Caindo Na Memã Ria

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tempos

,.
de memória:
vest1g1os,.
ressonanc1as
e mutações

Organização
Marta lsaacsson (Coordenação)
Clóvis Dias Massa
Mima Spritzer
Suzane Weber da Silva

(ejCNPq
~~-""""""'•ffllfllo
~
~
~•~ e .A P & s
licação originada do VII Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa
•s-Graduação em Artes Cênicas, evento realizado com apoio de CNPQ,
:ES e FAPERGS no âmbito da Universidade Federal do Rio Grande do

-
•o período de 8 a 11 de outubro de 2012.
(ll
ABRACE E DITORA

PORTO ALEGRE 2013


CAINDO NA MEMÓRIA

Ann Cooper Albright

Assiin como a memória, a queda se baseia em um deslizamento através


do temp~ e do espaço. Marcada por uma trajetória de cima para baixo, as-
sim como antes e depois, a queda se refere ao que era enquanto se move em
direção ao que será. A memória também evoca dupla realidade, de tal forma
que o lá e o depois são sentidos aqui e agora. Embora nós raramente pense-
mos sobre elas no mesmo contexto, tanto a queda como a memória envol-
vem mudanças repentinas e, às vezes, radicais na orientação. As quedas nos
r derrubam e as memórias inundam nossa consciência para acelerar nossa res-
piração. Imprevisíveis, elas confundem nosso senso de ordem mundial e nos
forçam a revisar nossas expectativas. Em ambas as situações, o corpo está en-
volvido numa tentativa de recuperar o que foi perdido quando o equilíbrio
de nossas vidas escapa ao nosso controle. Relembrando, o corpo se prende
ao que não é mais visível, registrando os traços de quedas passadas em seu
tecido conjuntivo.
Queda e memória atuam como limiares entre o passado e o futuro,
bem como cruzam as fronteiras entre os estados literal e metafórico de es-
tar no mundo. Muitas vezes, elas convidam a nostalgia para um momen-
to "antes da queda" e uma inocência despojada por visões concorrentes do
passado. Nossas experiências de queda e a memória podem ser traumáti-
cas, com certeza; no mínimo, desorientadoras. Mas porque elas se esten-
dem através de um espaço liminar em que o presente está suspenso, a que-
da e a memória também podem inspirar novas orientações, inclusive as
que desa.fiam as noções convencionais de personalidade individual, esta-
bilidade econômica e sucesso social. Hoje, apresentarei imagens fotográ-
ficas e trechos de danças contemporineas que destacam as experiências fí-
sicas de queda e de memória, a fim de explorar as ideias implicadas nesses
estados liminares de ser. Usando exemplos das minhas aulas, particular-
mente o meu trabalho em Contato-Improvisação, argumentarei que, pres-
tando atenção no cruzamento de queda e memória provocado pela expe-
riência de 11/9, podemos começar a aprender a como cair com graça em
vez de cair em desgraça.
CAINDO NA MEMÓRIA 51

que caem, mas as mulheres também foram condenadas por essa hegemo-
nia culturàl da vertical. Em uma queda excessivamente determinada que
rapidamente muda de literal para metafórica, as mulheres são vistas como
"caídas" quando perdem sua virgindade e, portanto, sua castidade e ino-
cência moral. Esse cenário de gênero está, sem dúvida, ligado àquela pri-
meira queda espetacular do Paraíso - já que a queda de uma mulher da
vertical para a horizontal remonta de uma só vez à condenação física, cul-
tural e espiritual de Eva (ou um de seus muitos protótipos atualizados). Na
maioria das situações, na nossa cultura, as quedas são sempre vistas como
cair em desgraça.
É particularmente importante compreender essas camadas de ressonância
cultural associadas com a queda para se compreender a magnitude do impacto
de 11/9 sobre a psique americana. Naquele dia, as torres do World Trade Cen-
ter, dois símbolos do poder e da prosperidade econômica dos EUA, literal-
rlr'i:' .:'i-''' i•.';i,· mente se dissolveram diante dos nossos olhos, destruindo qualquer compla-
.. ·•• :, ;,;
-•1/f ! cência que poderíamos ter tido com relação à segurança de nossas fronteiras,
i,1/ff . :.'. ',;; vidas e empregos. Depois do choque inicial, vários comentaristas rapidamen-
te fizeram uma analogia entre a América e o Éden, caracterizando a queda das
torres do World Trade Center como a nossa queda da graça de nos sentirmos
seguros dentro de nosso próprio país. Houve também uma série de comentá-
Eu tenho pensado muito sobre queda nos últimos anos. Queda de edifí- rios editoriais sobre a arrogância das torres, que chegaram tão alto no céu que
cios, queda de aviões, economias em queda, governos que caem ... , mas, prin- pareciam zombar do homenzinho na rua, talvez até antecipando seu próprio
cipalmente, corpos que caem. Ao longo da primeira década ~o sécul~ 21, _re- fim. Independentemente dos pontos de vista políticos sobre o assunto, os fa-
mos assistido a uma série de quedas espetaculares e horríveis que tem tido tos foram suficientemente devastadores. Edifícios caíram, pessoas morreram,
repercussões locais e globais. Do colapso repentino e horrível das torres gê- o país era vulnerável.
meas do World Trade Center à recessão econômica e seus resultantes declí- Eu dei uma aula de improvisação de dança no dia seguinte ao 11/9. Mui-
nios nos níveis de emprego, passando pelas quedas cíclicas no valor dos imó- tos dos meus alunos tinham familiares ou amigos em Nova Iorque e pratica-
veis até as quebras periódicas do mercado de ações, vivemos em um estado de mente todos eles haviam passado as últimas 24 horas assistindo a imagens as-
ansiedade quase constante sobre coisas caindo aos pedaços, e os nossos cor- sombrosas de prédios desmoronando e corpos caindo. Eu reuni os alunos e
pos refletem isso. . . pedi a eles para confiarem em nossa prática usual de centralizar e expandir, de
Como uma metáfora cultural, a queda carrega um simbolismo bas-
liberar e abrir nossos corpos para estarmos preparados para o que vier. Quan-
tante forte no Ocidente. Se nós estamos falando sobre a arrogância de Íca- do terminamos um breve aquecimento, fui tomada por uma visão de todos
ro ou O mal de Satanás, o colapso dos mercados de ações ou o tropeço pú- nós, lá fora, na praça da cidade, de pé no sol e depois, lentamente, deslizan-
blico dos gostos de Tiger Woods ou o mais recente político a ser indiscreto do para o chão, ficando deitados ali por um momento, e depois nos juntan-
na internet, a queda é geralmente vista como um fracasso, uma derrota,
do e nos erguendo através de nossas colunas para ficarmos de pé novamente.
uma perda ou um declínio. Em suma, uma queda representa uma passa-
Eu vi todos nós baixando e subindo em diferentes momentos, ao mesmo tem-
gem dos sublimes céus do estrelato para o grão da ~erra. S~cialmente, é po em que, gradualmente, íamos ficando cada vez mais perto para terminar-
uma jornada perigosa. Claro que não são apenas menmos, anJos e homens
mos de pé juntos.
CAINDO NA MEMÓRIA 53
1

:52 CONFER~NCIAS

As histórias orais que documentam as memórias das pessoas de ver pes-


Andando em silênci? par~ a Praça Tappan, focamos nossa energia, re-
h ndo a incerteza mtenor enquanto prestamos atenção nas sensa- soas caindo, em 11 de setembro de 2001, registraram as respostas corporais
;
' con ece mais íntimas para o fato de estarem na cidade de Nova Iorque naquele dia. Al-
f _ xternas motivadas por uma mudança em nosso ambiente. Nós sen-
' çoes e
entre calçamento e grama, luz e sombra, parando um gumas pessoas falaram dos cheiros e da poeira, de um medo tão intenso que
;, t1mos a di•c:erença
. r• as fez sentirem náuseas. Outras detalharam a devastadora natureza de sua in-
• momento para nos concentrarmos na leve brisa em nossa pele. Chegando
certeza sobre tudo. "Eu perdi toda a noção de escala, de personificação, todo
ao nosso destino, nos espalhamos pelo campo, com cada pessoa olhando
ireção diferente._Aos poucos, cada um em seu próprio tempo, o sentido de mim mesmo como ser humano com os recursos." Mas, pratica-
para uma d mente, todos comentaram sobre a estranha mistura de desorientação física e
~;xamos até o chao, rolamos e depois nos levantamos até ficar-
n Ós nos ab ~ tor- existencial naquele dia. "Olhamos para o que não podíamos ver e ficamos de-
de pé brincando com o balanço suave dos músculos e ossos,d que
mos manutençã ' d • - • • 1 . . d sorientados."
o e uma pos1çao mais s1mp es em uma mtnnca a ança.
na •a ar subir e ficar de pe,, baixar, • b"
su ir e ficar de pé. No fim, nós estamos Muitas pessoas perderam o rumo em Manhattan, em 11 de setembro de
Baix ' fi • d 2001. O colapso súbito e traumático das torres do World Trade Center foi
, bem ,·untinhos, pertos o su ciente para sentirmos o calor os cor-
d•e pe, • • • d desorientador para a América, assim como para o mundo, mas afetou os no-
uns dos outros. Sornmos • quan do fi nahzarnos a partitura, cientes e
pos • a essa crISe• naciona • 1, h avíamos aproveita o a opor- d va-iorquinos de maneira muito mais visceral. A impressionante ausência das
esmo em me10
que, m d torres do World Trade Center na linha do horizonte de Nova Iorque provo-
tUill a
"d de para transformar a_nossa or e medo em uma oferenda - de uma
cou o que Diana Taylor descreveu como um "fenômeno do membro fantas-
só vez um ato físico de oraçao e um gesto de cura baseados em nossos cor-
local, alguém me diz como o fato de nos ob- ma: quanto mais as pessoas reconheciam a falta, mais elas sentiam a presen-
ais tarde, em um café
pos. M
sensaçao
_ d
e paz nele, deu-lhe uma sensação de fazer ça da ausêncià'. No espaço de poucas horas, imagens das torres estavam por
r incutiu uma
serva ó .
parte de algo maior que seu pr pno medo. Foi uma partitura simples, po-
rém profunda. . .
Nos últimos 11 anos, eu tenho usado essa partitura de grupo em mm-
tas situações diferentes. Hoje, eu raramente discuto a sua fonte original, mas a
ória daquela primeira apresentação está incorporada em meus ossos. Na
me m h" ó.
verdade, embora o contexto ist nco_ seja diferente, a experiência meditaci-
va de descermos até o suporte da gravidade - focados nas nossas próprias co-
l as ao mesmo tempo em que estamos cientes dos movimentos das pessoas

un,sso redor - é tão importante h" Re f:
azen do os mes-
OJe corno sempre foi.
ao no b.
mos caminhos de cima para aixo com uma dinâmica completamente dife-
ós podemos realmente tratar do pânico que ainda reverbera nos nos-
ren t~ n f: .
sos corpos, nossas vidas, nossas amíli:3-5, noss:15 comunidad es, .até ~es_mo na
nossa economia, causado por aquelas impression antes quedas em publico em
l l/9. Mover-se com e por essas memórias musculares cria um repertório físi-
co que inclui o significado desse ato original, mesmo uma década após o fato.
Em seu livro The archive and th~ repertoire (2003), Diana Taylor destaca a irn-
ortância dessas narrativas locais, que frequentemente resistem aos arquivos

poficiais. Ela escreve: "Atos mcorpora dos e real"izados geram, registram • e trans-
mitem conheciment o" (2003, P· 21). É nesse ato de recordar desde o início
que eu quero focar hoje.
54 CONFERÊNCIAS CAINDO NA MEMÓRIA 55

toda a cidade. A nostalgia de um tempo "antes da queda'' cobriu a cidade tão nharam esses momentos registram o horror e realçam a beleza estranha de
logo a poeira baixou. tudo aquilo, articulando a possibilidade simultânea de um destino terrível e
Eu também fiquei assombrada com o que alguém descreveu como "as um sentido de redenção. Um sobrevivente após o outro começa descrevendo
longas sequelas de 9/11", incluindo uma sensação visceral de que algo mudou os corpos "caindo" e, depois, para para rever a sua linguagem, substituindo
em nosso sentido coletivo de equilíbrio, não apenas para as pessoas que pre- pelo termo "voando", a fim de reconhecer algum aspecto de clareza de prop6-
senciaram o fato diretamente, naquela manhã, mas também para muitos jo- sito na aparência das pessoas à medida que elas caíam do céu. Donna Jensen,
vens que cresceram, ao longo da última década. Estou ciente da relação íntima uma gerente de escrit6rio, que morava e trabalhava na região, nos conta:
entre as imagens de corpos caindo e prédios desmoronando repetidas várias e
várias vezes durante aquelas primeiras 24 horas e o efeito domin6 desse trau- Eu olhei para o que eu pensava ser um pedaço de escombros, e não era. Era uma
ma e subsequentes "fracassos políticos e econômicos" no nosso corpo coletivo pessoa. Era um homem jovem. Lembre-se que eu estava muito próxima. Eu podia
e individual. Tentando dar sentido a esse momento de desorientação nacio- vê-lo claramente. Ele era magro e tinha uma camisa branca com mangas longas,
nal e individual, eu me vejo atraída pelas hist6rias orais e visuais idiossincráti- uma gravata preta, calças pretas e um cinto e cabelo escuro. Ele estava olhando na
cas e pessoais que repercutem aquele tempo. Exposições como ''.Aqui é Nova minha direção. Ele esta-
,,., ... Iorque: Revisitadà' (de onde são tiradas estas imagens) e a impressionante co- '.~11:·
va caindo de cabeça para
letânea de narrativas de histórias orais guardadas no Departamento de Pes- baixo com os braços para
}!
quisa de História Oral da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, são cima e as pernas um pou-
profundamente convincentes para mim por sua capacidade de captar as sen-
sações corporais diretas (cheiros, sons, qualidade do ar, a cor do céu, etc.) das
pessoas naquele dia.

···~~
~:
;]
co abertas. Eu achei que
ele pareci; tão bem! Ele
havia se levantado de ma-
Tendo sido submetida à "hist6ria'' oficial "Guerra da América Contra o nhã e colocado aquela
Terror", produzida pelo governo, que, por sua vez, foi ajudado por um cor-
po de imprensa estranhamente d6cil, é fascinante deslocar-se pelos escombros
das memórias daquela experiência vivida das pessoas exatamente porque elas
ti.
{~
roupa, e parecia tão bem!
Ele absolutamente não es-
tava lutando. Ele apenas
ci
não se encaixam em uma história contínua, sem emendas. Em sua introdução :/· caiu planando. Eu olhei
à coleção After the fall (Depois da queda), os editores apontam como as pers- }r por um instante e, então,
pectivas idiossincráticas daquele dia foram rapidamente sacrificadas em nome ;f tive que me virar. [...] De-
X
de uma narrativa nacional coerente (completa com título e trilha sonora pr6- pois de mais ou menos
pria), desmoronando as experiências de muitas pessoas em "o reino simb6li- ?~ uma semana após o 11 de
'.)J
.Yf
,_
co da nação". Em contrapartida, as histórias pessoais colhidas nos Arquivos Setembro, cheguei a uma
'•~
de História Oral da Universidade de Columbia, uma seleção das quais foram ''~·
conclusão sobre as pessoas
transcritas emAfter the Fali (Depois da Queda), "captam o tecido da vida real {1 que pularam. Ao pula-
:·C;,
da cidade durante esses meses e anos, preenchendo o sentido de tempo e con- rem, elas estavam toman-
texto que foi apagado na narrativa nacional de America at war (América em
guerra).
Um dos paradoxos mais interessantes da queda, tanto simb6lica como
li
}~~
·•1"'
-'~
do suas vidas de volta. Ao
saltarem, elas estavam re-
tomando o controle sobre
empírica - um gesto assim como um ato - no contexto do 11/9, é como tl"'
"::;)
suas vidas; é por isso que
as pessoas descrevem os corpos em queda que tornaram a tragédia num dos ,f.i)
elas não lutaram. Elas não
:~~'
, eventos mais terrivelmente espetaculares do século 21. Aqueles que testemu- ;~,
saltaram por pânico. Elas
J;

l
?~.
• !i6 CONFER~NCIAS CAINDO NA MEMÓRIA !i7

não saltaram por medo. Eles saltaram porque foi assim que elas tomaram suas vi- sobre os ecos entre as lembranças incorporadas individuais e a memória'cultu-
das de volta. Eu acho que é por isso que foi tão bonito. Quando vi aquele primei- ral. Como o próprio nome sugere, a peça transita por uma série de narrativas
ro homem caindo, ele estava tão gracioso, tão bonito e tão corajoso! (p. 50 e 52). de queda, incluindo cair em ser (um mito de Ícaro ao inverso), apaixonar-se
("cair no amor", em inglês), e cair e voar, antes de abordar diretamente os cor-
A sincronia do corpo e do movimento testemunhada por muitos na cla- pos em queda de 11/9. A apresentação começa com uma história infantil tris-
ra e brilhante manhã de 11/9 não é resultado de nenhuma conexão causal di- te de um pássaro bebê que deve sair do ovo e começar a voar antes que ele bata
reta, mas sim de uma aliança estratégica formada· no impulso de aceleração de no chão e morra. Intercaladas com movimentos gestuais e acompanhamento
uma descida não premeditada. Esses corpos em queda podem não ter escolhi- musical melancólico, essas várias histórias ressaltam essa combinação particu-
do o seu destino, mas eles claramente se alinharam com ele. A queda começa lar de prazer e medo incorporado em muitos dos riscos da vida.
com uma perda de controle; ela requer que se abra mão da vontade indjvidual.
Ao mesmo tempo, no entanto, a queda cria uma oportunidade de nos conec- Nos sonhos, eu estou no topo da árvore, quando ele começa a cair. Eu sinto o im-
tarmos com forças maiores que nós. Testemunhas dos corpos que caíram na- pulso crescendo e o vento passando ráp~do por mim. Abro os meus braços e eles
quela manhã reconheceram a calma graça inerente a essa aceitação do destino, pegam o vento ... Eu ainda estou caindo, mas caindo horizontalmente, flutuando.
que é o motivo pelo qual Donna Jensen acabou descrevendo o primeiro corpo
que ela viu como "tão gracioso, tão bonito e tão corajoso". O medo se torna emoção, a emoção se torna uma espécie de unidade em êxtase com
A corporalidade excede o visível. Os bailarinos sabem disso. Apesar de o ar... Eu não tenho medo.
basearmos o nosso trabalho nas condições materiais do corpo, não somos li-
mitados por elas. A expressividade requer um comprometimento além do pe- É emocionante, os nossos sentidos despertam, talvez estejamos mais vivos do que em
destre, com o efêmero. Da pele para a alma. É por isso que o movimento se outros momentos. Por um instante, caímos como se estivéssemos voando ... e há um ris-
torna uma metáfora para tudo o que não fica parado, incluindo a própria vida. co. O risco de não sermos pegas, o risco de batermos forte no chão e nos machucarmos.
Talvez seja por isso que a morte suscite a dança em tantas culturas - lamenta- Sabemos que há um fundo lá embaixo, que, no final, a gravidade saberá lidar conosco.
mos a perda, ao mesmo tempo em que sentimos uma companhia invisível. A
ausência física suscita outro tipo de presença, pois ela nos leva além do mun- Mesmo assim, nós nos rendemos, nós confiamos, nós comprometemos o nosso
do visível. equilíbrio com a conexão com o outro.

Eu vi fotos de pessoas caindo. Pessoas que haviam saltado de um prédio em chamas Às vezes, batemos espetacularmente; é doloroso, mas seguimos em frente. Nós nos
sabendo que iriam morrer quando chegassem ao chão. Pessoas que haviam escolhi- levantamos e continuamos. Estamos de pé novamente. Em outras vezes, a queda
do a morte por gravidade em lugar da morte por fogo. O que me impressionou foi termina e nós mal notamos. Nós mal começamos a sentir o peso dos nossos corpos
a forma de cada um dos seus corpos quando estava caindo. Cada um contou uma e sabemos que a leveza se foi; somos, mais uma vez, criaturas da terra. Caídos, o nos-
história diferente. so amor deve encontrar um novo caminho ou morrer.

Eu olhei para aquelas fotos por um longo tempo, tentando imaginar as sensações A companhia de dança de Jess Curtis se chama Gravity (Gravidade),
no corpo da pessoa no momento em que saltar daquele prédio faria mais sentido do e Fallen examina as nossas relações complicadas com a leveza e a gravida-
que ficar... a pressa de olhar pela janela quebrada a rua bem lá embaixo. Um sen- de. Devido às difundidas associações de queda com a memória da perda, pa-
tido de espaço - um espaço muito grande. Como eu me sentiria? Como eu cairia? rece-me particularmente intrigante que a primeira definição para a palavra
cair ou queda (fali, em inglês) no meu dicionário American Heritage é, em
Fallen (Caídos), uma colaboração entre o coreógrafo Jess Curtis e os grande parte, retirada da bagagem cultural que implica falha em uma queda.
membros da Fabrikcompanie, em 2002, é uma dança/peça teatral construída Aqui, cair é simplesmente: "mover-se sob a influência da gravidade". Ago-
CAINDO NA MEMÓRIA 59
CONFERENCIAS
iB

, ma expressão com a qual os bailarinos podem se relacionar - já ta do indivíduo, impulsionado por sua vontade e determinação de sair para o
·a essa eu . "d mundo e reivindicar (estar em seus próprios pés, deixar uma marca, etc.), o se/f
' ' b os que cada movimento é, na verdade, uma dança com a gravi a-
nue
ci M sa em a bailarina mais tra ic10n mente trema a est ciente o ato d e
• . d" . al • d á • d f: torna-se uma parte interdependente que flui pelo e com o mundo. Exercícios
O
de. fie~móvel (especialmente na ponta dos dedos) nunca é um equilíbrio semelhantes com a respiração podem cultivar uma atenção com a constante
·que . e mas sim um Jogo • d"mamico com as fiorças da gravi"dade. Para aque-
A •
troca entre a inalação e a exalação, ensinando-nos que o ar não é um vazio, a
estát1co, d • "d ausência de objetos sólidos, mas uma manifestação da intercambialidade do
• d nós que trabalhamos com a dança, apren emos mmto rapi amente
.les efi em nossa sensi"b"l"d d • •
i i a e propnoceptiva para preparar o corpo para se/fe do mundo. Além disso, eu chamo a atenção deles para as suas estruturas
·a con ~edade de respostas para a gravidade. Como Bales Melanie descreve ósseas e os diferentes sistemas corporais, tais como fluidos, sistema endócrino,
uma varartigo em The bodry eclecttc: . evolvmg • practtces • m • • esta
• da nce tratmng, etc., para dar um referente físico para desenvolvermos novas conexões entre os
em umcaracterística su 1acente e v nas tecmcas contemporaneas de movi-
b' d á • , • A • nossos corpos e os ambientes que habit~os.
. , . l
é uma "Em muitas práncas somat1cas, a re açao o corpo com a gravi a- ~ d 'd Na sua essência, o movimento é uma série de quedas - algumas pe-
mentos. • e fora do eixo . vertical, . através d e exercíc10s• ou ex- quenas, algumas mais espetaculares - que impulsionam o corpo através do
, minada dentro
de e exa . , tempo e do espaço. Usando a gravidade, podemos sintonizar nossas sen-
•A • s que incluem deitar-se, sentar-se, ou levantar-se e agachar-se ate o
,,,, ... h~ Alinhamento não se trata d e fi car em pé reto ou na posição vertic ,
periencia • • al sibilidades com o mais sutil desses deslocamentos. Um dos aspectos mais
e ao. a ver com as variáveis relações dentro do corpo, sentir o equilíbrio, essenciais para se ensinar a cair é retreinar a nossa experiência instintiva
mas tem , . fi de nos agarrarmos ou prendermos a respiração quando sentimos que nos-
. fortalecimento muscular desnecessario, de modo que o corpo -
e evitar 0 d ,, sos corpos perdem o seu chão (pense na clássica imagem cômica provo-
berto à possibilida e.
que ªC stumo começar minhas aulas de dança com os alunos se movimen- cada pelo ato de alguém se inclinando contra algo que, de repente, cede).
ºapidamente pelo ambiente, mudando de lado para andarem em di- Uma maneira de treinar as pessoas a caírem sem medo, a curtirem aquela
tan do r . • suspensão da orientação vertical e da perda de controle naquele momento
e es direções. Há um momento em que, depois de se moverem vigoro-
1erent te pelo ambiente, os alunas fi caram em pe, imoveis. • , • Isso lh es d,a uma de liberação, é substituir o nosso julgamento (que cair é uma falha) pela
~ museular, sensação.
samen idade de sentirem . as mu anças sutis e peso e d e açao
d ' d
oportu n . , , b
chance de sentirem o corpo de uma so vez desde os pes até a ca eça -
uma mento para refl' et1rem so b re a posiçao -~de estarem suspensos entre a A expressão "cair em desgraça'' torna-se uma afirmação impossível quando a queda
um mo céu ÀJ, vezes, peço que eles imagmem . . d l
os poros e sua pe e se a nn-
b. propriamente dita é experimentada como um estado de graça.
terra e O • •
ue O mundo possa entrar no espaço de seus corpos. Essa imagem
do para qcomo parte de todo o espaço tem claros resultados físicos .
no tono Quando ela escreveu essas palavras como parte de uma nota do editor
d oOO~ O . • para a edição de outono de 1979 da Contact Quarterly, Nancy Stark Smith
do corpo liberado. Até mesmo os olhos funcionam de forma dife-
musc ular vinha praticando queda havia sete anos. A evolução das habilidades em que-
ós imaginarmos o mundo entrando no espaço da cabeça, em vez
rentes e n . À da de Nancy Stark Smith ocorreu em paralelo ao desenvolvimento do Con-
d olhos tendo que se esforçar para captar o mundo visualmente. me-
~d~s ue a frente do rosto relaxa, os olhos podem se soltar em suas órbitas, • tato-Improvisação. Em 1972, quando um grupo variado de estudantes uni-
dl q
• do assim a nossa visão. pen'fi'enca, . aumentando nossa consciencia A• • do es- versitários e bailarinos (incluindo Stark Smith) passava por essa experiência
abrm • sob a orientação de Steve Paxton, o Contato parecia um exercício de jogar
aço que nos rodeia, permitindo-nos ver a nós mesmos no mundo, não ape-
~as mundo a partir de nosso ponto de vista (que, como sabemos, pode ser e pegar corpos que, na maioria das vezes, caíam no chão sobre o grande ta-
O tame. Em 1979 isso havia evoluído, tornando-se uma grande influência so-
bastante estreito). bre a dança contemporânea, com um grupo profissional de professor/atores
Existe também, creio eu, uma profunda reorganização psíquica aqui tam-
bém. Ao mudarmos a nossa imaginação somática, podemos reordenar nossas e uma coleção cada vez maior de habilidades - sendo aprender a cair uma
~es culturais de individualidade. Ao contrário do paradigma colonialis- das principais.
noço
F

CONFER~NCIAS CAINDO NA MEMÓRIA 61


iO

Fal!After Newton (Queda Depois de Newton) traça onze anos de Con- adaptar instintivamente a variações aparentemente intermináveis da passagem
ato através de um foco quase exclusivo na dança de Nancy Stark Smith. À de cima para baixo. Ao descrever essa transição, ela escreve:
f edida que Steve Paxton narra uma história curta de Contato, o vídeo co-
rn eça com mais de um minuto com Stark Smith empoleirado nos ombros de Quanto mais eu caía, mais familiar se tornava a sensação de cair através do es-
Í;axton enquanto ele gira rapidamente. Essa longa sequência de 1983 con- paço, e menos desorientada eu estava durante a queda. Ficando acordada desde
:6 ura a narrativa implícita do virtuosismo, mostrando a dança espetacular o primeiro momento da perda de equilíbrio, eu achei que a queda era em si um
d; Stark Smith. À medida que o espectador é presenteado com uma extra- equilíbrio dinâmico. Um equilíbrio no qual as forças em jogo - gravidade, impul-
rdinária série de imagens suavemente em camadas de Stark Smith caindo so e massa - estavam todas operando em sua ordem natural e, se a minha men-
-~os ombros de Curt Siddall, Steve Paxton e Danny Lepkoff, Paxton obser- te estava comigo, eu poderia suavemente guiar aquela queda para um pouso sua-
esse ve. A confiança veio com a experiência e logo o prazer tomou o lugar do medo e
va.. "Impulsos mais altos trazem novas áreas de risco. Para desenvolver
•aspecto da form;i. tínhamos que sobreviver a ela. Essa sobrevivência depen- da desorientação.
de de se aprender a como canalizar o impulso de uma descida vertical para
urn percurso horizontal. Desorientação é uma palavra que insiste em seu oposto de significado.
Uma parte do vídeo inclui várias repetições lentas de uma queda par- Ser desorientado é ser desfeito, fazer perder o equilíbrio. Mas também aponta
ticularmente intensa onde Stark Smith cai no chão diretamente em cima para um conhecimento mais profundo que pode ser tirado de nossas memó-
de suas costas. Embora a queda seja desacelerada para demonstrar a nar- rias individuais incorporadas. Raramente pensamos sobre onde estamos até fi-
ração de Paxton ("Durante essa queda tão desorientadora, os braços de carmos perdidos. Para compreendermos o que nos orienta, nós precisamos ex-
Nancy conseguem amortecer suas costas, e isso distribui o impacto em perimentar a desorientação, aquela mudança de perspectiva espacial que pode
uma área maior. E ela não para de se mover. Isso ajuda a dispersar o im- nos ensinar o que nós damos por certo. Na conclusão de sua meditação sobre
acto durante um tempo um pouco mais longo"), o espectador consegue orientações mutantes em Queer phenomenology, Sara Ahmed escreve:
~inda ver o impacto reverberar através de seu corpo, mesmo quando ela
1
rola (agora em tempo real) para fora e continua dançando. A repetição em Momentos de desorientação são vitais. São experiências corporais que jogam o
movimento lento, combinada com a articulação de Paxton de como se en- mundo para cima, ou jogam o corpo do seu chão. Desorientação como uma sensa-
, volver naquele momento de desorientação, realmente ajuda o espectador ção corporal pode ser inquietante, e pode destruir ou abalar o nosso senso de con-
a vislumbrar a possibilidade de expandir aquela suspensão dentro de uma fiança na terra ou chão ou a nossa crença de que o chão em que nós vivemos pode
queda. Como Stark Smith re~ata em sua nota do editor: "Quand~ eu _co- sustentar as ações que fazem a vida parecer vivível. Essa sensação de destruição, ou
mecei a cair por escolha, notei um ponto cego. Em algum lugar apos o mí- de ser destruído, pode persistir e se tornar uma crise. Ou a sensação em si pode pas-
cio e antes do final da queda, havia escuridão." Trabalhando a partir da sar assim que o chão volta ou assim que nós voltamos ao chão (2006, p. 157).
imagem para trás até a sensação, os espectadores podem aprender com o
exemplo dela a como ficarem na luz. Quando perde o equilíbrio, o·corpo distorce o nosso senso de direção de
Grande parte das filmagens em Qµeda Depois de Newton é da série de dez maneiras que podem reformular a nossa noção do que constitui uma política
anos de apresentações, de 1983, no St. Marks Danspace, em Nova Iorque. Os de localização ou a organização cultural do espaço. Parece, então, que a queda
movimentos virtuosísticos característicos do Contato-Improvisação - ombros oferece um novo ponto de vista, por assim dizer, no binário de em cima (up)
girando e quedas que faziam um loop até o chão apenas para dar um giro de e embaixo (down). Na verdade, poderíamos até pressupor, seguindo o traba-
volta para cima no ar - estavam muito em evidência. É claro que Smith ha- lho de Sarah Ahmed em fenomenologia, que a queda insiste em uma mudan-
via aprendido a sentir o impulso de uma descida sem se apertar ou se contrair ça de orientação, uma perspectiva a partir da qual poderíamos aprender, até
com medo. Ela havia internalizado os reflexos treinados de esticar os mem- mesmo quando voltamos para o chão. Entretanto, para experimentar essa di-
bros para distribuir o impacto numa área de maior superfície e foi capaz de se ferença na queda é importante não desligar a sensação, inclusive a sensação de
z CONFER~NCIAS CAINDO NA MEMÓRIA 63

•erder o chão. Como Smith reconhece: "O ponto cego na queda é o momen- tempo e no espaço - e você realmente não sabe quanto tempo vai levar para es-
tar "de volta".
J quando a queda e quem cai perdem a sincroniá'.
É lógico que a desorientação não é necessariamente um gesto radical. Ela
a.mbém pode provocar uma resposta conservadora, assim como cair pode. Para Smith, essa suspensão entre dois pontos conhecidos (em cima e em-
:ornemos, por exemplo, a resposta em pânico do governo americano para a baixo) abre múltiplas possibilidades e diferentes orientações. Para mim, este
1ueda das torres do World Trade Center, em 9 de setembro de 2001. Essa que- "gap" permite uma suspensão de uma espécie de paradigma cultural (de que a
la terrível foi vista como uma falha em muitos níveis e criou muita desorien- queda é uma falha), de modo que outros significados podem tomar o seu lu-
ação e medo nos Estados Unidos. O que se perdeu no processo de transfor- gar.
nar o nosso medo em patriotismo foi o potencial para a nossa desorientação La chute (A queda) é uma série de fotografias de Denis Darzacq de ho-
nobilizar novas posições ou nos conduzir para uma compreensão de nossas mens jovens (e uma mulher) captados no ar. Tiradas entre 2006 e 2007, essas
marras anteriores. Como Sarah Ahmed observa: "A questão não é se senti- imagens capturam corpos caindo de mais ou menos meio metro de altura (às
nos uma desorientação ou não (porque nós a sentiremos e a sentimos), mas vezes, apenas alguns centímetros) do chão. Em sua declaração de artista que
:orno essas experiências podem ter um impacto nas orientações dos corpos e acompanha o portfólio, Darzacq descreve esse trabalho como- uma meditação
:spaços, [... ] A questão é o que fazemos com esses momentos de desorienta- sobre o indivíduo em um ambiente urbano, com especial referência ao 11/9 e
r
;ão, assim como o que esses momentos podem fazer - se eles podem nos ofe- à difícil situação da classe trabalhadora pobre na periferia de Paris. Nessas fo-
:ecer a esperança de novas direções ou não, e se as novas direções são motivo tografias, homens jovens predominantemente de comunidades de imigrantes
mficiente para esperança ou não." (2006, p. 158) dos subúrbios parisienses são fotografados contra um pano de fundo de edifí-
Estar atento à desorientação espacial vem de uma prática física que in- cios de concreto genéricos - o que Darzacq chama de arquitetura "sem almà'
:lui se acostumar a ficar de cabeça para baixo, girar, cair em todas as direções de muitos projetos de moradias públicas. Ao pegar um corpo suspenso entre
(especialmente no espaço às costas da pessoa), bem como mover-se com ím- o lançamento e a recuperação, Darzacq consegue inspirar um ar de vulnerabi-
peto - às vezes, com os olhos fechados. O fenomenologista Maurice Merleau- lidade existencial na imagem potente de vitalidade jovem.
c.Ponty descreve a desorientação como sendo "a experiência vital de vertigem A justaposição desse tipo de fisicalidade energizada - parte parkour,
e náuseà'. Acredito que essa experiência "vital" tenha implicações psíquicas, parte capoeira e parte arte circense - flutuar no ar ressalta a posição mar-
;para não mencionar físicas. Pessoalment_e, acho que, ao trabalhar com deso- ginalizada da juventude urbana. Ao mesmo tempo, a intensidade da expe-
;rientação, meu corpo pode se abrir para lugares e ideias que a minha mente riência de voar e cair anula qualquer postura ou "atitude" gestual que pos-
item dificuldade em encontrar por conta própria, incluindo outras formas de samos associar com subculturas de jovens urbanos. Muitas das fotografias
!pensar sobre quedas e cair. Ao aceitarmos a oportunidade que a desorientação nem mesmo mostram expressões faciais. No entanto, os arranjos desordena-
/oferece, podemos buscar novas direções, não apenas nas quais cair, mas tam- dos, deslocados e irregulares de braços e pernas batendo criam uma ideia de
ibém dentro da própria queda, aproveitando os momentos de expansão entre o personalidades individuais. A trajetória da queda é interrompida pelo dique
,em cima e o embaixo. Porque, na trajetória inclinada de cima para baixo, po- da câmera, e o congelamento resultante nos dá uma pausa para considerar-
/demos experimentar as duas direções de uma só vez - encontrar a suspensão mos a experiência deles.
1e, ao mesmo tempo, sentir a atração da gravidade. Nancy Stark Smith refere- No trabalho de Darzacq, a narrativa da queda é suspensa. Seu quadro fo-
/-se a esse momento como um "gap" (lacuna). tográfico atua tanto como interrupção quanto como absorção. Ao prolongar
um movimento no ar, essas imagens nos dão uma oportunidade de pensar so-
Onde você está quando você não sabe onde está é um dos pontos mais preciosos bre momentos entre o início e o fim de um salto. O desfecho pode parecer
oferecidos pela improvisação. É um lugar a partir do qual mais direções são pos- inevitável, mas não é necessariamente predeterminado. Na verdade, La Chu-
síveis do que qualquer outro lugar. Eu chamo esse lugar de Gap. [...] Estar num te, de Darzacq, torna visível o que Erin Manning, fazendo referência a Deleu-
gap é como estar em uma queda, antes de tocar Q chão. Você está suspenso - no ze, chama de "a elasticidade do quase" (2009, p. 114). "(O] corpo elástico é o
164 CONFER~NCIAS CAINOO NA MEMÓRIA 65

corpo do entre, o corpo do quase, quando o movimento está a ponto de acon- determinada por uma combinação de circunstâncias históricas, contexto so-
tecer, real, mas quase virtual, pendurado, pulsando, em espiral." Assim como ciocultural, disposição familiar e atitude individual. Para os jovens urbanos
Stark Smith, Manning impregna essa lacuna ou suspensão com possibilidades documentados nas fotografias de Darzacq, essa habilidade é medida na capa-
de improvisação. Ela pensa nela como um intervalo, um momento de intensa cidade de continuarem com um próximo movimento, a capacidade de encon-
abertura que tem um potencial sobrenatural ("quase virtual"). É essa experiên- trarem o chão com um ombro, as costas, o quadril, ou a mão, a fim de darem
cia mútua de um intervalo que estrutura a sincronia mágica de se mover jun- um impulso e ficarem novamente de pé. Na frente da câmera, eles tentam o
tos, sejam dois dançarinos em um tango ou um dueto de contato, o que cai e mesmo movimento várias vezes, lançando-se pelo ar e batendo no chão como
a queda, ou o encontro do salto de fé de um jovem e a capacidade de um fo- uma bola quicando. A resiliência física deles é impressionante, uma prova do
tógrafo de capturar essa breve suspensão da descrença. grande potencial da sobrevivência humana. Mas será que a flexibilidade física
Todas as suspensões chegam a um fim, é claro, e o que importa, então, é sempre produz elasticidade psicológica também? O que essas imagens de sus-
como atingimos o chão. Definida abstratamente como "a propriedade de um pensão, a ideia de "gap" de Stark Smith ou a noção de "a elasticidade do qua-
material que lhe permite recuperar a sua forma ou posição original depois de se", de Manning, nos dizem sobre as quedas que resultam na perda do susten-
ser dobrado, esticado ou comprimido", a resiliência nas pessoas geralmente é to de vida, da condição social ou da vida de um ente querido?
i& CONFERÊNCIAS CAINDO NA MEMÓRIA 6.7

Embora, muitas vezes, interpretemos a resiliência como significando vol- Brandstetter, Gabriele. Rmzembering the body. Osáildérn-Ruit: Hatje Cantz. New York: Distribut-
ed Art Publishers, 2000.
:ar a ficar em pé ou onde estávamos antes da queda (recuperar-se), ela também Clark, Mary Marschall (ed.). After the foi/: New Yorkers rmzember Septeinber 2001 and the yean that
Jode sugerir uma certa flexibilidade, em que a possibilidade de reorientação followed. New York: New Press. Distributed by Perseus Distribution, 2011.
~pós a desorientação leva a pessoa a diferentes direções, ou até mesmo uma Diana, Taylor. The archive and the repertoire: pe,fonning cultural memory. Durham: Duke Univer-
sicy Press, 2003.
noção diferente de direcionalidade. Nessa reconfiguração da política de verti- George, Alice Rose (org.). Here is New York: a democracy ofphotographs. Zurich, New York: Scali:>.
:alidade (para cima é bom, para baixo é ruim), eu me junto a Judith Halbers- Disrributed in North Arnerica by D.A.P./Distriburcd Art Publishers, 2002.
:am, cujo recente livro The queer art offailure incentiva as possibilidades de Halberstam, Judith (2011). The queer art offoi/ure. Durham: Duke Universicy Press.
Manning, Erin (2009). Re/ationscapes: movement, art, philosophy. Cambridge, MA: MIT Press.
improvisação do que ela chama de "teoria do baixo" (low theory). "Em certas Srark Smith, Nancy (1979) Editor's Note in Contact QuarterlJ, vol 5, no.l, p.3.
:ircunstâncias, cair, perder, esquecer, destruir, desfazer, ser inadequado, não ----. Editor's note, in Contaa Qµarter!J, vai. 12, n.2, p.3, 1987.
;aber podem, de fato, oferecer formas mais criativas, mais cooperativas, mais
mrpreendentes de estar no mundo." (2011, p. 2 e 3)
Aqui voltamos ao potencial do Contato-Improvisação para nos ajudar a
.-.e"~;)•~~ entender algo extremamente importante. Embora muito do trabalho profis-
,,,/
;ional no Contato-Improvisação enfoque no virtuosismo do up (em cima) -
impressionantes saltos em rotação que deslizam pela sala - na minha mente,
o potencial verdadeiramente radical do Contato, nesse momento histórico,
está no treinamento físico que celebra o down (embaixo), espraia-se no chão,
;deleita-se no processo de rolar, afundar e rastejar. Através da memória incor-
porada de trabalhar com a gravidade, o Contato pode nos levar a uma resis-
'tência que não só nos ajuda a sobreviver às quedas inevitáveis da vida, mas
;também nos livra da ascensão implacável e da luta pelo sucesso que marcou o
~nal do século XX. Em seu ensaio The memory ofmovement (A memória do
jmovimento), Gabriele Brandstetter pergunta: "Como é que os traços de me-
!mória cinética podem ser seguidos em um processo que nunca é executado de
[uma forma linear e progressiva, mas desenvolve um poder antecipatório em
1sua oscilação entre lembrar para
trás e para frente?" (2000, p. 110). Eu acre-
:dito que a resposta para essa pergunta está na prática de cair no Contato-Im-
~rovisação. Suspensos entre o em cima (up) e o embaixo (down), o passado e
:o futuro, os nossos corpos começam a reconhecer aquilo que a nossa memó-
:ria já sabe: que a gravidade pode nos levar a um estado de graça - se estiver-
imos dispostos a correr o risco.
J

ÍREFERÊNCIAS
á
!AJuned, Sara. Queer phenomenology: orientations, objects, others. Durham: Duke Universicy Press,
.• 2006. •
;Bales, Melanie (ed.). The body eclectic: evo/vingpractices in dance training. Illinois: Universicy ofil-
'. linois Press, 2008.

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