferia ter, como herança, as lembranças dos bons momentos
que haviam passado juntos. Novalee aceita a herança.
Com a ajuda dos novos amigos, constrói uma casa para ela e Americus. A
primeira coisa que Novalee faz, na nova casa, é sentar-se à sombra de um guarda-
sol e saborear um achocolatado, enquanto observa a filha a brincar no jardim.

INTERPRETAÇÃO:
Novalee se surpreende ao se dar conta que era tão importante e querida pela
amiga.
Após a morte de Thelma, o grupo de amigos se mantém unido e todos
ajudam Novalee na construção da casa, em uma demonstração valiosa de amizade
e companheirismo.
38
A manutenção dos cuidados é fundamental para Novalee que pode, agora,
estar sob a continuidade dos cuidados. Ela pode, assim, exercer sua autonomia de
mulher adulta, responsável pela própria vida e também pela vida da filha. Essa é
uma nova experiência de vida que pode emergir a partir da sustentação, ao longo
do tempo, dos cuidados ambientais.
O acolhimento e o holding que o ambiente proporcionou à jovem nesse
momento da vida, tornou possível seu caminhar, desde a dependência para a
independência, no sentido de uma apropriação da vida madura, relativa à sua idade
adulta.
Novalee pode, enfim, desfrutar da concretização de seu sonho de garota na
nova casa.

CENA 21 - O PRÊMIO DE FOTOGRAFIA

DESCRIÇÃO:
Novalee recebe um prêmio de melhor fotografia do ano, outorgado por uma
importante empresa do setor, pela foto da filha em meio aos destroços do furacão,
sob a grande árvore. Durante a cerimônia de entrega do prêmio, ela homenageia
Thelma. Agradece pelo acolhimento, carinho e atenção que a amiga deu a ela e à
Americus, oferecendo um lar quando as duas não tinham para onde ir. Lembra que
foi a amiga quem lhe deu a mudinha da árvore, que, hoje, permanece registrada na
foto premiada.

INTERPRETAÇÃO:
A atribuição do prêmio destaca o sucesso profissional alcançado por Novalee
e, principalmente, confirma o valor de seu trabalho.
Na homenagem à amiga, Novalee faz uma reparação com seu próprio
passado. É como se ela pudesse se reconciliar com um momento crítico de seu
desenvolvimento emocional, em que, totalmente dependente dos cuidados
ambientais, ficou desamparada e só pode reagir à falha ambiental através da
estruturação psíquica defensiva e afastada da realidade.

39
Neste momento de vida, depois de ter sido acolhida e sustentada pelos
cuidados ambientais que a amiga lhe proporcionou, pode transformar sua vida e
criar uma nova realidade para si.

CENA 22 - O CASAMENTO DE NOVALEE

DESCRIÇÃO:
Forney retorna para a universidade. Novalee vai atrás dele. Diz que mentiu
ao afirmar que não o amava e que fez isso por acreditar que ele merecia alguém
melhor, pois ela não era boa o bastante para ele. Com um abraço carinhoso, Forney
declara-se, afirmando que ninguém jamais poderia ser melhor para ele. Os dois se
beijam.
Forney e Novalee, felizes, se casam em uma cerimônia em uma capela
improvisada dentro do Walmart, tendo um grande número de amigos como
convidados.

INTERPRETAÇÃO:
Finalmente, Novalee é capaz de reconhecer o amor que sente por Forney.
Com o casamento, mostra que, agora, é capaz de se envolver em um
relacionamento e criar, junto com seu amor e sua filhinha, uma nova história para
todos.

40
3. DISCUSSÃO SOBRE A INTERPRETAÇÃO DO FILME

Três grandes momentos, descritos a seguir como Primeiro, Segundo e


Terceiro Momentos, foram selecionados para apresentar a saga da personagem
principal Novalee.
O Primeiro Momento apresenta Novalee como uma menininha abandonada
pela mãe que passa a viver desamparada, sem o auxílio de familiares.
No Segundo Momento, Novalee é uma jovem grávida que é novamente
abandonada, desta vez pelo namorado, em um supermercado à beira da estrada.
Ela se defende psiquicamente, criando um mundo ilusório. Nele, se protege das
agressões da realidade externa, como se estivesse embalada por um invólucro
protetor.
O Terceiro Momento diz respeito ao conjunto de situações em que Novalee,
sustentada pelo relacionamento que estabelece com a senhora Thelma, torna-se
capaz de reconstruir sua história, revertendo as premissas negativas que ela
mesma sempre fazia para si, a partir das relações com o algarismo “cinco”. Ela,
enfim, constrói sua casa, desenvolve-se profissionalmente, casa-se. Consegue
cuidar de si e de sua filhinha. Apropria-se da sua vida e se lança para a realização
de seu ser, que é próprio seu.

3.1 O PRIMEIRO MOMENTO

Em termos de desenvolvimento emocional, a condição de “desamparo” pode


ser destacada como a marca fundamental do início da vida da garotinha Novalee. A
mãe despreza a filha pequena. A menina é abandonada, sem nenhum
esclarecimento ou referência sobre os motivos da partida da mãe, em um momento
em que a importância que ela dá a mãe e a seus estados de espírito é
extremamente significativa. A menina sente-se desvalorizada e insegura. Sua vida

41
fica marcada pela insegurança, rejeição e, principalmente, pela privação dos
cuidados maternos, pois a mãe jamais retorna.
Sob essa perspectiva, pode-se pensar que Novalee, já neste momento inicial,
se depara com uma condição amplamente desfavorável para o desenvolvimento
emocional saudável. Ela foi privada dos primeiros momentos de cuidados
adequados que constituiriam a fundação a partir da qual seu potencial poderia se
desenvolver.
Pode-se considerar que Novalee tenha imaginado a idade de “cinco” anos
como data em que a mãe a abandonou, de modo a concretizar, em um dado de
realidade, uma sensação de angústia que passa a acompanhá-la,
permanentemente.
No momento do abandono, as ansiedades primárias foram de tal ordem
exageradas e impensáveis que a obrigaram a se defender, através do fantasiar,
para que pudesse continuar a sobreviver. Seu ego, tão indefeso e frágil pela
ausência do suporte do ego materno, não suportou a agressão vinda do exterior.
Isso provocou tanto a fuga para a fantasia e para as explicações mágicas quanto
uma cisão na forma de a menina se relacionar com a realidade. Tal qual aparece na
superstição que ela criou em torno do numeral “cinco”.
A menina Novalee é uma criança marcada pelas falhas nos cuidados
ambientais iniciais. Houve o que se pode ser considerado como a passagem de um
“furacão”, que deixou importantes rastros, afetando significativamente a sua
possibilidade de adquirir as bases para a saúde mental.
Em sua teoria do desenvolvimento emocional, Winnicott explica que

“A saúde mental do ser humano tem suas bases assentadas na


primeira infância pela mãe, que fornece um meio ambiente onde os
processos complexos mas essenciais no eu do bebê conseguem
completar-se. [...] Em cada criança ocorrem processos deveras
complexos, e a falta de progresso, ou o fato de o processo não ter
chegado a completar-se, predispõe o indivíduo ao distúrbio mental ou
ao colapso. A solução desses processos cria a base da saúde mental.”
(2000, p. 236)

A teoria de Winnicott vem contribuir com um novo olhar para o


desenvolvimento emocional do indivíduo ao lançar luz sobre as condições

42
ambientais que cercam a criança pequena, contrariamente à psicanálise tradicional
que, até então, se preocupava primordialmente com as necessidades instintivas do
ego e do id (2000).
As pesquisas iniciais de Freud estabeleceram uma relação entre as
psiconeuroses e a infância do paciente, que abrigava conflitos intoleráveis. Os
conteúdos conflitivos eram reprimidos pelo paciente através de mecanismos de
defesa que favoreciam o surgimento de sintomas, prejudicando, ou mesmo
interrompendo, o desenvolvimento emocional do indivíduo (2006b).
Quando se constatou que os conflitos associados às experiências instintivas
também eram observados em análises de crianças pequenas, levantaram-se
questionamentos sobre quais seriam as influências das vivências infantis mais
precoces na saúde mental dos adultos. Começou-se a pensar até que ponto as
psicoses poderiam se referir às condições de vida experimentadas pelos bebês no
início da vida. Tais constatações levaram à construção gradativa de uma teoria
extremamente complexa do desenvolvimento emocional do ser humano que parte
do princípio de que o distúrbio mental tem uma base psicológica. Foi possível
estabelecer, a partir da clínica infantil, uma vinculação entre o desenvolvimento das
crianças e os fenômenos psiquiátricos bem como entre os cuidados recebidos na
infância precoce e o cuidado aos pacientes mentais (2000).
É nesse contexto que Winnicott formula sua teoria, preocupando-se
primeiramente com as condições ambientais iniciais que permitem o
desenvolvimento amplamente complexo que se dá em cada criança, a partir da
base hereditária com que ela nasce. Ele parte da tese aceita por todos de que há
uma continuidade no desenvolvimento emocional do indivíduo ao longo da vida, de
modo que, nesse processo, a pessoa pode estar sob ameaça tanto de perigos
internos, representados pela base instintiva, como de perigos externos, relativos às
falhas ambientais (2000).
Em suas observações de crianças na pediatria e na clínica psicanalítica de
adultos, verificou que quanto mais se recua no exame do crescimento individual,
mais importância deve ser dada ao fator ambiental. Essa constatação permite a
aceitação do princípio de que a criança parte de uma condição de dependência total
rumo à independência ou autonomia (2005a).

43
Devido à extrema dependência emocional do bebê, seu desenvolvimento
assim como toda sua vida só podem ser estudados tendo em consideração os
cuidados que lhe são ministrados no início através de um “suprimento ambiental
satisfatório”. Por “ambiente satisfatório” entende-se aquele que facilita a realização
das potencialidades herdadas de modo que o desenvolvimento se dê de acordo com
elas. Começa com um alto grau de adaptação às necessidades individuais do bebê,
que geralmente é provido pela mãe capaz de estar em um estado tal de
identificação com a criança que pode lhe oferecer uma porção básica de cuidados
especiais, permitindo-lhe viver uma experiência de onipotência. Isso é possível
através de um processo de inter-relação bidirecional vivo que ocorre entre os dois,
em que a mãe se adapta constantemente ao mundo subjetivo do bebê. A esse
estado da mãe, que se inicia no período final da gravidez e avança até os primeiros
meses de vida do bebê, Winnicott dá o nome de “preocupação materna primária”.
(2000).
Neste momento, é importante detalhar a caracterização que o autor faz para
a denominação “ambiente”, pois, na perspectiva de valorização do ambiente em
que o autor apresenta de sua teoria do desenvolvimento emocional, esse é um
conceito-chave.
Araújo lembra que Winnicott, ao longo de todo sua obra, rejeitou o uso de
conceitos metapsicológicos por acreditar que eles raramente conseguiam definir o
que pretendiam. Preferia fazer usos de palavras coloquiais sempre que estivessem
adequadas ao seu pensamento. A autora explica que Winnicott fazia uso da palavra
“ambiente” para se referir às condições físicas e psicológicas necessárias ao
amadurecimento emocional do ser humano (2011a). Ela acrescenta que

“[...] a partir do momento em que Winnicott passa a pensar o


indivíduo movido por uma urgência de viver e, portanto, por uma
necessidade de continuar a ser ao invés de buscar um objeto que lhe
permita descarregar sua tensão até um nível tolerável, como na teoria
freudiana, a busca desse indivíduo passa a ser pensada como a busca
de um ambiente que lhe possibilite continuar sendo. A compreensão
das questões psíquicas envolvidas no desenvolvimento do ser humano
deixa de ser buscada na cama da mãe para ser alcançada no colo da
mãe.” (2011a, p.214)

44
É a partir dessa conceituação que Winnicott descreve o “ambiente
satisfatório” como o “ambiente facilitador” que permite o desenvolvimento das
potencialidades herdadas. Esse ambiente é, no início, absolutamente e depois
relativamente importante, pois uma das características essenciais do ambiente
facilitador é sua adaptabilidade. Na fase de dependência absoluta, há uma fusão da
mãe com o bebê (formando o par mãe-bebê), estabelecendo uma organização
ambiente-indivíduo da qual emergem as condições físicas e psicológicas capazes de
favorecer o amadurecimento da criança. Se esse ambiente não for suficientemente
bom, pode enfraquecer ou até mesmo interromper o desenvolvimento de seus
recursos potenciais.
Outra característica importante do ambiente facilitador é o fato de ser
sempre dinâmico, sendo capaz de se adaptar, desadaptar e se readaptar às
necessidades variáveis da criança, à medida que ela cresce.
Além de ser adaptável, o ambiente facilitador tem uma qualidade humana,
que leva em conta o processo “vivo” de relacionamento entre os seres humanos. Aí
encontra-se incluída a imperfeição e a falibilidade, características da condição
humana.
Araújo explica que as imperfeições próprias da adaptação humana às
necessidades é uma característica essencial do meio “ambiente facilitador
satisfatório” (2011a, p. 216). Segundo a autora,

“[...] parte-se do pressuposto de que houve um ambiente


facilitador satisfatório, como condição sine qua non para o início do
crescimento e do desenvolvimento individuais. Há genes que
determinam padrões e tendências herdadas para o crescimento e a
aquisição da maturidade; não há crescimento emocional, no entanto, a
não ser em relação à provisão ambiental, que precisa ser satisfatória.
Pode-se notar que a palavra “perfeito” não entra nessa frase. A
perfeição pertence às máquinas, e as imperfeições próprias da
adaptação humana às necessidades constituem uma característica
essencial do meio ambiente facilitador.” (2011a, p. 216)

Winnicott explica que a “mãe satisfatória” ou “mãe devotada comum” fornece


os cuidados com elevado grau de adaptação ao bebê. Isto tem a ver com a entrada
na mãe no estado de “preocupação materna primária” que, ao se identificar com
45
seu bebê, praticamente sabe como ele se sente, de tal forma que consegue se
adaptar às suas necessidades, satisfazendo-as continuamente (2000).
O autor ressalta que é através dessa experiência temporal da continuidade
dos cuidados que o bebê pode realizar seu desenvolvimento, dando início à
condição de saúde mental.
Dessa forma, a mãe está estabelecendo as bases da saúde mental de seu
filho a partir de uma porção básica de cuidados especiais à qual Winnicott dá o
nome de holding. O termo holding, a “sustentação” ou “segurar satisfatório” se
relaciona com o segurar físico, desde o período da vida intra-uterina até
gradualmente adquirir o significado de globalidade do cuidado adaptativo em
relação à infância, incluindo as mais variadas formas de que a mãe se utiliza para
lidar com seu bebê. (2007b).
Sobre o processo de holding, Winnicott detalha:

“O holding protege da agressão fisiológica;


leva em conta a sensibilidade cutânea do lactente - tato,
temperatura, sensibilidade auditiva, sensibilidade visual, sensibilidade
à queda (ação da gravidade) e a falta de conhecimento do lactente da
existência de qualquer outra coisa que não seja ele mesmo;
inclui a rotina completa do cuidado dia e noite, e não é o
mesmo que com dois lactentes porque é parte do lactente, e dois
lactentes nunca são iguais;
segue também as mudanças instantâneas do dia-a-dia que
azem parte do crescimento e do desenvolvimento do lactente, tanto
físico como psicológico.” (2007b, p.48)

A palavra “sustentação” (holding) abrange tudo o que pode ser descrito como
fenômeno de comunicação entre uma mãe e seu bebê, tanto em termos físicos
quanto em termos de expressões vivenciais que podem ser transmitidas pelo
compartilhamento de sentimentos e emoções.
No caso da garotinha Novalee, podemos afirmar que seu ambiente inicial, no
sentido do amparo e da sustentação, foi bastante insuficiente. Ela foi afastada de
todo tipo de comunicação com a mãe que, por sua vez, esteve incapacitada de lhe
fornecer a porção de cuidados necessários que podem ser descritos pelo termo
holding. Ocorreu uma interrupção total dos contatos com a mãe, podendo mesmo
se afirmar que nunca tenha existido uma sintonia entre elas que pudesse
46
caracterizar a instituição da dupla mãe-bebê, nos moldes propostos por Winnicott.
Quando o início é ruim, a continuação será necessariamente mais difícil. Ou seja, o
fato de a mãe ter abandonado a menina demonstra sua dificuldade de se identificar
com seu bebê e, conseqüentemente, de abdicar momentaneamente de si para se
dedicar aos cuidados da filha.
A mãe é essencial para o bebê, em vários sentidos. Os aspectos inerentes ao
ambiente satisfatório primitivo partem do princípio de que o ambiente “é” a mãe e
seu papel nesse processo é vital, pois é a instância que responde e “sustenta a
dependência do bebê”. As características principais da mãe, nesse momento do
desenvolvimento do bebê são (2011a):
a. simplesmente existir;
b. amar o bebê de maneira que ele possa compreender, ou seja, fornecendo-
lhe cuidados físicos (contato, temperatura corporal, movimento, quietude etc.);
c. fornecer-lhe condições de viver a solidão essencial e, mais tarde, a
oscilação entre os estados tranquilos e excitados;
d. fornecer alimento adequado em tempo também adequado;
e. deixar que o bebê domine, inicialmente (ou seja, tudo o que possa ocorrer
dentro do âmbito de sua onipotência);
f. apresentar a ele o mundo externo, comedidamente, de acordo com a
capacidade de assimilá-lo;
g. proteger o bebê de coincidências e choques, ou seja, tornar-lhe os eventos
minimamente previsíveis;
h. e fornecer-lhe estabilidade, como uma continuidade de cuidados que
permita ao bebê ir sentindo a “continuidade” pessoal e interna.
A mãe respeita o tempo do bebê e não apressa seu desenvolvimento, por
acreditar que ele é um ser humano total desde o início e, portanto, tem seus
direitos próprios.
Dessa forma, permite que ele se aproprie do tempo e se expresse na
dimensão da temporalidade tal qual sentida por sua subjetividade. Ou seja, o
processo de “continuidade” dos cuidados também engloba a diminuição da
adaptação da mãe de acordo com a crescente necessidade que o bebê tem de
experimentar reações à frustração. A mãe “sabe” as circunstâncias em que pode
deixar o bebê esperando e retardar sua função inicial de imediata satisfação de
47
forma tal que o bebê possa sentir-se bastante incomodado, em lugar de ficar
traumatizado pela incapacidade da mãe. (2005b).
Talvez Novalee possa ter suportado, logo no início, um ambiente
desfavorável por um período limitado de tempo. No entanto, a experiência do
abandono é demasiado traumática e desestabilizadora a ponto de causar a
interrupção dos processos de desenvolvimento no tempo, dando origem a uma
reação exagerada de desorganização psíquica contra a agressão ambiental. Sem
noção do que a aguardava, a menina passa pela intolerável experiência de sofrer o
efeito de algo sem ter a mínima ideia de quando aquilo tudo iria terminar. O
abandono produz uma ruptura intensamente significativa para Novalee, de modo
que as sensações provocadas pelas intrusões ambientais e também de suas
próprias reações tornam-se fatores adversos ao desenvolvimento do ego (2000).
Segundo Winnicott,

“Quando o par mãe-filho funciona bem, o ego da criança é, de


fato, muito forte, pois é apoiado pela mãe em todos os aspectos. O
ego reforçado (e, portanto, forte) da criança é desde muito cedo
capaz de organizar defesas e desenvolver padrões pessoais
fortemente marcados por tendências hereditárias.” (2005a, p. 24).

Como Novalee não pode contar com o apoio do ego da mãe (inicialmente,
deve ter sido fraco ou intermitente para depois, com o abandono, tornar-se
inexistente), ela não pode crescer em um caminho pessoal. Seu desenvolvimento
passou, então, a estar mais relacionado com uma sucessão de reações a colapsos
ambientais do que com suas necessidades internas e seus fatores genéticos.
O autor ensina que a “mãe suficientemente boa”, ou seja, aquela que foi
capaz de entrar no estado de “preocupação materna primária”, relaciona-se com
seu bebê, assumindo várias tarefas que podem ser expressas sobretudo pelas
funções de holding, manipulação e apresentação de objetos (2005a).
O holding refere-se à toda provisão ambiental anterior à possibilidade do

“viver com”, numa alusão à possibilidade das relações de objeto com a realidade
exterior. Está relacionado com a fase de “dependência absoluta” do bebê, na qual a
capacidade da mãe de identificar-se com seu bebê é primordial para a sua
sobrevivência. Nessa fase, enquanto o holding satisfatório proporciona segurança e
48
sustentação à criança, colocando-a na direção do estabelecimento da confiança no
ambiente, e que se traduz, gradualmente, em uma confiança em si próprio, o
holding deficiente diz respeito às condições ambientais que produzem extrema
aflição na criança, dando origem às ansiedades extremas relacionadas à sensação
de despedaçamento, à sensação de estar caindo em um poço sem fundo, e de um
sentimento de que a realidade exterior não pode dar continência e conforto à
realidade interna (2005a).
Essa é a sensação de Novalee no momento em que percebe que perdeu seus
sapatos (seu chão, sua base, sua segurança) pelo buraco do carro. É como se ela
fosse cair em um poço sem fundo... Ela não pode sequer contar com o conforto
interno, pois os cuidados na infância precoce não se sustentaram no tempo,
provocando uma sensação de ansiedade que a mantém sempre sem apoio, como se
ela estivesse suspensa no ar, diante de uma sensação de iminente queda livre em
direção ao vazio, ao nada. Como se ela estivesse em pedaços em um espaço sem
fronteiras ou limites para conter sua existência. Parece que o pior está sempre à
espreita.
O despencar em um buraco sem fim em direção ao vazio também se
relaciona com a falta de holding no sentido do segurar/sustentar físico. O vazio
como expressão da sensação de nada acontecendo, quando algo poderia ter
acontecido. Esse algo refere-se ao processo que é efetivado quando a mãe leva seu
bebê ao colo e o sustenta no tempo.
A manipulação (handling) do bebê pela mãe favorece a formação de uma
“integração psicossomática” na criança, ou seja, de uma inserção da psique no
soma. A base dessa inserção é a ligação das experiências funcionais motoras e
sensoriais com a sua vivência de ser uma pessoa. É o que se pode chamar de
estado unitário, que tem a ver com a produção de um esquema corporal em que se
delimita a experiência do “eu” interior com o “eu” exterior. Tanto em nível físico
como em outros mais sutis, a mãe ou o ambiente conservam as partes do corpo do
bebê, inicialmente vivenciadas como separadas, para que elas se juntem,
constituindo uma união corporal (2005a).
Deste modo, passa a fazer sentido para a criança o relacionamento com a
realidade exterior, pois o externo se forma em oposição à sua realidade psíquica
interna ou pessoal, ou ainda o “eu” próprio ou à união corporal adquirida (2007b).
49
O acariciar, o tocar, o segurar, enfim, todo o manuseio (handling) da mãe com o
bebê vai, aos poucos, favorecendo a criação desse corpo que passa a ser percebido
pelo bebê como portador de suas sensações e sentimentos, em diferenciação com a
mãe que cuida dele. E que não é ele, é o “outro”. A localização do “eu” dentro do
próprio corpo torna possível para o bebê adquirir o senso de “personalização”,
através do qual ele se torna capaz de ligar as experiências somáticas ao interior de
seu corpo físico.
Tudo isso contribui para a formação do sentido do “real” em oposição ao
“irreal”, no que pode ser descrito como o processo de “realização” (2005a). A partir
daí, podem ser vislumbradas as primeiras relações de objeto, em que

“[...] o lactente muda de um relacionamento com um objeto


subjetivamente concebido para uma relação com um objeto
objetivamente percebido. Essa mudança está intimamente ligada com
a mudança do lactente de ser fundido com a mãe para ser separado
dela, se relacionando a ela como separada e como não eu.” (Winnicott,
2007b, p.45).

Da possibilidade de lidar com objetos inteiros, vindos do exterior, nasce o


reconhecimento da mãe como pessoa inteira com quem o bebê se relaciona e da
qual é dependente. A partir dessa constatação da dependência, surge o germe da
necessidade da independência (2005a).
Nos primeiros estágios, a dependência é absoluta sobretudo pelo fato de que
o bebê não tem consciência de sua dependência. O bebê está totalmente subjugado
à mãe, podendo se beneficiar ou sofrer desconfortos ou distúrbios como
conseqüência de suas ações. Gradualmente, a “dependência absoluta” vai se
tornando “dependência relativa”: o sentimento de dependência da mãe já é
reconhecida pela criança que, por conseqüência, pode comunicar ao ambiente sua
necessidade de atenção (2005a).
A progressão da dependência absoluta à dependência relativa, e desta à
“independência”, não está dada apenas pelas tendências inatas da criança. O
crescimento e o processo maturacional só pode ocorrer se a mãe é capaz de se
identificar e se adaptar progressiva e sensivelmente às necessidades da criança de
modo a capacitá-la a viver sem os cuidados específicos do início.

50
Como esclarece Winnicott, a independência ou autonomia é um processo que

“ [...] é conseguido através do acúmulo de recordações do


cuidado, da projeção de necessidades pessoais e da introjeção de
detalhes do cuidado, com o desenvolvimento da confiança no meio.”
(2007b, p.46)

A falha ambiental na infância precoce da garotinha Novalee agora se


apresenta como uma dificuldade que ela tem de ser independente, de se sentir
segura consigo mesma. Já moça, ainda continua dependente do ambiente,
representado inicialmente pelo namorado, para se sustentar como uma pessoa
total. Não pode alcançar a autonomia por conta da falha do ambiente inicial que se
mantém, impedindo-a de seguir adiante e dar conta da própria vida. A jovem não
experimentou os cuidados que satisfizessem suas necessidades primitivas,
tampouco se beneficiou da adaptação materna e de sua continuidade ao longo do
tempo. Bem ao contrário, foi exposta, prematuramente, a um ambiente caótico,
sem fronteiras, sem segurança.
Lembrando que, em um ambiente que não oferece um segurar satisfatório, o
bebê não é capaz de realizar o desenvolvimento pessoal de acordo com sua
hereditariedade, toma-se o resultado, no caso de Novalee, como uma
descontinuidade da existência que não pode se transformar num senso de existir,
num senso de self, e, ainda menos, num caminhar da dependência em direção à
autonomia. Privada de sustentação, a garotinha reagiu ao ambiente, estabelecendo
uma forma de existir defensiva e bastante precária.
Efetivamente, Novalee apresenta um sentido de carência em relação ao
ambiente dos cuidados iniciais. Winnicott elucida:

“A criança carente é uma pessoa doente, uma pessoa que viveu


uma experiência traumática em sua história passada e que
desenvolveu um modo pessoal de combater as ansiedades assim
criadas. “ (2005a, p.199)

51
3.2 SEGUNDO MOMENTO

A condição de desamparo e carência, como condição de existência que


acompanha Novalee, se reconfigura na cena em que é abandonada pelo namorado
na beira da estrada. A jovem tem que dar conta de outro “furacão” que arrasa sua
vida.
A mãe de Novalee foi deficiente, no sentido de “mãe não suficientemente
boa” e não complementou o sentimento de onipotência de sua filha quando era um
bebê. Falhou repetidamente em satisfazer seus gestos espontâneos, fonte dos
impulsos genuínos e expressão do self verdadeiro. A mãe substitui o gesto
espontâneo de Novalee pelos seus próprios, invadindo e submetendo o bebê aos
seus comportamentos. Esta submissão, validada pela criança, unida à inabilidade
da mãe de Novalee em sentir e adaptar-se às suas necessidades, dão origem ao
falso self da menina. Pois o self verdadeiro não pode se expressar sem a
continuidade do sucesso da mãe em responder ao gesto espontâneo do bebê
(2007b).
Winnicott ensina que, ao pesquisar o falso self, deparou-se com as
observações da época que o bebê estabelece as primeiras relações de objeto. Ele
diz:
“Neste estágio, o lactente está não-integrado na maior parte do
tempo, e nunca completamente integrado; a coesão dos vários
elementos sensório-motores resulta do fato de que a mãe envolve o
lactente, às vezes fisicamente, e de modo contínuo simbolicamente.
Periodicamente um gesto do lactente expressa um impulso
espontâneo; a fonte do gesto é o self verdadeiro, e esse gesto indica a
existência de um self verdadeiro em potencial.” (2007b, p.132)

Caso a mãe seja suficientemente boa, e responda a este sentimento de


onipotência infantil revelada pelo gesto sensório-motor, o self verdadeiro pode se
tornar uma realidade viva.
Se a mãe permite que o bebê expresse um gesto espontâneo, sem criar ela
mesma um anteparo para essa ação, o bebê pode viver e se deleitar com a
experiência da onipotência. Deixando que ele seja levado por essa sensação
mágica, permite que ele acredite na realidade externa que para ele se manifesta.
52
Gradualmente, a criança pode renunciar à onipotência, pois os gestos verdadeiros
coincidem com a realidade do mundo. Ele pode expressar o self verdadeiro,
espontaneamente. A criança se beneficia da ilusão da onipotência para criar e
controlar a realidade, passando, gradativamente, a reconhecer essa ilusão e
podendo expressar-se através do imaginar e do brincar usando as simbolizações.
“Isto é a base do símbolo que, de início é, ao mesmo tempo, o objeto externo
criado e finalmente catexizado” (Winnicott, 2007b, p.133).
Na passagem de novo “furacão”, Novalee só pode reagir às circunstâncias
ambientais agressivas através da atuação de um falso self, submetendo-se às
exigências do meio. É como se ela escolhesse a sobrevivência, ainda que agindo
por um falso self, ante um colapso total.
A partir do momento em que se vê abandonada no supermercado, a jovem
passa a atuar prioritariamente através do falso self, como uma defesa organizada
contra o que seria inimaginável, pois caso expressasse seu self verdadeiro, iria
vivenciar o aniquilamento total. Seu comportamento dentro do supermercado
sugere que ela precisou negar a realidade externa, para dar conta das ansiedades
que essa realidade lhe apresenta.
O falso self tem essa função extremamente positiva, que é a de ocultar e
proteger o self verdadeiro, quando este se sente muito ameaçado e na possibilidade
de se destruir por completo. O self verdadeiro permanece tão bem oculto que a
espontaneidade deixa de existir.
A psicanalista Melanie Klein conceitua as defesas maníacas referindo-se a
esse sofisticado mecanismo psíquico que se utiliza da onipotência e da negação
como forma de anular, pela cura, todos os sofrimentos. Há, nas defesas maníacas,
uma tentativa de restringir o desespero para garantir a integridade e a
sobrevivência. Além disso, elas afastam os ataques agressivos do exterior, negando
magicamente os estragos que podem causar (2010a).
Utilizando a negação da realidade, Novalee constrói um mundo fictício para
viver seu cotidiano dentro do mercado. Ela organiza seu dia, estabelecendo uma
relação mecânica com as tarefas necessárias para sua sobrevivência. Dá
encaminhamento prático para as questões básicas como as refeições, o sono, a
higiene pessoal, porém não se deixa afetar pela condição em que vive. Tampouco
parece se dar conta de que está grávida e precisa se cuidar e buscar ajuda para o
53
momento do nascimento do bebê. Novalee separa as questões de sobrevivência das
questões dos sentimentos. A jovem demonstra utilizar um funcionamento psíquico
que pode ser interpretado como uma atuação típica da posição esquizo-paranóide.
A psicanalista Hanna Segal, seguidora dos ensinamentos de Melanie Klein,
ensina como a autora descreve essa posição:

“[...] bastante cedo, o ego do bebê tem uma relação com dois
objetos: o objeto primário, o seio, é, nesse estádio, dividido (split) em
duas partes: o seio ideal e o seio persecutório. A fantasia do objeto
ideal funde-se com as experiências gratificantes de amor e
alimentação recebidas da mãe externa real [...] ao passo que a
fantasia de perseguição funde-se com experiências reais de privação e
sofrimento, as quais são atribuídas aos objetos persecutórios. A
gratificação, portanto, não apenas preenche a necessidade de
conforto, amor e nutrição, mas também é necessária para manter
encurralada a perseguição terrificante; e a privação se torna não
apenas uma falta de gratificação, mas também uma ameaça de
aniquilação por perseguidores.” (1975, p. 38)

Novalee, na experiência recorrente de abandono, revive as ansiedades


primitivas, adotando um modelo de funcionamento típico da posição esquizo-
paranóide, em que o estado do ego é caracterizado pela divisão (splitting) e as
ansiedades predominantes são paranóides. Na divisão dos conteúdos psíquicos, há
uma intenção de manter introjetados os objetos bons, enquanto os objetos maus
são projetados para o exterior, numa tentativa de mantê-los sob controle através
da negação mágica onipotente.
Novalee não pode contar com a gratificação dos objetos bons introjetados,
uma vez que foi privada das experiências com a “mãe boa” que pudessem lhe
fornecer suporte para a integração de objetos no ego inicial. Ela se relaciona com
“objetos parciais”, de maneira cindida, dado que a relação de “objeto total” não
pode se acessada devido às exageradas exigências que o ambiente lhe impôs. Seu
ego frágil se fragmentou perante a iminente experiência de aniquilamento. Desse
modo, pode-se dizer que Novalee usa a natureza defensiva do falso self para
ocultar e proteger o self verdadeiro.

54
Em uma analogia com o conceito psicanalítico, parece tratar-se da mesma
função que os sintomas têm para a pessoa doente.
No conceito de “trauma” de Winnicott encontra-se a base dessa compreensão
do emprego do falso self como modo de funcionamento psíquico frente à recorrente
situação de abandono que a jovem enfrenta.
O autor explica que o “trauma” não é conseqüência de um único
acontecimento, mas é o resultado de uma seqüência repetitiva de falhas ambientais
da mãe no atendimento das necessidades do bebê, que ocorrem em um momento
no qual ele não dispõe de ego estruturado para compreender e representar o que
está acontecendo. Isso desperta angústias de aniquilação, provocando reações que
interrompem a continuidade do ser. (2007b).
O “trauma”, nesse contexto, é apontado por Winnicott como a condição de

“[...] quebra de continuidade na existência do indivíduo. É


somente sobre uma continuidade no existir que o sentido do self, de
se sentir real, de ser, pode finalmente vir a se estabelecer como uma
característica da personalidade do indivíduo.” (2005b, p.4)

Forlenza Neto, partindo do pensamento winnicottiano, refere-se ao emprego


do falso self como reação defensiva arcaica àquele “trauma” que ocorreu no
momento em que o bebê não tinha personalidade construída para empregar
defesas mais sofisticadas. Ele diz:

“Em falhas ambientais muito duradouras ou recorrentes, os


bebês vão experimentar angústias arcaicas impensáveis ou confusões
agudas, que se afiguram como traumas quando paralisam o
desenvolvimento.” (2011d, p.233)

A repetição da experiência de desamparo vivenciada por Novalee chama a


atenção para a importância do fator tempo na origem da suspensão da
continuidade do ser. Forlenza Neto lembra, com bastante adequação, da expressão
“trauma cumulativo” usada por Masud Khan para enfatizar o fator “tempo”, no que
se refere tanto à duração como ao caráter de repetição das falhas ambientais.
(2011d). A possibilidade do exercício da continuidade do ser depende da
sustentação, no “tempo”, de condições ambientais adequadas. O seu oposto leva à

55
suspensão dessa possibilidade, dando origem ao “reagir” à realidade em
contraponto ao “agir” criativo e transformador frente à mesma realidade.
A jovem, perante a repetição da falha ambiental, reage à realidade,
empregando o falso self como defesa psíquica dissociativa, que, por sua vez,
mantém protegido o seu self verdadeiro. Nessa condição, Novalee não pode sequer
entrar em contato com a maternidade e promover o cuidado de si e do bebê que
está para nascer. Permanece dentro do mercado, isolada em sua realidade
fantástica, como se (sobre)vivesse, momento a momento, uma experiência
superficial de vida, sem estabelecer relações emocionais com o ambiente e, ainda
mais, sem ser afetada por ele.
É importante lembrar, no entanto, o que Winnicott discorre sobre o valor do
falso self para o indivíduo. Neste momento da vida de Novalee, o falso self aparece
como uma organização que também tem uma finalidade positiva que é a
preservação do indivíduo a despeito de condições ambientais anormais. Protegido
pelo falso self, o self verdadeiro é percebido como potencial e pode manter sua vida
secreta e preservada, sem ser totalmente destruído.
No caso de Novalee, cabe pensar que a máquina fotográfica, como um objeto
interno bom preservado (“objeto bom internalizado”), é uma representação do seu
self verdadeiro, que potencialmente busca uma expressão. A máquina é o único
objeto que sempre está presente em sua vida e o único que lhe restou na situação
de abandono. É como se esse único e especial objeto pudesse fornecer alguma
sustentação proveniente de seu mundo interno. Como seu ego ainda é ainda muito
frágil, parece que ela precisa, no entanto, da concretização desse “objeto interno
bom” em algo da realidade. Assim, a máquina passa a ocupar esse lugar. É a ela
que a jovem se apega ferrenhamente. E é através dela que se dará parte da
retomada de sua vida, pela escolha da futura profissão.
É nesse sentido que ela se aproxima do fotógrafo profissional que trabalha
dentro do mercado e que, com o tempo, se torna seu amigo e mentor no
desenvolvimento de sua profissão.

56
3.3 O TERCEIRO MOMENTO

Quando a senhora Thelma se aproxima de Novalee, no mercado, surge uma


nova oportunidade para a garota.
Parecendo pressentir o que se passava com Novalee, Thelma se apresenta,
mencionando uma frase que conjuga vários temas que se inter-relacionam e falam
da história da jovem: “No lar é onde começa sua história. O lar é o lugar onde te
pegam quando cai.” Ao tocar em aspectos primitivos da vida de Novalee, Thelma
parece desafiá-la para um confronto com a vida.
A senhora insiste na aproximação ao oferecer-lhe um presente, uma
mudinha de planta, que representa, literalmente, o potencial de vida da garota que
aguarda uma condição propícia para se desenvolver. A mudinha da árvore é a
representação da própria Novalee, que se encontra encapsulada como um botão de
flor, à espera da nutrição da terra para que seu desenvolvimento possa ocorrer.
Essa situação remete à correlação que Winnicott faz a respeito das
possibilidades de desenvolvimento do ser humano, no relacionamento com o
ambiente. Ele afirma que o ambiente deve capacitar “[...] o bulbo a se desenvolver
num narciso através de tratos satisfatórios” (2007a, p.xix).
O que o autor salienta é que os fundamentos genéticos e orgânicos devem
ser deixados intactos e inviolados para que se manifestem de modo adequado,
tanto na vida física como também na vida mental, tendo o ambiente como apoio e
sustentação. Assim, o bulbo pode desabrochar se encontra suporte e sustentação
nos cuidados ambientais, ao invés de ser cultivado num narciso a partir de um
bulbo.
A partir do chamado de Thelma, Novalee pode se dispor a cuidar da mudinha
da árvore. Inicialmente, ela vai à biblioteca procurando entender melhor como deve
cuidar da planta. O que já mostra uma pré-disposição para o cuidar de si mesma. E
não se trata de qualquer cuidado, mas de um cuidado especial que a mudinha
merece. É como se ela estivesse entrando em contato com seu self verdadeiro, que
se manteve escondido até então.
Aceitando o convite para plantar a muda na casa da amiga, a jovem
demonstra poder realizar um investimento emocional no sentido da realização de
um desejo, de algo com o qual ela não ainda não pode se avizinhar, mas que
57
sempre esteve lá, à espreita, procurando uma brecha para se expressar. Um
potencial interior que quer emergir. Concomitante à essa possibilidade, Novalee
passa a dispensar o uso constante de uma atuação fictícia e enganosa, conduzida
pelo falso self. É assim que ela começa a desenvolver um relacionamento real com
as pessoas à sua volta, através da participação em atividades com elas ou mesmo
dispondo-se a ir sozinha em busca de novas experiências.
Mas, novamente, a vida coloca Novalee à prova.

No conjunto de circunstâncias que compreendem o nascimento do bebê e os


dias seguintes, ela se depara com situações bastante traumáticas, que juntas
configuram a passagem de outro “furacão” em sua vida.

A jovem dá à luz seu bebê dentro do mercado, em uma condição totalmente


precária e que só não se tornou um desastre pela ajuda do amigo Forney. Às
vésperas do nascimento do bebê, Novalee ainda não podia confiar totalmente no
ambiente e, assim, alternava o uso de um comportamento esquizóide e de outro
mais integrado e aproximado com a realidade externa. O amigo era, por vezes,
misterioso e parecia esconder algo dela. A jovem reage à essa desconfiança,
defende-se através de seu falso self protetivo. Suas atitudes dissociadas podem
explicar o fato de ela não ter ido em busca de ajuda, fora do mercado, quando já se
aproximava o nascimento do bebê.

O fato de Novalee ter se tornado uma celebridade assim que sua filhinha
nasce, traz um novo desequilíbrio para a garota. De repente, ela passa a ser
cortejada e admirada por todos, sem obter uma compreensão da situação.

O quadro é agravado pelo aparecimento da mãe que retorna, fingindo


preocupação e prometendo reconstruir um lar para as três, mas que, no final, se
caracteriza como a repetição do “trauma do abandono”. Pois, no dia seguinte, a
promessa da mãe não se confirma, ela foge com o dinheiro de Novalee e nunca
mais aparece para buscá-las. Na conversa com a mãe, a jovem se defronta com o
passado e os conflitos inerentes aos descuidos sofridos na infância.

Na fantasia inconsciente da criança, toda demanda refere-se ao pai ou a


mãe. Quando a criança, a partir de cuidados satisfatórios, consegue criar uma mãe

58
boa internamente, ela é capaz de se afastar da figura externa, pois a figura real
permanece viva em sua realidade psíquica e interior.

Novalee, no entanto, precisou se aproximar da mãe na tentativa de resgatar


algo que falhou no passado. É a necessidade de conservar ou retomar o
relacionamento com a mãe na busca da supressão da carência. Mas ela logo se dá
conta de insensibilidade da mãe. Em verdade, elas nunca chegaram a estabelecer
um “par mãe-bebê” completo e duradouro, pois a mãe nunca estabeleceu um
vínculo de identificação e compromisso com a menina que a capacitasse a oferecer
um holding satisfatório.

O reencontro das duas, que poderia dar início a uma reparação da agressão
ambiental causada por uma falha materna no início da vida de Novale,
contrariamente, torna-se uma confirmação dessa falha. O trauma se reconfigura,
na repetição sistemática da perturbação inicial. Desse padrão desastroso dos
cuidados que recebeu nas etapas iniciais da vida, Novalee reconstrói a falta de
confiança no ambiente.

É assim, com olhar longínquo e desesperançado, que a senhora Thelma


encontra Novalee na porta do hospital e, novamente, se oferece para ajudá-la. A
jovem segura seu bebê no colo apaticamente, sem esboçar sequer uma reação de
desespero ou preocupação. Em estado de total vulnerabilidade, ela se aliena da
realidade e coloca sua vida em suspenso. É como se revivesse a condição de
“dependência absoluta” do bebê, totalmente subordinada às ações do ambiente
externo para satisfazer suas necessidades primitivas de sobrevivência.

Pode-se compreender esta situação de Novalee fazendo uma analogia ao que


Dias vê como a caracterização da psicose, segundo os parâmetros da teoria
winnicottiana do amadurecimento emocional:

“Nas psicoses, o amadurecimento foi paralisado num certo


momento dos estágios iniciais, em função de um padrão ambiental
traumático. O bebê, por precisar sistematicamente reagir ao trauma,
perde a espontaneidade, a capacidade de descansar e a esperança.
Uma cisão defensiva se opera nele.” (2011c, p. 202)

59
O self verdadeiro se encontra retraído e protegido da ameaça iminente de
aniquilamento, enquanto o falso self se apresenta ao mundo para relacionar-se com
a realidade externa.

Para Winnicott, a psicose se diferencia da neurose pelo tipo de angústia


envolvida. Na primeira, predomina a angústia de aniquilação e, na neurose, a
angústia de castração. O quadro psicótico é representado pelo colapso das defesas
e o estabelecimento de novas defesas que procuram lidar com o caos primitivo que
se aproxima. Na psicose, manifestam-se as defesas primitivas, que não teriam se
conformado nos estágios iniciais de dependência absoluta se as provisões
ambientais tivessem tido sucesso.

Forlenza Neto esclarece que

“[...] as psicoses, esquizoidias e estados fronteiriços


(borderline) são fundamentalmente doenças ambientais. Elas se
apresentam a nós através de organizações defensivas que foram
elaboradas para lidar com as angústias de aniquilação.” (2004, p. 310)

Pode-se compreender a situação de Novalee, nesse momento, como uma


condição de pré-disposição para a atuação psicótica, o que parece ser revertido
pela ação da amiga Thelma. O que a amiga oferece para Novalee, nesse momento,
é a primeira experiência viva de cuidados primitivos. Ao levar a garota e o
bebezinho para casa, Thelma garante à jovem o fornecimento de coisas simples e
essenciais, e que só podem ser oferecidas pelo que se denomina “ambiente
suficientemente bom”. Na condição de “dependência absoluta”, Novalee precisa ter
suas necessidades satisfeitas. Com a devoção de uma mãe suficientemente boa e
identificada com seu(s) bebê(s), Thelma fornece à jovem a oportunidade de viver
experiências primitivas, com o ambiente desta vez atendendo com sucesso, ao
invés de fracasso, às suas necessidades específicas do momento.

A ação de Thelma pode ser comparada à atuação do analista na clínica de


pacientes psicóticos, conforme propõe Winnicott (2004). O autor ensina que certos
pacientes se constituem psiquicamente por uma série de falhas ambientais nos
primórdios da vida, sofrendo, por conta disso, certos problemas estruturais e de
constituição de subjetividade. Na situação analítica, esses pacientes difíceis
necessitam regredir à fase de “dependência absoluta” para poder retomar o
60
amadurecimento que se encontra estagnado. Nessas situações, o holding vem
proporcionar ao paciente a vivência do acolhimento e da sustentação prolongados,
constituindo-se em um condição necessária e fundamental para que ele possa
adquirir confiança no ambiente. A partir do momento em que a confiança no
terapeuta é garantida no setting analítico, pode-se processar a reativação do
desenvolvimento emocional.

É esse tipo de acolhimento que a amiga oferece para Novalee quando passa
a cuidar dela e do bebê em sua casa. Thelma e seus amigos constituem,
definitivamente, a nova família de Novalee e de Americus.

Esse ambiente social de cuidadores, bastante generoso, passa a suprir, de


modo adaptativo e dinâmico, as necessidades da dupla: oferece proteção e
condições psicológicas de holding (sustentação) no tempo e no espaço, de handling
(manuseio e manejo) e de possibilidade de contato adequado com a realidade.

Novalee consegue recontar sua história ao amigo Forney, porque agora, além
de não temer mais o colapso imediato, antevê a criação de uma nova história para
si. Todavia, não consegue estabelecer uma relação amorosa com Forney por ainda
não se enxergar como alguém digna de valor e merecedora de amor. E tampouco é
capaz de cuidar da filha sozinha.

Nesse contexto, a amiga Thelma sustenta, no tempo, as idas-e-vindas de


Novalee, sem repreendê-la ou questioná-la. Aceita seu distanciamento, ainda que
relativo, de Americus, o caso amoroso que revelou ter com um jovem mecânico,
suas atitudes distraídas, inconseqüentes e juvenis. Além de fornecer empatia e
calor humano, acolhe pacientemente a jovem e suporta suas incongruências e
ambiguidades.

Winnicott ressalta que

“[...] a família contribui de dois modos para a maturidade


emocional do indivíduo: de um lado, dá-lhe a oportunidade de voltar a
ser dependente a qualquer momento; de outro, permite-lhe [..] sair
desta em direção ao círculo social imediato e abandonar esta unidade
por outras ainda maiores [...] É muito importante que, a cada arroubo
de iconoclastia, o indivíduo possa redescobrir nas formas rompidas o
mesmo cuidado materno e a mesma estabilidade familiar que
embasavam sua dependência em épocas anteriores. É função da

61
família constituir o terreno sobre o qual se desenvolve o crescimento
pessoal.” (2005a, p. 137)

Nessa perspectiva, pode-se afirmar que as atitudes de Thelma fornece à


Novalee os cuidados maternos que lhe faltaram no início. E, assim, ela pode
reiniciar seu processo de desenvolvimento, através de um novo suporte (holding)
ambiental adequado.

A experiência do holding possibilita inicialmente a “regressão” à condição de


dependência absoluta. O holding ambiental que mantém a sustentação no tempo,
por sua vez, permite o reinício do processo de desenvolvimento na direção da
“dependência relativa” rumo à “independência”.

Sobre a regressão, Winnicott explica:

“A regressão representa a esperança do indivíduo psicótico de


que certos aspectos do ambiente que falharam originalmente possam
ser revividos, com o ambiente tendo êxito ao invés de falhar na sua
função de favorecer a tendência herdada do indivíduo de se
desenvolver e amadurecer.” (2007b, p.117)

É a partir dessas recém-adquiridas experiências com um “ambiente


suficientemente bom” que Novalee passa a dar um novo sentido à sua existência.
Ela arruma um emprego, começa a estudar fotografia e se desenvolve
profissionalmente.

Quando, enfim, sobrevém nova reviravolta à vida de Novalee pela passagem


de um furacão (desta vez real), que destrói a vida e a casa da amiga Thelma, a
jovem já se encontra mais forte e amadurecida. Ela é capaz de entrar em contato
com o sofrimento e realizar o luto pela perda da amiga querida.

Na cena em que caminha com a filha pelos destroços da casa, ela demonstra
poder viver toda sua dor, tomando consciência dos fatos, sem negar a realidade.
Sua tristeza pode se transformar em memórias e, assim, ela tira um foto da filha
sob a grande árvore que, no passado, foi a pequena muda presenteada pela amiga.
Novalee, agora, é capaz de sobreviver às falhas ambientais. Pode-se
comparar este estado de Novalee à etapa de “dependência relativa” do lactente

62
que, por ter recebido cuidados satisfatórios durante a dependência absoluta, pode
superar e adaptar-se aos desajustes ambientais.

Essa nova etapa, a “dependência relativa”, diz respeito tanto às


inconstâncias, atrasos e frustrações provocadas pelo ambiente quanto à capacidade
que o lactente adquire de reconhecer as variabilidades dos cuidados ambientais que
recebe. O bebê já pode reagir agressivamente às falhas, sem ficar traumatizado por
elas.

Winnicott ensina que

“[...] o processo inteiro do cuidado do lactente tem como


principal característica a apresentação contínua do mundo à criança.
[...] Só pode ser feito pelo manejo contínuo por um ser humano que
se revele continuamente ele mesmo, não há questão de perfeição
aqui. [...] O lactente só pode ter uma apresentação não confusa da
realidade externa se for cuidado por um ser humano que está
devotado ao lactente e à tarefa de cuidar desse lactente.” (2007b, p.
83).

Uma vez que esses processos sejam sustentados no tempo, permitindo que a
criança se defronte gradativamente com o mundo, ela amadurece no sentido da
“independência” ou autonomia. Passa a se identificar e ampliar seu relacionamento
com a realidade cada vez mais complexa, envolvendo-se em projetos pessoais e
também com a vida social.

O grupo de amigos que Novalee conquistou com ajuda de Thelma pode


continuar lhe oferecendo holding.

O holding vale tanto para o “segurar” físico desde a vida intra-uterina como
expande seu alcance para o cuidado adaptativo na infância e, posteriormente, na
vida adulta. Winnicott lembra que

“[...] esse conceito pode se ampliar a ponto de incluir a função


da família, e conduz à ideia de trabalho de caso, que é a base da
assistência social. O holding pode ser feito, com sucesso, por alguém
que não tenha o menor conhecimento intelectual daquilo que está
ocorrendo com o indivíduo; o que se exige é a capacidade de se
identificar, de perceber como o bebê está se sentindo. O que também
é a base do trabalho clínico.” (2005b, p. 10).

63
É nessa perspectiva que se entende o processo de amadurecimento de
Novalee. Apesar de ter enfrentado um novo trauma, desta vez ela pode buscar a
ajuda dos amigos para transformar e recriar a realidade para si e para a filha.
Constrói uma casa para as duas, continua ativa profissionalmente e, mais, recebe o
reconhecimento da sociedade por seu trabalho: alcança o primeiro lugar em um
concurso de fotografia, justamente ao retratar o lugar onde encontrou amor e
acolhimento de uma pessoa que propiciou uma grande transformação em sua vida.
A árvore frondosa retratada na foto premiada é, também agora, uma
representação de Novalee, pois é grande e forte como ela. Pode dar frutos e
sombra, como ela pode dar amizade e amor para sua filha e seus amigos.

E, assim, ela continua seu processo de crescimento e amadurecimento rumo


à vida adulta. Aos poucos, se aproxima de Forney, consegue reconhecer que o ama
e que pode ser uma pessoa de valor para ele. E, enfim, se casam.

Sobre o processo de amadurecimento, Winnicott explica que ele dura o


tempo de toda uma vida, e que o desenvolvimento emocional nunca atinge um
estágio de completude, que, enganosamente, poderia ser compreendido como o
alcance da independência total. Ele defende que certa dose de dependência do
outro é sempre positiva, pois na troca de experiências entre os indivíduos encontra-
se a fertilidade da vida.

A capacidade de exercer uma profissão, por sua vez, é uma das referências
de maturidade emocional do ser humano. Atuar profissionalmente implica um certo
grau de independência e socialização, que, por sua vez, fazem parte do processo de
crescer e amadurecer. O autor ensina:

“A maturidade do ser humano é uma palavra que implica não


somente crescimento pessoal mas também socialização. Digamos que
na saúde, que é quase sinônimo de maturidade, o adulto é capaz de se
identificar com a sociedade sem sacrifício demasiado da
espontaneidade pessoal; ou, dito de outro modo, o adulto é capaz de
satisfazer suas necessidades pessoais sem ser anti-social, e, na
verdade, sem falhar em assumir alguma responsabilidade pela
manutenção ou pela modificação da sociedade em que se encontra
[...] A independência nunca é absoluta. O indivíduo normal não se
torna isolado, mas se torna relacionado ao ambiente de um modo que
se pode dizer serem o indivíduo e o ambiente interdependentes.”
(2007b, p. 80).

64
E acrescenta:

“Deve-se esperar que os adultos continuem o processo de


crescer e amadurecer, uma vez que eles raramente atingem a
maturidade completa. Mas uma vez que eles tenham encontrado um
lugar na sociedade através do trabalho, e talvez tenham se casado ou
[...] estabelecido uma identidade pessoal, pode-se dizer que se iniciou
a vida adulta.” (2007b, p.87)

Neste ponto, julguei importante apresentar um resumo de minha


compreensão a respeito do desenvolvimento emocional da jovem Novalee como
ponto de partida para destacar algumas suposições que ora arrisco e desenvolvo,
baseando-me nos achados da experiência clínica de Winnicott.

Considero que a interpretação apresentada a seguir é apenas uma hipótese


dentre outras que podem ser levantadas a partir da observação do filme.

3.4 COMPREENSÃO DO DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL DE NOVALEE

Compreende-se que Novalee foi abandonada e privada dos cuidados da mãe


na infância precoce e se constituiu psiquicamente como uma criança carente e
dependente. Passou a atuar um falso self como organização defensiva contra as
ameaças iminentes de aniquilamento que a realidade lhe apresentava ao longo da
vida, como os recorrentes abandonos, o do namorado e, depois, o da mãe, que
reapresenta a ela a condição de desamparo inicial.

Partindo do potencial de expressão do self verdadeiro de Novalee, a


retomada de seu crescimento emocional foi possibilitado pela ação do holding
fornecido pelo ambiente facilitador e suficientemente bom que Thelma, em conjunto
com sua rede de amigos, criou em torno da jovem.

Sustentada pelo holding social, o desenvolvimento emocional de Novalee


partiu de uma condição de dependência absoluta, passando pela dependência
relativa e seguiu na direção da independência. Esse caminhar tornou-a capaz de

65
cuidar de si e da filha, como uma mulher adulta e responsável que pode se
beneficiar das experiências excitantes da vida.

3.5 REFLEXÃO SOBRE A CLÍNICA WINNICOTTIANA

Pode-se supor a hipótese de que, sem os cuidados recebidos de Thelma sob


a forma do holding, Novalee tivesse permanecido em uma atuação permanente do
falso self, fugindo da expressão de uma vida verdadeira; ou ainda tivesse entrado
em colapso mental, devido à impossibilidade total de enfrentar a frustração
causada pelos traumas e exigências extremas da realidade exterior.

A condição de Novalee pode nos levar a fazer uma analogia com o caso de
um paciente borderline (ou fronteiriço) em que, apesar de exteriorizar um quadro
neurótico ou ainda psicossomático, o distúrbio psicótico subjacente ao
comportamento neurótico pode irromper como resultado de situações dramáticas e
extremamente traumatizantes (2004).

Winnicott esclarece:

“Pela expressão “caso fronteiriço” (borderline), quero significar


o tipo de caso em que o cerne do distúrbio do paciente é psicótico,
mas onde o paciente está de posse de uma organização psiconeurótica
suficiente para apresentar uma psiconeurose, ou um distúrbio
psicossomático, quando a ansiedade central psicótica ameaça irromper
de forma crua.” (1975, p. 122)

Como explicação para os casos borderline, o autor acrescenta:

“Provavelmente a contribuição mais importante da psicanálise à


psiquiatria e à classificação psiquiátrica é a supressão da velha ideia
de entidades nosológicas. [...] Os psicanalistas experientes
concordariam em que há uma gradação da normalidade não somente
no sentido da neurose, mas também da psicose. [...] podemos ver os
mecanismos primitivos trabalhando em psicóticos, mas também em
todas as pessoas. [...] Claro está que, em doenças psicóticas, é com
as defesas primitivas que nos defrontamos. (2007b, p. 121-124)

66
Enquanto a psicanálise tradicional trabalha a partir de um método que
caracteriza, por excelência, a própria técnica analítica, não é o que ocorre na
proposta clínica de Winnicott (2011c). O método psicanalítico único é possível na
psicanálise tradicional pelo fato de que os transtornos psíquicos levam, em última
análise, aos conflitos relacionados ao complexo de Édipo. Não é o caso da
perspectiva winnicottinana, em que a classificação dos distúrbios psíquicos segue
um critério maturacional e não sintomatológico.

Winnicott tem na teoria do amadurecimento pessoal o guia de suas ações


terapêuticas. Segundo o próprio autor, essa teoria é a “espinha dorsal” do seu
trabalho teórico e clínico. Ele diz:

“Precisamos chegar a uma teoria do desenvolvimento normal


para podermos ser capazes de compreender as doenças e as várias
imaturidades, uma vez que já não nos damos mais por satisfeitos a
menos que possamos preveni-las ou curá-las.” (2007b, p. 65)

O que deve determinar a atuação no espaço terapêutico, segundo Winnicott,


é a necessidade do paciente, e esta varia amplamente conforme a natureza do
distúrbio que apresenta. O que é válido para um paciente neurótico ou mesmo
depressivo, não serve para os pacientes cujo transtorno é de ordem psicótica.
Nesse sentido, a importância do diagnóstico é definitiva para a prática clínica de
Winnicott (2011c).

Ao longo do trabalho terapêutico, o diagnóstico deve ser reelaborado pelo


analista, visando ajustar continuamente seu método de atuação. O autor afirma
que dificilmente sua tarefa terapêutica pode ser descrita por uma técnica única,
pois não existem dois casos iguais e, desse modo, o trabalho não pode ser
replicado. Dias comenta que “[...] o terapeuta deve estar envolvido em cada caso
como pessoa, razão pela qual não há sequer duas entrevistas que sejam
semelhantes quando realizadas por dois psiquiatras.” (2011c, p. 195). O próprio
Winnicott lembra que o terapeuta precisa ser humilde o bastante para reconhecer o
seu desconhecimento inicial sobre como atuar no caso que chega a ele.

67
O autor esclarece que

“É preciso enfatizar que esta técnica é extremamente flexível;


não seria possível a alguém saber o que fazer baseando-se no
estudo de apenas um caso. Vinte casos podem dar uma ideia, mas o
fato é que não há casos semelhantes.” (1984, p. 10).

Os distúrbios psíquicos podem ter caráter radicalmente distintos, como os


casos dos transtornos neuróticos e psicóticos mencionados.

As neuroses e as depressões refletem conflitos inconscientes, provenientes


de material reprimido e se manifestam sobretudo nos indivíduos cujas
personalidades foram bem fundadas no início da vida. Suas problemáticas giram
em torno dos relacionamentos interpessoais e das insatisfações por não poderem
exercer suas necessidades instintuais.

As psicoses, assim como as tendências anti-sociais, são resultados da


privação ou do fracasso dos cuidados ambientais na tarefa de proporcionar a
continuidade dos processos de amadurecimento nas etapas primitivas em que
impera a dependência absoluta. Nesses casos, esses distúrbios apontam para falhas
na formação da personalidade do indivíduo. O amadurecimento fica paralisado num
determinado momento dos estágios iniciais, em função de um padrão traumático
das ofertas ambientais. O bebê precisa sistematicamente reagir ao trauma e ao
ambiente, suprimindo quaisquer possibilidades de ação transformadora e criativa.
Perde a capacidade de relaxar, a espontaneidade e a esperança. A organização
defensiva baseada na cisão com a realidade se instaura e se sobrepõe à sua
capacidade de integrar as experiências da realidade interna com a externa. O self
verdadeiro se retrai e surge a expressão do falso self como proteção à ameaça de
aniquilamento iminente.

Winnicott sugere que, no estudo das psicoses, o trabalho se volte para


classificar o meio e os tipos de provisões ambientais, suas anormalidades e o ponto
no desenvolvimento do indivíduo em que essas anormalidades ocorreram (2007b).
Pois, os processos de maturação do indivíduo, inclusive os provenientes da base
hereditária, requerem o suprimento de um ambiente favorável, especialmente nos
estágios iniciais.

68
Nos transtornos psicóticos, as defesas primitivas é que estão em jogo;
defesas essas que não teriam se organizado caso o suprimento ambiental
satisfatório tivesse existido na etapa de dependência. Sobre esse aspecto, o autor
esclarece:

“O colapso que é temido já aconteceu. O que é reconhecido


como doença é um sistema de defesas organizadas contra esse
colapso já ocorrido. [...] O paciente só pode lembrar o colapso em
circunstâncias especiais da situação terapêutica, e por causa do
crescimento do ego. [...] A recordação só pode vir à tona através do
reviver.” (2007b, p. 127).

Com base nas afirmações de Winnicott, pode-se inferir que Novalee sofreu
um colapso na situação de desamparo originada da privação dos cuidados maternos
em um momento inicial de seu desenvolvimento.

Dias descreve que

“[...] a despeito de que muitas vezes certa capacidade de lidar


com as exigências da realidade compartilhada esteja presente, as
experiências iniciais foram tão deficientes ou distorcidas que o analista
terá que ser a primeira pessoa na vida do paciente a fornecer certas
coisas que são simples e essenciais, e que só podem ser oferecidas
pelo que se chama ambiente suficientemente bom. Essas pessoas
precisam que lhes seja fornecida a oportunidade de viverem as
experiências primitivas, com o ambiente atendendo com sucesso às
necessidades específicas do momento [...] a regressão à dependência
é necessária.” (2011c, p. 202).

Acredita-se que a relação estabelecida entre Novalee e a amiga Thelma


remete a uma relação terapêutica winnicottiana, na qual a atmosfera é firme e
facilitadora do desenvolvimento individual, mas cujo tom é deveras poético.
Novalee pode ser compreendida como uma pessoa que, apesar de atuar de
maneira sobretudo neurótica nas relações com a realidade, apresenta um
subjacente distúrbio psicótico que parece estar à espreita, no aguardo da situação
estopim para se manifestar.

Forlenza Neto explica que, num quadro clínico, essa situação pode ser
tomada como um caso borderline, em que a sintomatologia pode se assemelhar à
neurose, porém há um substrato de psicose presente que é revelado pela angústia

69
de aniquilação (2004). A categoria psicótica é representada pelo colapso das
defesas organizadas e pela substituição por um novo conjunto de defesas que
possam dar contar do caos que se apresenta.

Winnicott nos indica que, quando um paciente tal qual o borderline encontra
um novo ambiente favorável e de confiança, o processo de desenvolvimento pode
ser retomado, através de holding ambiental, desta vez, facilitador e adequado,
permitindo a regressão à etapa de dependência absoluta.

Quando criou a psicanálise, Freud estabeleceu o “setting analítico” visando a


constituição de um enquadre no espaço e no tempo, de modo a favorecer as
interpretações do analista, com o objetivo de acessar os conteúdos inconscientes
de pacientes neuróticos através da livre associação de palavras. Winnicott acredita
que, diferentemente do paciente neurótico atendido por Freud, a pessoa que
apresenta um quadro borderline necessita de um setting adequado assim como de
um “manejo do setting”, que pode comportar inúmeras composições de
enquadramento terapêutico, tanto no que diz respeito ao tempo das sessões como,
por exemplo, no arranjo físico da sala e das disposições estabelecidas entre o
analista e o paciente.

O trabalho terapêutico, nesse caso, deve se aproximar dos cuidados


maternos, pois o paciente precisa resgatar a possibilidade de ser indefeso,
vulnerável e vivenciar a dependência do “outro” que está integralmente disponível
para atendê-lo em suas necessidades específicas do momento.

O autor ensina que é na análise dos casos borderline que se tem a


oportunidade de observar os delicados fenômenos que apontam para a
compreensão dos casos verdadeiramente esquizofrênicos. Há uma raiz psicótica
encoberta por um comportamento psiconeurótico que se impõe durante o trabalho
clínico. Ele esclarece que

“Em tais casos, o psicanalista pode ser conivente, durante


anos, com a necessidade do paciente de ser psiconeurótico (em
oposição ao louco) e ser tratado como tal. A análise vai bem [...] e o
único inconveniente é que a análise jamais termina [...] o paciente
pode mobilizar um falso self para finalizar o tratamento. [...]
Mesmo esse fracasso pode ser valioso se analista e paciente o
70
reconhecerem. [...] Sempre esperamos que nossos pacientes
terminem a análise: e descubram que o próprio viver é a terapia que
faz sentido.” (1975, p. 122)

Portanto, o trabalho terapêutico que urge, na clínica do paciente borderline, é


o de encontrar a configuração adequada para uma terapia que faça sentido e
promova o paciente à tarefa de cuidar de si, no exercício da própria vida, apto a
expressar seu self verdadeiro. Nesses casos, a necessidade que se impõe, do lado
do paciente, é de se certificar que o analista é capaz de lhe fornecer um holding
adequado como reparação à privação sofrida nos momentos iniciais da vida. Ele
exige que o analista o contenha para poder reviver a dependência absoluta, desta
vez sustentada pelo outro.

No artigo “Ódio na Contratransferência” (1947), o autor descreve a extensa


gama de sentimentos que se estabelecem como contratransferência no setting
analítico e explica que os casos de paciente borderline exigem grande esforço do
analista para suportar a enorme tensão gerada nas sessões. Ele explica:

“Se se quiser que o self verdadeiro oculto aflore por si próprio,


[...] o analista precisará ser capaz de desempenhar o papel de mãe
para o lactente do paciente Isto significa dar apoio ao ego em grande
escala. O analista precisará permanecer orientado para a realidade
externa ao mesmo tempo que identificado ou mesmo fundido com o
paciente. O paciente precisa ficar absolutamente dependente, [...]
mesmo quando há uma parcela sadia da personalidade que atua como
aliada do analista e, na verdade, informa ao analista como se
comportar.” (2000, p. 149)

É, em geral, um trabalho clínico bastante sofrido, pois o analista está às


voltas com um paciente que freqüentemente desafia os parâmetros analíticos pré-
estabelecidos, faz demandas inapropriadas e ataques agressivos ao analista que
fica, muitas vezes, desejoso de realmente interromper o tratamento. Em outros
momentos, o paciente pode se retrair e a análise comportar momentos de muito
silêncio. O paciente precisa de duas coisas: ferir o analista e atingi-lo, causando-lhe
sofrimento, e, ao mesmo tempo, que ele seja capaz de sustentar a análise, sem
interrupções.
71
Forlenza Neto chama atenção para o fato de que, nesses processos
analíticos, não é o analista que provoca a regressão à dependência; ele
simplesmente pode permitir ou não que ela ocorra. Todos esses fatos estão
diretamente ligados à personalidade do analista e às suas próprias reações na
contratransferência, sua paciência e tolerância a sentimentos dolorosos de
incapacidade técnica que invariavelmente surgem nos momentos regressivos
(2004). É por conta dessa situação clínica complexa que Winnicott, em seu artigo
“Aspectos Clínicos e Metapsicológicos da Regressão no Contexto Analítico” (1954),
faz uso da expressão “sobrevivência do analista” como sendo o fator dinâmico no
trabalho desses pacientes.

Como para o paciente borderline, em que a regressão e o holding se


caracterizam como aspectos fundamentais da análise, no caso de Novalee, a
regressão e o holding ambiental se tornaram essenciais para seu crescimento
posterior. Pode-se dizer que a atitude de Thelma, resgatando Novalee (e a filha) da
porta do hospital naquele momento crítico e a seguir sustentando a vida da jovem
em sua casa através de um holding cuidadoso, tornou possível a regressão à
dependência tão necessária para que o processo maturacional fosse retomado.

O retraimento de Novalee, naquela situação, pode ser interpretado a partir


das palavras de Winnicott, em “Retraimento e Regressão” (1955), como “[...] uma
fuga da experiência dolorosa de estar exatamente entre o acordar e o dormir ou
entre falar comigo (o analista) racionalmente e retrair-se.” (2010, p. 255)

Thelma fez o papel do analista, sendo capaz de oferecer a “existência de um


meio” que fornecia o holding à jovem mãe. A senhora, como se estivesse no papel
do “analista”, se mostrou capaz de suprir um meio apropriado no momento de seu
retraimento. Parece que, ao colocar um meio à volta do self retraído de Novalee,
Thelma pode transformar o retraimento em regressão. Ao sustentar a regressão à
dependência da jovem mãe ao longo do tempo, tornou-a capaz de usar essa
experiência de maneira construtiva.

Na relação com o paciente regredido ao estágio de bebê, Winnicott diz que


“Percebe-se prontamente que há uma relação entre proporcionar-lhe um colo para
onde voltar e proporcionar-lhe um meio que o torna capaz de se movimentar no
espaço numa posição encolhida.” (2010, p. 257)
72
A partir dessa experiência, Novalee parece começar a perceber a existência
de uma dissociação dentro de si, que está representada pela relação ambígua que
estabelece nesse momento com Forney. Ao se dar conta da cisão que permeia suas
atitudes, a jovem pode finalmente dirigir-se no sentido da integração psíquica para
expressar seu self verdadeiro. As condições de holding oferecidas tardiamente
operaram de modo a resgatar um re-experienciar favorável, permitindo a retomada
de seu crescimento no sentido da autonomia e da saúde mental.

No resumo que Winnicott apresenta sobre o trabalho conduzido na clínica


com o paciente borderline, no qual detalha o momento do retraimento e da
regressão, podemos enxergar a experiência transformadora pela qual Novalee
passou no seu caminhar para a maturidade, sustentada pelo holding de Thelma:

“[...] no estado retraído, o paciente está sustentando o self e


que, se o analista consegue sustentar o paciente tão logo se manifeste
o retraimento, então, o que de outro modo teria sido um estado
retraído (de expressão do falso self), torna-se uma regressão. A
vantagem de uma regressão é que ela traz consigo a oportunidade de
correção de uma adaptação inadequada presente na história passada
do paciente, isto é, no manejo do paciente como bebê. [...] Sempre
que compreendemos profundamente um paciente [...] estamos, de
fato, oferecendo um holding ao paciente e tomando parte de um
relacionamento no qual o paciente está, em algum grau, regredido e
dependente.” (2010b, p. 261)

O ambiente social que acolheu Novalee continuará sendo uma fonte


renovada de possibilidades de relacionamentos de modo que ela estará sempre em
interdependência com esse ambiente.

Pois, Winnicott lembra que não a independência total não existe e não é
favorável à saúde emocional, pois a “[...] maturidade individual implica em
movimento em direção à independência, mas não existe essa coisa chamada
independência o fato de um indivíduo ficar isolado a ponto de se sentir
independente e invulnerável.” (2005b, p. 3)

73
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização deste trabalho me proporcionou uma descoberta muito


prazerosa e enriquecedora.

Ao longo de todo o processo de concepção e reelaboração contínua de ideias,


percebi o quanto me sentia satisfeita (e feliz!) com a possibilidade de estudar a
teoria psicanalítica winnicottiana. Além de aprofundar meus conhecimentos em
temas com os quais sempre me identifiquei e que me despertam tanto interesse,
pude reconhecer sua importância para o trabalho que pretendo desenvolver como
psicóloga.

Através do treino interpretativo das várias situações do filme, constatei o


valor da aplicação da psicanálise como ferramenta para a leitura dos fatos da vida.
E, sobretudo, como instrumento que pode se transformar em material vivo na
relação do psicólogo com seus pacientes. O filme, nesse caso, pode ser tomado
como a composição de um caso que o paciente nos traz, com todas suas
ambigüidades e pontos ocultos.

Ademais, o exercício da breve reflexão a respeito da clínica winnicottiana,


apresentada como conclusão das discussões, configurou-se como um treino de
observação e elaboração de argumentações a partir da aplicação da teoria
psicanalítica na prática clínica. Teve o intuito de gerar questionamentos e provocar
dúvidas, estimulando o pensamento e o interesse pela troca de ideias com colegas,
professores e estudiosos do tema.

Este trabalho foi provocativo, me desafiou ininterruptamente. Lançou-me ao


desafio da busca por novos conhecimentos, revelando meu desejo de continuar o
estudo da obra de Winnicott, e também de outros autores, que, como ele, tem um
olhar apurado para os momentos iniciais da vida de uma criança e acreditam que
esses momentos de relacionamento com o outro são cruciais para a construção de
uma sociedade mais justa, generosa e democrática.

74
Tenho certeza de que os encontros entre os meus pensamentos e as
extensas leituras favoreceram um amadurecimento que será de extremo valor em
vários aspectos de minha vida como mulher, mãe, profissional, amiga...

Também acredito que as reflexões aqui apresentadas podem ser úteis para
as pessoas e os profissionais que, como eu, acreditam que possamos fazer de
nossa vida algo de bom e construtivo para a humanidade. Que podemos, através
de gestos espontâneos e simples, transformar momentos difíceis em oportunidades
de compreender e colaborar com o outro, usando o que nos é mais caro, como
homens, o afeto e o amor.

Com prazer, cito Winnicott (2005a, p. 19), que, ao detalhar as relações


iniciais entre a mãe e seu bebê, lança mão de uma sensível e emocionante
descrição que faz da palavra “amor”:

“Amor significa apetite. Aqui não há preocupação, apenas a


necessidade de satisfação;
Amor significa a integração (por parte da criança) do objeto da
experiência instintiva com a mãe integral do contato afetivo; o dar
passa a relacionar-se ao receber;
Amor significa afirmar os próprios direitos à mãe, ser
compulsivamente voraz, forçar a mãe a compensar as (inevitáveis)
privações por que ela é responsável;
Amar significa cuidar da mãe (ou do objeto substituo) como ela
cuidou da criança - uma prefiguração da atitude de responsabilidade
adulta;
Amor significa existir, respirar; e estar vivo identifica-se a ser
amado.”

Winnicott, com seu pensamento voltado para as coisas singelas da vida, nos
ensina que a saúde mental se relaciona com uma vida excitante e cheia de
sentidos, vivida na relação ética entre os homens.

A verdade é que vida é instável e insegura. Traz a cada momento uma nova
experiência e, com ela, um novo aprendizado. Podemos escolher vivê-la de várias
formas. Winnicott costumava afirmar que a saúde deve sempre assumir seus
próprios riscos (2005b). A escolha de viver a vida, ao mesmo tempo assumindo a
75
responsabilidade por ela e desfrutando da energia mágica dos prazeres, é tarefa
das mais complexas e valiosas. A possibilidade de realizar essa escolha encontra
suas bases na saúde mental que, por sua vez, está fundamentada nas experiências
de confiança, segurança e, principalmente, amor adquiridas nos primórdios de
nossa existência.

“Quando um navegante se orienta por uma estrela, ele sabe


que não irá alcançá-la, mas tomará seu rumo na direção da estrela.”

Wilfred Ruprecht Bion

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