Desenvolvimento Emocional Do Individuo
Desenvolvimento Emocional Do Individuo
Desenvolvimento Emocional Do Individuo
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................01
1. METODOLOGIA......................................................................11
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................68
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................71
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INTRODUÇÃO
“(...) o que me permite tornar-me a pessoa que sou, que não é senão eu”
D. W. Winnicott
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falta de segurança das mulheres grávidas prejudicam e, muitas vezes, impedem
que ofereçam cuidados satisfatórios a seus bebês. As situações de vida dessas
crianças que crescem marcadas pela privação dos cuidados e afetos iniciais das
mães nos convidam a pensar também sobre o papel do ambiente inicial no
desenvolvimento da saúde emocional do adulto.
Partindo desses questionamentos, resolvi me aprofundar na compreensão da
relação entre os cuidados ambientais e o desenvolvimento emocional, escolhendo,
para tanto, estudar o conceito winnicottiano de holding em uma produção artística.
O filme “Onde mora o coração” foi selecionado por permitir o
acompanhamento da personagem principal Novalee, desde quando era uma garota
grávida e abandonada até chegar a ser uma mulher autônoma e bastante
independente. Nesse processo, recebe da senhora Thelma, uma desconhecida que
acaba por se tornar uma grande amiga, um conjunto de cuidados especiais que
podem ser descritos sob os termos do conceito de holding.
O holding, conforme conceitua Winnicott, é o conjunto de cuidados
combinados que proporcionam ao indivíduo uma condição ambiental de segurança,
confiança e sustentação, possibilitando o exercício da continuidade e do senso de
ser (2005a). O autor apresenta o conceito de saúde mental como a manifestação
desse modo de ser, sempre levando em conta a maturidade relativa à idade do
indivíduo:
“A saúde (mental) inclui a idéia de uma vida excitante e de
magia da intimidade. Todas essas coisas andam juntas e combinam-
se, na sensação do se sentir real, de ser e de haver experiências
realimentando a realidade psíquica interna, enriquecendo-a, dando-lhe
direção. A conseqüência é que o mundo interno da pessoa saudável
relaciona-se com o mundo real ou externo, e mesmo assim é pessoal e
dotado de uma vivacidade própria.” (2005b, p. 14)
Ele complementa:
11
Na busca do pensamento de outros autores, deparei-me com o trabalho do
psicólogo inglês John Bowlby, responsável por inúmeras pesquisas que relacionam
saúde mental com cuidados maternos.
Com base nos pressupostos do pensamento psicanalítico, Bowlby produziu,
em 1950, um extenso trabalho para a ONU (Organização das Nações Unidas) sobre
as necessidades das crianças sem lar. Os resultados de suas pesquisas
concordaram diretamente com as postulações de Winnicott sobre os princípios
básicos da saúde mental infantil, levando-o a confirmar que a qualidade dos
cuidados parentais que uma criança recebe em seus primeiros anos de vida é de
importância vital para sua saúde mental futura.
Bowlby esclarece:
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Uma atualização do trabalho de Bowlby é conduzida nas décadas seguintes
por renomados especialistas e publicada sob o título de “Deprivation of maternal
care: a reassessment of its effects” (1962). O mais longo artigo desse conjunto de
estudos é da Dra. Mary Ainsworth, no qual ela faz um levantamento abrangente
sobre o tema e termina propondo que inúmeros e importantes efeitos negativos
observados em adolescentes e adultos são derivados da privação da mãe em suas
diversas formas e graus (2006a). Os principais dentre eles relacionam-se aos
atrasos no desenvolvimento intelectual, social e da linguagem, às dificuldades de
adaptação com a realidade e o meio exterior, ao empobrecimento e retração
afetivos, à acentuada tendência à depressão e aos problemas de humor. Ela
acrescenta que a descontinuidade das relações, principalmente nos casos em que
ocorrem repetidas separações da mãe, tem como maior efeito a incapacidade de
estabelecer relações afetivas com outros ou consigo mesmo. Examinando as provas
acumuladas em seu trabalho, a Dra. Ainsworth conclui que:
14
existência própria de maneira autêntica, plena e madura que, no final, pode ser
expressa como uma vida de saúde mental. Partindo dessa premissa, o processo de
análise, interpretação e reflexão sobre as cenas do filme “Onde mora o coração”
investiga as manifestações de holding na história da personagem principal Novalee
como condição necessária para que ela se desenvolva emocionalmente e se
capacite a cuidar de si e de seu bebê.
Acredito que a reflexão proporcionada por este estudo pode ajudar no
trabalho dos profissionais envolvidos na promoção da saúde mental por destacar as
condições que favorecem o cuidado satisfatório de bebês, bem como ajudar no
esclarecimento da necessidade de um ambiente seguro e de confiança para as
mulheres grávidas durante os processos de gestação, do nascimento e dos
primeiros cuidados com seus bebês. Pode, ainda, colaborar com psicólogos,
educadores, assistentes sociais, e demais profissionais de saúde na elaboração de
condutas mais favoráveis para o atendimento de adultos em situação de
vulnerabilidade emocional originada a partir da privação afetiva na infância.
Bowlby destaca que, graças à importância das descobertas para a assistência
à criança, o estudo dos efeitos da privação da mãe e de um ambiente facilitador
inicial chamou a atenção sobre a compreensão do desenvolvimento infantil,
despertando o interesse dos profissionais da saúde para essa questão fundamental.
O autor ressalta que tanto
15
As palavras de Winnicott também nos servem de exemplo:
16
1. METODOLOGIA
17
O filme “Onde mora o coração” foi escolhido por oferecer uma aproximação
bastante efetiva com a realidade das situações do cotidiano contemporâneo,
expondo uma ampla gama sentimentos que prevalecem nas relações interpessoais,
tanto aqueles presentes nas relações familiares pontuadas pelo afastamento,
desamparo e individualismo quanto aqueles que se sobressaem nas relações de
amizade e solidariedade.
O critério adotado para selecionar as cenas partiu do pressuposto de que as
situações escolhidas permitissem verificar a correlação entre o processo de
maturação emocional de Novalee, a personagem principal, e as condições de
relacionamento que ela estabelece com as pessoas ao seu redor e com o contexto
global de sua realidade. Buscaram-se cenas que destacassem as alterações da
condição psíquica da personagem ao longo do filme de modo a oferecer uma visão
crítica de seu desenvolvimento emocional.
As cenas escolhidas mostraram-se representativas e bastante pertinentes
com o tema proposto, pois ofereceram circunstâncias adequadas para a observação
do holding como forma primordial de relacionamento entre as personagens e seu
efeito no desenvolvimento emocional da personagem principal.
Os itens 1.1. e 1.2., expostos a seguir, trazem, respectivamente, a
apresentação do filme e a sinopse.
O ítem 2. apresenta a descrição e a análise interpretativa das cenas ou
situações escolhidas. A descrição de cada cena expõe minuciosa e objetivamente as
situações significativas da história de Novalee. Nesta etapa, encontra-se o que se
pode considerar como sendo os conteúdos manifestos da saga da jovem. A análise
interpretativa das cenas, por sua vez, começa com uma apreciação criteriosa dos
conteúdos descritos anteriormente e segue através de um exame crítico dos
aspectos que relacionam os acontecimentos vivenciados pela garota e o tema
estudado, de maneira a explicitar os sentidos que se escondem e se revelam no
discurso dos personagens. Em seu artigo “Da linguagem, do símbolo e da
interpretação” (1965), Paul Ricoeur descreve que a obra de Freud tem o privilégio
de renovar não somente a psiquiatria, mas sobretudo a totalidade das produções
psíquicas relacionadas com a cultura, do sonho à religião, passando pela arte e pela
moral. Ele afirma que “É a esse título que a psicanálise pertence à cultura moderna.
É interpretando a cultura que ela a modifica. É conferindo-lhe um instrumento de
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reflexão que a marca de modo duradouro.” (1965, p.3). Nesse sentido, pode-se
considerar que o discurso humano está inscrito numa região da linguagem repleta
de significações complexas onde um outro sentido ao mesmo tempo se revela e se
oculta. Esse lugar do duplo sentido pode ser descrito como a região na qual se
inscreve a linguagem simbólica. Assim, em lugar de linguagens unívocas, o discurso
humano é carregado de expressões de duplo sentido, como se prestasse a
dissimular aquilo que pretende dizer o desejo. O exercício da interpretação é uma
inteligência do duplo sentido, é a revelação do que não é manifesto e imediato à
compreensão. A análise apresentada neste estudo parte dessa compreensão e
estabelece seu foco no exercício de desvelar o que há de simbólico e oculto na
linguagem expressa pelos personagens, tomando como referência os domínios da
teoria psicanalítica winnicottiana.
No ítem 3. é desenvolvida a discussão e elaborada a reflexão a partir da
análise das cenas. Nesta etapa, é produzido um diálogo entre a análise
interpretativa baseada na compreensão pessoal dos contextos cinematográficos e a
teoria psicanalítica. Relatos de vários outros autores, como Melanie Klein, John
Bowlby, Béatrice Dessain, Masud Khan, Elsa Dias, Conceição de Araújo e Orestes
Forlenza Neto, foram incluídos nas discussões. Suas ideias tanto contribuem para
enriquecer a compreensão das situações analisadas como auxiliam na construção
de uma releitura dos pensamentos principais de Winnicott a partir de diversas
perspectivas.
O item 4. apresenta as considerações finais em que se destacam as
impressões pessoais a respeito do processo de elaboração deste estudo e seus
desdobramentos.
Faz-se importante frisar que as considerações apresentadas neste trabalho a
respeito da infância precoce da personagem principal Novalee, e que não se
encontram explicitadas no filme, foram utilizadas como suposições e premissas
para as interpretações e as análises bem como para as posteriores discussões
referidas na teoria psicanalítica.
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1.1. FILME “ONDE MORA O CORAÇÃO” - FICHA TÉCNICA
Nome original: Where the heart is
Nome (Brasil): Onde mora o coração
Diretor: Matt Williams
Elenco: Natalie Portman, Ashley Judd, Joan Cusack
Produção: Susan Cartsonis, David McFadzean,
Patricia Whitcher, Matt Williams
Roteiro: Lowell Ganz, Babaloo Mandel
Baseado no Livro: Where The Heart Is , de
Billie Letts (romancista e educadora americana,
professora na Southeastern Oklahoma State
University)
Ano: 2000
Estúdio: Twentieth Century Fox Film
Corporation / Wind Dancer Productions
Novalee Nation (Natalie Portman), 17 anos e grávida, nunca teve uma família
de verdade. O mais próximo que já teve disso foi com seu namorado egoísta, com
quem está viajando rumo a Califórnia. Ao chegar em Oklahoma, fazem uma parada
para ela ir ao banheiro em uma loja da rede Wal-Mart à beira da estrada. Quando
Novalee retorna ao estacionamento, não encontra o namorado, que, na verdade, a
havia abandonado. Novalee fica perambulando pelo supermercado, sem saber o
que fazer. Sozinha e sem dinheiro algum, resolve se instalar na loja. Passa a dormir
escondida nos corredores, pega suprimentos das prateleiras e usa o espaço do
supermercado como se fosse sua própria casa. Até a noite em que entra em
trabalho de parto e dá a luz à sua filha em pleno mercado. Esse fato as torna
personalidades instantâneas. Nessa nova situação, Novalee começa a fazer novos
amigos e se torna parte de uma família não convencional, que irá ajudá-la a se
transformar de uma adolescente sem-teto em uma mulher adulta e dona da própria
vida.
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2. ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DAS CENAS DO FILME
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CENA 1 – NOVALEE E O NAMORADO PARTEM EM VIAGEM
DESCRIÇÃO:
Novalee, uma adolescente grávida e o namorado se despedem de amigos
antes de partir para uma viagem, enquanto ela detalha para eles sua relação
nefasta com o número “cinco”: a mãe a abandonou aos “cinco” anos para viver com
um juiz de beisebol e nunca mais voltou; após largar a escola, começa a trabalhar
em uma lanchonete até que, durante uma discussão, uma colega de trabalho corta
seu braço com uma faca o que lhe rende uma cicatriz com “cinqüenta e cinco”
pontos.
A garota constata aliviada que na placa do carro não consta o número
“cinco”. O namorado apressa a garota dizendo-lhe que são quase “cinco” horas.
Imediatamente, um desconforto ocupa a mente da garota. O carro arranca
deixando para trás um foco de fogo causado pela bituca de cigarro que o rapaz
lança pela janela e, em seguida, atinge a gasolina que vazou do carro velho.
Logo nos primeiros momentos da viagem, Novalee conta ao namorado seu
sonho de ter uma casinha com vista para o mar ou lago para que ela possa se
sentar sob um guarda-sol, tomando achocolatado, enquanto aprecia seu bebê
brincar; em seguida, lembra-se de que sua vida sempre esteve sobre duas rodas...
INTERPRETAÇÃO:
Nessa cena, o fogo parece prenunciar a sequência de acontecimentos que a
aguarda, uma situação de “incêndio” ou ainda, um “furacão” que pode destruir sua
vida, mas da qual ela não pode escapar. Principalmente, fica explícita a condição
existencial que lhe é própria: a condição de uma garota abandonada, sem amparo e
proteção, sem apego a nada, pois está sempre se mudando, sem ter “algo” fixo que
possa lhe oferecer segurança e continuidade. O único objeto de valor pessoal que
carrega consigo é a máquina fotográfica.
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CENA 2 - NA ESTRADA
DESCRIÇÃO:
Tomada pelo sono, Novalee dorme profundamente ao lado do namorado, que
se irrita e a acorda rudemente. Ela pede para fazer uma parada para ir ao banheiro.
Percebe que perdeu os sapatos pelo buraco que há sob seu banco, no carro.
INTERPRETAÇÃO:
O namorado, com sua atitude impaciente, mostra a inospitalidade com que o
ambiente se apresenta para Novalee. Parece que a mensagem que o ambiente lhe
impõe é que cuidar dela é penoso e inconveniente. O buraco no chão do carro
sugere a falta de sustentação e apoio que Novalee vivencia constantemente na
vida. Parece mesmo que seu bebê, assim como ela própria, podem deslizar pelo
buraco sem fim em direção ao ilimitado, ao nada, ao vácuo, à falta de tudo.
DESCRIÇÃO:
Estacionam o carro em um supermercado Walmart à beira da estrada.
Enquanto Novalee está dentro da loja, o namorado vai embora sozinho,
abandonando-a. Ao sair do mercado, procurando pelo carro, a jovem se dá conta
de foi abandonada pelo namorado e que a única coisa que o rapaz deixou no chão
do estacionamento foi a sua velha máquina fotográfica. Novalee fica, então, por um
bom tempo tirando fotos dos chinelos que acabara de comprar.
INTERPRETAÇÃO:
Durante alguns minutos, Novalee permanece imóvel agarrada à sua máquina
fotográfica, enquanto tenta se apropriar do acontecimento.
Esta cena concretiza, para Novalee, sua queda no “poço sem fundo”. Sem
apoio, sem perspectivas e sem projeto de continuidade... Esse contexto
reapresenta a ocorrência do abandono. Essa situação é vivenciada como um
trauma, uma repetição da descontinuidade no cuidado. O que lhe resta é “reagir”
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ao meio, pois uma “ação” criativa e transformadora fica indisponível pelo alto nível
de ansiedade gerado pelo momento aflitivo.
A jovem se imobiliza diante da situação traumática e, a partir de então,
passa a empregar um sofisticado e necessário sistema defensivo para dar conta da
situação.
De verdade, Novalee só pode contar nesse momento com um objeto externo,
a máquina fotográfica, para lhe dar conforto, pois carece de objetos bons
internalizados que lhe ofereçam sustentação na condição de desemparo.
DESCRIÇÃO:
Novalee entra no supermercado para almoçar e lá decide morar. Passa os
dias lendo e vagando pelos corredores e, durante as noites, usa um saco de dormir
retirado das prateleiras. Tudo o que pega do mercado é cuidadosamente anotado
como “compras” em um caderninho.
Novalee cria uma “casa” para si dentro do mercado. À noite, arruma sua
“cama” com travesseiro e cobertas; aciona despertadores para poder acordar antes
da entrada dos funcionários; lava-se e faz a higiene pessoal nos banheiros do
mercado; escolhe produtos das gôndolas para suas refeições; assiste aos
programas que passam nos aparelhos de televisão espalhados pela loja; segue até
mesmo uma rotina de exercícios físicos que aprende na programação de
condicionamento físico, utilizando equipamentos do próprio mercado. Segue um
regime de horários de forma a não ser notada e, consequentemente, incomodada,
pelos funcionários da loja.
INTERPRETAÇÃO:
Novalee parece se defender de uma situação altamente angustiante
adotando uma postura de alienação com a realidade exterior. Ela se fecha em seu
mundo e vive na “redoma de vidro” que criou para si, afastando-se dos perigos à
sua volta.
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Parece que, pela impossibilidade de entrar em contato com uma ansiedade
insuportável, que é a de se reconhecer totalmente desamparada e sem apoio,
Novalee adota uma posição de onipotência, como se quisesse afirmar para si
mesma: “eu me basto neste ambiente que me proporciona as provisões necessárias
à minha sobrevivência”.
Utilizando-se da máscara da onipotência e da autossuficiência, ela atua um
falso self, uma defesa estabelecida e organizada como proteção ao seu estado de
abandono. Ela inventa um mundo fictício (em um espaço real) que a mantém
afastada da condição insegura e de desamparo na qual vivencia sua gravidez.
Desse modo, pode proteger o bebê também.
A realidade criada pela jovem no mercado é complexa e extremamente
organizada. Ela demonstra um senso de ordenação prático e bastante objetivo,
aparentando ter alcançado certa organização psíquica e temporal. Arruma e
organiza tanto seus poucos “pertences” como os horários de seu dia de modo a
criar uma rotina de tarefas diárias. No entanto, essa organização psíquica é
empregada por Novalee para se defender das ansiedades provenientes das
exigências do mundo externo.
Por outro lado, o controle sobre as tarefas cotidianas pode proporcionar a ela
e ao bebê as necessidades básicas de estabilidade e segurança, das quais
encontram-se privados pelo ambiente. A arrumação externa da “casa” sugere uma
tentativa de organizar o mundo interno. É como se, por meio da segurança da
rotina externa, ela pudesse garantir a permanência de algo bom (os objetos bons
internos) e, desse modo, vivenciar sua gravidez com mínima segurança.
DESCRIÇÃO:
Um dia, quando Novalee caminha pelo estacionamento do mercado, uma
senhora aproxima-se, apresenta-se como Thelma e diz lembrar-se da garota e do
seu nome: Ruth Ann Mott. Apesar de Novalee dizer que não é a pessoa a quem a
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senhora se refere, a mulher insiste, mostrando-se surpresa e bastante alegre
com a gravidez da garota.
Pausadamente, ela diz a Novalee: “No lar é onde começa sua história. O lar é
onde a pegam quando cai.” Em seguida, pergunta se a jovem lê a Bíblia. Com a
resposta negativa da garota, a senhora fica satisfeita e diz: “Os que lêem se
confundem. Por isso gosto de lidar com um capítulo por vez. Desse modo as
pessoas podem lidar com suas confusões pouco a pouco.”
Thelma, então, convida Novalee a seguir com ela: “Venha comigo, não vou
deixá-la ir de mãos vazias...” E continua, com voz solene: “Em nome da Associação
de Sequoyah, Oklahoma, eu te ofereço esta cesta com presentes.” Junto com a
cesta, a senhora presenteia Novalee com uma muda de castanheiro-da-índia, uma
árvore conhecida por conferir sorte a seu dono.
Despede-se, acaricia o rosto de Novalee, diz que foi muito bom ver a garota
e que ela será sempre bem vinda em sua casa. Aparentando certa desconfiança,
mas sem hesitar, Novalee aceita a mudinha.
INTERPRETAÇÃO:
Thelma, uma pessoa totalmente desconhecida, aproxima-se da jovem,
tratando-a como se fossem velhas amigas. Demonstra carinho e interesse genuíno
pela garota que acabou de conhecer. Essa atitude surpreende Novalee, tão
acostumada a ser negligenciada pelas pessoas.
Além disso, Thelma lhe presenteia com duas mensagens de grande
significância: a primeira diz respeito ao “lar”, explicando que é o lugar onde se
recebe apoio e segurança; a segunda, sobre os acontecimentos e o modo de lidar
com eles, respeitando o tempo da vida (quando afirma que “...as pessoas podem
lidar com suas confusões pouco a pouco”). Tudo isso é muito novo para Novalee
que, apesar disso, se disponibiliza a aceitar o acolhimento ofertado pela
desconhecida. Thelma, nessa circunstância, representa o ambiente acolhedor que
Novalee desconhece e, talvez por isso, a garota fica ao mesmo tempo receosa e
interessada pelo convite do ambiente.
Novalee tem que lidar com a ambiguidade da situação: algo bom se
apresenta e isso desperta nela o desejo de manter o sentimento agradável; por
outro lado, ela parece desconfiada e arredia com a atitude de Thelma, talvez
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imaginando que esse algo bom possa vir a traí-la, restabelecendo o desamparo,
mais uma vez.
Para se distanciar desse tipo de sentimento de abandono, ela tem uma saída,
já tão conhecida sua: seu organizado sistema de defesas criado para protegê-la das
angústias assustadoras em que predominam o retraimento e a cisão com a
realidade.
Apesar do fato de Novalee ter se organizado defensivamente para enfrentar
sua dura realidade, parece que a ação amorosa de Thelma é capaz de transportá-la
para uma nova posição, resgatando um tipo de funcionamento psíquico que se
encontrava adormecido e estagnado dentro da jovem. A necessidade de ser tratada
com carinho e atenção se sobrepõe às suas defesas organizadas, abrindo uma
brecha de onde emerge a possibilidade de transformação do estado emocional em
que se encontra fixada.
E, assim, Novalee aceita a mudinha da planta e a oferta de amor do
ambiente.
DESCRIÇÃO:
Novalee conhece um fotógrafo profissional que faz fotos de crianças dentro
do mercado. Ele fica seu amigo. Falam sobre a importância do nome de uma
criança.
INTERPRETAÇÃO:
Nesta cena, um novo personagem se junta como parte de sua rede de
cuidadores no futuro. A profissão do fotógrafo aproxima Novalee de um interesse
que ela já trazia consigo.
Antes de partir em viagem com o namorado, pede uma última foto com as
amigas, demonstrando ter uma ligação especial com a máquina e o registro de suas
memórias. Ao ser abandonada no supermercado, a única coisa (real) que resta e
permanece consigo, de toda sua história, o seu passado, é sua máquina fotográfica.
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Essa relação com o fotógrafo prenuncia a descoberta do trabalho como
expressão criativa de vida, pois ela, no futuro, se torna fotógrafa profissional.
DESCRIÇÃO:
Novalee vai à biblioteca da cidade buscar informações sobre o castanheiro-
da-índia e conhece o bibliotecário Forney.
INTERPRETAÇÃO:
Nessa cena, Novalee mostra uma disposição para a busca de algo novo para
si. Thelma possibilitou uma mudança significativa na vida de Novalee, marcada, até
recentemente, pela sobrevivência defensiva. Já no primeiro encontro entre as duas,
ela olhou Novalee como uma pessoa merecedora de atenção e cheia de potencial.
Ao “transformá-la” em cuidadora da mudinha de árvore, a senhora ressaltou a
capacidade da garota de cuidar de “algo” - de “si mesma”. Depois acolheu a
garota, convidando-a a frequentar sua casa e aproximar-se de seus amigos.
A oferta de holding feita por Thelma traz para Novalee uma nova
possibilidade de experimentar a realidade. Agora, surge algo bom que permeia suas
relações com as pessoas. Esse “objeto bom” que a realidade externa oferece pode
penetrar a casca defensiva que ela criou desde pequena, e transformar-se em um
“objeto bom internalizado”. O objeto externo deixou de ser unicamente
persecutório e ameaçador. O “objeto mau internalizado” não mais precisou ser
projetado para fora e mantido afastado por seu invólucro protetor. Novalee pode,
assim, começar a integrar os objetos externos aos internos, construindo uma nova
relação com a realidade. O objeto externo, antes tido como assustador e
terrificante e que, portanto, não permitia uma aproximação por conta de sua frágil
constituição psíquica, pode ser finalmente acessado, pois agora o ambiente passou
a oferecer apoio e sustentação.
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Na visita à biblioteca, a garota mostra um movimento de retribuição aos
acenos de aproximação de Thelma. Algo foi mobilizado dentro dela, indicando uma
possibilidade de transformação para um novo encontro consigo mesma.
DESCRIÇÃO:
Novalee vai à casa de Thelma e conhece seu companheiro, o Sr. Sprock. Eles
a recebem calorosamente, convidam-na para lanchar e, antes da refeição, se unem
em uma reza na qual Thelma pede pela saúde da garota e de seu bebê. Depois, os
três se ajudam no plantio da árvore.
INTERPRETAÇÃO:
A cena em que plantam juntos a árvore é bastante marcante. Esse momento
traz a concretização da ideia de que a planta pode ser a representação da própria
Novalee. Ao inserir a mudinha na terra, em um meio fértil capaz de suprir as
necessidades básicas para seu crescimento, ela pode vir a desabrochar e seguir seu
caminho de crescimento.
O casal, assim como a terra para a muda da árvore, representa para a jovem
a base de nutrição e alimento básico necessário para fazer florescer seu potencial
de vida.
DESCRIÇÃO:
Novalee dá a luz a seu bebê dentro do supermercado com a ajuda de Forney,
que quebra a janela de vidro do mercado e socorre Novalee e o bebê, levando-os
ao hospital.
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INTERPRETAÇÃO:
Uma pessoa “praticamente” estranha, com quem ela mal estabeleceu
vínculo, surge para ajudá-la em um momento de crise caracterizado pelo
nascimento do bebê em um local inóspito como o supermercado. Forney se arriscou
para socorrê-la, em uma clara demonstração de respeito e, principalmente, de
amizade por Novalee.
Entretanto, Novalee tem um sentimento de ambivalência em relação ao
rapaz, pois no encontro da biblioteca, o rapaz se apresentara cheio de segredos.
Isso a perturbava por despertar um sentimento de insegurança com relação a algo
“não revelado” guardado pelo outro. Essa insegurança traz à memória a traição de
sua mãe. Ou ainda, o abandono do namorado, que ela imaginava, agora, ter sido
planejado por ele desde o início da viagem.
Nesse momento, o sentimento da garota é de reexperimentar a instabilidade
dos cuidados ambientais.
DESCRIÇÃO:
Em seguida ao nascimento do bebê, Novalee passa a ser reconhecida como
uma celebridade. Torna-se a “mãe do Walmart”. Recebe dinheiro e presentes da
rede de supermercados.
Antes de perguntar sobre a filha, Novalee preocupa-se com outras questões,
como o pagamento que deve fazer ao Walmart e se o hospital ficará com seu bebê.
Somente depois de se certificar que não está em apuros, pergunta sobre seu bebê.
Lembra-se que precisa escolher um nome para a filha e decide-se por
Americus, afirmando ser um nome forte e significativo.
INTERPRETAÇÃO:
O comportamento de Novalee, tão centrado em si própria, demonstra que ela
ainda não foi capaz de estabelecer um contato total com seu bebê, mesmo depois
do nascimento. Ela continua exercendo certo isolamento defensivo, procurando
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saídas para sua sobrevivência. Suas preocupações estão voltadas para as questões
práticas e para as necessidades básicas como o pagamento do hospital.
Mais uma vez, Novalee confronta-se com o desamparo e a falta de
sustentação do ambiente. Ela não pode se “tornar mãe” sem o apoio satisfatório do
ambiente. Utiliza, novamente, o mecanismo defensivo como forma de se lidar com
a realidade, pois o ambiente é volúvel e não traz confiança. Ela alterna
sentimentos de apego e desapego com a realidade.
DESCRIÇÃO:
A mãe de Novalee chega ao hospital. Diz que enfrentou uma longa e
extenuante viagem para vê-la, pois estava preocupada com a situação da filha e da
neta. Ficou sabendo do nascimento da garotinha através de uma notícia na TV.
Sensibilizada pela atitude da mãe, Novalee a agradece por ter vindo ampará-
la. A mãe não dá atenção ao agradecimento da filha e se vai.
31
INTERPRETAÇÃO:
DESCRIÇÃO:
Novalee permanece à espera da mãe durante toda a manhã, sentada em
uma cadeira de rodas com o bebê no colo. Tem o olhar perdido e sem espera
Após muita expectativa, já no início da tarde, Thelma vem ao encontro das
duas. Ela conversa e brinca com o bebê. Diz à Novalee que gostaria que elas
fossem morar em sua casa para ajudar a cuidar da mudinha plantada no quintal.
Além do mais, afirma que ela e o Sr. Sprock ficariam extremamente felizes se
pudessem cuidar das duas.
Sem dizer uma palavra, Novalee aceita e as três seguem juntas para a casa
de Thelma. Lá, ela e a filha se instalam e passam a morar definitivamente.
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INTERPRETAÇÃO:
Esta cena mostra o sentimento generalizado de desesperança que se apodera
de Novalee.
Ao se defrontar com a passagem de mais um “furacão” em sua vida, ela se
retrai. Fica sentada em uma cadeira de rodas, com o bebê recém-nascido no colo,
aguardando a ajuda e os cuidados da mãe que não se concretizam nunca. Novalee
permanece toda a manhã na mesma posição, sem ação perante uma falha
ambiental que, de alguma forma, já era esperada por ela, pois remetia às cenas
repetitivas e recorrentes do seu passado. Ela sempre experimentou a vida sem que
suas necessidades básicas de cuidado e de afeto fossem atendidas. Esse momento
só reinstala e enfatiza o estado de carência e total vulnerabilidade em que ela vive.
Novamente abandonada pela mãe, sua história se repete.
Desta vez, no entanto, a presença da amiga, oferecendo-lhe apoio, é
fundamental para que ela possa encontrar outra forma de se relacionar com a dura
realidade. Contando, agora, com o apoio e a sustentação ambiental, Novalee pode
desenvolver um sentimento de esperança em relação à uma nova realidade, desta
vez amistosa e conciliadora.
Assim como a mudinha da árvore se fixou na terra, Novalee se aloja
definitivamente no seio daquela família. Dela, recebe o atendimento às suas
necessidades de cuidados, afetos e proteção. Consegue se sentir segura, pois tem
confiança na nova família. E pode, agora, retomar seu processo de
desenvolvimento emocional.
DESCRIÇÃO:
Novalee leva a filha para tirar fotos com o bibliotecário Forney. Usa a
máquina fotográfica que o amigo fotógrafo deu para Americus.
INTERPRETAÇÃO:
Nesta cena, Novalee parece querer agradecer ao rapaz que a ajudou no
parto. Escolhe para isso o seu objeto de maior valor e identificação, que é a sua
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velha máquina fotográfica. No ato de agradecimento, ela inclui o bebê, o que
sugere o início de uma aproximação emocional com sua filha.
DESCRIÇÃO:
Novalee consegue um emprego no Walmart. Arruma-se para sair enquanto
Sr. Sprock prepara um lanche para ela levar ao trabalho. Ele e Thelma ficam em
casa cuidando do bebê.
INTERPRETAÇÃO:
A situação descreve uma cena típica de uma família generosa, em que as
pessoas cooperam umas com as outras. Novalee, agora, faz parte de um mundo
totalmente diferente e ao qual ela parece ir se ajustando, aos poucos. De qualquer
modo, faz isso com naturalidade. Participa dessa relação como se, há tempo,
fizesse parte desse grupo familiar. O ambiente passa, gradativamente, a oferecer a
sustentação necessária para que ela adquira confiança nele.
DESCRIÇÃO:
Novalee começa a estudar fotografia em livros que encontra na biblioteca do
bairro, com a ajuda de Forney. Aos poucos, aproxima-se do rapaz, formando um
laço de amizade estreita. Vão, juntos, a uma feira de antiguidades à procura de um
presente para o aniversário de seis anos de união entre Thelma e o Sr. Sprock. Lá,
encanta-se com uma antiga máquina fotográfica profissional. Compra o aparelho e
pede que seu amigo fotógrafo a recupere, pois pretende usá-la no futuro.
Envergonhada, Novalee confessa ao fotógrafo o sonho de se tornar uma fotógrafa.
Ele, bastante entusiasmado com a idéia, incentiva Novalee e se prontifica a ajudá-
la na concretização do sonho.
34
INTERPRETAÇÃO:
Novalee procura um presente para os dois amigos, indicando uma intenção
de estar sempre “presente” na vida dos dois e a necessidade de retribuir o carinho
dos amigos.
Por outro lado, o fato de ter a companhia de Forney no passeio parece deixar
Novalee à vontade para se aproximar do objeto estimado, que é representado pela
máquina fotográfica.
O sonho de se tornar fotógrafa se mostra mais uma vez, refletindo seu
desejo de se tornar autônoma, através do exercício de uma profissão.
A rede de cuidadores de Novalee se amplia, com a participação de Forney e
do fotógrafo.
DESCRIÇÃO:
Novalee sai com Forney para comprar uma árvore de Natal.
Emocionada, ela conta ao amigo uma história da época em que tinha oito
anos de idade: “a mulher com quem eu morava me havia prometido uma árvore de
Natal. Mas, ao invés de cumprir o prometido, ela gastou todo o dinheiro comprando
gaitas. Percebendo que eu tinha ficado chateada, pintou uma árvore de Natal na
parede da sala de estar. Essa foi a única árvore de Natal que “tive” em toda minha
vida.” Em seguida, diz estar ansiosa para mostrar a árvore de Natal para Americus.
INTERPRETAÇÃO:
Aqui, Novalee se refere à qualidade de ambiente que teve durante a infância.
A senhora que é responsável pela menina faz uma promessa e não cumpre. Por
outro lado, a mesma mulher acena com algum cuidado ao substituir a árvore real
pela árvore pintada.
Novalee pode, finalmente, aproximar-se de sua história, pode reviver seu
passado, sem que haja um colapso defensivo. Pode também incluir sua filha na
nova história que ela começa a escrever para sua vida.
A simbologia da árvore se repete na história de Novalee.
35
CENA 17 - A FAMÍLIA DE NOVALEE
DESCRIÇÃO:
Passa o tempo, Novalee continua morando com Thelma e progredindo na
profissão de fotógrafa. Americus completou três anos e ajuda Thelma a fazer uma
torta na cozinha. As duas brincam com a massa, imitando pequenos animais.
Novalee se arruma para fotografar um casamento. Forney se oferece para levá-la
ao local da festa. Novalee pergunta à Thelma se ela está bem vestida para a
ocasião e a senhora responde: “Você está linda!” Recomenda-lhe ter cuidado ao
dirigir. Novalee despede-se da filhinha, abraçando-a carinhosamente. Ela parte na
companhia de Forney.
INTERPRETAÇÃO:
Thelma age como se fosse a mãe de Novalee e de Americus. Ela estimula a
brincadeira na relação com a garotinha e apoia Novalee no exercício da profissão
que ela escolheu. Thelma transmite segurança e confiabilidade à mãe e à filha.
Todavia, a situação sugere que Novalee ainda não dá conta de cuidar
integralmente da filha, pois está no processo de tornar-se responsável pela própria
vida.
DESCRIÇÃO:
Forney decide mudar para outro estado para continuar seus estudos na
universidade. Novalee fica muito triste.
Quando Forney volta à cidade, a jovem conta que estava muito chateada. O
rapaz diz que a ama e que quer muito ficar com ela e com Americus. Reticente, ela
diz que não sente interesse por ele, não o ama verdadeiramente e põe-se a
chorar. Diz que ele é somente um grande amigo, mas o melhor que teve na vida.
Novalee procura a amiga enfermeira Lexie e ela aconselha a jovem a confiar
em Forney. Diz que, pelo fato de não acreditar em si mesma, Novalee rejeita o
amor dele, que ela não é capaz de aceitar que alguém possa amá-la de verdade,
36
porque fica presa no passado que sempre lhe apontou o oposto do amor e da
confiança: sua mãe abandonou-a na infância, o namorado sumiu, deixando-a
grávida e sozinha na beira da estrada... Lexie lembra Novalee de que essas atitudes
só confirmam que seus autores são pessoas “(...) imprestáveis, mas não se
referem a você, Novalee.”
INTERPRETAÇÃO:
Novalee parece não conseguir se desvencilhar de sua história passada.
Talvez por amar demais o amigo, ainda que não reconheça isso claramente, ela o
afasta, temendo uma rejeição. Novalee se defende. Desconhece a própria
capacidade de lidar com o que está por vir. O futuro sempre lhe trouxe notícias
ruins, aquelas mesmas que estavam relacionadas com o número “cinco”. Essa
previsão negativa do futuro, sempre relacionada a esse algarismo, permanecia
presente como “algo”, um objeto mau internalizado, que prendia Novalee às
experiências frustrantes do seu passado.
Na história com Forney, ela revive os momentos de insegurança e frustração
que experimentou quando pequena e não consegue se libertar para, enfim, lançar-
se a uma nova história.
CENA 19 - O FURACÃO
DESCRIÇÃO:
Certo dia, um furacão atinge a região onde vivem Novalee e seus amigos.
Thelma pede a todos que se protejam no esconderijo, enquanto sai para ajudar
uma família vizinha. Novalee aguarda ansiosa pela chegada de Thelma ao abrigo.
Após a passagem do furacão, que termina por destruir completamente a casa
em que moravam, descobre que a amiga morreu durante a tormenta.
Desolada, Novalee passa o dia a caminhar sobre os pedaços de madeira da
casa, espalhados pelo campo. Ela fotografa o que restou do seu lar e faz uma foto
especial da filha, abraçada ao ursinho de pelúcia em meio aos destroços, sob a
frondosa árvore na qual se transformou a inicialmente tímida mudinha, presente da
amiga Thelma.
37
INTERPRETAÇÃO:
Outro “furacão” assola a vida de Novalee. Uma vez mais, ela se defronta com
a perda e a frustração. A amiga querida, que havia se transformado, a partir de
uma simples desconhecida, em uma pessoa de tamanha importância, se foi,
deixando-a sozinha para cuidar de si e da filha.
Ao tirar uma foto da filha sob a árvore, em meio aos destroços, Novalee
demonstra o carinho que tem pelas lembranças do lugar onde foi acolhida e amada
e ensaia uma despedida da amiga. Esses sinais indicam que ela adquiriu certa
capacidade para experimentar sentimentos depressivos de reparação. Em uma
demonstração de que é capaz de defender o que ama, ela fixa, através da imagem
congelada na câmera, a memória dos momentos bons passados com os amigos
queridos.
DESCRIÇÃO:
Durante o processo do inventário de Thelma, Novalee fica sabendo que a
amiga a tornara sua única herdeira. Atônita, ela questiona o Sr. Sprock, pois
acredita que deveria ser ele o herdeiro de Thelma. Ele nega seu interesse pelo
dinheiro e diz que preferia ter, como herança, as lembranças dos bons momentos
que haviam passado juntos. Novalee aceita a herança.
Com a ajuda dos novos amigos, constrói uma casa para ela e Americus. A
primeira coisa que Novalee faz, na nova casa, é sentar-se à sombra de um guarda-
sol e saborear um achocolatado, enquanto observa a filha a brincar no jardim.
INTERPRETAÇÃO:
Novalee se surpreende ao se dar conta que era tão importante e querida pela
amiga.
Após a morte de Thelma, o grupo de amigos se mantém unido e todos
ajudam Novalee na construção da casa, em uma demonstração valiosa de amizade
e companheirismo.
38
A manutenção dos cuidados é fundamental para Novalee que pode, agora,
estar sob a continuidade dos cuidados. Ela pode, assim, exercer sua autonomia de
mulher adulta, responsável pela própria vida e também pela vida da filha. Essa é
uma nova experiência de vida que pode emergir a partir da sustentação, ao longo
do tempo, dos cuidados ambientais.
O acolhimento e o holding que o ambiente proporcionou à jovem nesse
momento da vida, tornou possível seu caminhar, desde a dependência para a
independência, no sentido de uma apropriação da vida madura, relativa à sua idade
adulta.
Novalee pode, enfim, desfrutar da concretização de seu sonho de garota na
nova casa.
DESCRIÇÃO:
Novalee recebe um prêmio de melhor fotografia do ano, outorgado por uma
importante empresa do setor, pela foto da filha em meio aos destroços do furacão,
sob a grande árvore. Durante a cerimônia de entrega do prêmio, ela homenageia
Thelma. Agradece pelo acolhimento, carinho e atenção que a amiga deu a ela e à
Americus, oferecendo um lar quando as duas não tinham para onde ir. Lembra que
foi a amiga quem lhe deu a mudinha da árvore, que, hoje, permanece registrada na
foto premiada.
INTERPRETAÇÃO:
A atribuição do prêmio destaca o sucesso profissional alcançado por Novalee
e, principalmente, confirma o valor de seu trabalho.
Na homenagem à amiga, Novalee faz uma reparação com seu próprio
passado. É como se ela pudesse se reconciliar com um momento crítico de seu
desenvolvimento emocional, em que, totalmente dependente dos cuidados
ambientais, ficou desamparada e só pode reagir à falha ambiental através da
estruturação psíquica defensiva e afastada da realidade.
39
Neste momento de vida, depois de ter sido acolhida e sustentada pelos
cuidados ambientais que a amiga lhe proporcionou, pode transformar sua vida e
criar uma nova realidade para si.
DESCRIÇÃO:
Forney retorna para a universidade. Novalee vai atrás dele. Diz que mentiu
ao afirmar que não o amava e que fez isso por acreditar que ele merecia alguém
melhor, pois ela não era boa o bastante para ele. Com um abraço carinhoso, Forney
declara-se, afirmando que ninguém jamais poderia ser melhor para ele. Os dois se
beijam.
Forney e Novalee, felizes, se casam em uma cerimônia em uma capela
improvisada dentro do Walmart, tendo um grande número de amigos como
convidados.
INTERPRETAÇÃO:
Finalmente, Novalee é capaz de reconhecer o amor que sente por Forney.
Com o casamento, mostra que, agora, é capaz de se envolver em um
relacionamento e criar, junto com seu amor e sua filhinha, uma nova história para
todos.
40
3. DISCUSSÃO SOBRE A INTERPRETAÇÃO DO FILME
41
fica marcada pela insegurança, rejeição e, principalmente, pela privação dos
cuidados maternos, pois a mãe jamais retorna.
Sob essa perspectiva, pode-se pensar que Novalee, já neste momento inicial,
se depara com uma condição amplamente desfavorável para o desenvolvimento
emocional saudável. Ela foi privada dos primeiros momentos de cuidados
adequados que constituiriam a fundação a partir da qual seu potencial poderia se
desenvolver.
Pode-se considerar que Novalee tenha imaginado a idade de “cinco” anos
como data em que a mãe a abandonou, de modo a concretizar, em um dado de
realidade, uma sensação de angústia que passa a acompanhá-la,
permanentemente.
No momento do abandono, as ansiedades primárias foram de tal ordem
exageradas e impensáveis que a obrigaram a se defender, através do fantasiar,
para que pudesse continuar a sobreviver. Seu ego, tão indefeso e frágil pela
ausência do suporte do ego materno, não suportou a agressão vinda do exterior.
Isso provocou tanto a fuga para a fantasia e para as explicações mágicas quanto
uma cisão na forma de a menina se relacionar com a realidade. Tal qual aparece na
superstição que ela criou em torno do numeral “cinco”.
A menina Novalee é uma criança marcada pelas falhas nos cuidados
ambientais iniciais. Houve o que se pode ser considerado como a passagem de um
“furacão”, que deixou importantes rastros, afetando significativamente a sua
possibilidade de adquirir as bases para a saúde mental.
Em sua teoria do desenvolvimento emocional, Winnicott explica que
42
ambientais que cercam a criança pequena, contrariamente à psicanálise tradicional
que, até então, se preocupava primordialmente com as necessidades instintivas do
ego e do id (2000).
As pesquisas iniciais de Freud estabeleceram uma relação entre as
psiconeuroses e a infância do paciente, que abrigava conflitos intoleráveis. Os
conteúdos conflitivos eram reprimidos pelo paciente através de mecanismos de
defesa que favoreciam o surgimento de sintomas, prejudicando, ou mesmo
interrompendo, o desenvolvimento emocional do indivíduo (2006b).
Quando se constatou que os conflitos associados às experiências instintivas
também eram observados em análises de crianças pequenas, levantaram-se
questionamentos sobre quais seriam as influências das vivências infantis mais
precoces na saúde mental dos adultos. Começou-se a pensar até que ponto as
psicoses poderiam se referir às condições de vida experimentadas pelos bebês no
início da vida. Tais constatações levaram à construção gradativa de uma teoria
extremamente complexa do desenvolvimento emocional do ser humano que parte
do princípio de que o distúrbio mental tem uma base psicológica. Foi possível
estabelecer, a partir da clínica infantil, uma vinculação entre o desenvolvimento das
crianças e os fenômenos psiquiátricos bem como entre os cuidados recebidos na
infância precoce e o cuidado aos pacientes mentais (2000).
É nesse contexto que Winnicott formula sua teoria, preocupando-se
primeiramente com as condições ambientais iniciais que permitem o
desenvolvimento amplamente complexo que se dá em cada criança, a partir da
base hereditária com que ela nasce. Ele parte da tese aceita por todos de que há
uma continuidade no desenvolvimento emocional do indivíduo ao longo da vida, de
modo que, nesse processo, a pessoa pode estar sob ameaça tanto de perigos
internos, representados pela base instintiva, como de perigos externos, relativos às
falhas ambientais (2000).
Em suas observações de crianças na pediatria e na clínica psicanalítica de
adultos, verificou que quanto mais se recua no exame do crescimento individual,
mais importância deve ser dada ao fator ambiental. Essa constatação permite a
aceitação do princípio de que a criança parte de uma condição de dependência total
rumo à independência ou autonomia (2005a).
43
Devido à extrema dependência emocional do bebê, seu desenvolvimento
assim como toda sua vida só podem ser estudados tendo em consideração os
cuidados que lhe são ministrados no início através de um “suprimento ambiental
satisfatório”. Por “ambiente satisfatório” entende-se aquele que facilita a realização
das potencialidades herdadas de modo que o desenvolvimento se dê de acordo com
elas. Começa com um alto grau de adaptação às necessidades individuais do bebê,
que geralmente é provido pela mãe capaz de estar em um estado tal de
identificação com a criança que pode lhe oferecer uma porção básica de cuidados
especiais, permitindo-lhe viver uma experiência de onipotência. Isso é possível
através de um processo de inter-relação bidirecional vivo que ocorre entre os dois,
em que a mãe se adapta constantemente ao mundo subjetivo do bebê. A esse
estado da mãe, que se inicia no período final da gravidez e avança até os primeiros
meses de vida do bebê, Winnicott dá o nome de “preocupação materna primária”.
(2000).
Neste momento, é importante detalhar a caracterização que o autor faz para
a denominação “ambiente”, pois, na perspectiva de valorização do ambiente em
que o autor apresenta de sua teoria do desenvolvimento emocional, esse é um
conceito-chave.
Araújo lembra que Winnicott, ao longo de todo sua obra, rejeitou o uso de
conceitos metapsicológicos por acreditar que eles raramente conseguiam definir o
que pretendiam. Preferia fazer usos de palavras coloquiais sempre que estivessem
adequadas ao seu pensamento. A autora explica que Winnicott fazia uso da palavra
“ambiente” para se referir às condições físicas e psicológicas necessárias ao
amadurecimento emocional do ser humano (2011a). Ela acrescenta que
44
É a partir dessa conceituação que Winnicott descreve o “ambiente
satisfatório” como o “ambiente facilitador” que permite o desenvolvimento das
potencialidades herdadas. Esse ambiente é, no início, absolutamente e depois
relativamente importante, pois uma das características essenciais do ambiente
facilitador é sua adaptabilidade. Na fase de dependência absoluta, há uma fusão da
mãe com o bebê (formando o par mãe-bebê), estabelecendo uma organização
ambiente-indivíduo da qual emergem as condições físicas e psicológicas capazes de
favorecer o amadurecimento da criança. Se esse ambiente não for suficientemente
bom, pode enfraquecer ou até mesmo interromper o desenvolvimento de seus
recursos potenciais.
Outra característica importante do ambiente facilitador é o fato de ser
sempre dinâmico, sendo capaz de se adaptar, desadaptar e se readaptar às
necessidades variáveis da criança, à medida que ela cresce.
Além de ser adaptável, o ambiente facilitador tem uma qualidade humana,
que leva em conta o processo “vivo” de relacionamento entre os seres humanos. Aí
encontra-se incluída a imperfeição e a falibilidade, características da condição
humana.
Araújo explica que as imperfeições próprias da adaptação humana às
necessidades é uma característica essencial do meio “ambiente facilitador
satisfatório” (2011a, p. 216). Segundo a autora,
A palavra “sustentação” (holding) abrange tudo o que pode ser descrito como
fenômeno de comunicação entre uma mãe e seu bebê, tanto em termos físicos
quanto em termos de expressões vivenciais que podem ser transmitidas pelo
compartilhamento de sentimentos e emoções.
No caso da garotinha Novalee, podemos afirmar que seu ambiente inicial, no
sentido do amparo e da sustentação, foi bastante insuficiente. Ela foi afastada de
todo tipo de comunicação com a mãe que, por sua vez, esteve incapacitada de lhe
fornecer a porção de cuidados necessários que podem ser descritos pelo termo
holding. Ocorreu uma interrupção total dos contatos com a mãe, podendo mesmo
se afirmar que nunca tenha existido uma sintonia entre elas que pudesse
46
caracterizar a instituição da dupla mãe-bebê, nos moldes propostos por Winnicott.
Quando o início é ruim, a continuação será necessariamente mais difícil. Ou seja, o
fato de a mãe ter abandonado a menina demonstra sua dificuldade de se identificar
com seu bebê e, conseqüentemente, de abdicar momentaneamente de si para se
dedicar aos cuidados da filha.
A mãe é essencial para o bebê, em vários sentidos. Os aspectos inerentes ao
ambiente satisfatório primitivo partem do princípio de que o ambiente “é” a mãe e
seu papel nesse processo é vital, pois é a instância que responde e “sustenta a
dependência do bebê”. As características principais da mãe, nesse momento do
desenvolvimento do bebê são (2011a):
a. simplesmente existir;
b. amar o bebê de maneira que ele possa compreender, ou seja, fornecendo-
lhe cuidados físicos (contato, temperatura corporal, movimento, quietude etc.);
c. fornecer-lhe condições de viver a solidão essencial e, mais tarde, a
oscilação entre os estados tranquilos e excitados;
d. fornecer alimento adequado em tempo também adequado;
e. deixar que o bebê domine, inicialmente (ou seja, tudo o que possa ocorrer
dentro do âmbito de sua onipotência);
f. apresentar a ele o mundo externo, comedidamente, de acordo com a
capacidade de assimilá-lo;
g. proteger o bebê de coincidências e choques, ou seja, tornar-lhe os eventos
minimamente previsíveis;
h. e fornecer-lhe estabilidade, como uma continuidade de cuidados que
permita ao bebê ir sentindo a “continuidade” pessoal e interna.
A mãe respeita o tempo do bebê e não apressa seu desenvolvimento, por
acreditar que ele é um ser humano total desde o início e, portanto, tem seus
direitos próprios.
Dessa forma, permite que ele se aproprie do tempo e se expresse na
dimensão da temporalidade tal qual sentida por sua subjetividade. Ou seja, o
processo de “continuidade” dos cuidados também engloba a diminuição da
adaptação da mãe de acordo com a crescente necessidade que o bebê tem de
experimentar reações à frustração. A mãe “sabe” as circunstâncias em que pode
deixar o bebê esperando e retardar sua função inicial de imediata satisfação de
47
forma tal que o bebê possa sentir-se bastante incomodado, em lugar de ficar
traumatizado pela incapacidade da mãe. (2005b).
Talvez Novalee possa ter suportado, logo no início, um ambiente
desfavorável por um período limitado de tempo. No entanto, a experiência do
abandono é demasiado traumática e desestabilizadora a ponto de causar a
interrupção dos processos de desenvolvimento no tempo, dando origem a uma
reação exagerada de desorganização psíquica contra a agressão ambiental. Sem
noção do que a aguardava, a menina passa pela intolerável experiência de sofrer o
efeito de algo sem ter a mínima ideia de quando aquilo tudo iria terminar. O
abandono produz uma ruptura intensamente significativa para Novalee, de modo
que as sensações provocadas pelas intrusões ambientais e também de suas
próprias reações tornam-se fatores adversos ao desenvolvimento do ego (2000).
Segundo Winnicott,
Como Novalee não pode contar com o apoio do ego da mãe (inicialmente,
deve ter sido fraco ou intermitente para depois, com o abandono, tornar-se
inexistente), ela não pode crescer em um caminho pessoal. Seu desenvolvimento
passou, então, a estar mais relacionado com uma sucessão de reações a colapsos
ambientais do que com suas necessidades internas e seus fatores genéticos.
O autor ensina que a “mãe suficientemente boa”, ou seja, aquela que foi
capaz de entrar no estado de “preocupação materna primária”, relaciona-se com
seu bebê, assumindo várias tarefas que podem ser expressas sobretudo pelas
funções de holding, manipulação e apresentação de objetos (2005a).
O holding refere-se à toda provisão ambiental anterior à possibilidade do
“viver com”, numa alusão à possibilidade das relações de objeto com a realidade
exterior. Está relacionado com a fase de “dependência absoluta” do bebê, na qual a
capacidade da mãe de identificar-se com seu bebê é primordial para a sua
sobrevivência. Nessa fase, enquanto o holding satisfatório proporciona segurança e
48
sustentação à criança, colocando-a na direção do estabelecimento da confiança no
ambiente, e que se traduz, gradualmente, em uma confiança em si próprio, o
holding deficiente diz respeito às condições ambientais que produzem extrema
aflição na criança, dando origem às ansiedades extremas relacionadas à sensação
de despedaçamento, à sensação de estar caindo em um poço sem fundo, e de um
sentimento de que a realidade exterior não pode dar continência e conforto à
realidade interna (2005a).
Essa é a sensação de Novalee no momento em que percebe que perdeu seus
sapatos (seu chão, sua base, sua segurança) pelo buraco do carro. É como se ela
fosse cair em um poço sem fundo... Ela não pode sequer contar com o conforto
interno, pois os cuidados na infância precoce não se sustentaram no tempo,
provocando uma sensação de ansiedade que a mantém sempre sem apoio, como se
ela estivesse suspensa no ar, diante de uma sensação de iminente queda livre em
direção ao vazio, ao nada. Como se ela estivesse em pedaços em um espaço sem
fronteiras ou limites para conter sua existência. Parece que o pior está sempre à
espreita.
O despencar em um buraco sem fim em direção ao vazio também se
relaciona com a falta de holding no sentido do segurar/sustentar físico. O vazio
como expressão da sensação de nada acontecendo, quando algo poderia ter
acontecido. Esse algo refere-se ao processo que é efetivado quando a mãe leva seu
bebê ao colo e o sustenta no tempo.
A manipulação (handling) do bebê pela mãe favorece a formação de uma
“integração psicossomática” na criança, ou seja, de uma inserção da psique no
soma. A base dessa inserção é a ligação das experiências funcionais motoras e
sensoriais com a sua vivência de ser uma pessoa. É o que se pode chamar de
estado unitário, que tem a ver com a produção de um esquema corporal em que se
delimita a experiência do “eu” interior com o “eu” exterior. Tanto em nível físico
como em outros mais sutis, a mãe ou o ambiente conservam as partes do corpo do
bebê, inicialmente vivenciadas como separadas, para que elas se juntem,
constituindo uma união corporal (2005a).
Deste modo, passa a fazer sentido para a criança o relacionamento com a
realidade exterior, pois o externo se forma em oposição à sua realidade psíquica
interna ou pessoal, ou ainda o “eu” próprio ou à união corporal adquirida (2007b).
49
O acariciar, o tocar, o segurar, enfim, todo o manuseio (handling) da mãe com o
bebê vai, aos poucos, favorecendo a criação desse corpo que passa a ser percebido
pelo bebê como portador de suas sensações e sentimentos, em diferenciação com a
mãe que cuida dele. E que não é ele, é o “outro”. A localização do “eu” dentro do
próprio corpo torna possível para o bebê adquirir o senso de “personalização”,
através do qual ele se torna capaz de ligar as experiências somáticas ao interior de
seu corpo físico.
Tudo isso contribui para a formação do sentido do “real” em oposição ao
“irreal”, no que pode ser descrito como o processo de “realização” (2005a). A partir
daí, podem ser vislumbradas as primeiras relações de objeto, em que
50
Como esclarece Winnicott, a independência ou autonomia é um processo que
51
3.2 SEGUNDO MOMENTO
“[...] bastante cedo, o ego do bebê tem uma relação com dois
objetos: o objeto primário, o seio, é, nesse estádio, dividido (split) em
duas partes: o seio ideal e o seio persecutório. A fantasia do objeto
ideal funde-se com as experiências gratificantes de amor e
alimentação recebidas da mãe externa real [...] ao passo que a
fantasia de perseguição funde-se com experiências reais de privação e
sofrimento, as quais são atribuídas aos objetos persecutórios. A
gratificação, portanto, não apenas preenche a necessidade de
conforto, amor e nutrição, mas também é necessária para manter
encurralada a perseguição terrificante; e a privação se torna não
apenas uma falta de gratificação, mas também uma ameaça de
aniquilação por perseguidores.” (1975, p. 38)
54
Em uma analogia com o conceito psicanalítico, parece tratar-se da mesma
função que os sintomas têm para a pessoa doente.
No conceito de “trauma” de Winnicott encontra-se a base dessa compreensão
do emprego do falso self como modo de funcionamento psíquico frente à recorrente
situação de abandono que a jovem enfrenta.
O autor explica que o “trauma” não é conseqüência de um único
acontecimento, mas é o resultado de uma seqüência repetitiva de falhas ambientais
da mãe no atendimento das necessidades do bebê, que ocorrem em um momento
no qual ele não dispõe de ego estruturado para compreender e representar o que
está acontecendo. Isso desperta angústias de aniquilação, provocando reações que
interrompem a continuidade do ser. (2007b).
O “trauma”, nesse contexto, é apontado por Winnicott como a condição de
55
suspensão dessa possibilidade, dando origem ao “reagir” à realidade em
contraponto ao “agir” criativo e transformador frente à mesma realidade.
A jovem, perante a repetição da falha ambiental, reage à realidade,
empregando o falso self como defesa psíquica dissociativa, que, por sua vez,
mantém protegido o seu self verdadeiro. Nessa condição, Novalee não pode sequer
entrar em contato com a maternidade e promover o cuidado de si e do bebê que
está para nascer. Permanece dentro do mercado, isolada em sua realidade
fantástica, como se (sobre)vivesse, momento a momento, uma experiência
superficial de vida, sem estabelecer relações emocionais com o ambiente e, ainda
mais, sem ser afetada por ele.
É importante lembrar, no entanto, o que Winnicott discorre sobre o valor do
falso self para o indivíduo. Neste momento da vida de Novalee, o falso self aparece
como uma organização que também tem uma finalidade positiva que é a
preservação do indivíduo a despeito de condições ambientais anormais. Protegido
pelo falso self, o self verdadeiro é percebido como potencial e pode manter sua vida
secreta e preservada, sem ser totalmente destruído.
No caso de Novalee, cabe pensar que a máquina fotográfica, como um objeto
interno bom preservado (“objeto bom internalizado”), é uma representação do seu
self verdadeiro, que potencialmente busca uma expressão. A máquina é o único
objeto que sempre está presente em sua vida e o único que lhe restou na situação
de abandono. É como se esse único e especial objeto pudesse fornecer alguma
sustentação proveniente de seu mundo interno. Como seu ego ainda é ainda muito
frágil, parece que ela precisa, no entanto, da concretização desse “objeto interno
bom” em algo da realidade. Assim, a máquina passa a ocupar esse lugar. É a ela
que a jovem se apega ferrenhamente. E é através dela que se dará parte da
retomada de sua vida, pela escolha da futura profissão.
É nesse sentido que ela se aproxima do fotógrafo profissional que trabalha
dentro do mercado e que, com o tempo, se torna seu amigo e mentor no
desenvolvimento de sua profissão.
56
3.3 O TERCEIRO MOMENTO
O fato de Novalee ter se tornado uma celebridade assim que sua filhinha
nasce, traz um novo desequilíbrio para a garota. De repente, ela passa a ser
cortejada e admirada por todos, sem obter uma compreensão da situação.
58
boa internamente, ela é capaz de se afastar da figura externa, pois a figura real
permanece viva em sua realidade psíquica e interior.
O reencontro das duas, que poderia dar início a uma reparação da agressão
ambiental causada por uma falha materna no início da vida de Novale,
contrariamente, torna-se uma confirmação dessa falha. O trauma se reconfigura,
na repetição sistemática da perturbação inicial. Desse padrão desastroso dos
cuidados que recebeu nas etapas iniciais da vida, Novalee reconstrói a falta de
confiança no ambiente.
59
O self verdadeiro se encontra retraído e protegido da ameaça iminente de
aniquilamento, enquanto o falso self se apresenta ao mundo para relacionar-se com
a realidade externa.
É esse tipo de acolhimento que a amiga oferece para Novalee quando passa
a cuidar dela e do bebê em sua casa. Thelma e seus amigos constituem,
definitivamente, a nova família de Novalee e de Americus.
Novalee consegue recontar sua história ao amigo Forney, porque agora, além
de não temer mais o colapso imediato, antevê a criação de uma nova história para
si. Todavia, não consegue estabelecer uma relação amorosa com Forney por ainda
não se enxergar como alguém digna de valor e merecedora de amor. E tampouco é
capaz de cuidar da filha sozinha.
61
família constituir o terreno sobre o qual se desenvolve o crescimento
pessoal.” (2005a, p. 137)
Na cena em que caminha com a filha pelos destroços da casa, ela demonstra
poder viver toda sua dor, tomando consciência dos fatos, sem negar a realidade.
Sua tristeza pode se transformar em memórias e, assim, ela tira um foto da filha
sob a grande árvore que, no passado, foi a pequena muda presenteada pela amiga.
Novalee, agora, é capaz de sobreviver às falhas ambientais. Pode-se
comparar este estado de Novalee à etapa de “dependência relativa” do lactente
62
que, por ter recebido cuidados satisfatórios durante a dependência absoluta, pode
superar e adaptar-se aos desajustes ambientais.
Uma vez que esses processos sejam sustentados no tempo, permitindo que a
criança se defronte gradativamente com o mundo, ela amadurece no sentido da
“independência” ou autonomia. Passa a se identificar e ampliar seu relacionamento
com a realidade cada vez mais complexa, envolvendo-se em projetos pessoais e
também com a vida social.
O holding vale tanto para o “segurar” físico desde a vida intra-uterina como
expande seu alcance para o cuidado adaptativo na infância e, posteriormente, na
vida adulta. Winnicott lembra que
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É nessa perspectiva que se entende o processo de amadurecimento de
Novalee. Apesar de ter enfrentado um novo trauma, desta vez ela pode buscar a
ajuda dos amigos para transformar e recriar a realidade para si e para a filha.
Constrói uma casa para as duas, continua ativa profissionalmente e, mais, recebe o
reconhecimento da sociedade por seu trabalho: alcança o primeiro lugar em um
concurso de fotografia, justamente ao retratar o lugar onde encontrou amor e
acolhimento de uma pessoa que propiciou uma grande transformação em sua vida.
A árvore frondosa retratada na foto premiada é, também agora, uma
representação de Novalee, pois é grande e forte como ela. Pode dar frutos e
sombra, como ela pode dar amizade e amor para sua filha e seus amigos.
A capacidade de exercer uma profissão, por sua vez, é uma das referências
de maturidade emocional do ser humano. Atuar profissionalmente implica um certo
grau de independência e socialização, que, por sua vez, fazem parte do processo de
crescer e amadurecer. O autor ensina:
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E acrescenta:
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cuidar de si e da filha, como uma mulher adulta e responsável que pode se
beneficiar das experiências excitantes da vida.
A condição de Novalee pode nos levar a fazer uma analogia com o caso de
um paciente borderline (ou fronteiriço) em que, apesar de exteriorizar um quadro
neurótico ou ainda psicossomático, o distúrbio psicótico subjacente ao
comportamento neurótico pode irromper como resultado de situações dramáticas e
extremamente traumatizantes (2004).
Winnicott esclarece:
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Enquanto a psicanálise tradicional trabalha a partir de um método que
caracteriza, por excelência, a própria técnica analítica, não é o que ocorre na
proposta clínica de Winnicott (2011c). O método psicanalítico único é possível na
psicanálise tradicional pelo fato de que os transtornos psíquicos levam, em última
análise, aos conflitos relacionados ao complexo de Édipo. Não é o caso da
perspectiva winnicottinana, em que a classificação dos distúrbios psíquicos segue
um critério maturacional e não sintomatológico.
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O autor esclarece que
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Nos transtornos psicóticos, as defesas primitivas é que estão em jogo;
defesas essas que não teriam se organizado caso o suprimento ambiental
satisfatório tivesse existido na etapa de dependência. Sobre esse aspecto, o autor
esclarece:
Com base nas afirmações de Winnicott, pode-se inferir que Novalee sofreu
um colapso na situação de desamparo originada da privação dos cuidados maternos
em um momento inicial de seu desenvolvimento.
Forlenza Neto explica que, num quadro clínico, essa situação pode ser
tomada como um caso borderline, em que a sintomatologia pode se assemelhar à
neurose, porém há um substrato de psicose presente que é revelado pela angústia
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de aniquilação (2004). A categoria psicótica é representada pelo colapso das
defesas organizadas e pela substituição por um novo conjunto de defesas que
possam dar contar do caos que se apresenta.
Winnicott nos indica que, quando um paciente tal qual o borderline encontra
um novo ambiente favorável e de confiança, o processo de desenvolvimento pode
ser retomado, através de holding ambiental, desta vez, facilitador e adequado,
permitindo a regressão à etapa de dependência absoluta.
Pois, Winnicott lembra que não a independência total não existe e não é
favorável à saúde emocional, pois a “[...] maturidade individual implica em
movimento em direção à independência, mas não existe essa coisa chamada
independência o fato de um indivíduo ficar isolado a ponto de se sentir
independente e invulnerável.” (2005b, p. 3)
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Tenho certeza de que os encontros entre os meus pensamentos e as
extensas leituras favoreceram um amadurecimento que será de extremo valor em
vários aspectos de minha vida como mulher, mãe, profissional, amiga...
Também acredito que as reflexões aqui apresentadas podem ser úteis para
as pessoas e os profissionais que, como eu, acreditam que possamos fazer de
nossa vida algo de bom e construtivo para a humanidade. Que podemos, através
de gestos espontâneos e simples, transformar momentos difíceis em oportunidades
de compreender e colaborar com o outro, usando o que nos é mais caro, como
homens, o afeto e o amor.
Winnicott, com seu pensamento voltado para as coisas singelas da vida, nos
ensina que a saúde mental se relaciona com uma vida excitante e cheia de
sentidos, vivida na relação ética entre os homens.
A verdade é que vida é instável e insegura. Traz a cada momento uma nova
experiência e, com ela, um novo aprendizado. Podemos escolher vivê-la de várias
formas. Winnicott costumava afirmar que a saúde deve sempre assumir seus
próprios riscos (2005b). A escolha de viver a vida, ao mesmo tempo assumindo a
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responsabilidade por ela e desfrutando da energia mágica dos prazeres, é tarefa
das mais complexas e valiosas. A possibilidade de realizar essa escolha encontra
suas bases na saúde mental que, por sua vez, está fundamentada nas experiências
de confiança, segurança e, principalmente, amor adquiridas nos primórdios de
nossa existência.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOWLBY, John (1976). Cuidados maternos e saúde mental. São Paulo: Martins
Fontes, 2006a.
FIGUEIREDO, Luís Cláudio; CINTRA, Elisa Maria de Ulhôa. Melanie Klein. São Paulo:
Publifolha, 2010a.
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Elsa Oliveira; LOPARIC, Zeljko. (orgs) Winnicott na Escola de São Paulo. São
Paulo: DWW Editorial, 2011d.
FREUD, Sigmund (1910 [1909]). Cinco lições de psicanálise. In: Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas, vol. XI. Rio de Janeiro: Imago, 2006b.
RICOEUR, Paul. Da interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1965.
SEGAL, Hanna (1964). Introdução à obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago,
1975.
Filme Onde mora o coração. Nome Original: Where the heart is. Direção: Matt
Williams. Roteiro: Lowell Ganz e Babaloo. Baseado no livro homônimo de Billie
Letts. Estados Unidos da América: Estúdio Twentieth Century Fox Film Corporation
e Wind Dancer Productions, 2000.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
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Fontes, 2006.
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MIZRAHI, Beatriz Gang. A vida criativa em Winnicott: um contraponto ao biopoder
e ao desamparo no contexto contemporâneo. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.
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