Voz Partitura Da Ação

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AGAYOTIO

ISBN 8 -3230 128

Dados Internacionai s de Ca talogao na Publi cao (CIP)


(C mara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Gayotto, Lucia Helena


Voz, partitura da ao / Lucia Helena Gayotto. lo : Summus, 1997.

So Pau-

Bibliografi a.
85-323-06 12-8

ISBN

I .Part itu ras 2. Voz I. Ttulo .


CDD-792.028

97-3245

ndices para ca tlogo sistemtico:


I. Voz: Representao teatral

792 .028

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VOZ. PARTITURA DA AO
Copyright 1997 by Lucia Helena Gayotto

Capa:
Raghy
Desenho da capa :
Maria Eugenia

Proibida a repr oduo total ou parcial


deste livro, por qu alquer meio e sistema,
sem o prvio con sentimento da Editora.

Direitos desta edio


reserva dos por
SUMMUS EDITORIAL LTDA.
Rua Cardo so de Almeida, 1287
05013-001 - So Paulo , SP
Caixa Postal 62.505 - CEP 01214-970
Telefon e (0 11) 3872-3322
http ://www.summus.com.br
e-mail:editor@ summus.com.br

SUMRIO

Apresentao de Lui; Augusto de Paula Souza (Tuto)


7
Prefcio de Fernando J. Carvalhaes Duarte
11
Abertura
15
I Ao Vocal
19
Uma escuta da voz no palco
19
Ao na voz .................................................. ................................ 20
A voz dentro e fora de cena
21
A preparao da voz na cria o...... ......... .............................. 22
O movimento da voz em movimento
24
As caractersticas cnicas na ao vocaL .................. ............ 28
Falar agir....... ...................... .................. ............................. . 34
II Partitura Vocal.... ................ .........
37
Recursos vocais na partitura
41
As pala vras e sua natureza no texto e na voz ..
48
Como compor a partitura
52
III "H am-Iet". ......................................................................... ......... 62
Passagem pelo Teat(r)o Oficina
62
Anlises das partituras
66
Ophlia
68
Polnio
;....................... 85
Hamlet
102
IV Voz Cnica: Domnio Tcnico, Dimenso Criativa
110
Posfcio de Jos Celso Martinez Correa
118
Bibliografi a

Impresso no Brasil

130

COLABORADORES

APRESENTAO

SUELY MASTER

PASCOAL DA CONCEIO

AGRADECIMENTOS

Adriana da Cunha, Alleyona Cavalli, Bia Gayotto, Fabiane M. Stefani,


Mura Su zana Berlau, Marc elo Drumrnond, Maria Leonor da Cunha
Gay otto, L slie Piccolotto Ferreira, Luis Augusto de Paula Souza (Tuto),
Luis Carlos da Costa Gayotto, Sandra Madureira, Silvia Pinho, Teatro
Oficina, Vera Lucia Ferreira Mend es , Z Celso Martinez Correa, aos meus
alunos de voz, a todos os ateres que deliberadamente buscam ao vocal.

com alegria que apresento este livro de Lucia Helena Gayotto.


Acompanhei de perto sua elaborao, assim como tenho estado prximo
da trajetria profissional da autora. Conheo a aguda inteligncia, sensibilidade e inquietao da Lucia, e as vejo intensamente investidas aqui,
seja no trato com as tcnicas e os conceitos de que lanou mo, seja na
narrativa e na anlise das experincias que, como fonoaudiloga/preparadora vocal , desembocaram neste livro .
Apresso-me em dizer que o leitor encontrar neste trabalho uma combinao de vigor e sutileza na exposio das concepes de voz e de preparao vocal com as quai s a autora opera. Combinao que permite pensar
e preparar - de maneira con sistente e inovadora - a voz para seus usos
profissionais, mais especificamente para interpretao teatral , mas podendo
ser til tambm no canto, na locuo, na docncia etc .
So trs as razes de ser do livro; as razes que se articulam e se
completam. A primeira a afirmao de que voz ao, sobretudo
se proferida desde os afectos, da capacidade humana de afetar e ser afetado pelo Outro (nossa alteridade). Quando assim, a autora nos mostra
que a voz age (n)o mundo que engendra, tanto em quem a emite quanto
em quem a ouve.
A segunda razo diz respeito ao fato de que a voz sempre outra, isto
, uma emisso vocal - articulada ou no - pode ser repetida. mas nunca de modo idntico; ao contrrio, ela traz marcas - mesmo que sutis da singularidade de cada situao ou experincia. que uma voz com
ao, para a autora, aquela que arrasta, em seu movimento, as sensaes
e os estados subjetivos inditos, fazendo com que ganhem existncia sonora e transitem at incidirem e ressoarem no seu destino.
7

A terceira razo da ordem de uma escuta, de um desejo e de uma


inveno: construir sistematizar uma forma de apreender a ao na voz.
tornando comunicvel sua percepo e potencializando seu uso. A autora
desenvolve, na posteridade de Stanislavski , um operador - a partitura vocal- que permite traar cartografias de emisses vocais, para que se possa
perceber e pensar o quanto, o como e o porqu da ao numa voz em um
dado momento, bem como suas relaes com a fala, com o corpo e com os
contextos onde produzida e efetuada .
Isto j seria o suficiente para atestar a fecundidade do livro, mas , no
entanto, ainda no tudo. O modo e as condies que incitaram sua escrita so tambm fundamentais. A gestao do livro veio de um encontro,
no de um, mas de vrios. Encontro com o trabalho de fonoaudiloga e
preparadora vocal de elencos teatrais no qual Lucia vai desdobrando sua
inquietao em relao s concepes de trabalho vocal que isolam as
tcnicas de preparao e de cuidado vocal dos usos afectivos e de cria o de sentido pela voz. Encontro radicalmente importante com o Teat(r)o
Oficina (Companhia Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona) e, por meio deste,
com Shakespeare; o que parece ter funcionado como catalisador das
transformaes que j germinavam, culminando, at aqui, no livro e no
amadurecimento de uma posio e de uma prtica que pem o conhecimento tcnico-cientfico da fonoaudiologia a servio da sensibilidade,
particularmente na criao teatral, mas tambm em qualquer outro campo onde o uso das potencialidades da voz faa diferena.
O Teat(r)o Oficina acolheu a procura e a experimentao de Lucia,
permitindo que ela mergulhasse na montagem que fazia de "Ham-let". Uma
dupla articulao : de um lado, com uma companhia de teatro aberta dimenso trgica da criao teatral, do desejo e das hibridaes; de outro
lado, e no por acaso, com um texto visceral de Shakespeare. no qual o
carter problemtico da existncia humana levado s ltimas conseqncias, e onde o par texto/voz tem papel decisivo, como alis comum na
dramaturgia shakespeariana. Territrio mais do que propcio para que a autora espreitasse a ao vocal, em seus mltiplos agenciamentos com o texto, com a montagem , com a direo da pea, com os atares e com o pblico.
a partir da que Lucia desenvolve sua investigao, dialogando tambm com outros estudiosos da voz e do teatro, entre os quais: Cecily Berry,
Grotowski, Eugnio Barba e, sobretudo, Stanislavski. Nesta trajetria, ela
vai tomando explcito e operativo seu conceito de ao vocal e compondo
as partituras vocais: cartografias e emoes das cenas particularizadas em
"Ham-let", por meio dos modos pelos quais os recursos vocais foram utilizados pelos atores.
O livro corre por fluxos rpidos e insinuantes, numa narrativa densa
e apaixonada. Em ltima anlise, o texto arrebatador porque, atravs da
8

ao vocal, toca o in acto ou a vida como processualidade, como algo sempre se fazendo, como um devir permanente. Desta ao a cada vez renovada, ele instila a necessidade e o desejo de expresso e de escuta no encontro
com o Outro; o que implica ir alm do senso comum e do bom senso, entrando em contato com aquilo que a autora chamou de "foras vitais" .
Diferentes sons, silncios e sentidos nos esperam. Quando nos permitimos escut-los, eles contagiam pela msica, pelos rudos e pelos ecos de
uma voz que no apenas suporte para estruturas lingsticas convencionais e utilitrias, antes um sopro/linguagem afectivo que, quando entra em
ao, tem o poder de engravidar (engendrar vida) tambm a lngua e a fala.
Lui; Augusto de Paula Souza (Tuto)
SP/outono/1997

PREFCIO

Em Voz, Partitura da Ao assistimos a um ritual de contato: uma


fonoaudiloga, consciente de seu ofcio (a emisso da voz) mergulha no
teatro de Z Celso Martinez Correa. Um ritual em que o domnio do fisiolgico, do trabalho com os "recursos vocais" ultrapassado, ou melhor,
expandido. Acompanhamos no texto todo o percurso que Lucia Helena
atravessa, ao entregar-se experincia teatral, na busca de sua atuao
profissional como preparadora vocal de atores. Os captulos abrem-se como
fases deste ritual : ante s da emisso da voz (para a qual Lucia Helena retorna apenas no final) , preciso escutar... E aqui ela segue risca o preceito do prprio Z Celso (para seu teatro de Relao): o texto todo
reveste-se desta entrega a uma escuta ingnua, "no envenenada".
Uma escuta, digamos, no muito fcil: a produo da voz neste teatro
sempre mutante, sempre parte de aes "instauradoras e disruptoras"...
Teatro de presentificao, no qual a constante mutao essencial. Fato
para o qual Lucia Helena sempre retoma, em todos os instantes do texto, e
toma inclusive como tema de sua concluso: a nfase dada transitoriedade
da voz (nunca em demasia) alerta para um paradoxo inexorvel que existe
entre a variao do fluxo vocal e a tentativa de fix-la .
Depois da escuta, a ao. No texto h sempre um espelhamento: a
vivncia pessoal sempre intercalada com a progressiva conceituao de
"a o vocal " e "partitura vocal", um conceito central e de sua aplicao
prtica. A delimitao se d em um percurso no qual Lucia Helena se vale
de outras experincias teatrais. Neste contraponto com outros preparadores
vocais, diretores, atores, so traadas analogias e semelhanas com sua
vivncia no Oficina, e, a partir delas, a busca vai tomando corpo. O objeti-

11

vo "cientfico", digamos, se fazer valer desta experincia singular e caminhar para uma generalizao do trabalho do preparador vocal no teatro .
Neste contraponto a "a o vocal" aparece primeiro como registro do
trabalho pessoal de Lucia Helena com os atores do Teatro Oficina e depois generalizada (o termo em si conjuga Stanislavski e Eugenio Barba:
"ao fsica", "ao sonora"). Interveno na dinmica cnica, confluncia
de "recursos vocais" e "foras vitais" do ator, resultante de sua interao e
contracenao, a "ao vocal" depois utilizada como um conceito para
que melhor se entenda /escute a voz do ator, no que ela tem de especfico.
A partir dele uma interface proposta, para o qual converge a atividade da fonoaudiloga, da preparadora vocal: a "partitura vocal" . Traos sonoros presentes em uma "ao vocal" so detectados e transcrito s. As diversas
modulaes vocais tornam-se elementos de uma "gstica" vocal (na medida em que o corpo, em seus gestos, se deixa transcrever...). A "partitura
vocal" surge a partir do ator (como resultado final de vrias fases de transcries : "partitura do papel", "partitura interior"...), e volta para ele. Misto
de registro e elaborao, ela se define como uma ferramenta de trabalho,
tanto para o preparador vocal quanto para o ator: "o desejo da ao vocal
leva elaborao da partitura vocal e vice-versa". A linearidade da notao
(um mapeamento de gestos, univocamente transcrito) apenas aparente: a
"partitura vocal" o instantneo de uma possibilidade...
Voz. Partitura da Ao uma contribuio tanto para os profissionais
da voz, em especial para atores, quanto para fonoaudilogos e/ou
preparadores vocais. No h, no Brasil, uma tradio do trabalho "tcnico" da voz do ator. Esta ausncia talvez responsvel pela constante crtica emisso vocal dos atores brasileiros: h uma rejeio tanto ao modelo
de ressonncia historicamente proposto (confundindo nece ssidades acsticas da "voz de palco" com a dico encasacada da "ernposta o" ) quanto ao trabalho fisiolgico com os recursos vocais, visando uma
"ortofonia"...
Neste ritual de aproximao entre o ofcio do fonoaudilogo interpretao teatral , Lucia Helena vai paulatinamente chegando s sedutoras
descries de trs "aes vocais" individuais . Falas cnicas de "Ham-let",
uma montagem do Teat(r)o Oficina, uma ao teatral vivenciada como ponto de partida e de chegada do texto. Acompanhamos as cenas, e os instantneos sonoros as tornam presentes: "Ophelia", Polnio e Hamlet. Aes,
partituras e ... a voz do ponto de vista fisiolgico. Chega-se no ltimo captulo descrio das vozes de Alleyona Cavalli, Pascoal da Conceio e
Marcelo Drummond, atores que "presentificaram" os papis, e s intervenes da preparadora vocal.
O percurso de Voz. Partitura da Ao, do teatro teraputica vocal,
reflete o percurso inverso daquele vivido pela autora. No final, o texto
12

verte-se sobre o indivduo, sobre a totalidade que refletida pela voz que
verdadeiramente singular (fazendo uso aqui de idias de Edson da Cunha
Swain, o "dentista-filsofo", como quer Jos Miguel Wisnik). Saindo do
ortodoxo e caminhando para o paradoxo, acompanhamos a passagem de
uma "ortofonia" em direo a uma "para-fonia". Esta sim realmente humana e universal. A in-vocao por ltimo , e antes da leitura: Eureka! Evo!

Fernando J. Carvalhaes Duarte

13

ABERTURA

A voz interfere nas situaes da vida quando realizada como ao. Esta
pode ser uma busca deliberada para o falante e, especialmente, tambm um
objetivo para o profissional da voz: atar, cantor, locutor, executivo, poltico,
professor e advogado, entre outros. Uma voz que com ao escancare os
desejos,' conquiste as intenes no texto, e se dirija aos propsitos de cada
profissional, se realizando como movimento vivo e transformador.
Foi nesta ptica que comecei a perceber a voz, mais especificamente
a do ator. Como fonoaudiloga, era habitual , em terapias e/ou treinamentos, o enfoque nas necessidades vocais bsicas para se estar no palco:
aspectos como articulao e projeo; e na sade vocal do atar. Mas, participando de montagens de espetculo s teatrais, como preparadora vocal
de elencos, acompanhando todo o processo criativo desde as primeiras
leitura s e ensaios at a estria do espetculo, ficou claro que, alm de
cuidar da voz dos atores e dar conta das suas necessidades, deveria intervir na construo vocal de seus personagens, acrescentando este trabalho
quele habitualmente realizado.
Assistindo a espetculos, notei que algumas vezes a voz estava sintonizada com as caractersticas do personagem, mas a maneira de us-la
podia ser prejudicial ao ator ; em outras , ela cumpria as necessidades bsicas para o palco, mas estava distante das situaes vivida s pelo personagem, muitas vezes incomodando o espectador que no via em cena uma
persona; e ainda, casos em que o ator poupava sua voz na tentativa de
preservar a sade, no se permitindo experimentar novas possibilidades
de emi sso. Por todos estes ngulos de escuta havia uma falta que me
inquietava, conduzindo-me s questes: Como trabalhar a voz colocan15

do-a no apenas a servio do ator mas tambm do personagem? Como


concretizar as aes vocais no texto falado? E muitas outras.
Observando vozes bem trabalhadas cenicamente, notei que a emisso se afinava com a situao da cena e com as aes do personagem;
eram vozes criadas a partir das exigncias da pea, atuando decisivamente na trajetria do espetculo.
O desejo de que os treinamentos de voz fossem engendrados pelo
processo criativo foi, aos poucos, clareando o que era ao vocal: a voz
como "arma" de primeira necessidade para o ator, devendo interagir com
as situaes cnicas sugeridas pelo texto, pela encenao e na relao
com o pblico. O primeiro captulo deste livro, ''Ao Vocal" traz a semente
desta dimenso a partir de uma certa escuta da voz no palco.
Neste contexto, os enfoques do trabalho de voz - necessidades bsicas para o palco, sade dos atores e a construo dos personagens fundem-se, sendo viabilizados e priorizados pela noo de que a voz
uma ao que faz diferena quilo que est sendo encenado. O preparador
vocal participa como um facilitador na procura de caminhos para se alcanar e exercitar ao vocal.
Na busca de mapear e praticar ao vocal, absorvi, durante ensaios
de peas, o trabalho de interpretao. Observando as anotaes que os
atores fazem no seu texto, elaborei, a partir da, um registro da voz cnica,
o qual nomeei Partitura Vocal.
O captulo II desenvolve este registro/mapa da ao vocal, de maneira
associada s anotaes da "partitura do papel", feita pelos atores no texto
teatral, que uma referncia importante de trabalho interpretativo no texto.
Este captulo apresenta ainda os recursos vocais escolhidos para anlise das
partituras e como trabalh-los em qualquer fala, texto, discurso.
Esta partitura da voz falada mais uma contribuio a um tema que
tem sido objeto de interesse de autores nacionais e internacionais. Definir
ao vocal e mostrar como ela se d na voz dos atores, por meio da anlise de partituras, abre um campo de interveno e de compreenso da voz,
trazendo subsdios ao trabalho de preparao vocal, assim como instrumentaliza o ator na criao de seus personagens.
A prtica da ao vocal e a utilizao da partitura no se limitam ao
ator e ao texto teatral, podendo ser aplicadas a qualquer profissional, em
sua criao expressiva, ampliando tambm o campo de atuao do
preparador vocal, seja ele fonoaudilogo, diretor, ator, professor de oratria ou cantor.
O terceiro captulo, "Ham-let", iniciado por minha trajetria no
Teat(r)o Oficina, pois a concepo de partitura vocal foi retrabalhada quando fazia preparao vocal com o elenco da Companhia Teat(r)o Oficina
Uzyna Uzona. Aqui, partituras vocais de trs personagens - Ophlia,
16

Polnio e Hamlet - so expostas e analisadas, a partir da emisso de


atores desta Companhia, na montagem da pea "Ham-let", dirigida por
Z Celso Martinez Correa. As anlises so referenciais importantes para a
elaborao de partituras, por profissionais da voz e preparadores vocais,
pois como so feitas luz da concepo de ao vocal, estabelecem ligaes entre as caractersticas da voz e de suas situaes cnicas na interpretao.
O captulo "Voz cnica: domnio tcnico, dimenso criativa" encerra
o livro. Nele, a preparao vocal e a interpretao do ator so (re)visitados,
fazendo da tcnica e da criao vocal cmplices para a concretizao do
trabalho da arte teatral.

17

AOVOCAL

UMA ESCUTA DA VOZ NO PALCO

Ouvi muitas vozes em cena. Absorvi, atenta, as substncias da voz,


seus movimentos e diversidades. Fui percebendo que ouvir os recursos
vocais isoladamente no dava conta daquilo que atravessou meus sentidos, que era, com certeza, misto destes recursos com outros elementos da
interpretao e das sensaes que estes provocavam. Esta escuta permitiu
um refinamento no qual a audio reconhece, ao mesmo tempo, as caractersticas da voz e sua relao no plano das afeces. Neste estado de
escuta, o tom e a inteno, as pausas e o subtexto, o volume e a situao,
convergem num fluxo necessrio de ao na voz.
Sinto que nos momentos em que ouo uma emisso vocal de qualidade, sou arrebatada por uma espcie de "esquecimento" de mim, como se
fosse envolvida por uma trama invisvel, e s depois que me dou conta
de aquela ter sido uma boa interpretao vocal. Importa no haver "rudos" interferindo nesta situao. Esses instantes tm algo de pleno em si.
Estamos, na verdade, mergulhando no universo da criao artstica, onde
a conscincia entrega-se complacentemente a um prazer esttico e se religa
a algo vital. Esta voz faz parte do personagem interpretado, acolhe meus
sentidos, me abre para devires em cena. Sua tenso, seu "silncio", seu
desejo so apropriados pelo ator e por quem o ouve j como criao,
como algo que est nascendo. Uma voz em movimento que no igual ao
que foi ontem; est presente h pouco, agora, e cria o novo a cada minuto;
j um depois. do "eco" desta situao que brota a elaborao do meu
trabalho de preparao vocal.
19

A voz que comecei a ouvir, reparo, a voz que me afeta, me transporta, me transform a. Age sobre mim. Eu j sabia disso, mas quanto mais
assistia, com esta esc uta aberta para a dimenso criadora, mais sentia, por
assim dizer, todo meu corpo escutar. Minh a gargalhada, minh a lgrima,
minha revolta, meu desejo , minha indig nao, minha surpresa, eram vibraes produzida s tamb m por um cantata fsico invisve l, que ocorria
quando havia ao na fala do atar.

expressam as intenes e/ou os sentidos vocais na emi sso. Foras vitais,


express o empregada por Nietzsche, so aquelas por meio das quai s se
opera a relao sensvel com o mundo, fundamentalmente no que permite
a expanso da vida em seus vrios plano s. Dizem respeito, por exemplo,
ao que rer, ao imagin ar. ao conceber, ao atentar, ao percebe r... No caso da
voz, tais foras sustentam e fazem com que esta venha tona instigada
pelas sensaes, afetos, vontades, desejo s.

A O NA VOZ

A voz DENTRO E FORA DE CENA

o f ato de no ha ver sintonia entre pala vras, atas e sentimentos.


torna o hom em no s "escravo das palavras ", mas tambm
escravo das conven es que as criam, e, p or isso mesmo, "es cravo do sentir injusto ", mio conseg uindo exp ressar seus p rp rios
sentimentos.
Rosa Maria Dias '
No trabalho de preparao vocal pode haver abertura para o ata r inventar existncias na construo da voz do personagem, quando (re)pensa/
(re)vive pela voz a sua nature za. Porm , nem sempre a voz do ata r se
atualiza, no sentido de ocorrer renovada a cada momento , em cada novo
espetculo. Algumas vezes somente a reprodu o de uma padronizao
ou estereotipia de voz, uma voz anestesiada pela rotina ou reific ada numa
couraa, e no uma voz "viva" , isto , (re)criada diariamente nas suas relaes cnicas.
Trata-se, ento, de interferir nesse padro de voz, que tantas vezes
somente a reproduo mecnica de um mesmo tipo voca l para personagens e situaes diferentes, e possibilitar a elaborao de novos modos de
emisso no trabalho de preparao vocal. Ao atar cabe manter o fresco r
de sua criao nos ensaios e nos espetculos, que podem ocorrer dezenas,
ce ntenas de vezes.
Ouvir a dimenso criadora da voz do ator um deixar-se afetar por
uma ao vocal que se co nstitui, a um s tempo, de recursos vocais e de
foras vitais.
Recursos vocais , entendido como tudo o que se dispe para falar,
compreendem: os recursos p rimrios da voz - respirao, intensidade ,
freqncia, ressonncia, articula o; os recursos resultantes, que so dinm icas da voz - projeo, vo lume , ritmo, velocidade, cad nci a,
entonao, fluncia, durao, pausa e nfase. Estes recursos co mbinados
1. Dias. R.M. Nietzsc he e a msica. Rio de Jane iro: Imago. 1994.

20

Me lembro do eco como uma das primeiras coisas da minha memria mgica. Como era possvel aquela voz que retomava e que
se parecia com a minha ? Ficava pensando num interlocutor distante que me sacaneava repetindo tudo que eu fa lava e passava
horas divertida s me reouvindo. Hoje, quando vejo ecoar no outro
aquilo que fal o. no deixo de pensar no quanto mgico isto .
Acho quefoi da que veio essa minha vontade de ser ato r. O desejo de que o eco f osse uma companhia. A troca do que se f ala com
o que se ouve. O atorfala e ouve o que o pblico ouviu.
Pascoal da Conceio

A voz do atar ganha em cena aj ustes que esto ligados a mudan as


no uso dos recursos vocais integrados s situaes do personagem , em
sua trajetria no espetculo. Como, ento, compree nder e treinar os recursos vocais em cena?
comum tais questes surgirem durante a prep arao vocal no teatro, na elaborao junto ao ator de uma ou vrias vozes cnicas. Na construo vocal do personagem muitas vozes so possveis, at as consideradas
esteticamente desagradveis ou mesmo com carac tersticas semelhantes
voz disfnica. ' O atar, por sua vez, precisa estar disponvel durante seu
processo criati vo, desde as primeiras leituras da pea at a estria, a investigar vrias maneiras de expressar vocalmente o personagem na montage m do texto teatral.
Na busca da voz do personagem seria desej vel que nenhuma restrio fosse imposta, possibilitand o o mximo de experime ntaes pelo atar.
2. "Qualquer dificuld ade na em isso vocal que impea a produ o natur al da voz conti gura
uma disfonia. Essa dificuld ade pode ser expressa atravs de uma srie ampla de alteraes. como
esforo emisso. diticuldade em manter a voz. cansao ao falar. variaes no tom habitual.
rouquido. falta de projc o adequad a. etc."
Behlau, M. ; Pont es. PA. L. Avuliuo global da voz. So Paulo: Paulista Publicaes Mdicas. 1992. p.17.

21

Teoricamente, pode-se at idealizar estados propcios manifestao vocal,


porm na prtica o que se v que os recursos vocais apropriados para o
palco, os possveis distrbios vocais decorrentes do seu ofcio e a construo
vocal do personagem esto mesclados, num momento ou noutro, na preparao vocal - nos treinamentos com elencos teatrais ou em fonoterapia.
Neste trab alho nece ssria a procura de "entradas" que permitam
conj ugar a interveno na voz do ator e na do person agem , percebendo
suas especifi cid ades e penetrando na zona que funde os recursos fisiolgicos com as f oras vitais na produo vocal.
Este encontro, evidentem ente, pode se dar, sob ce rtas circ unstncias ,
na voz de qu alquer pessoa e, por isso mesmo, ocorre tant o na voz cnica
quanto na voz no-cnica do ata r. A diferena na produo de voz no
teatro que neste h a busca deliberada, intensificada e sistemtica de
promover, o mai s pos svel, este encontro na constru o dos person agen s.
Quando na emi sso da voz cn ica se fundem as foras vitais e os
recursos vocais, tem- se o que ser chamado de ao vocal : a voz interferindo decisivamente na situao cnic a e, conseqentemente, afetando os
rumo s do espetculo e atando o esp ectador.

A PREPARAO DA VOZ NA CRIAO


inevitvel todo atar passar pelo momento em que ele perde a

voz vrias vezes, mas se ele tem conj ugado com isso, todo um
trabalho cientfico e potico, ele novamente aprende a fa lar, a
balbuciar de novo... Eu acho que a voz uma coisa que cada
pea inventa, cada pea talvez derrube as vozes que existem, construindo outras, sendo necessrio aprender a fala r tudo de novo.
Z Celso Martinez Correa'
Na perspectiva fonoaudiolgica, o trato com a sade vocal do ator e com
a construo vocal de seu personagem s vezes realizado separadamente,
como se fossem universos distintos: o trabalho restrito ao aprimoramento dos
recursos vocais - atuao mais tradicional da fonoaudiolog ia - funciona
apenas como um suporte construo criativa dos personagens - trabalho
do diretor e dos atores. Na verdade, pude perceber que no se trata nem de se
limitar ao aperfeioamento dos recursos vocais e nem de tom-los exclusivamente como suporte fisiolgico atividade teatral propriamente dita.Trata-se
3. Este trecho faz parte da ent revista que me foi conced ida pelo d iretor teatral Z Celso
Martinez Correa da Companhia Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona , em 1994 , durante a temporada da
pea " Ham-let ", dirigida por ele.

22

de preparar a voz, desde o incio, articulando a sade vocal do ator com a


realidade e a necessidade de seus usos cnicos e, mais do que isso, trata-se de
trabalhar os recursos vocais implicados na criao.
Este caminho vem fazendo com que minha atuao como preparadora vocal situe-se na interseco de dois campos: o tcnico-cientfico e o
teatral, colo cando o primeiro a servio das exigncias ticas e estticas do
teatro, especialmente na criao vocal dos person agen s e na pre servao
e promoo da sade dos atares.
Trabalhar a voz cnica envolve, muitas vezes e ao mesmo tempo, o
trein amento de atares que fazem abuso ou mau uso vocal, o trab alho com
as necessid ade s vocais para o palco e a construo vocal do personagem;
e isto pre ssupe o conhecime nto da voz nas circunstncias cn icas e nos
entrechos emocionais especficos s suas cenas.
O conhecimento nece ssrio a essa preparao seria similar ao da voz
do ser hum ano em diferentes circun stncias da vida cotidiana fora do
palco? Ou seja, este conhecimento seria equivalente ao da voz no-cnica
do ator? H, obviamente, semelhanas entre as du as vozes, mas tambm
diferenas bsica s entre a produ o da voz no-cnica e da voz cnica do
ator. As exigncias fundamentais de projeo no espao e articulao na
emisso da voz cn ica diferem da no-cnica , na qual , por exemplo, as
condies de espao so outras. E tamb m , por outro lado, a exibio de
uma variao emocional constante exige ajustes vocais cnicos que "tra nsgrid am" a voz habitual, do dia-a-dia, e isto est diretamente ligado
vivncia que o ator ter de seu per sonagem .
A trajetria da construo vocal do personagem vai se delimitando por
intermdio de um estudo aprofundado feito pelo atar. Este estudo se d em
vrios nveis, em prticas corporais e vocais e na investigao das emo es
e intenes do personagem que o ator quer encarnar. Quanto mais instrument alizado o atar estiver para revel-las por meio da voz, mais potencializado estar para manife st-las naquele persona gem especfico.
H um movim ento do atar buscando expr essar- se vocalmente na
pre sentificao de seu personagem , que vem estruturado pela escrit a de
um autor; pelo texto atravessado por conjunes de situaes diversas;
por um per sonagem que realiza um caminho prprio dentro dessa histria ; pela direo e pela interpretao do ator em sua po ca.
Desta maneira, cad a som, cada palavra de ste per sonagem - ou
poderia ser - emb ebida por sua singularidade, situada na contracenao
com os out ros atore s e com o pblico ouvinte/atuante.
Ao atar no dado o direito de repetidamente todas as noites "recitar" uma melodia petrifi cada, entoada por uma curva de estereotipia cnica. Em movimento permanente deve manter sua voz "viva" , em harmonia
23

com o espetculo e com o pblico. "Ele no ouve apenas a sua voz, mas
ouve agora a voz do pblico."!
Nesta perspectiva, vai se definindo uma voz cnica ativa, uma ao
vocal plugada no contexto cnico. Ela se constitui com atitude, porque
no representa meramente o personagem ou a histria da qual faz parte,
mas faz (a) histria em seu movimento vivo: recria quando interpreta,
multiplicando, ao mesmo tempo, as possibilidades vocais quando diariamente revive sua trajetria.
O trabalho de treinamento vocal do ator deve ser referenciado por ae s
vocais, nas quais o uso atualizado da voz est mais presente e fala da necessidade de sintonia entre evocao, atos e sentimentos e, portanto, de uma
linguagem veraz. Pressupe um adentrar do ator na voz do personagem,
que , assim, vivenciada por ele e presentificada - aos vivos - e no mera
representao de um tipo vocal. um pensar sobre si, numa constante
transmutao vocal. "Neste estado ele, misteriosamente, idntico quela
imagem do conto de fadas que pode revirar os olhos e ver a si mesma; ele
agora, ao mesmo tempo, sujeito e objeto, poeta, ator e espectador."

o MOVIMENTO DA VOZ EM MOVIMENTO


difcil achar uma extravagncia na linguagem, uma msica que

v alm de seu uso cotidiano, e acho que a sada tem de ser atravs de uma forma de liberao fsica: eu no estou falando de
movimentos amplos, mas simplesmente da conscincia de que as
palavras so em si mesmas movimento - e isto bastante sutil.
Parece-me mais apropriado expressar grandes emoes atravs
da dana e do canto, do que por meio das palavras e inflexes
que usamos no cotidiano; ento, temos que ficar atentos s nossas
atitudes no trabalho prtico que nos ajudaro a conquistar esta
liberdade.
Cicely Berry"
4. Chacra, S. Natureza e sentido da improvisaco teatral. So Paulo: Perspectiva, 1983, p.62
5. Nietzsche, apud Dias, op. cit., p.43.
6. Berry C. The actor and the texto Nova York: Aplause Theatre Books, 1992, p.23.
"It is difficult to find an extravagance in language, a music wich is perhaps beyond our
everyday usage, and I think the answer has always to be through some form of phsysical release:
Iam not talking about large movements, but simply an awareness that the words are themselves a
movement - and this is quite subtle. It would seem more appropriate to express large emotions
through dance and song than through the words and inflections that we use every day, so we must
now look at our attitudes to the praticaI work that will help us through to this freedorn,"
As citaes diretas de livros em ingls, usadas neste livro, foram traduzidas livremente por mim.

24

O ator fala. Todos ns falamos. Muitas vezes nos repetindo, no nos


arriscando em novas possibilidades de movimento vocal. Quando trabalhei, em dana, as dinmicas de movimento descritas por Laban,? percebi
que conhecer e experimentar o movimento de sacudir, flutuar os braos,
pontuar partes diferentes do corpo e outras dinmicas era fundamental
para minha dana e, mais do que isto, importante para a relao do meu
corpo em seus movimentos, na descoberta de suas potencialidades. Mais
tarde, trabalhando a voz dos atores e a minha tambm, reparei que podia
brincar com as dinmicas e ritmos da voz, o que se afinava ao conhecimento e ao experimento dos recursos vocais. Nesta vivncia, elaborando
palavras, sons, textos, percebi que a emisso era em si movimento, ou
potncia de movimento. Mas, em qualquer situao de fala, os movimentos dos recursos vocais no podem ficar fechados em si, ou seja, a mobilidade pela mobilidade; precisam ser objetivados.
Ento, nos treinamentos vocais com atores, este pressuposto ficou
transparente, pois a voz em cena no pode ser simplesmente o mover-se,
o virtuosismo vocal. No suficiente para o ator ter um "vozeiro". No
palco, a voz tem de ter fora para fazer a cena, estar em situao. Da que
todo o leque de possibilidades de movimento da voz, no uso de seus recursos, deve ser vivido por quem trabalha a voz profissionalmente e, para
alm disso, experenciado como ao vocal.
Quando o ator fala no palco assume uma outra postura, tomada por uma
energia intensificada, diferente da vida cotidiana, passando a um outro "estado". Revela, a, o que j era a priori visvel- seu corpo e sua voz - , mas
que pela acentuao de diversas dinmicas (re)conhecido em sua nova disposio cnica.
Nesta outra postura, a voz deve ser
(oo.) tanto na sua componente semntica e lgica quanto na sua componente sonora, uma fora material, um verdadeiro ato que pe em movimento, dirige, d
forma, pra. Na verdade, pode-se falar em aes sonoras que provocam uma reao imediata naquele que atingido. Como uma mo invisvel, a voz parte do
nosso corpo e age, e todo o nosso corpo vive e participa desta ao. O corpo a
parte visvel da voz (oo.) A voz o corpo invisvel que opera no espao. No
existem dualidades, subdivises: voz e corpo. Existem apenas aes e reaes
que envolvem o nosso organismo em sua totalidade."

Por meio de seus ensaios, o diretor teatral Eugnio Barba comeou a


usar o termo ao sonora e observou a relao entre a dimenso fsica e as
foras vitais:
7. Laban, R. Domnio do movimento. Trad. Anna M.B. de Vecchi, Maria S.M. Netto. 2. ed.
So Paulo: Summus, 1978.
8. Barba, E. Alm das ilhas flutuantes. Trad. Luis Otvio Burnier. So Paulo/Campinas:
Hucitec/Editora da Unicamp, 1991, p.56.

25

Aquilo que para ns, anteriorme nte, tinh a sido um postul ado: a voz um processo fisiolgico - tomou- se, ento, realidade palp vel que engajava o orga nismo
inteiro e projetava no espao. A voz era um prol ongam ento do corpo, qu e atravs
do espao go lpeava, tocava, ac ariciava, ce rcava, empurrava ou sondava distncia ou a poucos centmet ros".

quando perguntaram a Tommaso Sa lvini co mo que ele, com sua idade avana da, enc ont rava for as para gritar com tant o vigor em certo pap el , ele retru cou "Eu no grito, vocs que gr itam em meu lugar. Eu somente abro a boca. A
minha funo levar gradualmen te meu papel at o seu pont o culmi nante e depois disso feito. o pblico que gr ite, se sen tir que preciso." "

Isto significa perceber a voz como uma fora cni ca capaz de modificar a situao, os atores e o pbli co. Cicel y Berry,' " no seu trabalho de
preparao voca l, fala : "Depois que as pala vras so dit as, nada permanece exatamente igu al". E pro ssegu e afirmando que , em tre inamentos com a
companhia do diretor Pete r Brook, repentinam ente apercebeu-se de como
era importante pen sar sobre as palavras desta maneira, visto que elas se
tomam uma fora ativa, no somente para o atar, ma s tambm para os
vrios personagen s interpretados.
O diretor teatral Z Celso Martinez Correa.!' referindo-se a Stani slavski, diz:

Falar em intensidade fort e no palc o, ento, no deve ser somente


necessidade do atar, mas prin cipalmente, e ao mesmo tempo, dirigido aos
propsitos do per son agem , poi s as pala vras devem vir esposadas pelo s
cont extos.
Neste sentido, na voz do ator h uma necessidade de a o, de uma fala
penetrante, na qual os recursos vocais so elaborado s de manei ra abrangente.
Ela deve resultar na criao ou modificao da realidade, como gerador de
impa cto sobre algum ou algum a coisa, que toma atitude, faz acontecer.
Comunicar-se em cena pressupe agir sobre o outro por meio de uma
linguagem que "alm de repr esentacional, comunicativa e expressiva,
co mponente na cria o do real , na produo de sentido (.,,)".14
O conceito de ao vocal pretende uma emi sso em acordo com a
ao cnic a e no uma voz apenas dramatizada, distante da realidade do
texto . Ela deve ser con struda em harmonia com a cena, para que se efetue
como acontecimento expressivo concreto, vivo , que fuja dos clichs vocais vazios de sentido, contendo em si me sma todo s os elementos do personagem : psquicos, culturais, situacionais, corporais.
Quando ocorre de fato , o ouvido do ator, atent o expresso, se reconhece na voz , em seu desenho meldico . A audio satisfeita refora o ato
da fonao em acordo com o personagem. Mas se, ao contrrio, hou ver
uma disson ncia entre a produo vocal e o personagem, isto leva habitualmente a um padr o estereo tipado de em isso. Assim , a ima gem do personagem apresenta-se aos olho s do pblico tecida, tambm, pelo s recursos
vocais que revem e co mpletam sua natureza.
A ao vocal se d tamb m num plano invisvel, mobilizando sensaes, impresses. Desloca-se no apena s fisicamente, atravs de ondas sonoras, mas pelos sentidos e afetos que provoca no encontro entre os personagen s,
e destes com o pblico. Deve comunicar as nuanas mais impalpveis do
pensamento e do s sentidos.
As palavras de um texto possuem ilimitadas possibilidades de mo vimento, assim como o mover-se corporalmente. Um enunciado, um texto

o desejo sa i pelo sopro , o sopro passa pel a co rda e a co rda toca a fala, " phala"
inclusive co m ph, a fala f lica . Stan islavski tambm falava bonito isso , que era
necessrio voc soprar no sopro a ao, para a a o acontecer na ao da fala,
para a fala agir tambm, para fala cami nhar, pa ra fala interfer ir, para fala ter vid a,
ter tanta vida que ela vai vira ndo ritm o, qu e ela vai vira ndo msica.
A voz ganha uma qualidade de moviment o, pois age no acontecimento
cnico. A fala vem acompanhada pel o percurso do personagem , no qual ,
por exemplo, o pice de uma proje o de voz tamb m um momento
emotivo culminante do personagem.
Norm alm ent e aumenta mos a energia do so m, o volume, se m estar em equi lb rio
com a e ne rgia ve rba l do per son agem . Ago ra , a e ne rgia requerid a par a co mpart ilh ar a voz co m um gra nde nm ero de pessoas some nte em part e tem a ver
com vo lume , mas tem tud o a ver co m co mo ns pre en ch em os as pal avras de

sentido."

Assim, os recursos vocais podem ganhar uma amplitude que, quando acontece, corporifica o personagem e ata o pblico. O ator, neste estado, capaz de perceber plenamente esta atm osfera. Por exemplo,
9. Op. cit., p.62.
10. Berry, op. cit. , p.20.
"After words are spoken, nothing is quite the sarne again,"
11. Op, cit.
12. Berry, op. cit., p.21.
"ln fact we increase the sound energy, the volume, but do not increase lhe verbal energy to
balance with it. Now lhe energy requ ired lo share with a large number of people is only partly to
do with volume. but it is ali lo do with how we fill the words themse lves."

26

13. Stanislavski, C. A construo da personagem . Trad. Pontes de Paula Lima. 4. ed. Rio de
Janeiro: Civilizao Brasileira, 1986, p.17 1.
14. Souza, L.A .P. "Li nguagem, represe ntao e alteridade". Cadernos de Subje tividade.
So Paulo. Ncleo de Estudos e Pesquisas da Subje tividade, Programa de Estudos Ps-Graduados
em Psicologia Clnica da PUC-SP, v.2, n.1 e 2, p.79-86, mar.lago. - set.zfev, p.80.12.

27

inteiro , pod em e devem ser elabo rados co mo ao vocal, pois a pal avra
destitu da de situao perde vigo r.
Realizar ao vocal amplia o uso dos recursos vocais na cr iao, ou
seja , abre as co mbinaes e possib ilidades de mo vimento da voz em cena ,
prtica essencial para o ator e para o preparador vocal.

As CARACTERSTICAS Ct NICAS NA AO VOCAL


(...) necessrio fa lar de aes sonoras exatamente CO IlIO se fa la
de aes fisicas. (...) Este tecido das aes sonoras - em conflito
mtuo. complementaridade e contraponto - se entrelaa com o
tecido das aesfisicas, das situaes (...).
Eugenio Barba i;
No comeo de ste sc ulo, fez muito sucess o em Moscou a montagem
do espetcul o "As trs irms", texto de Tchecov, co m direo de Stanislavski.
Sucesso que fez com que a pea se mantivesse em carta z durante muit o
tempo. Assim, muitos espectadores viram o espetculo bem mais de um a
vez. Ficou fam osa um a "brincade ira" feita pelo pbli co que, a um fim de
co nversa, um fim de assunt o, um silncio, um vazio, algum interrompia
propondo: " Vamos ao teatro ver co mo esto passando as trs irms?"
Como que isso pode acontecer? Como possvel um espetculo se renovar
de maneira a apresentar-se sempre como sendo a primeira e nica vez? S um
espctculo carregado de algo muito vivo e novo poderia sugerir um interesse
assim no pblico.
Stanislavski no teatro uma referncia com quem todos continuam aprendendo muito, seja pelos livros que escreveu, seja por aqueles que de muitas forma" deram continuidade a seu trabalho. Ele no se achava criador de um "mtodo"
para atores, por acreditar que a Arte. com A maisculo, como ele chamava a arte
do teatro, era possuidom de uma amplitude na qual no caberia a couraa de uma
concepo, de um modo prtico, um exerccio, um "manual de como ser ator".
Mas, embora reconhecido como um dos grandes tericos do teatro,
Stanislavski foi tambm um homem da cena, exercendo numerosas funes na
produo dos espetculos, o que lhe deu a oportunidade de escrever pela ptica
daqueles que sofrem a" angstia" do fazer teatral.
Em qualquer tentativa qu e se faa para co mpree nde r o teat ro. se estar, sempre, tan genciando se u se ntido ma is pro fund o, pois sua natureza
abarca mai s mistrios c, ... do qu e possa sonh ar noss a v filosofi a." Isto no
imp ede a refl exo sobre os aspectos que fazem do teatro um ofcio prti co
15. Barb a, op. c it., pp.80 e 83 .

28

e rduo trabalh o de criao. Nos muitos livros que escreveu so bre a Arte,
Stanislavski vrias vezes deparou co m esta questo .
Ser o a q ui de sc rit a s a lg u mas d a s expre ss e s c u nhadas por
Stani slavski , que compem uma espcie de glossrio das caractersticas
cnicas: a o fsica, superobjetivo, objetivos, situao, inteno e subtexto
dentre outras. E tambm a maneira pela qual a manifestao da ao vocal, nessas caractersticas, interfer e e co mpleme nta o trabalho de cr iao
art stica do int rprete.

Ao Fsica
Qualquer coisa que ocorra no palco, mais especificamente ligada ao
corpo e voz, deve acontecer com algum propsito. Uma in~ic a? de
movim ent o. co mo and ar, vem objetivada por um co meo e um fim . sair de
um lu crar a outro. Andar, efetivando -se co mo ao fs ica, preenchido de
um CO~lO e um por qu e, de uma inteno obje tivada . Porm , a ao fsica
no est es trita me nte ligada ao movimento co mo forma de deslocamento,
e pode ser a prpria imob ilidade, o estar parado, plen o de ativida~e intencional do atar. Somente quando a ao obj etivada tendo, con sciente ou
inco nsc ienteme nte, uma justifi cao, um motivo par a ser, que ela se
efe tua em aco nteci mento interpretativo: no se trata de representar o andar pelo mo vim ento em si e, sim, andar co mo ao fsica. O mesmo podese dizer do ato da fala em ce na.
A ao fsi ca, tal qu al defin ida por Stan islavski , at hoje amplament e usada por atores e diretores no pro ce sso de co nstruo dos personagen s. O ator se pergunta: O qu e eu fao para sati sfazer minha inteno,
os obje tivos do per son agem? Stani sla vski dizia aos ata res : No perguntem o qu e o personagem se nte, mas o qu e e le faz. (...) " Em cena, vocs
tm se mpre de pr alguma coisa em ao. A ao , o movimento. a base
da arte que o ato r persegue (...) no atue m de um modo ge ra l, pela ao
simples me nte, atuem se mpre co m um objetivo," !" A ao fsica defin ida, por Stani slavski, tanto em rel ao ao co rpo qu ant o voz do atar, porm foi de senvolvida mais det alh adamente em rela o ao corpo. Ape sar
de dedicar vrios captulos aos recursos vocais, Stanisla vski no desenvolveu es pecificame nte a ao vocal. Por isso, no presente livro , a descr io de ao fsica es tar se referindo ao corp o, mesm o co nsiderando corpo
e voz, juntos, em ao.
A noo do que ao fsica serviu de ba se par a (re)e labo rao do
con ceito de ao vocal. Stanislavski diz: "O corpo co nvocve l. Os sen16. Sta nislavski , C. A preparao do ator. Trad. Pontes de Pau la Lima. 10. cd . Rio de
Jane iro: Civilizao Brasileira. 199 1. pp.64 -7.

29

timentos so caprichosos. Portanto, se vocs no puderem criar espontaneamente um esprito humano em seus papis, criem a entidade fsica do
papel ". 17 A necessidade de um trabalho de preparao vocal mais ligado
ao processo criativo do ator conduziu-me a este estudo. Na ao fsica, os
objetivos e as intenes do personagem deveriam ficar expostos; da mesma maneira, a vida verbal do personagem deve ganhar materialidade e ser
trabalhada em forma de ao. Como afirma Berry," a conexo entre a
vida fsica e a verbal do personagem deve ficar aparente e palp vel , no
s para o ator, mas tambm para o espectador.
Deste modo, a a o fsica e a ao vocal ocorrem em comunho
fazendo a histria acontecer. O texto requer ao, a ao pede o texto para
manifestar-se. Assim, a interpretao do ator tem na fala um movimento
de atitude que traduz a prpria ao cnica.

Esses acontecimentos so conhecidos pelo ator e, de certo modo , at


pelo pe~onagem, porm aquilo que se sabe desde o incio no o impede,
como a Edipo, de ir at o fim na expectativa de que em algum momento seja
dada a vitria sobre o impondervel. Cabe ao ator correr esse risco e fazer de
cada um desses momentos um salto entusiasmado do trajeto, que arremessa o
personagem ao seu superobjetivo, na sua instigante e intrincada trajetria.
A fala do ator tambm uma ao que se dirige a um superobjetivo,
por intermdio de um fio de ten so invisvel que liga todas as cenas e cria
sentidos a cada recurso de voz que brota na a o vocal. O texto falado
movimento que no est separado de nenhuma outra ao da pea; depois
que dito mais um degrau ter sido ultrapassado . Ser definitivo e
modificador de todos os acontecimentos que o antecederam, projetando o
personagem ao devir.

o Superobjetivo e oObjetivo

Situao

Quando se tem pela frente um papel a cumprir, tem-se desenhado, a partir


do texto, um percurso com comeo, meio e fim. Essa trajetria feita de inmeros acontecimentos que, como uma escada, vo se fazendo pouco a pouco.
Visto assim, cada lance da escada compreender, ento, um acontecimento coberto de sentidos e dimenses, que deixam ver a humanidade do personagem.
Se cada degrau, imaginado um a um como uma seqncia de lances fulminantes, fosse considerado como a conquista de um objetivo, o ltimo lance da
escada, o local da chegada, seria o superobjetivo do personagem.
dipo, per sonagem da tragdia de Sfocles, sabe por um orculo que
seu destino ser casar-se com a me e matar o pai. Foge ento daqueles
que ele acredita serem seus pai s, na verdade pais adotivos, com o intuito
de proteg-los do de stino previsto pelos deuses. Durante sua viagem de
fuga , mata um viajante que se pe em seu caminho. Continua em direo a
Tebas, cidade que sofre o flagelo do enigma imposto pela esfinge , devoradora
de todos que no o dec ifram. dipo decifra e derrota a esfinge e como
prmio casa-se com a rainha de Tebas, ocupando o trono vago em virtude
da morte do rei. Em Tebas um novo desafio: encontrar e punir aquele que
matou o anti go rei . dipo incita toda cidade a procurar o criminoso, para o
qual prev o maior dos castigo s. Ma s o assassino de Laio , rei de Tebas, que
se casou com a rainha Jocasta, dipo. Ele cumpre, assim , o destino proferido pelo orculo de Delfos. Desesperado com a de scoberta, arranca os prprios olhos e tem fim esta primeira parte da tragdia.

Na vida estamos sempre em situao. Ontem, h poucas horas , agora,


estamos em situao. Em cena necessrio reaprender a estar nos lugares
com esta propriedade. O recurso vocal de velocidade rpida, por exemplo,
num dado momento, flui e conduz uma cena de urgncia. O ator utiliza este
recurso quando naturalmente se percebe em situao . Outros recursos obviamente so usado s, mas, neste exemplo, a velocidade rpida o que mais
aproxima o ator da situao do personagem, e, portanto, se sobressai. A
prontido de estar em situao traz uma agilidade, quase pontual, em que o
ator parece no "perder" nenhuma fala, est sempre "afiado" com seu texto.
Estar em situao localizar-se geogrfica e afetivamente em cena.
O personagem est sempre fazendo parte de algo que acontece num lugar,
com algum ou sem algum, num momento articulado a outros momentos, do s mai s variados modos . Localizar-se geograficamente atuar com
a ateno em tudo que nos cerca quando estamos em cena: pessoas, coi sas, lugares, temperaturas, son s, luzes etc . Da mesma forma, uma " localizao afetiva" a que leva o ator a se orientar no plano das afeces:
emoes, memrias, perspectivas, desejos, dores, pressas etc .
H um monlogo de Tchecov chamado "Os malefcios do tabaco"
em que Cheiro, o personagem, por obra de sua mulher, se apresenta
platia para uma conferncia sobre os male s que o tabaco traz a sade. A
mulher de Cheiro, que alis no est presente conferncia, uma matrona
ditatorial, dona de uma escola para moas, onde ele trab alh a como um
asno sob os maus-tratos desta criatura. A conferncia que ela mesma arranjou para que ele proferisse no o que ele gostari a de estar fazendo ali,
naquele momento, com aqueles que l esto . Assim, vai contando sua vida,
seus sonhos de juventude, sua amargura , seus arrependimentos e seu de sejo

17. St ani s1avski, C. A criao de um pap el. Trad. Pontes de Paul a Lima. 3. ed. Rio de
Jane iro: Civi lizao Brasileira, 1987 , p.169.
18. Berry , op. cit.

30

31
I

mais inconfessvel que o de correr, correr, e ficar como um espantalho,


olhando as estrelas, no meio do campo. Tudo isso, interrompido abruptamente algumas vezes pela possibilidade iminente da chegada da mulher.
Por fim, dado o adiantado da hora, encerra a conferncia, sem, no entanto,
antes se dirigir suplicante assistncia pedindo a todos que no contem
sua mulher o que aconteceu ali, naquela noite . "Se ela perguntar, digam que
foi feita a conferncia, como estava combinado." E estando todos de acordo, d por encerrada a sesso, agradece e sai.
O lugar onde est, o pblico da conferncia, o dia de hoje, a hora, suas
emoes. essa situao vivida por Cheiro que trar, tanto para o personagem quanto para o ator, informaes das quais seu trabalho tirar proveito para tornar mais clara e sensvel sua atuao.
A atuao no uma abstrao, uma ausncia; ao contrrio, ela se
determina pela presena, da a importncia de trazer para os sentidos esse
reconhecimento geogrfico e afetivo que, mesmo se no for aplicado interpretao, no poder nunca ser ignorado. Uma interpretao viva entender sempre que no a mesma coisa interpretar em lugares, dias, horas,
situaes diferentes, e tirar proveito dessas possibilidades. Este ser um
reconhecimento provocativo para uma disposio prtica a mais viva possvel. Porque isso importante: o personagem conduzindo o ator a atuar verdadeiramente frente ao carter singular da situao em que se encontra.
Inteno
Em "Esperando Godot", texto de Samuel Beckett, dois mendigos esperam ao p de uma rvore aquele que motivo de toda sua caminhada at
a cena: o senhor Godot. Haver um encontro e, como ele disse, seria numa
estrada, prximo a uma rvore. Ento, sentam e esperam. Pausa. Todas as
aes foram cumpridas, localizadas geograficamente, objetivo realizado,
tudo agora esperar o senhor Godot. Pausa. Godot no vem? Ser que
estamos no lugar certo? Quem Godot? Por que esperamos Godot?
As intenes do ator e do personagem esto vinculadas vontade, ao
desejo, ao pensamento. Elas podem referir desde o conjunto dos motivos do
autor ao escrever uma obra at a sua manifestao na voz do ator. Est
ligada a um vir a ser que pode se atualizar com a chegada do senhor Godot.
As perguntas dos personagens e suas aes no texto de Beckett vo
determinar no campo das intenes as mais variadas possibilidades, tanto
para quem pergunta quanto para quem ouve a pergunta. O ponto de interrogao, como um anzol, mergulha no desconhecido e sempre traz de l
uma surpresa. O jogo da cena se apropria sobretudo desta aventura, em
que a inteno pincela cores e desenhos inimaginados. Recursos vocais,
como a entonao, trazem em suas curvas meldicas intenes que, inte-

32

gradas ao geral, criam no ouvinte um corpo imaginrio para investigao dos muitos sentidos que compem uma obra de arte. E esse o seu
movimento, sua tempestade que sacode o campo das idias preconcebidas sobre os significados das coisas.
A inteno, portanto, regida pelo querer, instigada por uma necessidade e conectada ao texto, ao autor e, por conseguinte, ao personagem por meio dele ao ator, ao diretor e ao pblico - , gera movimentos que se
efetuam pela voz e pelo corpo, determinando ao.
Subtexto
I

.iI
'~

Quando pela primeira vez alguns atares encontram pela frente um texto de Shakespeare, com falas imensas, pginas de monlogos, tm como
primeiro impulso o desejo de reduzir todas aquelas falas metade, seno a
um quarto ou menos. A impresso de que tanto texto desnecessrio e
com poucas palavras se poderia transmitir plenamente todo o univer so tocado pelo autor. Mas a leitura aprofundada do texto, o conhecimento mais
amplo da situao, dos desejos que ali esto, objetivos, superobjetivos, acabam colocando-nos frente seguinte concluso: o texto pequeno para
tudo o que se quer dizer, e mesmo depois de tantas vezes representado fica
a sensao de no ter dito tudo, de faltarem palavras para trazer tona a
fria de um rei Lear, o horror de Macbeth, a questo de Hamlet, o cime de
Othelo, e um caldo imenso de sentimentos inominados que passam pela
obra do grande autor que William Shakespeare. Por ele possvel comprovar que o texto uma pele, um tecido a cobrir a carne, os ossos, o sangue , as vsceras de uma humanidade inaudita, oculta, impronuncivel,
profunda, milenar, que cada palavra exige para ser manifesta.
A compreenso dessa dimenso da fala que faz com que tenhamos a
emisso vocal cnica como algo que no pode se dar numa enunciao
impensada, como mera tagarelice ou fala decorada. O ator se apropriar
daquilo que diz, se dando como terra para as palavras e far suas as razes
dessas palavras, o que ser o seu subtexto. A formao dessas razes se dar
por intermdio da compreenso e elaborao dramtica, com o ato r atento a
todas as sugeste s e situaes trazidas pela pea. O texto escrito ser recriado na encenao sob o qual ser escrito um outro texto de desejos, objetivos, intenes: o subtexto. O diretor e os atares produziro esses fluxos
subtextuais a partir das interpretaes que fazem , dos elementos que acrescentam e retiram do texto e dos modos como os transformam em realidade
cnica. Eles criam uma histria singular, uma corrente subtextual, conectada
ao enredo do texto teatral. Esta corrente subtextual age como um impulso
que impele emisso. Este subtexto se deixar ver impresso na voz, no
corpo do atar e se manifestar por meio. tambm, de suas intenes.

33

A idia do subtexto, um outro texto no dito mas tecido no seu


subsolo, abre para a criao um imenso campo de possibilidades. O
subtexto permite ao atar emitir recados, num texto no visvel mas que
est sendo ouvido de diferentes maneiras, percebido pelos sentidos dos
presentes. O autor, ao escrever o texto, deu a ele a dimenso de seu tempo.
dentro do contexto e objetivos que ele pretendia atingir. Mas por meio do
subtexto possvel criar e at ampliar perspectivas sugeridas pelo autor,
que vo dar contemporaneidade ao texto.
A interpretao sempre uma associao livre de idias, sensaes,
percepes, com a ambio de tocar o homem nos terrenos mais diferentes e desconhecidos. Quando o intrprete entra em cena, ouve e est sendo ouvido, reage a incontveis estmulos do espetculo. Esses estmulos
estaro sempre disposio do ator para inveno de novos sentidos
subtextuais ao texto que ele ter de dizer.

FALAR AGIR

Pode-se dizer que aao vocal comea a realizar-se mais freqentemente


em estdios mais avanados do processo criativo. Nesta fase, a aspirao do
atar em executar aes fsicas e vocais, como derivao das vontades criadoras, muito forte, como se no fosse possvel conter seu corpo e sua voz.
Neste momento as palavras do texto so como "armas para entrar em
ao", e bom que se espere at que estas se tornem de primeira necessidade para a execuo de seus objetivos.
Vocs logo compreendero, assim que tenham se identificado com os verdadeiros
objetivos de seus papis, que no h melhor meio de atingi-los seno atravs das
palavras escritas com a genialidade de Shakespeare . Ento , vocs se agarraro a elas
com entusiasmo , elas viro ao seu esprito cheias de vio, e no manchad as e gastas
por terem sido arrastada s por a durante todo o rude trabalho de preparao. 10

As aes fsicas e vocais so referncias concretas que, conectadas

s caractersticas cni cas, orientam o trabalho do ator. As palavras do


texto so guias aos quais o ator deve se apegar para a con struo vocal.
Ele tem nas aes um "start" que o incita ao personagem e a um reviver
constante deste. "O esprito no pode deixar de reagir s aes do corpo,
desde que, evidentemente, estas sejam autnticas, tenham um propsito e
sejam produtivas,'?" Quanto mais conectada estiver a a o vocal em suas
caractersticas cnicas e imantada pela criatividade do ator, mais bela,
19. Stani slavski , op. c it., p.ISS.
20. Stani slavski, op. cit. , p.16 2.

34

mais elaborada ser sua voz. Isto quer dizer que o treinamento vocal do
ator fica impregnado, incorporado nele como uma espcie de memria,
pronta para realizar-se como ao vocal na interpretao.
A ao vocal, ento, mobiliza no ator impulsos ligados aos superobjetivos
e objetivos, s situaes, s aes fsicas e ao subtexto . Imbricada nos recursos vocais, ela reflete e recria as intenes do personagem; e se d no s no
plano consciente, pois no se pode controlar todas as matizes de uma expresso conscientemente. Muitas vezes, quando a voz produzida, o ator a percebe como uma sensao geral sintonizada na situao do personagem.
Pode-se dizer que a ao vocal faz o atar rever sua voz e a do personagem, (re)atualizando os recursos vocais em sua manifestao. Por isso,
j aconteceu de atores relatarem o medo de trabalhar a voz , com receio de
desestabilizar a interpretao conquistada para o personagem. Como se
esta conquista fosse estanque e no contnua! Porm, em vrias companhias h um trabalho constante de direo e (re)elaborao do texto na
boca do atar. Desde as primeiras leituras, e tambm no momento de decorar o texto, importante ficar atento para no congelar formas de emisso,
investigando partituras, interpretaes vocais.
Esta voz capaz de metamorfose pode se materializar nas nuanas dos
recursos vocais trabalhados para aquele personagem. As palavras na ao
vocal so como estratgias para se alcanar um determinado objetivo,
uma inteno, para transmitir um subtexto, para estar em situao.
Este processo de transmutao auxiliado, tambm, pelo pensamento e pela imaginao. que so trabalhados na voz pondo em relevo significados e permitindo aos atores e ao pblico "ver com o ouvido". O
pensamento do ato r no caminho do texto deve seguir o fluxo do pensamento do personagem. Berry" afirma que a fala sendo ativa aclara o pensamento do personagem; ao contrrio, passiva quando o ator, na busca
das intenes, acaba pensando muito antes de falar e, portanto, no vive o
pensamento quando este ocorre na fala. fazendo desta somente a representao do pensamento e no ele mesmo. Isto se se entender por pensamento no apenas uma faculdade racional/intelectual . mas tambm
disponibilidade ao plano das sensaes, percepes e afectos", abertura ao
jogo, ao aca so, ao destino. O pensamento, assim concebido. da ordem da
criao de sentidos e expresses, advindas do contato com as foras vitais,
sendo a razo um importante meio de que se dispe para a elaborao

21. Berry, op. cito


22. Optou-se por usar o termo afecto (no sentido de afeco), para diferen ciar do significado
corriqueiro do termo afeto , que quer dizer carinho. afeio. Aqui. afeco significa capacidade de
afetar e ser afetado pelo outro, o que provoca transform aes irreversveis na subjet ividade. ou seja,
afetamos ou somos afetados todas as vezes que produ zimos um diferen cial em ns e/ou nos outro s.

35

formal e repre sentacional do pensamento ." No trabalho de interpretao, o ator pode mobilizar imagen s-sen saes que reavivam suas pal avras e criam um subtexto imaginrio. A imaginao excita a atuao. A
brin cadeira de imaginar pode tambm ser a de criar realidades, discutilas, recri-las e, por fim, interferir nelas. A imaginao uma das armas da
qual se vale a vontade desejosa e provocadora. Imaginamos longe daqui, aqui
mesmo e, nesse sentido, a imaginao no um processo alienatrio, mas
sim um meio ativo de se contracenar com a realidade. Falando o texto o ator
destaca imagens, faz as palavras vibrarem. Estas imagens-sensaes deveriam estar a servio do ator/personagem em seu superobjetivo na pea.
O ator no pode expl icar ou comentar seu texto enqu anto fala, como
se mostrasse para o pbli co a razo dessas palavras; ao contrrio, tem de
liber-las, como se estivesse descobrindo-as por meio dos pensament os
do personagem e de sua prpria imagin ao no momento da emisso. Na
ao vocal preciso que a voz seja fluxo das f oras vitais exprimindo
sensaes, idias, emoes, imagens. Ao vocal fluxo, escoamento e
mobilidade, processo dinmico; pode ser no silncio, na pausa, pois no
, neste estado, somente ausncia de som , ao.
O ator tem de "tocar" o personagem pelo texto, e permitir que este
conduza suas prprias experincias, de maneira que o encontro entre eles
se torne r~al , catalisador ,das foras que vo sustentar a voz, ampliando
sua capacidade de ao . E certo que quant o mais depu rada e eficaz for a
voz do ator, mais refinad as as relaes com suas intenes; quando a voz
ao, j corporificou o prprio personagem .
A ao vocal, em sua abrangncia, efetua-se nas vrias concepes
de atuao teatral, em qualquer teatro. Na qualidade de movimento , a voz
em ao no se limita a um tipo especfico de interpretao, mas, certamente , se potencializa naquelas que vicejam, que fazem diferena para
quem fala e para quem ouve. So as fora s vitais emergindo na voz.
Da necessidade no teatro de vnculo entre a emisso das palavras , de
outros sons e seu contexto vivo, emergiu esta (re)conceituao de a o
vocal e a elaborao/anlise das partituras vocais, pois estas permit em
captar as caractersticas da voz cnica em momentos diversos do processo
criativo do ator, em ensaios e espetculos.
Nesta prtica de prepa rar a voz, o domn io tcnico e o trabalho est tico de criao vocal podem e devem se esposar, ambo s a servio do trabalho de criao e reflex o do ator. Este cruzamento define uma maneira
de trabalhar a voz do ator em suas a es vocais, registradas nas partituras
vocais, como ser visto nos captulos seguintes.
23. Souza. L.A.P. Entre -corpos. .subje tiva o e processos urbanos . So Paulo, 1997. Tese
de Doutorado em Psicologia Clnica, PUC/SP.

36

II

PARTITURA VOCAL

Quando o ator; em sua criatividade, se mostra altura de um


texto notv el, as palavras de seu papel revelam-se como a melhor, a mais indispensvel e a maisfcil dasformas de encarnao
verbal com que ele pode manifestar suas prprias emoes criativas por meio de sua partitu ra interior. Ento. as palavras de um
outro. o autor, tornam -se a melhor partitu ra para o prprio ator.
Ento as f ormas e ritmos incomuns dos versos (...) se tornaro
necessrios, mio s para o prazer do ouvido, mas tambm por
causa da acuidade e do acabamento na transmiss odas emoes
e de tudo que h na partitu ra do ator:
Stan islavski I

O texto teatral uma composio dramtica feita para ser encenada. A


interpretao dos atores, entre outras coisas, produz variaes no texto, e
estas podem ser registradas na partitu ra vocal. A passagem do texto escrito
pa~a ao cnica reestrutura sua concepo inicial. "Talma afirma que a
paixo no caminha como a gramtica, no pra sempre nos pontos e nas
vrgulas, que ela os desloca ao sabor dos seus arroubos,'? A partitura vocal
descreve graficamente a voz cnica do ator em determinado s momentos.
Laurence Olivier, ator, referindo-se a outro atar, Edmund Kean, relata:
No Museu Britnico h um exe mplar de Ricardo III usado pelo ponto, onde um
providencial assistente de dire o anotou as inflexes do mestre Kean. Assim, pode-

I. Stanis lavski, C. A criao de um pap el. Trad, Pontes de Paula Lima . 3. ed. Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 1987, 1'.108.
2. Aslan. O. O alar no sculo xx. Trad. Rachel A.B. Fuser, Fausto Fuser e J. Gui nsburg.
So Paulo: Editora Perspectiva, 1994, 1'. 19.

37

se ter uma idia ainda que vaga de co mo ele desempenhava ritmicamente. onde fazia
as pausas e, talvez, como deve ter soado aos ouvidos de seus co ntempor neos .'

Conta-se tambm que, no incio do sculo XX , o atar chamado Talma


pensou em esconder-se na caixa do ponto para descobrir os segredos da
respirao de Mon vel, outro ator da poca.'
Participando de ensaios em montagens teatrais, minha escuta como preparadora vocal sempre esteve aguada aos desenhos que a voz do ator fazia.
Percebia que, dia aps dia, ia se configurando uma composio dada por sua
interpretao do texto. O trabalho vocal deveria conjugar as implicaes tcnicas da voz dos atores e as demandas vocais do texto em suas situaes
cnicas. Observava, nos ensaios, o tratamento que o ator dava aquele texto e
como o diretor o conduzia nos objetivos e intenes de seu personagem. De
certa forma, como se eu ficasse "escondida", ouvindo da caixa do ponto os
"segredos" das interpretaes vocais. A proximidade com o texto e sua montagem catalisou minha compreen so da voz no teatro. Com isso, em ensaios e
leituras de peas, absorvi o trabalho no texto - as decupagens da'> situaes
dos personagen s, as anlises dos seus objetivos, suas pautas de aes - e a
concepo teatral especfica de cada companhia.
Na trajetria de construo dos personagens, o texto escrito vai sendo singularizado, os atores anotam e fazem indicaes nele , refletindo o
processo de (re)criao do texto na montagem, partindo de suas compreen se s e impresse s, da dire o da pea, do s treinamentos vocais e corporai s. Na primeira leitura, o texto mostra-se como um universo do autor,
a ser descoberto na voz do ator. Est ainda " nu" . Aos poucos, o ator vai se
apropriando do texto, mai s especificamente de seu personagem, e "ve stindo-o" com anotaes interpretativas que recolhe no s en saios com o
au xlio da dire o . O ator, assim , inventa o seu registro no texto teatral.
Por meio de um longo percurso de tre inamentos, leituras e ensaios,
adicionvamos referncias interpretativas ao texto que, desta maneira, ia
se estruturando, passando da escrita a uma fala em cena, deixando marcas
de anotaes no texto. Em decorrncia deste processo, tem-se trs desenhos de um mesmo texto, que ser desdobrado na construo do personagem , ganhando consistncia na voz do ator: o primeiro, o texto teatral que
recebido para a primeira leitura; o segundo, a partitura do papel 5 referncias interpretati vas que os atores marcam ou acrescentam ao texto
escrito; e o terceiro, a partitura vocal, mapeamento da a o vocal do ator.
Para melhor entendimento do que nomeei pa rtitura voca l necessrio
conhecer os doi s primeiros desenhos referidos. O texto que se segue do
personagem Hamlet, da pea "Ham-let" de William Shakespeare (ato II,
cena 2), conforme recebido para primeira leitura: "
3. Olivier, L. Ser ator. Trad . Beth Vieira. 2. ed. Rio de Janeiro: Glob o, 1987, p.33.
4. Brmont, apud Aslan, op. c it., pA .
5. Stani sla vski , op. cito
6. Este texto foi ada ptado por Z Ce lso Martinez Co rrea, Nelson de S e Marcelo Drummond.
O ttulo original da pea Hamlet , sem o hfen no meio da palavra, mas nesta montagem a di viso

38

HAMLET

"DI1V\I'e q'l~ p-' ,trp.I,."


'.p)~m tnyu,
fJllv I de qu('~ o So 1 ~;~' rr.r.v a ,
rhlvlde que verdade S~?J~ mentira ,
Ma I ~ nunci.l duv I de qUP amc I
Oh quer Ida OptlE'lld, eu f ICl, duentE" c om pssa
d,tr Ir' i<
Nao tenho ii arte
de contar meus C;USPlrO',
Ma ',; eu t. amo, ac i rna

de t u o o , acredita em mi m
A(lf~U~.

Teu ,

pra

E-n~an

t D

' .pmp rp,

mlnl 'liI

dam a

mais

ql lPrlcJit,

en

Essa

(\ M.'Jqutnd. de llamlet fun cl onar', Hamlet"


J f,< .o , IfII ntlCi i 1 I tI
1fI1' mCJ ~~ t r ClU por (ltj~lll pn!
OlJrlnt.o ao rl~<;
d 'c, ' , () I IC l t ~ r.. (~ '~ del e,
CClm(J ac.c,nt
. e r a m, em t,pm!-'cJ, lugar P frIC,dCl ,
lurro o
1S
e I ii e D il f t OIJ ao':> meus OUV lua,:>

I il ,

O segundo uma cpia tirada do texto do ator Marcelo Drummond,


que interpretava Hamlet. com algumas anotaes interpretativas:

P (' 1.0 NI O
~oa

L ~~.Rr

c~p~r c

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~DU~ idelq~es trcl s s~~ am


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.
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C f e ] i ~ . I ~ ~ ~ico d o e n l E c o ~ . Qs sa ~ c t ~ . c a. N'o

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~c ...e

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1 0 90'{

c "rl l 1.l~ h'~U S

f:i.l\!i Pi t -o :s .f

Ma s

E U

. i\ em m im.'............
e U' 1 p,-a . G e I"J P r- . L m i r' ~I t'. c a ma m -f i ~ ~ lt E' :, i d a. l e' n q u i\ n l
~~qUil) a d Hanll el ~Ync ln n ~r. H a ~.l @ t
. ~ _.
~ ' ~iiSO. ml n r l <:\ i::' i l h a rase l o "",t r ou po r u h e d" -",rll.-I;l':.

<.~

rJc"LltdO , '

7:\1lI0.I .,U ':lm ;:'4

es !".a

Quanl o ao rEslo.
s D l ic i l a D~ S d e l ~ .
Corno a c cl n l e c e r
r
em t e mpo, lug ar E mo d o ,
Tudo o ma is
.a con~ lou aos mel\ S o uv j (l o s .

39

No texto trabalhado pelo ator, alguns dados importantes da cen a ap arecem escritos ao lado da fala, dando corpo e possibilidades s intenes
do person ag em .
A elaborao da partitura vocal, na con struo dos personagens, se desenvolveu tambm nos ensaios, mas foi registrada, mais detalhadamente, pelos atore s e por mim nos treinamentos vocais. Ela no categrica, no sentido
de fechar- se numa nica form a ou marcao; ao contrrio, mutvel, multiplicando- se e transformando-se ao longo do proce sso criativo. A fala partiturizada revela uma linguagem que no s explicita os recursos vocais, mas os
liga situao cnica como um todo. A voz muitas vezes realiza- se tambm
como cena e com atitude objetivada pela processualidade do personagem em
sintonia com o atol', ou seja, nestas circunstncias ela ao vocal. A partitura vocal o meio pelo qual a ao vocal poder ser (re)visitada, permitindo
que ela e tambm outras ae s cnicas sejam (re)elaboradas.
A partitura vocal singular a cada interpretao; o me smo personagem ganha partituras diversa s na voz de diferentes atores. O texto dramtico recebe, portanto, um desenho pe ssoal que se transmuta me smo depois
da estria, e at de espetculo para espetculo, quando novas referncias
interpretativas e vocais vo modificando-o. A fala, sendo in stvel, no
estabiliza melodias ou ritmos como a msica faz e, portanto, a partitura
vocal no regular, com notas e andamentos definidos. Ela tem outra
trama, determinada pelos usos do s recursos vocais nas situaes do personage m e do atol', em cada pea e em seus espetculos.
Na primeira leitura do texto feit a pelos atores e pelo diretor, diversas
po ssibilidades de interpretao se de sdobram. Neste momento e no dese nro la r do processo criativo, as notae s no texto feitas pelo atol' vo
desde de senhos e expresses que refletem a cena, situaes do texto, do
person agem, seus objetivos etc., at as marcaes especficas da fala do
ator. Este conjunto de elementos define a partitura do papel , vista na fala
de Hamlet, e engloba referncias voc ais.
Cada diretor tem modos caractersticos de criao e montagem teatral, com variaes de pea para pea, o me smo ocorrendo na construo
do per sonagem pelo ator: o pro ce sso criativo no comporta regras fixas .
A partitura do papel, escrita sobre o texto ou fora dele, uma anotao repleta de dados e marcos de ste processo. As circunstn cias dadas
pelo autor, tipo de proposta teatral , lugar e poca da montagem e as relaes entre o elenco e a direo afetam o ator e certamente ressoam em sua
partitura . Nela, uma espcie de pl ano, de mapa da pea, traado, como
da palavra qui s dar o sentido de soltar o canastro : ler - soltar. e Ham - cana stro (apesar da
traduo literal ser outra, foi utilizado o em prego deste termo para o teatro). O hfen funciona
tambm como "ponte" de ligao entre essas duas noes. Portanto, ser usado aqui "Ham-let"
quand o referido a esta montagem da pea. e Hamlet (sem o hfen) para o person agem. Esta fala
originalmente de Polnio , porm na montagem passou a ser de Hamlet.

40

pontos de referncias, com os quais o atol' se posiciona e se desloca, estabelecendo objetivos cnicos. Estes do propsitos s aes f sicas, orientam as intenes, incitando de sejos.
Por meio dacontribuio de Stanslavski, o atol' ganhou instrumentos que
o ajudam na manifestao das emoes do personagem. As caractersticas da
partitura do papel e sua efetuao nas aes do atol' em cena trouxeram urna
percepo ao meu trabalho de preparao vocal; pude ver que a j estava embutido um esboo inicial da partitura vocal. Assim como o corpo carrega as
caractersticas cnicas na ao fsica, a voz, tambm, na ao vocal, conduz
intene s, objetivos e situaes, Ela arrasta, quando de fato age, o corpo e suas
aes, fazendo com que se tomem indiscernveis; o que, alis, provavelmente,
seria mais perceptvel no fosse predomnio, em nossa cultura, de uma certa
tradio racionalista, que dicotomizou corpo e mente , razo e emoo, operando a separao entre o real visvel e o real impalpvel. O registro grfico dos
desdobramentos da ao vocal, sem tais dicotomias, constitui a partitura vocal.
Da mesma forma que Stanislavski props a partitura do papel, o
preparador vocal cria seu registro, a partitura vocal, onde os movimentos
da voz cnica do ator para aquele personagem esto desenhados. A sua
anlise oferece, portanto, subsdios para o trabalho de voz no teatro, tanto
para o atol' e para o diretor quanto para o preparador vocal.
A capacidade de esculpir sonoramente as vontades e necessidades do
personagem vital para o atol'. A anotao da partitura vocal, retrato do percurso de construo vocal do personagem e de sua encarnao na voz do ator,
reflete esta ao num dado momento expressivo. Por intermdio dessas notae s tem-se referncias das caractersticas do personagem e vice-versa, as
caractersticas cnicas sugerem recursos vocais, como ser visto adiante.

RECURSOS VOCAIS NA PARTITURA


...que os trgicos gregos sabiam alternadamente acelerar ou ralentar
a elocuo . aumentar ou diminuir o volume da voz. entrecortar as
pala vras, amenizar a expresso, tecer longamente a fra se. numa
respirao. Sua pala vra traduzia sobressaltos, at mesmo signos,
ela consentia, imitava. ria. caoava , insultava. Depois, como dois
cantores que se respondem, as vozes iam de um a outro interlocutor:
at uma palavra foi inventada para exprimir esse dilogo dos
jambos, esticomitia (...) a conversa das linhas, dos versos. Alm
disso o atar era conhecdo como gravissonante, ressonante,
crcussonante, encorpando sua voz, falando com curiosidade.fo rte
ou docemente, feminino ou masculno.
Ren Cl ment?
7. Clment, R., apud Aslan , p.I O.

41

unindo as palavras em grupos conforme o entendimento lgico do texto. O


segundo, os dois traos, representa a pausa psicolgica, mais longa, que d
vida aos pensamentos e ajuda a transmitir o contedo subtextual das palavras,"
Desta maneira, os prim eiro s elementos esc olhidos para nota o da
partitura vocal foram as palavras-chave, chamadas aqui de nfases, e as
pausas, dad a a freq ncia e imp ortncia destes na partitura do papel e,
portanto, na interpretao do ator. Este foi o enfoque inicial priorizado
nos treinamentos voca is e, por meio de nota e s das interpretaes no
texto, a partitura com seus recursos vocais foi se con stituindo.
Nos exemplos expostos, de pa rtituras do papel, pela s divi se s das
falas, percebe-se a compreenso lgica e emotiva do texto pelo ator. H
doi s momentos: um, no qual, por intermdio da leitura e do conhecimento
do texto , ele toma contato com a diviso versificada da pea, no cas o
Sh akespeare, ou , mais precisamente, com aquela oriunda da tradu ol
adaptao efetuada para esta montagem. O outro, quando expressa sua
relao com o per son agem , por intermdi o, tamb m , da fala c nica. Este
o movimento que se produz entre a busca da respirao e a encarnao
do pensamento do per sonagem pelo ator, ? Logo, as pausas possibilitam a
divi so interpretativa do texto e determinam um andamento vocal ao falant e. Para se entender melh or esta afirma o, evoco aqu i a histri a
reveladora do ator Jou vet:

As opes de recursos vocais usados na partitura vocal ficaro mais claras


a partir da observao dapartitura do papel de outro ator, Pascoal da Conceio,
que interpretou o personagem Polnio na pea "Ham-let' (ato I, cena 3):
J da_orei deMais.
]Enlra

polonlo~
b.n~D

li

A sorle esla do ....u

1Jfttw 1AfJv1f:/:~go~

Ma. a Ral .. RU pai

_ _ dupla

...

chegando.

dupla graa ..

~ it';;L.4e'c"Te5
,x
_
.

1.d~ .. n . . . . . . ti.gunda dCIiPedidil' l'i1't)

oeiL..c:aI'V1 0

POLONIO

Ainda a Lrl ? Va i Rm arcar .. J embarcar .. q vergonha'


O venlo J curva O;;;5~o~m~r~o.;?~~~~~~~~~~=P;:=-:;:--E .6 lio le .sp;~ando. ama aqu
en o .. va i com ~la,

<ca.. a5 m1>.os nos ombro d La.. rl ... l Oi'-flS:

.Dfz

me::t=

deI os.

'::1

voce.

Basicam ente, as notaes vocais de maior ocorr ncia na sua partitura do papel so algumas palavras sublinhadas co mo palavras-ch ave da
fala e, ainda, os blocos de palavras ou frases que so agrupados pelo sentido e entendime nto que se d ao texto. As pal avras-chave so chamadas
tambm de "palavras-sensaes", "palavra expressiva", "palavra de valor" , "pa lavras com libido", "palavra viva", dad a a nece ssidade de realizlas co m vitalidade e contextualizadas ao vivo, no instante da sua produ o
cnica . Graficamente, neste text o, as pal avras-chave so sublinhadas,
circundadas ou at coloridas, e os blocos e fra ses so separa dos por tra os
ou englob ados. Algumas palavras, escritas pelo ator, aparecem co m freqn cia ao lado do texto , como exp resses que substantivam, adjetivam,
ilustram o personagem e suas cara ctersticas cnicas.
So muito usados os traos de pausas, tanto o simples I quanto o duplo
II, sendo o prim eiro chamado de pausa lgica, que divide a frase em perodo s,

42

Um texto antes de mais nada uma respirao. A arte do comediante consiste em querer igualar-se ao poeta por um sim ulacro respiratrio que, por alguns
momentos, se identifica com o sopro criador. Logrei uma certez a maravilhada da
importncia respir atria de um texto quand o chegamos ao Marrocos e obtive a
permisso de ver as primeiras cpias do Coro da poca da Hgira. Perguntei o
que significavam, no meio das pginas cobertas de uma escrita em fonna de aletria.
de grandes e pequenas manchas amarelas semelhantes a girassis que se reproduziam ao longo do manuscrito: "as manchas grandes" . explicou o bibliote crio.
"so a marca dos versculos, as pequen as so a marca das respiraes. Logo que
o senhor aprender isso, acrescentou ele, um texto no ter o mesmo significado
nem a mesma eficcia se no for respirado como foi escrito". lO
.

O que h uma co munho e ntre a estrutura do texto escrito, a fala do


ator e sua atua o na pea.
A diviso do texto, na partitura voca l, deve ser feita respeitando-se
as pausas dos atores. Basicamente , trs tipo s de pausas interpretativas

f
~i

ii

8. Stani slavski, C. A construo da personagem . Trad. Ponte s de Paula Li ma. 4. ed. Rio de
Ja neiro : C ivilizao Bra sile ira. 1986. pp. 133-72.
9. Berry, The ac tor and the texto Nova York: Aplause Theatre Books , 1992.
10. Jouvet, L.. apud Aslan , 1994. p.20.

43

~() usadas. na notao: a lgica, a psicolgica e a "luftpause" .!' As pausas


mterpr~tatlvas representam a diviso das falas na partitura. Elas podem
ser lgica, quando possui um breve intervalo, ou psicolgica, como um
repouso maior que cria um "suspense", uma tenso no ar. Sempre que h
uma pausa necessrio "ouvir" o retomo do que foi falado , as reae s
ao vocal no pblico e nos outros atores. Na pausa psicolgica este tem po maior. As pausas lgicas e psicolgicas podem ser respiratrias ou
n.o'. A outra pausa interpretativa a "luftpause", expresso alem que
s lgn~fi c ~: .pausa para retomada de ar ou flego . Portanto, ela sempre
res~lratona e ocorre como o menor dos repousos, como uma rpida inspiraao de ar. A "luftpause" fisiolgica, e se d, principalmente, no meio
das falas di~ididas pela s paus as lgic as ou psicolgicas; ou seja, ela pode
ser predominantemente uma necessidade do ator de respirar - e mesmo
neste caso deve ser usada para os propsitos do personagem - e em muitos momentos uma neces sidade interpretativa do personagem. Das trs
p~~sas em ordem de durao, a "luftpause" a mais breve, seguida da
l gica- pausa mdi a - e da psicolgica, a mais longa .
A pausa no deve ser em momento algum um silncio morto' ao
co~trrio, um intervalo vivo, cheio de sentido, "um silncio eloq ente",
Cna uma tenso e uma liga entre o que foi dito e a fala que vir. Tran smite
subtextos, recados. A pausa, quando usada no cur so da ao vocal, pode
gerar uma suspenso de sentidos.
recurso vocal de nfase denominado acentuao por Stani slavski ,
que diz: "A acentuao um dedo que aponta. Elege a palavra fund amentaI de uma frase ou orao. Na palavra assim sublinhada, encontraremos a
alma, a essn cia interior, o ponto culminante do subtexto (...) Um acento
pode indicar afeio ou maldade , respeito ou desprezo, franqueza ou esperteza; pode ser ambguo, sarcstico". 12
A palavra lngua, por exemplo, sublinhada no texto pelo ator Pascoal
da C?nceio desde a elaborao da partitura do papel de Pol nio, e
enfatizada durante o tempo em que a pea ficou em cart az. Ele reala a
palavra, mantendo seu destaque na partitura vocal (como ser visto na
anli se de sua partitura - captulo III).
A ~nfas~ a proeminncia que se vai dar na fala, com a utilizao
d~~ mat~ variados recur~os vocais, na qual so ns, palavras , "palavras-frase ou smtagrnas - conjunto de palavras com ncleo e modificadores _
e oraes, so salientados em relao aos outros elementos desta fala
sempre associados ao seu contexto interpretativo. A nfa se d vitali dade
s palavras faladas, est ligada inteno da fala, o que implica, ao mes-

II . Stanislavski. op. c it., pp.133-72.


12. Op. cit., pp.173-4.

44

mo tempo, uma flexo do ator e do personagem sobre si e o envolvimento


do/com o outro - texto , espectador. A ao vocal se processualiza nas
nfa ses que o atar destaca. "Deixe que seja uma palavra, uma idia, um
sentido. Que a composio de son s, letras, slabas seja uma nica curva
meldica e ento poder elev-la, baix-la ou torc-la,"!'
Na investigao da incidncia de nfa ses nas partituras, pode- se observar que por intermdio dela s outros recursos vocais emergem. Normalmente o aumento de intensidade usado ao enfatizarmos uma palavra.
A intensidade o grau da fora expiratria com que o som produzido,
fora que se manifesta acu sticament e na menor ou maior amplitude de
vibrao da s prega s vocais. Quando a pre sso subgltica - abaixo das
pregas - maior, o som considerado forte e, ao contrrio, fraco. Habitualmente, relaciona-se intensidade a volume, chamando um som forte de
alto e um fraco , de baixo. Mas o volume engloba a inten sidade e a ressonnci a. Em cena, a voz tem de ser elaborada com volume e mai s, com boa
projeo em todo espao para alcanar seus prop sitos. Qualquer variao de inten sidade de voz deve estar ligada ao desejo de revelar o personagem e, conjuntamente, s nece ssidades vocais do ator.
Na composio vocal da partitura, o que se v que todos os recursos vocais se mesclam, relacionando-se, no geral, ao superobjetivo da
pea , desde seu incio at a ltima cena. Alguns recursos esto atrelados a
uma cena determinada , a sua situao, outro s a algumas falas em seus
objetivos, ou, ainda, bem especificamente, relacionados a uma palavra, a
uma nfase e suas intenes. Mesmo assim cada palavra enfatizada deve
ter exposta em si a linha da a o geral da pea, que vai desde o
superobjetivo at a inten o de uma fala . Pode- se ter, portanto, recursos
vocais de base, ou sej a, aqueles fundam entalmente relacionados cena
toda ou a agrupamentos de falas nas cenas.
Outra associao comum da nfase em relao s pausas: algumas
vezes a palavra enfatizada tambm pelo recurso vocal de pau sa, outras
vezes as pausas determinam a divi so interpretativa do texto, sem estarem
diretamente associadas s nfases.
(...) as pau sas respirat rias na poesia e na pro sa falad as tm enorme importncia
no s como partes componentes da linha rtmica mas tambm porque representam
um papel significativo e impo rtante na prpri a tcnic a de criar e co ntrolar o ritm o."

O ator se utiliza, na con struo vocal de seu personagem, de tempo s


diversos que o conduzem a andamentos de fala e estabelecem ritmos diferente s. Mesmo um texto partiturizado e interpretado num idioma desco13. Op. cit.. p.174.
14. Op. cit., p.254 .

45

nhecido pode, em suas opes de pausas, nfases e em sua "musicalidade",


dar uma impresso emotiva e rtmica muito fortes, afetando o ouvinte em
suas sensaes. Num certo sentido, a partitura o canto/falado do ator,
pois os materiais sonoros da fala, sendo baseados nos mesmos parmetros
que a msica, do partitura um desenho da musicalidade da fala. A
msica difere da fala por organizar os sons, dando estabilidade para alturas e duraes, sendo que na fala estes atributos so instveis, no estabelecendo uma periodicidade. Portanto, a partitura capta, parcial e
provisoriamente, o fluxo processual da fala e organiza, num tempo dado,
sua natureza difusa.
As divises de fala na partitura, em seus ciclos, so normalmente
associados s aes fsicas e vocais sugeridas no texto. Muitas vezes o mapa
das aes ffsicas" (como um roteiro das aes do personagem na pea)
impe um ritmo mais veloz cena, sendo que o tempo da fala fica mais
acelerado, enquanto outras partituras podem requerer um fluxo mais
entrecortado por pausas, podendo coincidir ou no as velocidades fsicas e
vocais. H uma interao entre os tempos emotivos, vocais e fsicos do
personagem. O que ocorre, muitas vezes, que a manifestao interpretativa
do ator faz com que os tempos interajam, mas no necessariamente de forma homognea ou linear; ao contrrio, comportam divergncias, contradies, dissonncias e podem produzir disjunes nas aes, porm mantendo
coesas as intenes do personagem/ator.
Nesta perspectiva, vrios so os exemplos de relao no-mecnica
entre o texto e o subtexto. Tomemos hipoteticamente a fala eu te amo,"
proferida com o subtexto eu te odeio. Os recursos vocais, em consonncia inteno, produzem delineamentos de curva meldica, intensidade,
articulao, velocidade, durao, cadncias e pausas, vinculadas ao
subtexto. Quando, por outro lado, o texto e o subtexto coincidem em inteno e significado, outros ajustes vocais so utilizados.
IS. Stanislavski, 1987, op. cit.
16. "Eu-te-amo no tem empregos. Essa palavra, tanto quanto a de uma criana, no est
submetida a nenhuma imposio social; pode ser uma palavra sublime, solene, frvola; pode ser
uma palavra ertica, pornogrfica. uma palavra que se desloca socialmente.
Eu te amo no tem nuances. Dispensa as explicaes, as organizaes, os graus, os escrpulos. De uma certa forma - paradoxo exorbitante da linguagem - , dizer eu te amo fazer como
se no existisse nenhum teatro da fala, e uma palavra sempre verdadeira (no tem outro referente a no ser seu proferimento: um performativo),"
"Passada a primeira confisso, 'eu te amo' no quer dizer mais nada; apenas retoma de um
modo enigmtico, de tanto que ela parece vazia, a antiga mensagem (que talvez no tenha passado por essas palavras). Eu o repito fora de toda pertinncia; ele sai da linguagem, divaga, onde?"
Barthes, R. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Hortncia dos Santos. 2. ed. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1977, pp.98-7.

46

Ento, se evidenciar uma lgica sonora que se manifesta atravs do ritmo, isto ,
atravs de mudanas de tom, intervalos e intensidade da voz, volume que muda,
acentos tnicos em determinadas partes da frase, micropausas diante de certas
palavras, todas as pausas diante de inspiraes, que, ao invs de fazerem buracos
no nosso discurso, aguam o sentido, aguam o nervo.'?

So vrias as composies de nfases, pausas e outros recursos vocais


na partitura. A diversidade de tons determina desenhos de curvas meldicas
diferentes. A altura meldica pode ser correlacionada freqncia de vibrao das pregas vocais. Quanto maior for o nmero de ciclos por segundo,
maior a freqncia fundamental" do som. Um tom agudo tem uma freqncia fundamental alta, e um grave, uma freqncia baixa. A inflexo de vrios
tons, como uma ginstica vocal, pode criar uma entonao, que na voz falada
estabelece curvas meldicas: ascendentes-agudizando, descendentes-agravando, mistas, de dois tipos: comeando de um tom, ascendendo e descendendo,
e o contrrio, comeando de um tom descendendo e ascendendo novamente;
h, tambm, a monotonal, na qual o mesmo tom mantido na emisso como numa "fala robotizada". Dependendo da curva, o tipo de resultante
sonora define intenes e sentidos bem diversos, para quem fala e para quem
ouve. "A melodia , ento, o elemento primeiro e universal, que, por isso,
pode receber vrias objetivaes e diferentes textos."?
H outros meios vocais de realar a fala utilizando, por exemplo, fora ou
abrandamento na articulao. Ambos devem ser emitidos com precisoe tnus
bem definidos para o palco, para que o texto seja inteligvel. A articulao a
mecnica, o movimento dos rgos fonoarticulatrios - lngua, boca, lbios,
dentes, palato, bochechas - na emisso de sons, que so encadeados na fala.
Os variados tempos envolvidos na articulao fazem alongar ou encurtar as emisses. O alongamento uma durao maior de um segmento da fala e pode ser feito tanto nas vogais quanto em algumas consoantes.
Este recurso est relacionado tambm, entre outras coisas, s modificaes de curvas meldicas, nfases e fluncia do discurso.
Stanislavski, frisando a importncia de se pesquisar a articulao em
cena, diz: "O ator deve sublinhar, parodiar e exteriorizar os motivos interiores e as fases fsicas do personagem que est interpretando, atravs da
modificao da pronncia ou usando um novo tipo de dico. Isto tambm condiciona as modificaes de ritmos de respirao"."
17. Barba, E. Alm das ilhasflutuantes. Trad. Luis Otvio Burnier. So Paulo/Campinas:
Hucitec/Editora da Unicamp, 1991, p.58.
18. Maia. E.M. No reino dafala: a linguagem e seus sons. So Paulo: tica, 1985.
19. Nietzsche, apud Dias, R.M. Nietzsche e a msica. Rio de Janeiro: Imago, 1994, p.46.
20. Grotowski, J. Em busca de um teatro pobre. Trad. Aldomar Conrado. 3. ed. Rio de
Janeiro: Civilizao Brasileira, 1987, p.140.

47

A respirao, embora seja uma atividade freqencial, no se efetua


num padro fixo ; ao contrrio, por estar vinculada a disposies psicolgicas e a outras fsicas (fluxo sangneo, batimento cardaco etc.), sofre
alteraes de "pulso", estabelecendo diferentes andamentos." Por intermdio do s tempos criados na fala, tem-se andamentos diversos e velocidades, rpidas ou lentas, determinando ritmos variados.
O ritmo est ligado, tambm, tonicidade das palavras, em seu s acentos na prosdia. Nas palavras de duas ou mais slabas, a slaba tnica
sempre se destaca por ser normalmente mai s intensa do que as outras
tonas ou subtnicas. Por outro lado, h os vocbulos sem acento que so
proferidos fracamente e se apiam no acento tnico de um outro vocbulo
na frase. Estas combinaes de pesos geram cadncias nas palavras e na
fala. A cadncia silabada usada, como um recurso interpretativo, quando todas as slabas da palavra so "divididas" e emitidas colocando em
relevo suas tonicidades, com duraes semelhantes.
Na partitura vocal s anotado o recurso de cadncia silabada, pois a
cadncia acentual a produtivamente usada na lngua portuguesa, no sendo
necessrio fazer esta marcao. O acento nas palavras relaciona-se conjugao de alguns recursos vocais como: intensidade, freqncia, timbre - aberto ou fechado - e durao. Por isso, muitas vezes, nas partituras as slabas
tnicas vm acompanhadas de um alongamento (durao maior ) ou de curvas meldicas, indicando qualidades da prosdia e da interpretao do ator.
Isto pode ser dito em relao a todas as marcaes das partituras: elas apontam caractersticas que so intrinsecamente relativas sintaxe, semntica,
prosdia, singularizadas nas aes vocais dos atores .
"Se a fala marcada por monotonia, sem variao de altura vocal ,
velocidade regular e nfase invarivel, no oferece diverso alguma para o
ouvinte"," diz Machlin. Estudando as variaes de recursos vocais na fala
para o palco, ele afirma que a altura vocal, a velocidade e a nfase so os
trs elementos que podem proporcionar infinita flexibilidade voz falada,
correspondendo, num certo sentido, melodia, tempo e acento na m sica.

As PALAVRAS E SUA NATUREZA NO TEXTO

E NA VOZ

A percepo das combinaes de vogais e consoantes e suas caractersticas fnicas, so de extrema importncia para o ator no exerccio da
voz cnica. A criao, no trabalho com o texto e no subtexto, d po ssibi21 . Wisnik , 1.M. O som e o sentido: uma outra histria das msicas. So Paulo : Comp anhia
das Letr as/Cr culo do Livro, 1989.
22. Machlin, E. Speech fo r the stage. Nova YorklLondrcs: A Thcatre Arts Book. 1992, p.133.

48

lidades de torcer os significados literais da s palavras, potencializando-as.


Como "ovos", as palavra s carregam virtualidades que podem vir a se atu alizar. As composies de sons, oriundas da interpretao, geram sentidos
passveis de serem detectados pela partitura vocal, na sua feitura e anlise. Estas composies moldam a ao vocal que , por sua vez, vitaliza e
corporifica a palavra, recriando-a e no somente repetindo-a na boca do
ator: "e o verbo fez- se carne". A voz ao para o ator.
A discusso sobre a origem do s sons e os significados destes na fala
estava presente no s gregos. Plato descreve-a no "Cr tilo"," durante o
dilogo entre Scrates e Hermgenes:
Diz Scrates: ..... a letra 'r' pareceu a quem estabeleceu os nomes um belo instrumento para o movimento , capaz de represent ar a mobilidade . (...) percebeu, segundo penso, que nessa letra a lngua se detinha menos e vibrava mais; da, parecer-me
que se serviu dela para exprimir o moviment o. A letra 'i' valeu para tudo o que
sutil e em tudo penetra. Por isso mesmo imita com ela os movimento s de ir (inai)
e avanar (esthai), da mesma forma que empregou 'ph, ps, s, z' letra s aspiradas
todas ela s, na imitao de noes como ' psychrn' (frio) ' z on' (fervente) ,
's iesthai'( agitado) e os abalos em geral (siems). E quando imita alguma coisa da
natureza do vento, na maioria das vezes a letras desse tipo que o instituidor dos
nomes parece recorrer. Parece tamb m ter compreendido que a pronn cia do ' t ' e
do 'd' , letras que comprimem a lngua e nela se apoiam, era apropriada para exprimir a imitao de encad eamento e de parad a (desm6s e stsis). Por outro lado,
tendo observado que a lngua escorrega particularm ente na pronncia do T , formou por imitao as palavras que designam o que liso (leion), escorreg adio
(olsthanos), gorduroso (Iiparn), grudento (koIldes) e tudo o mais do mesmo gnero. E como o 's' tem a propriedade de deter o escorregamento da lngua causado
pelo T , com a jun o das duas letras repre sentou as noes de viscoso (glischron),
doce (glykys) e lutulento (gloides). Da observao de que o 'n' detm o som
dentro da boca, criou as expre sse s ' ndon' (dentro) e 'ents' (interior), para representar os fatos por meio das letras. Ao 'a' atribui o sentido de tamanho (melag) e
ao 'e' o do comprimento (mkos) , por tratar-se de letras longas . Tendo necessid ade
do 'o' para exprimir a idia de redondo (gongylon), empre gou-o com mo larga
neste vocbulo. E assim procedeu o legislador em tudo mais, reduzind o todas as
coisas a letras e a slabas e criando para cada ser um sinal e nome s apropriados,
para form ar por imitao de mais nome s a partir desses ele mentos primordiais."

Como acima descrito, numa perspectiva fun cional, os significados


do s sons da fala so reforados pelas prprias caractersticas emissivas
da s vogais e das con soantes,
O ator pode brincar com as sonoridades na produo de suas fala s,
fazendo com que a inteno seja carregada nas vibraes das vogais e das
23. Plato. Dilogos de Plato: Tccteto e Crtilo. Trad. Car los Alberto Nunes. v. IX, Universidade Federa l do Par (Coleo Amaznica. Srie Farias Brito). 1973. pp.175-6.

49

consoantes, numa conscin cia dos mo vimentos fisiolgico s da s palavras


e de seu s propsitos.
As palavras em ao vocal ganham corpo e devem ser exploradas nas
possibilidades de dinmicas de movimento. Laban" pesquisou as dinmicas
do movimento no corpo, na certeza de que qualquer pessoa pode ampliar seu
repertrio de movimentos. Tem, em seu trabalho, como ae s primrias, as
seguintes: deslizar - movimento leve, lento e direto; flutu ar - leve, lento e
flexvel; sacudir - leve, rpido e flexvel ; pontuar - leve, rpido e direto;
pressionar - forte, lento e direto; socar - forte, rpido e direto; torcer forte, lento e flexvel; talhar - movimento forte, rpido e flexvel.
po ssvel perceber que a emi sso , em se us mo vimentos, traz se nsaes semelhantes. As composies da s palavras, das fra ses, da s fala s vo
gerando din micas que expressam se ntidos e ampliam, tambm na voz,
suas potencialidades.
A fal a, com suas mel odias e recortes, tem na s vogais - fon emas
puramente sonoros que se produzem pel a livre passagem do ar pel a bo ca
- caractersticas de extenso e prolongamento. Curvas ascendentes de
vogais sugerem, principalmente, movimentos leves, para cima. mai s
fcil executar movimentos fortes para baixo, como numa curva meldica
descendente . Fundamentalmente, so as vogai s que do o tom fala, sendo assim mai s melodiosas do que as co nsoantes, que, com seu aspecto
cortante, ritmado e percussivo, oferecem ob stculos passagem do ar.
A s consoantes, tanto no modo como no ponto de articulao," susci tam din mi cas de mo vimentos na emi sso . que est o vinculados sua
propriocepo e durao. Para citar apenas algumas tem-se que: qu anto
ao modo , as consoantes plosivas Ipl, Ibl, lU, Id!, IkI e Ig/ caracteriza m-se
por uma aproximao estreita dos articuladores, seguida de um estouro,
ou seja, uma soltur a repentina; sugerindo dinmicas de qualidade direta,
cortante, pontuada. rpida. Tal caracterstica d s palavras, composta s
por tais son s. qualidade diferente das fricativas If/. tvt, Is/. Iz/.UI e /31, com aproximao incompleta dos rg os da bo ca. Est as tm natureza de
frico ou sibilo, com um som con stante , e so mais alongveis, flexveis,
sinuosas, contnuas. Mesmo nestas duas categorias de modo de articulao,
plosivas e fricativas, as con soante s sonoras Ibl, Id!, Ig/, Ivl, Iz/ e /31- mais
resonantes - se diferenciam das surdas, Ipl, ItI, 1kI, If/ . Isl e IJ/ - mais
secas, aba fadas - , pela vibrao larngea das primeira s.
24. Laban, R. Domnio do movimento. Trad. Anna M.S. de Vecchi, Maria S.M. Netto. 2. ed.
So Paulo : Summus, 1978.
25. Os modos de articul ao dizem respeito maneira como a corrente de ar passa pelos
canais acima da laringe. Os pontos de articulao designam os lugares onde ocorre a aproximao
ou encontro dos articuladores.

50

As consoantes vibrantes, de obstruo intermitente da lngua, podem ser


mltiplas Irl e simples (ou flapes) I ri, quando a vibrao de lngu a momentnea e s ocorre uma vez. Suscitam , mai s fortemente, dinmicas como sacudir,
talhar, torcer, por terem correlao com mo vimentos mais flexveis. As laterais
e as nasais so tambm ressonantes, caracterizadas pela subdiviso do trato
vocal: se a corrente de ar interrompida oralmente, mas escapa pelas fossas
nasai s, tem-se uma nasal tal como Im/, /n/, IP. I; se ela s pode escap ar pelo s
lados do canal bucal, devido interposio da lngua no centro da passagem,
tem-se uma lateral, tal como /li, l I. Tanto as consoantes vibrantes quanto as
nasai s e as laterais so sonoras e prolongveis arranjando variaes meldicas.
As diferentes duraes e movimentos emissi vos das vogais e das consoantes sugerem pesos e dinmicas s palavras faladas. O texto escrito , com
suas composies de segmentos voclicas e consonantais, combinado com
o texto falado nos recursos vocais usados pelo ator. Os sons nasai s tend em a
ter uma durao maior do que , por exemplo, os plosivos. Nos textos que so
analisados de "Ham-let" (captulo 3), as slabas tnicas das palavras esto,
pensando (Polnio), doente e sempre (Hamlet), profunda e a palavra fim
(Ophlia) so mais longas do que as slabas tnicas das palavras cabea,
brao (Oph lia), a!ll!i, amigo (Polnio), dama e mquina (Hamlet). Mas
a interpretao dos atore s que determinar as duraes das palavras assim
enfatizadas. Isto ser visto nas anli ses das partitura s, nas quai s, no exemplo
citado, ju stamente a palavra cab~a - em Ophlia - , que aparece dua s
vezes no texto, enfatizada pela atriz com alongamento da slaba tnica (maior
dura o), na primeira vez, e falada na segunda vez sem este recurso. A
palavra fim (em dois momentos no texto), que tem um som nasal, enfatizada
um a vez rapidamente sem alongamento, e na segunda vez em que apare ce na
partitura , com durao maior, alongada,
A durao das con soantes varia se estas so surdas ou sonoras; plosivas,
fricativa s, lquidas, vibr antes ou nasai s, em grupos con sonantais ou isoladas.
Por exemplo, as palavras grudou (Oph lia), dentro (Polnio) e sem p re
(Hamlet) tm combinaes de consoantes plosivas e grupo consonantal, tendendo a ser mais longas na emisso do qu e as pal avras pegou (Oph lia),
dicas (Polnio) e minha (Hamlet).
A interao entre vogais e consoantes ilimitad a, at porque a dur ao da co nsoante altera a da vogal e vice- versa. A percepo de stas co mbina es para o exerccio da voz c nica do atar de extrema import n cia,
poi s po ssibil ita reavi var se us recursos, sua co nsc inc ia e as po ssveis intenes dadas a cada palavra .
Assim, aliado s ca ractersticas intrnsecas das composies fonticas, somam-se os recursos vocais usados pelo ator na partitura vocal . Ele
multiplica as pos sibilidad es de combin aes de vogais e de conso ant es
nas sla bas e nas palavras, nas falas e no texto. podendo compo r, por exem 51

pio, alongamentos e encurtamentos de vogais, con soante s. e muit as qualidade s de movim ento co nfor me suas intene s, aumentand o seu rep ertrio voc al. "Conhecer foneticamente os elementos que constituem a slaba
d pal avra a realiza o viva do que ela representa, porque exi ste uma
afi nidade mister iosa entre o pen sam ento e a sua expresso sonora.''"
Isto pode ser visto e sentido claram ente por qualquer pessoa que , com
olhos e ouvidos atentos, assiste a um espetculo teatral e afetado por ele.
Todas as pessoas que j viram teatro devem ter experimentado isso. Nas anlises das partituras vocais esta dimen so ser desdobrada nas aes vocais .
A partitura colabora na busca do personagem , co mo tamb m o trabalho de elaborao do personagem auxilia na concepo da pa rtitura e conseqente a o vocal. A voz revela as se nsaes e intenes de quem fala,
mas cert ament e se colocar em atitude de ao vocal , com o na prtica do
ator, incita a descoberta de foras vitai s no falar, na interpretao. "Uma
lingua gem falada com ritmo bem delin eado faci lita a sensibilidade rtmica
e o oposto tamb m verdade: o ritmo das sensaes experime ntadas ajuda
a falar co m clareza.'?' O aprimoramento dos recursos voca is est direta mente ligado criao vocal. Quando o ator fala bem significa que o personagem est pre sente, existe vocalmente.
A partitura vocal um instrument o para o ator, registrando, na fluidez
da fala, um princpio de estabilizao. Ele nunca falar exatament e com as
mesmas curvas, com o mesmo andamento, mas ter referncias de suas interpretaes vocais para elaborao da voz do personagem. uma ferrament a
auxiliar para desenvolver a tcnica e a sensibilidade para fala no teatro.
COMO COM POR A PARTITURA

Eu sempre sou um instrumento musical. Eu no sei uma nota . mas a


emisso de uma pala vra tem que ter a fora de um som que movimente o seu corpo numa dan a. No toa que o sopro divino criou
a humanidade. Mesmo quando eu fao teatro em que. s vezes, no
predom ina a pa lavra, eu crio UI/UI histria. uma zona de dilogo ou
de emisso sonora que possa imantar minha interpretao.
Fern anda Montenegro"

Desde as primeiras leituras de mesa, na montagem de uma pea teatral, possvel ir esboando a partitura voca l. Nestes ensaios o ator vai
estruturando-a co mo uma mesma co mpos io da part itura do papel, tudo
26. Lerichomme, apu d Aslan, op. cit. , p.8.
27. Stanislavsk i. 1986. op. cit., p.25!.
28. Fernanda Mon tenegro . Entrevista ao caderno Fo lha Ilustrada. Folha de S. Paulo. So
Paulo. 1993.

52

anotado no seu texto teatral. Os trs de senhos do texto - o primeiro como


receb ido para leitura, a partitu ra do papel e a partitura vocal - resultam
em um s, detalhado com todas as referncias interpretativas. As sim, a cada
dia, ao longo do processo criativo, o ator pode reler suas falas j "acordadas" por imagen s, intenes, que anota no texto. e pelos recursos vocais
que impul sionam a criao. Nest e decurso ocorre de algun s atores reescrevere m suas falas fora do texto, divididas pelas pausas, nfases e outros recursos indi cados, mas isto faz parte dos modos como cada um elabora seu
trabalho e no regra geral. Alguns recursos o ator marc a quando se percebe em ao vocal, mas, para arranjar vrios, muitas vezes ele precisa de
treinamentos vocais, ou que o prep arador vocal esteja presente nos ensaios.
ou que o diretor aponte-os, poi s pode no ficar claro quais recu rsos esto
emergindo. Em contrapart ida, com o a partitura intrnseca interpretao
da fala, tem de ser feita sempre em parceria com o ator.
Na partitura os recursos vocais so marcad os na medida em que pulsam na interpretao. mais freq ente as pausas interpretativas e as nfases aparecerem primei ro, nesta abso ro do texto, referente ao entendimento
que se tem desta etapa criativa.As pausas interpretativas lgicas so marcadas
com um trao I e as psicolgicas com dois II. no importando, na marca o,
se estas so respiratria s ou no. A " luftpause", respiratria. anotada co m
este marcad or - v - Ela aparece muito no meio das falas, seguida, s vezes, de uma palavra enftica, ou s como uma rpida pausa para tomar ar.
Em outros momentos isola uma nfase ou um grupo da palavras enfticas ,
mas difere das outras pausas por ser mais rpida e emitida como uma golfada de ar, algumas vezes numa inspirao audvel. Pode haver uma combinao de tipo s de pausa, na qual a " luftpa use", pode preceder uma pausa
psicolgica . Por exe mplo, no fluxo da fala o atar inspira e mantm o silncio com uma pausa mais longa. A marcao ficaria assim: v II
Simultaneamente, as nfases vo aflorando, pois algumas palavras
"pedem" realce , e prontamente as intenes, o subtexto co meam a ga nhar fo ra qu and o estas so encontradas. Achar as palavras vivas ajud a
tamb m a quebrar o padr o ritmado pela leitura. As palavras enfatizada s
so sublinhadas no texto . Por vezes a for a recai em uma palavra, j num a
outra fala a nfase pode ser dada a um grupo grande ou pequeno de pal avras, ou seja, um sintag ma. Algumas falas podem no ter nfases, com o
numa passagem curta de sentidos; isto no quer dizer que no h recu rsos
voca is. A voz se mpre feita de recursos . Nes te caso, de falas sem nfases,
alguns recursos podem ser ma rcado s ao lado da linh a, qu and o forem
determinantes na interpretao. Alis, obviamente, nem todos os recursos
usados na fala so anotados, s aqueles que esto fundamentalmente ligados a o vocal naquela situao e, portanto , necessrios ao exerccio
interpretativo do atar.
53

A passagem do texto escrito, falado ainda timidamente, para uma emisso com vitalidade, com apropriao, est relacionada a estas descobertas: da
diviso do texto (pausas) e das palavras vivas (nfases) que daro novos ritmos com cadncias e fluncias. a atar, quando entra em cantata com seu
personagem, experimenta as dinmicas do texto, nos movimentos que emergem das palavras e nos novos sentidos que isto faz gerar.
a que h, na partitura, uma ligao intensa entre nfases e pausas, no
momento em que os ensaios so constantes e a repetio das falas, j com
algumas anotaes iniciais, vai proporcionando tempos e andamentos ao texto. comum, de ensaio para ensaio, com novas compresses da pea, que as
marcas mudem alterando a partitura - por isso bom que seja feita a lpis.
Nesta fase inicial, poucos so os recursos vocais anotados na partitura;
estes vm, dia aps dia, a cada descoberta. a atar pode ir anotando alguns que
ficam bem definidos pelas situaes do personagem e seus objetivos. Com
algumas perguntas bsicas vinculadas ao superobjetivo, aos objetivos da cena
e s intenes, o atar vai clareando, e mais, vai precisando de recursos para
expor seus desejos. Ele se pergunta: a que eu quero dizer? a que fazer? e age,
respondendo atravs da ao vocal. Ento nfases com curvas meldicas,
variaes de intensidade etc. aparecem e podem ser anotadas. A cada palavra
emitida, muitos recursos vocais so combinados, mas, na partitura, o que
importa so os que esto diretamente vinculados s caractersticas cnicas e,
na situao, fazem diferena aos ouvidos quando se tem ao vocal.
Uma partitura decupada em seus recursos vocais difcil de ser feita
nos ensaios pelo atar. a que ele percebe mais claramente, muitas vezes, a
relao entre o recurso e as caractersticas cnicas do personagem de forma
abrangente. Algumas cenas fazem emergir uma necessidade vocal: por exemplo, a cena de Polnio, que analisada no captulo III, de pressa, de embarque - a velocidade rpida est presente em toda fala, como um recurso de
base que flui pelo texto. Num caso como este, o atar deve assinalar a marca
deste recurso na cena, como condutor da linha da ao vocal.
A partitura vai se estruturando pela marcao dos recursos vocais no texto. Para tal foi elaborado um guia de marcas dos recursos, mostrado a seguir.
Nele todas as marcas so assinaladas como nfases - sublinhadas - ,
pois sendo o ponto culminante do subtexto onde recaem, mais fortemente,
as intenes, objetivos, e, portanto, maior nmero de desenhos vocais. As
partituras vocais so analisadas, no captulo III, sob este ponto de vista. J
tinham uma estrutura bem definida, porque foram recolhidas de um momento adiantado do processo criativo - dois anos aps o incio dos
ensaios e um ano aps a estria.

Guia de marcas
Recursos vocais
PAUSAS INTERPRETATIVAS

lgica
psicolgica
"luftpause" ou pausa para retomada de ar

quero /
quero //
v quero

NFASE
CURVA MELDICA

.i->

ascendente (agudizando)

quero

descendente (agravando)

quero

ascendente/descendente

quero

descendente/ascendente

----....

-----.....-

quero

monotonal
INTENSIDADE

forte
fraco
ARTICULAO

fora
abrandamento
DURAO

alongamento

quero

VELOCIDADE

rpida
lenta
CADNCIA

silabada
54

Exemplos de marcaes

quero

-----

Nas partituras anali sadas neste livro , a con cepo criativa estava avanada e as aes vocais altamente praticada s; ape sar de este momento ser
delicado tambm, poi s as inmeras repeties poderiam ter "congelado "
formas de emisso sem nenhuma ao vocal.
O cuidado com a padroni zao da voz no teatro essencial ! A voz empolada, a repre sentao vocal, traz numerosas vezes uma entonao montona para o palco , como a repetio de curvas ascendentes e descendentes:

1\ / \ / \ / \ / \ / \ / \
ou ainda outras emisses, com uma curva ascendente cont nua que nunca
pontua:

E, tambm , outra freqente padronizao que o vcio de ataque vocal


intensificado no incio de toda emisso, definindo partituras de falas com nfases sempre nas primeiras palavras e um fluxo monocrdio de fala. Para quebrar esta s frmulas, um bom co meo agir voca lmente, de scobrindo novas
partituras para a voz cnica.
Na s etapas iniciai s do percurso cri ativo, o ator pode montar sua partitura, definindo, alm das pau sas e das nfases, os outros recursos vocais
marcados diretam ente nas nfases, ou ligado s a tod a cena, a algum as falas
(um bloco ), seg undo o entendimento que ele cria. Ent o , ele mar ca estes
recurso s de base ao lado destas linhas ou da fala tod a. Aos poucos pode ir
esmiuando outras qualidades e acre scentando recursos vocais.
Por exemplo, pegando-se os texto s dos tr s person agens da pe a
"Ham-let" - Ophlia, Polnio e Hamlet - , pode-se estabelecer os principais recursos vocais de base usados na interp retao dos atores nas ce nas, segundo sua s partituras analisadas no captulo III. Na fala de Ophlia
(ato II, cena 1), ela descreve, ainda perplexa, para se u pai Polnio, o que
acontec eu entre ela e o prncipe Hamlet. Um a cena arrebatadora e amorosa na qu al, segundo a interpretao da atriz, as curvas meldicas, o alongamento e a velocidade lenta delineiam sua criao . No texto, estes recursos
de base apareceriam ao lado da fala como a seguir:

56

OPHELIA
.- - - Mo pegou pelo pulso e me ap~ rtou com forc;
DepOIS se afastou na distncia do bra~o
[Inteiro
f: o s. dedos .:l S UCi out r a mo pousou na sua
[prprIa testa
Me('~ulhou nurna leitura to (jemor ,lda 110 meu
[rosto
Como se qUises se I1f.'serlt,ar
FICOU um tempo
[f>norme assim
Nu fim, uma ",acudida rur t a ru: mt-~ll trr ac o
f trs veze~ iazl.'ndo ", l r' l com ~,lId cdhpc;a,
[d~slm
de cIma pra baIXO
Soltou um susPiro to sentido e proflJnrjo.
Que parecia que seu corpo se desiazla em
[ fJedac;os
Ic-: '';Ud Vida morrld

( Opt,E' 1 J a

e Ham J et or gasmam) _______

Feito ISSO, me delHou.


E, com a cabe~a vlrad~ pra mIm por cima do
[ombro,
Parecia encontrar seu camInho sem os olhos,
POIS atravessou a porta sem sua ajuda,

E at o f1l11 qrudou o o r r Lh o (jeles em mim .

------.-

57

A segunda fala, de Polnio (ato I, cena 3), se d no porto - na despedida de seu filho Laertes que vai para a Frana. Quando Polnio chega
para se despedir, Laertes est atrasado e, assim, o pai lhe d, apressadamente, antes do embarque, as ltimas dicas para viagem. So conselhos
bem marcados na fala do ator com fora na articulao, intensidade forte
e velocidade rpida. Somando-se estes recursos de base da cena s numerosas nfases e pausas da sua partitura do papel, tem-se o seguinte desenho vocal:

J d .... o .... ! d .. ",al ...

entra polonlo]

t
\

. .;. ~'O em{

1J~t(() 11ttt1t:-

Ha .. a ... t ",eu pai chellando.


R .... dupla lI .. a .. a

_
dupla b .. n .. ~o
Ai sorle ...la do .... u

l.do r

E, por fim, a fala de Hamlet (ato II, cena 2), quando ele confessa seu
amor a Ophlia por meio de um bilhete lido na presena do rei Cludio,
da rainha Gertrudes e de Polnio (este comea lendo-o e depois "d a
deixa" para Hamlet, ele mesmo, falar o contedo do bilhete). As opes
meldicas do ator, na fala de Hamlet, aliadas suavidade do discurso,
traduzem a declarao de amor dos versos escritos, agora ditos ao vivo,
para Ophlia. Ento, o ator pode anotar, ao lado das linhas, os recursos de
base (curvas meldicas, intensidade fraca e alongamentos) mais atrelados
a este momento, situao:

f't\NOO
~it';;Ll4e...;res

,"

nasila, segunda desped i da I

Pilb

1l

oe 1DL.otVI O
.. la,

P(lLONIO
Boa
~~ep espere um pouco. Eu serei

~D~Videtq~est~)~~ 5eJam ~OgOpl


DU~I

deI

"l

DuYide,l~

~l-""

o Sol 'su m~VL\ r I


verdade SJ~ ~enll~ar
'0."1.1:10.
.z

...L_L< e uc- j dei

O~ ''''U Ot'gliaple~ f'ic.o doente:


:':=:.-:c:.nla.i~
sl.t!;,pit-os, Mas
ll1e!us

1.-..-..

essa

cano
EU

ml~ica. N~o

alllo.laClm?:

nc r- e d.I a Em mim.
cu"l pt-a .5efllPFe,~mjr.h~ dam~ mf~,qUe:ridaplenql.1anlO essa
M&qu i n~\ d Haml et TlJnC I onD.r', Hall.1 e t
~.~S50,. minha +"ilha me ic et r ou por obe-di&ncia"

Guanto ao ~eslo,.
soli~itaoes dele,
Como aconlecel~
,. em tEmpo, lugar ~ modo,.
Tudo o mais
.a con~jou aos meus ouviclos.

,,"

.1'9

dela

() Nlo

58

ben .. lo

voce.

amigo

-'l"'-~~.

dc--r-r.tdo./

/i..
/"

Quando a pea est em cartaz, normalmente, a partitura vocal j est


feita e, na necessidade de reatualizar o texto, novamente o ator ir mexer
nos recursos vocais que usa, alterando os seus desenhos. O que acontece,
inmeras vezes, que o preparador vocal s chamado quando a pea j
estreou e o ator est com dificuldades, sejam estas na construo vocal de
seu personagem, ou com sua sade vocal - o que muitas vezes, ocorrendo conjuntamente, significam a mesma coisa. Neste caso, ser fundamentalo exerccio da ao vocal e sua prtica por meio da partitura.
A partitura vocal no paralisa, nem fixa o texto em seus recortes; ao
contrrio, espelha a ao da voz, seus recursos vocais em movimento.
essencial que a partitura seja reatualizada pelo ator, que ele "bata" o texto
partiturizado adquirindo fluncia na fala, e que cada nova conquista vocal
seja acrescentada ao texto. Isto funciona como uma espcie de sistematizao da criao, para depois poder fluir em cena. Este exerccio deve ser
59

feito, tambm, com o preparador vocal aliado aos vrios treinos necessrios:
ele pode selecionar, por exemplo, os recursos vocais de base que foram
percebidos nas falas do personagem e exercit-los para melhorar a performance do ator. Portanto, a partitura serve, tambm, como um guia para os
treinamentos, no qual o preparador vocal revisita seu trabalho, pode consultar o que foi feito - nas repeties das falas, nos ensaios - e pode
projetar novas etapas.
Nas anlises que so expostas no captulo seguinte, numerosos recursos
esto anotados, especificados em suas relaes com as caractersticas cnicaso importante ressaltar que estas partituras foram feitas e analisadas por
uma preparadora vocal, j num momento bem avanado das interpretaes
vocais dos atores. Fica como um registro completo de como se fazer partitura, bom para quem toma contato pela primeira vez com estas conceituaes;
por intermdio do seu detalhamento pode-se conhecer exatamente os recursos que mais se repetem na cena e os que, em seu conjunto, ressaltaram as
aes vocais dos atores.
No se trata de partiturizar todo o texto a ser falado! Normalmente,
na prtica, somente alguns recursos, os mais fundamentais ao vocal
em relao s caractersticas cnicas, sero anotados/analisados pelos atores, pelo diretor e pelo preparador vocal. Eles podem escolher, para
partiturizar, uma fala em que o atar encontra maior dificuldade, ou uma
cena especfica que ajude a conhecer e explicitar a natureza do personagem, por exemplo, em uma situao-chave do texto. O preparador vocal
pode selecionar algumas falas que considere nucleares prtica da ao
vocal, ou ainda algumas cenas nas quais seja bom pontuar somente os recursos vocais mais freqentes, os de base. Em outros casos, o ator pode no
estar conseguindo falar bem um texto: a partitura o faz exercitar sua voz,
descobrir caminhos para expressar melhor o personagem e para agir na
situao. Depois que a pea est muito tempo em cartaz se faz necessrio,
para reatualizar o texto falado, revisitar a partitura; o ator pode querer repensar, retrabalhar sua voz. Num certo sentido, a partitura efmera e fugaz como a arte do fazer teatral, os desenhos vocais realizados na
interpretao hoje podem ganhar recortes e se modificar amanh; mesmo
assim, a partitura mantm seu substrato, ser sempre uma referncia, um
guia do fluxo das aes vocais em cena.
O registro da partitura grfico, mas muitos atares tem uma partitura
interna, memorizada. Este esboo mental constitui tambm possibilidades de
partituras que no so grafadas. Mesmo no registrada, a partitura dessa forma como um som "escrito no espao". Durante um treinamento, um atar
afirmou que o registro da partitura vocal "abriu sua cabea" para falar em cena.
Ficou intemalizado, pronto para se realizar como ao vocal. Isto tambm
fez com que ele ampliasse seu leque de recursos vocais para o personagem.

60

A realizao da partitura pode ser feita durante o processo criativo o

q~e a toma muito mais completa, em suas diversas marcaes e na constru-

ao vocal do personagem; feita em treinamentos vocais individuais ou em


fonoterapias, ou ainda estruturada a partir da escuta da fala em um momento d? e~pe~culo, ~m vdeo ou em udio. Quando ela feita pela gravao
em udio e essencial que o preparador vocal conhea a pea, o personagem
e a cepa para melhor anlise em relao interpretao do ator.
E ? desejo de ao vocal que leva elaborao da partitura e viceversa. E um treino de recortes mltiplos vinculados criao, s anlises
do texto, concepo de cada diretor, s possibilidades e descobertas de
r:cursos v~~ais do atar em seu personagem. Por isso, na prtica, a execuao e a anlise da partitura so a mesma coisa.
A partitura traz a possibilidade de o ator "tatear" os recursos vocais em
ao; qu~ndo ele reconhece seu mapa de ao vocal, "remodela" seu personagem, Impregna-se de suas substncias vocais, transforma-se nelas. Este
podAer ~e se met~morfo~ear intrnseco ao processo do ator. Ampliando esta
potencia ele esta se abnndo para o plano das foras vitais.
Expor os recursos vocais na partitura s ganha sentido se realizado
no curso da ao vocal. No exemplo de como falar num determinado
papel! ,A partitura em si fica como um registro vocal de interpretao da
nossa epoca, que, mesmo sendo um esboo, d uma noo de como soou
aos nossos ouvidos.

61

III

IfHAM-LET'

PASSAGEM PEWTEAT(R)o OFICINA


A gente teve uma sorte enorme, que foi a de encontrar pess.oas
que vieram trabalhar com um grande carinho, como eu VI no
Sesc Pompia quando Hamlet perdeu a voz. Toda uma outra
maneira super silenciosa de trabalhar a voz contrastava com a
violncia da voz de Hamlet, como ela tinha que existir para
conseguirfazer o que queria: a ao de Hamlet. Era necessrio
escutar coisas muito sutis, detalhar coisas de sotaque, de
pequenas partculas. de retrqbalhar tudo, de reinv~?ntar tudo.
Z Celso Martinez Correa'
A minha entrada na Companhia Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, dirigida por Z Celso Martinez Corr~a, deu-se num pronto-socon:? de um
atores Marcelo Drummond. Ele nterpretava Hamlet, na pea Ham-let de
William Shakespeare, e estava disfnico no dia do espetculo. Quando fui
chamada, quatro horas antes do espetculo - que tinha na poca sete ~or~s
e meia de durao - , era imprescindvel avaliar a sua voz em relao as
suas prprias necessidades e caractersticas. Alm disso, era preciso tambm avali-la em funo do que era exigido pela voz do personagem.
A condio da voz do ator, debilitada e enfraquecida, contrastava

,?OS

1. Este trecho faz parte da entrev ista que me foi concedida pelo diretor teatral Z Celso
Mart inez Correa da Companhia Teat(r)o Oficin a Uzyna Uzona, em 1994. durante a temporada
da pea "Ham-let", dirigida por ele.

62

naquele momento com a fora da paixo que o esprito de seu personagem, Hamlet, torturado e inquieto por estar no "olho do furaco" dos
acontecimentos da pea, expunha acentuadamente pela voz . Imediatamente comecei a recuperar o pouco de sonoridade que a voz do ator ainda
tinha, pois o premente era que ele tivesse voz para o espetculo.
Passado esse momento emergencial, em que o protagonista reconquistou sua voz, a continuidade do trabalho pressups a conjugao da interveno na voz do ator/personagem. A relao de trabalho foi se estreitando,
abrindo os treinamentos para todos os atores, enquanto fui me apropriando
da concepo criativa do Teat(r)o Oficina: "Te-ato' - nome com mltiplas
significaes que vo desde te uno a mim, at... ' te obrigo a unir-se a mirn'".'
Compreender esta vivncia de te-ato foi essencial para participar
desta Companhia. To intenso o vnculo que, na absoro deste processo,
fui para a cena como atriz e, ento, pude perceber fortemente a voz corporificada nas minhas prprias necessidades. No que isto seja uma regra
geral para o preparador vocal que trabalha numa Companhia, mas neste
caso foi inevitvel.
A companhia do Teat(r)o Oficina sempre buscou uma interpretao
plugada nas coisas de seu tempo, tanto na sua dimenso coletiva quanto
nos desejos de cada um de seus membros. Isto faz com que cada texto
montado seja produzido e vivido como um processo singular de criao.
Na trama da pea, o pai de Hamlet assassinado por seu irmo Cludio,
que instila um poderoso veneno no ouvido do rei enquanto ele dorme. Morto
o rei, Cludio ocupa o trono da Dinamarca e casa-se com a rainha Gertrudes,
me de Hamlet. Numa apario, o fantasma do pai assassinado conta a
Hamlet as circunstncias de sua morte e confia-lhe sua vingana.
Z Celso chamava a ateno dos atores para o ouvir, para o ouvido
envenenado, que j no escuta. Insistia sempre na necessidade de todos
estarem atentos no s s suas prprias falas, exigindo a ligao de todos
na pea. Havia, na preocupao do diretor, o claro objetivo de valorizar a
palavra como provocao para a atuao de um ator com o outro. Era preciso "excitar" a escuta e torn-la frtil na ao dos personagens/atores.
Prtica que fertilizou tambm a ao vocal.
A montagem de "Ham-let" foi feita nesta perspectiva e, tambm,
marcada por um momento muito especial com a (re)abertura do teatro, na
estria da pea em So Paulo em outubro de 1993 .'
2. Silva , A.S. Oficina : do teatro ao te-ato. So Paulo: Perspe cti va, 19SI. p.203.
3. O Grupo Oficina estabeleceu- se no prdio da rua Jaceguai, 520 , no Bexiga, em 1961.
Nesse perodo o espao teve trs teatros: o primeiro em forma de "sandu che" (o palco no meio,
a platia de um lado e do outro) , idealiz ado pelo arquiteto Joaquim Guedes . O segundo, por
Flvio Imprio, de 1967, com um palco giratrio inaugurado como cenrio do cspet culo "O Rei
da Vela", de Oswald de Andrade; e finalmen te seu terceiro teatro, o "Terreiro Eletr nico", em
forma de rua com arquibancadas laterais, pista de terra, jardim, cachoeira, teto mvel etc., dos
arquitetos Lina Bo Bardi e Edson Elito, inaugurado em 1993 com a pea "Ham-let",

63

Na poca em que fui chamada, a pea estava sendo encenada no


Teatro Sesc Pompia, que possui uma estrutura "sanduche" : o palco no
centro entre duas arquibancadas, onde fica o pblico. De acordo com a
concepo de encena o de Z Celso, os atores atuam em todo o teatro palco, platia e outros pontos do teatro - , o que faz com que a voz tenha
de ser direcionada para todos os seus cantos em rela o aos diver sos pontos por onde os atores passam . Normalmente no teatro de palco italiano o palco de frente para a platia - em que os atores representam ~ent~o de
uma rea limitad a, a relao entre a ocupao sonora e seus direciona mentos outra: o ator se localiza cenicamente, estando de um lado ou de
outro, de costas ou de frente para o pblico . J no Teat(r)o Oficina, para
onde o espetculo se transferiu posteriormente, as referncias so ma~s
numero sas. Na concep o arquitetnica, este teatro uma rua de aproxl:
madamente cinqenta metros, sem coxias, ladeado por arquibancada s. E
clara sua perspectiva de estrada, de ligao entre ruas, mundos, tempo s,
sentidos, mo-dupla de direo. Os deslocamentos dos personagens
amplificam-se devido s caractersticas espaciais do Oficina . E um "teatro
urbano", invadido e mixado inclu sive com o som da rua, pois em algun s
momentos seu teto se abre para o som do mundo, de fora. O atores esto
cercados, podendo estar de costas para uma parte do pblico mas, ao
mesmo tempo , de lado e de frente para duas outra s; eles so vistos por
cima, por baixo, pelos lados, sempre de passagem.
Em cada teatro, de acordo com as dimenses acsticas do espao e do
"feedback" auditivo, a percep o da fala pelos atores influi decisivamente
na produo de suas vozes cnicas. O ator estabelece direes para projetar sua voz. No Teat(r)o Oficina, o ator est, simultaneamente, ao lado de
uma parte do pblico e muito distante de vrias outras. A ocupao sonora
deve ser agradvel para quem est ao seu lado e tambm eficaz para o
pblico distante. Em todo teatro, seja ele de palco italiano, de arena, ou
"sa nduche", o ator ter de alcanar um envolvimento sonoro do espao, e
mais, construir seus personagen s naquela geografi a, naquela situao.
Quando trabalhada, a ao vocal dever ser situada em cada contexto
teatral, sugerindo uma abordagem de trabalho; sua elaborao integra o
ator/personagem e seu corpo no espao que se desdobra a sua frente .
A escrita de Shake speare colaborou para o uso e desdobramentos que
fao destes conceitos, pois nela a fala condutora da ao dramtica e,
portanto, pede ao na voz. Na estrutura versificad a do texto de Shakespeare nenhuma palavra "sobra", e a ao vocal fica conden sada nos versos; isto induz ritmos e partituras. De acordo com o texto de Shakespeare,
a concepo interpretativa dada pelo diretor Z Celso Martinez Corre a,
em "Ham-let", valoriza a "palavra viva", o aqui e agora vocal, contrrio
64

inflexo mecnica, constituindo detalhadamente partituras "a o vivo" e


em constante transformao.
A direo de Z Celso encontrou uma parceria em Shakespeare. Z
Celso era particularmente rigoroso na ateno que mantinha, e fazia cada
um dos atores manter, nas palavras do texto. Os longos monlogos de
Hamlet, por exemplo, de trs pginas s vezes, mereceram dele uma
obcecada direo, milmetro a milmetro, na busca sem trguas do que houvesse de revelador em cada frase, cada palavra. E o texto sempre tinha uma
riqueza incontvel de descobertas, como se respondesse com uma grata alegria a esta busca. Dirigindo a Hamlet, era a todos que Z Celso dirigia.
Creio que um trabalho sobre Shakespeare a maneira certa de se aprender
sobre texto , pelas seguin tes raze s: porque demanda um completo investimento de ns mesmos nas palavras; porque to rico e extraordinrio que
somos forados a ser corajosos e at extravagantes e, assim, talvez descobrirmos mais possibilidades na nossa prpria voz do que podera mos supor;
(oo .) e finalme nte, e isto particularmente importa nte para o ator moderno,
porque a estrutura do pensamento demanda co ragem e disciplin a:

O trabalho no Teat(r)o Oficina, realizando na voz uma atuao em


ressonncia com a prtica de fazer te-ato, conduziu-me a escolher "Ham-let"
como solo a partir do qual sistematizaria e objetivaria uma proposta de trabalho vocal, uma vez que foi a que aflorou, com maior clareza para mim, a
concepo de preparao de voz engendrada e modalizada pela ao vocal.
Assim como a voz, a linguagem do texto teatral (re)atualizvel na
montagem por intermdio da concepo teatral no trabalh o do diretor, dos
atores e do preparador vocal. As anlises das partituras vocais mostra
como a direo realizada por Z Celso Martinez Correa , bem como o trabalho dos atores da Companhia, com a co laborao da preparao de voz,
considera e reflete a penetrao das caractersticas dos personagens em
suas falas/vphall s" . Alm disso. preciso ressaltar que a obra de
Shakespeare se projet a no tempo, porque absorve o que vital, fazendo
acontecer enquanto se fala.
O Hamlet de Shakespeare , recriado em "Ham -let", um bom exemplo do poder de se manter atual. As part ituras dos personagens analisadas
por meio de suas a es vocais demon stram isso.
4. Berry. C. The actor and the text. Nova York: Aplause Thcatre Books. 1~92. p .~ .
'" do believ e that work on Shakespeare is lhe suresl way 01' learning abo ut te xtound for
these reasons: beca use it dc mands such a com plete inveslment 01' ourse lves in the word s; bccuusc
it is so rich and extraordina ry wc are force d to be bold and even extravagant and so perhaps discover more possibilities withi n our own voice tha n we are awar e 01'; (...) and lastly, and that is
partic ularly importan t for the modem actor, lhe structure 01' lhe thought dem ands both courage
and discipline."

65

ANALISE DAS PARTITURAS


Na investigao sobre a ao vocal, partituras vocais de trs atores
foram detalhadas e registradas a partir de uma gravao em vdeo de uma
apresentao do espetculo. A princpio, nos treinamentos, tnhamos feito
algumas anotaes na partitura, que ganhou sua forma atual ao longo do
tempo em que o espetculo ficou em cartaz.
Os atores do Teat(r)o Oficina, Alleyona Cavalli, Pascoal da Conceio
e Marcelo Drummond, foram escolhidos porque vivenciaram um longo
processo de descobertas vocais, em treinamentos, fonoterapias e ensaios. A
con stante reelaborao de suas partituras possibilitou um conhecimento
mais apurado da concepo de suas caractersticas cnicas nas aes vocais.
Ao mesmo tempo, ele s interpretavam em "Ham-let" trs personagens
centrais estrutura da pea - Ophlia, Polnio e Hamlet. O tringulo
vivido por esses trs personagens revela, entre outras coisas, o conflito de
teatros que no se "bicam" mas , tambm, no conseguem viver separados.
Como num "vaudeville" francs , numa tragdia grega, numa "play"
inglesa, num forrobod brasileiro, eles se amam, se odeiam, brigam, morrem, traem, injuriam, rejeitam e se aceitam.
Ophlia: o "phalls" feminino, Oxum, mulher dos fluxos aquosos. A
gua do espetculo, reflexo do mergulho no inconsciente das situaes
gerais da pea. Ophlia musa que vem do longnquo reino das coisas
esquecidas, o passado/futuro presentificado. Dizem os gregos que h uma
regio que possui as coisas que no existem: uma escura regio qual o
ace sso negado aos no-iniciados. De l, as musas s vezes nos trazem
notcias e a sentimos a diferena, aquela entrada de uma sensao de criao que arrepia, como se o corao fos se um tero. Bem, es sa semente no
se fecundaria sem a presena mida de Ophlia; se chamarmos sua presena de loucura, ento loucura tambm o hmus da terra, o esterco, a
merda, o petrleo, a vida subterrnea, o outro lado do espelho, os arrepios,
e ~ssim por diant~. A todos Ophlia recebe e ama: o pai, o irmo, o rei , a
rainha, Hamlet. E a fresca anunciao da nova onda, do que est para
chegar. Um teatro de renascente beleza: arrebatadora porque o que est
para nascer nasce sem pedir licena, respira o nosso ar sem maior cerimnia , e to bonito quanto desesperadamente cruel. Este teatro prenuncia,
nos seus delrios, toda a sua tragdia. Sua sonda de emoes percorre caminhos nunca antes navegados: so aquticos, lamacentos, placentrios,
uterinos, aguados. Entra sem pedir licena pelos buracos dos nossos sentidos . Se fssemos julgar pelo modo como se apresenta nos ltimos atos,
poderamos diz-la louca. Mas quantas no foram as mulheres julgadas
loucas e at bruxas porque eram incompreensveis na sua fria?
Em "Ham-let" , Polnio enxerga o drama burgus, seu teatro de basti-

66

II Ires, de coxias, tramas e dramas: o homem de profisso dedicada carreira


publica, fanu1ia, a seus ideais, sua honestidade e fidelidade aos princpios
do Estado . Polnio o teatro da corte: o teatro policial, cmico, de cortinas
(sua morte ocorre atrs de uma cortina), dramtico, psicolgico, racionalista,
embevecido de anlises, sacana, ingnuo, duplo de sentidos. Nesta perspectiva. so curtos os parmetros para definir aquela investida bestial e avassaladora sobre seus cnones, que a presena de Hamlet na sociedade da corte.
Louco o adjetivo que v no outro, mas o espelho de si me smo que ele v.
I ~ sua loucura que est solta e para a qual ele pede a camisa-de-fora. At
onde pode - o incio do terceiro ato, quando observa, por trs das cortinas,
Ilamlet no quarto da me, "in loco " - Polnio conduz a trama conforme sua
umilise, porm esta sucumbe na ponta da espada de Hamlet.
Hamlet o vrtice que costura este tringulo amoroso, o teatro do
.lirctor, porque d o tom e pe em cena as aes da pea; o teatro do tealo. ao mesmo tempo instaurador e disruptor. A espada de Hamlet, redentora, sanginria, lutadora, a lmina que faz jorrar o sanzue das veias
enfartadas da Dinamarca. Provocar Hamlet pedir ao, movimento; o
mctateatro, que faz acontecer ao vivo. Sua presena garantia de tragdia . muito alm do drama. Alguns dizem que Hamlet o personagem em
crise, entre a no-ao e a ao, o ser ou no ser, o vingar ou no o fanlasma do pai, paralisado porque v demais. Mas o toque dado em "Ham11'1", no entanto, ativo. Hamlet o agente desencadeador do fogo. Sua
!lI'l~sena em todas as cenas sempre transformadora. Ele a prpria
Imagem do ambguo, do intempestivo, que traz em si criao e destruio.
I~Ie o teso que enlouquece, procria, desestabiliza, o homem tocado pela
chama da idia, da men sagem que lhe veio no se sabe de que regio
abissal. V-lo mergulhar nas regies trgicas, as quais o drama j no
alcana. Hamlet o homem-novo-guerreiro, grego-negro, mensageiroinventor, marinheiro com notcias de outros portos.
Situar os trs personagens na pea "Ham-let" vital anlise e
absoro das partituras a seguir. Todas as anlises so feitas tendo-se. na
partitura vocal, as anotaes de pausas, nfases e seus recursos vocais
resultantes, todos grafados. So expostas tambm as relaes entre os recur,WI.\' vocais e as caractersticas c nicas dos personagens na ao vocal. A
anlise das partituras tambm a anlise das sensaes da ao vocal .
Cada anlise (de Ophlia, Polnio e Hamlet) ter uma perspectiva
prpria, embora as trs se complementem. O conjunto delas d uma idia
geral de como fazer/analisar partituras vocais.
Normalmente a partitura vocal dever ser feita no prprio texto conforme recebido para primeira leitura. Mas, para melhor entendimento das
anotaes e uma imagem grfica bem definida, o texto partiturizado foi
reescrito neste livro. Ele foi refeito sem os sinais grficos de pontuao.
l

67

Todas as pau sas interpretativas lgic as e psicolgicas so representadas


pelo trmino da linha - pelo trao nico ou pelo duplo - e as "luftpau ses" (pausa para retomada de ar) marcadas no meio, no comeo ou no
fim das linhas. Toda s as nfases so sublinhadas e seu s recursos vocais
diferenciados com marca e s di versas, como exposto no guia de marcas
- captulo II. Cada fala , corres pondente s linhas, foi enumerada para
facilitar a anli se das partituras vocais.

OPHLIA

A fala partiturizada e anali sada ocorre quando Ophlia entra correndo em cena, gritando por seu pai Polnio. A ao do s per sonagens Oph lia
e Polnio inicia-se um pouco ante s da fala de Oph lia. Transtornada, entra
trazendo a expresso de ter vivido um acontecimento forte e inusitado.
Polnio e o pblico ficam ento sabendo que Ophlia bordava no quarto,
docemente, qu ando sua tranqilidade foi invadida pela fora da imagem
de um Hamlet que, como ela diz , parecia ter sado do inferno. Esse prembulo de descrio pressupe tanta coisa que o pai , que havia alertado a
filha para o risco da proximidade com Hamlet, pede a ela que , em nome
de Deus, fale o que aconteceu, como se ela tives se de jurar, num tribunal
e perante a Bblia, dizer toda a verdade e somente a verdade. Ophlia se
sente, a um s tempo, impedida e impelida a contar exatamente tudo o que
aconteceu, at para ela mesma tomar conscincia do que aquilo significou.
Na escrita, o texto teatral da fala de Ophlia (ato II , cena I) apre senta-se da seg uinte form a:
Ophlia
Me pegou pelo pulso e me apertou com fora ,
Depois se afa stou distncia de um bra o inteiro,
E os dedos de sua outra mo pou sou na prpria testa ,
E mergulhou numa leitura to demorada e profunda do meu rosto,
Como se quisesse de senhar. Ficou um tempo enorme assim,
No fim, uma sacudida curta no meu brao,
E tr s vez es com a cabea, pra cima, pra baixo, pra cima, pra baixo,
pra cima, pra baixo,
S - E soltou um suspiro to sentido e alivi ado,
9 - Qu e parecia que seu corpo se desfazia,
10 - E sua vid a morria.
I234567-

(Ophlia e Hamlet orgasmam )

68

II 12 13 14 15 -

Feito isso, me deixou,


E com a cabea virada pra mim por cima do ombro,
Parecia encontrar seu caminho sem os olhos,
Pois atra vessou a porta sem a sua ajuda,
E at o fim grudou o brilho dele em mim .

Sua resposta traz tona a situao h pouco acontecida entre ela e


Haml et, e ao mesmo tempo dita e revi vida. O texto po ssui um mo vimento que impele uma palavra outra, uma linha outra, um pen samento a outro, requerendo ao. Quando finda, Polnio transtornado pelo que
ouviu e viu resolve procurar o rei . A fala de Ophlia ativa, afectando,
modificando a cena que agora nece ssita de uma outra ao.
Este texto escrito po ssui quinze linhas e diferentes combinaes de
vogais e con soantes nas palavras, dando diferentes pe sos a cada uma da s
linhas. As linhas I, 2 e 3 trazem, na associao entre palavras e slabas,
uma din mi ca de emi sso mai s pontuada, com v rias consoantes plo sivas
no incio de palavras que definem ao, localizao e tempo, como:
pegou, pulso, depois, brao, dedos, prpria, testa. As linhas 4 e 5, introduzidas pela vogal E, neste caso, de ligao para uma outra qualidade,
mais lquida, possuem vogais mai s longas nas slabas tnicas, como em:
mergulhou, profunda, enorme. No vamente, as linh as 6 e 7 tra zem nas
suas palavras uma carac terstica mai s pontual: curta, trs, pra cima, pra
baixo. A linha S traz, nas sua s vrias consoantes fricativas , soltou, suspiro, sentido, um elemento de continuidade e fluncia que segue at a
palavra morria, coincidindo com o trmino da ao, onde a rubrica indica: Ophlia e Hamlet orgasmam. Ap s o suspiro do gozo, num sopro ,
Ophlia fala na linha 11: feito isso e continua na s linhas de 11 a 15, numa
mistura de qualidade e pesos de vogais e con soantes tanto pontuadas
quanto contnuas - deixou , cabea, parecia, porta, grudou , brilho,
dele, mai s pontuadas, dir etas, e, feito, isso , virada, cima, seu, sem,
ajuda, fim, todas com consoantes fricativas, de caractersticas mais fluentes e sinuos as - concordando a com o trmino da fala e da ao e, de
certa forma, reafirmando para Ophlia o que aconteceu .
O texto esc rito e a an li se de sua estrutura - a linguagem usada, os
versos, os ritmos e as combinaes de vogais e con soantes - revelam
tambm a natureza do personagem em rel ao situao e a sua atitude
frente a ela. As va riaes de tempo esto implcitas nesta estrutura e,
de sta maneira, o estudo do andamento da fala de Ophlia deve ser el aborado pela atriz, sintonizado composio do texto de Shakespeare,
para que o mximo de sentido sej a alcana do. A combinao entre nfases e recursos vocais ilimitada e determina um tipo de interpretao na
fala, como ser visto agora na partitura vocal de Oph lia:

69

PARTITURA VOCAL DE OPHLIA

---

--

13

com a cabea /

14

I --:~b.
'
--:-' t p~~ CI~~ , pra alxo ' pra CIma

me pegou I

o
pelo pulso /

--

pra

~/
' e me apertou com fora

t~ ,

15

E soltou um suspiro to sentido e

16

que parecia que seu corpo se

17

e sua vida morria II

18

feito isso /

19

se afastou distncia

e os

t /"-...
dedos

de um brao inteIro /

.---:~
~
e mergulhou numa leitura to demorada e profunda do meu rosto I
- ------.-

--------.-

me deixou

20 e com

cabea

virada pra mim por cima do ombro I

--

21 parecia encontrar seu caminho sem os olhos /

10 ficou um tempo enorme assim

12

e trs vezes I

--

t desfazia I

--:'

-s->:

como se quisesse desenhar I

,t~ ,

t ~ I

' de sua outra mo /

~--/
pou sou na propna
testa

11

~b
~t
pra
aixo " pra
CIma

uma sacudida

->

22 pois .atravessou a porta sem a sua ajda

no meu

~/

--

23

e at o fim I

24

t grudou o -brilho -dele I

25

+e~/

Nesta partitura, a fala atua como reali zadora da ao. No que a ao


fsica represent e a a o vocal e vice-versa; o que h um agenciamento
inelutvel entre esta s du as dimenses. Na fala da atri z/person agem
Alleyona/Ophlia exi ste um a coincidncia de tempos de ae s fsicas e
vocais; quand o ela narra e demonstra det alh adamente a ao de Hamlet
entrando em seu quarto, sua fala adqui re uma veloc idade mai s lent a,
entremeada por pausas. M ais adiante, quando chega ao gozo de amor co m
Hamlet, acelera a fala e a a o fsica at o pice; depois, cai no cho, cessa
o movimento e, ao mesmo tempo, faz pau sa, silncio.
As pau sas que a atri z realizou em sua interpretao definem a divi so
do texto (na partitura vocal) em 25 linh as (enq uanto o texto escrito possua quinze linhas). As linh as de I a 7 aco ntece m cenica mente, estabelecendo integrao e sincro nia entre a ao vocal e a ao fsica.
A configurao da par titura vocal vai se formando, impelindo a atriz
par a a ao fsica e, reciprocamente, do movimento fsico ao vocal.
Para cada ao fsica a fala reali za-se como ao vocal:
nfase

meldica ascendente e de scendente, que conclui a ao definindo o lugar


onde Hamlet a pega:

--

me pegou /

Os recursos vocais percebidos nas nfases da s palavras nas linhas 3,


4 e 5 for am:

nfase

recursos vocais

curv a meldica ascendente na pala vra


fora na articul ao da slaba tni ca

alonga mento da sla ba tnica


c urva meldica ascendente e descendente na
pala vra
fora na articulao da slaba tnica

Na cen a, quando Oph lia comea sua fala, o ator que interpreta
Hamlet est presente na sua frente (como que no seu imaginrio). As duas
pala vra s enftica s tm no pri meiro fonema o me smo ponto de articulao,
um a co risoante bilabial p , que em sua qualidade articulat ria pontua,
define bem seu obstcul o na emi sso , de lbio com lbio, ao me sm o
tempo em que o movimento preci sament e definido na ao fsic a de
pegar o pul so: Ophlia pega na sua prpri a mo , simulando o que h
pouco tinh a ocorrido entre ela e Hamlet. O recurso vocal observado na
esc uta da palavra pegou, tem na fora articulatria da slaba tni ca a
marca de um reforo do ca rter pontual de localizao , efetuando a ao
vocal em sintonia com a ao fsica. Na sua curva meldica ascendente h
um atributo de durao da a o, que se prolonga na nfase seguinte da
linha 2, pulso, quando o alonga mento da slaba tnica traz a inteno de
mant er a ca rcia que Oph l ia quer fazer du rar. Soma-se a uma curva
72

recursos vocais

apertou

-r-fora
4

pelo pulso /

curva meldica ascendente na slaba tnica da palavra

- curva meldica ascendente e descendente na palavra


- fora na articulao da slaba tnica
- alongamento da slaba tnica

---.dep ois

alongamento da slaba tnica


curva meldica ascendente na pala vra

de um brao inteiro
t~

forte
curva meldica ascendente e descendente no sintagma
alongamento das slabas tnicas das palavras brao e inteiro

A curva meldica ascendente em apertou coincide com a slaba tnica que comea com o fonema t, comprimindo a lngua atrs do s dentes e
destacando a ao de apertar, numa dinmica de movimento de pre ssionar. A palavra fora, enfatizada com alongamento, fora na articulao e
curva mel dica que ascende na slaba tnica, traz a sensao da intensidade dest a fora para, a seguir, finali zar a seqncia de aes com curva
meldica descendente na slaba ps-t nica a.
3

--

' e me apertou com fra /


73

No incio da linha 3 h uma "luftpause" antes da palavra e, que um


suspiro anterior ao aperto recebido de Hamlet.
Olhando para Hamlet, que est em cena, agudiza e along a a slaba
tnica da palavra depois (linha 4) sem sair do lugar, dando um sentido de
durao, para em seguida se afastar distncia de um brao inteiro.
Direciona seu brao para Hamlet, dando a distncia entre os dois; usa
na nfase, de um brao inteiro, os recursos vocais para marcar o grande
espao que os separa (com inten sidade vocal forte em todo o sintagma),
tanto na situao h pouco ocorrida quanto agora, nesta cena, onde os
dois se encontram afastados.

A linha 8 possui trs palavras de nfase com alongamentos ligados a


suas aes e significados: em mergulhou, com alongamento e curva
meldica ascendente, o movimento que penetra para baixo; numa leitura
que demora e intensa na palavra to ; e em profunda, vai ao fundo reforado pela fora articulatria na slaba tnica, lentamente - com
recurso vocal de velocidade lenta.

nfase

-----;-

mergulhou

se afastou distncia

de um brao inteiro /

Ophlia, nas linha s 6 e 7, utiliza o outro brao para apoiar os dedo s


na prpria testa, realizando as aes fsic as de Hamlet. A fora articulatria na slaba tnica da palavra dedos (com consoantes plosiva s), pontua a parte do corpo na ao :
~
t dedo
s

~
-- - --- .....
profunda

recursos vocais

alongamento da slaba tnica


curva meldica ascendente na palavra

alongamento
curva meldica ascendente e descendente na
palavra

alongamento da slaba tnica


velocidade lenta
curva meldica ascendente e descendente na
palavra
fora na articulao da slaba tnica

de sua outra mo /

e os

pousou na ~
prpria testa /

,/.\

e mergulhou numa leitura to demorada e

pro~da
------

Prpria e testa tm curvas meldi cas variada s, referenciando a


inteno do toque afetivo de Ophlia por Hamlet. A ltima palavra enfatizada da linha 7, testa, com curva meldica ascendente, prepara a ao
seguinte da cena, de envolvimento entre Hamlet e Ophlia, linhas 8, 9 e
10, nas quais a curva meldica o recurso vocal mais usado em todas as
nfases.
Estas linhas so mai s longas, pelo maior nmero de palavras e tambm porque so mais lentas. A interpretao da atriz sugere um andamento lento para o trecho inicial desta fala, dividido por vrias pausas, na sua
narrativa flutuante, somado introduo, nestas linhas, de combinaes
de consoantes e vogai s trabalhadas com qualidades mais contnuas e
redondas, de toro, integradas ao fsica e inten o de envolvimento
e carcias entre Hamlet e Ophli a.
74

...

do meu rosto /

Estas caractersticas se mantm nas nfases das linhas 9 e 10 com os


seguintes recursos vocais:

75

recursos vocais

nfase

-----:

...

desenhar

--

enorme

10

---- -

....

alongamento da slaba tni ca


curva meldica ascendente na palavra
velocidade lenta

alongamento da slaba tnica


curva meldica ascendente na palavra
fora na articulao da slaba tnica
velocidade lenta

A ao vocal e fsica se entrelaam quando Oph li a, mo vendo-se em


crculo, fala da ao de Hamlet e, ao mesmo tempo, traa um desenho
prprio pela mo vimentao no espao. A velocidade das nfases e do
mo vimento lenta, com alongamentos e tambm prol ongamento da ao:
as curvas meldicas so ascendentes e, concomitantemente, seu brao
move-se para cima, ligado ao movimento circular do corpo.
Na palavra enorme, h uma fora articulatria na slaba tnica, com
prolongamento da sua con soante inicial n , acompanhada por uma mo vimentao corporal lenta e contnua , que denotam juntas atributos de
durao (enor m e) .
Logo em seguida h uma quebra destas qualidade s com uma rpida
"luftpause", uma quebra da ao fsica e uma ao vocal, que em sua
nfase, no fim, acompanha estas alteraes, introduzindo outra combinao de recursos vocais:
nfase

11

t no.i->
fim

r ecursos vocais

forte
velocidade rpid a
entre pausas para retomada de ar
curva meldica ascendente na palavra
fora na articulao das pala vras

Esta quebra da ao est associada ao significado da fala, no fim, trmino , e incio de uma nova ao .
11

76

--,t no
fim

A no meu brao I
uma sacudida curta

--

A ao fsica de sacudir, em sua din mica de mo vimento, favorecida pela composio das consoantes nas nfases seguintes, curta e brao,
com con soantes plo sivas no incio das palavras, slabas com mais de uma
consoante e fora articulatria nas slabas tnicas (ambas iniciais), velocidade rpida, e curva meldica ascendente e descendente, recursos vocais
que se repetindo em palavras enfatizadas, prximas e disslabas, intensificam , no cas o, o movimento de sacudir.
As dua s nfases so proferidas com os me smos recurso s vocais na
ao de sacudir, definindo o tempo (cu r ta) e o lugar (b r a o), articulando
aes vocais e fsicas.
Assim, na linha 11, faz- se uma pas sagem para uma nova sensao do
personagem nesta situao que , nas linhas 12 e 13, preparam a seqncia
de xtases de amor da linha 14.

..-o;

12

e trs veze s I

13

com a cabea I

..--r

Nestas duas linhas, as slabas tnicas das nfases so alongadas e


agudizadas, tendo a mesma vogal realada (e). A quantidade de mo vimentos (tr s) e o lugar da ao (ca bea) so definidos:
nfase

recursos vocais

- alongamento da slaba tnica


- curva meldica ascendente na slaba tnica da palavra

- alongamento da slaba tnica


- curva meldica ascendente na slaba tnica da palavra
- fora na articulao da slaba tnica
- abrandamento na articulao da slaba p s-tnica a
Na nfase cabea, os recursos vocais de fora articulatria na slaba
tnica e abrandamento articulatrio na slaba p s-tnica se contrapem - os
recursos reforam a tonicidade inerente palavra, mais forte na tnica be e
menos na p s-t nica a. Na slaba tnica reforando o lugar, cabea, e na
p s-t nica, a, com o incio do recurso vocal de abrandamento articulatrio
com sussurro, que tambm compe a primeira nfase da fala seguinte, linha
14, feita pela repetio de nfases de sintagmas , que se relacionam com a
inteno de xtases de amor seqenciais na ao
77

nfase
14

recursos vocais

-----

v. pra cima v - curva meldica ascendente no sintagma

---------

~b

pra alXO

abrandamento articulatrio no sintagma


entrepausas para retomada de ar
fraco

curva meldica ascendente e descendente


no sintagma
entrepausas para retomada de ar
alongamento da slaba tnica da palavra baixo
fora na articulao da slaba tnica da palavra
baixo
abrandamento na articul ao da slaba ps
tnica xo

--

pra cima

~
pra baixo

entrepausas para retomada de ar


curva meldica ascendente na palavra cima
abrandamento na articulao da palavra cim

entrepausas para retomada de ar


curva meldica ascendente e descendente no
sintagma

.i->

78

---

pra tbaixo

entrepausas para retomada de ar


curva meldica ascendente no sintagma
intensidade forte na palavra cima
fora na articulao da slaba tnica da
palavra cima
entrepausas para retomada de ar
intensidade forte na palavra baixo
curva meldica ascendente na palavra baixo
fora na articulao da slaba tnica da
palavra baixo

recursos vocais

nfase

pra ~~_~

pra teima

As aes, vocal e fsica, comeam simultaneamente na prime ira nfase , na qual o abrandamento articulatrio, a curva meldica ascendente
e a inten sidade fraca so usados em todo o sintagma, acompanhados pela
ao fsica de Ophlia de mover a cabea para cima suavemente e iniciar
a seqn cia de xta ses. As pausas para retomada de ar ("luftpause"), no
incio e no final de todas as nfases, so na linha 14 um marco da inteno
e da situao de relao sexual entre Ophlia e Hamlet, como xtases com
rpidas golfadas de ar entre as palavra s. Neste momento a "luftpause"
marcadamente um reforo interpretativo ligado situao cnica.
O segundo e o quarto sintagm as, ambos pra baixo, apresentam
curva meld ica ascendente e descendente, com ao fsica simultnea da
cabea se movendo para baixo, que refletem uma emisso indo de cima
- do agudo , para baixo - ao grave.

pra baixo

curva meldica ascendente e descendente no


sintagma
entrepausas para retomada de ar
alongamento da slaba tnica da palavra baixo
abrandamento na articulao da slaba pstnica xo
fora na articulao da slaba tnica da palavra
baixo
entrepausas para retomada de ar
curva meldica ascendente e descendente no
sintagma

Na linha 14, h uma concord ncia das curvas meldicas com o movimento, na qual as palavras cima tm recurso vocal de curva meldica
ascendente. com movimento ascendente de cabea, e as palavras baixo tm
curva meldica ascendente e descendente, movendo a cabea de cima para
baixo (exceto a ltima palavra baixo, que tem curva meldica ascendente) .
O segundo sintagma acompanhado tambm, na palavra baixo, de alongamento da slaba tnica, dando noo de um tempo prolongado da ao de
Hamlet: fora articulatria na slaba tnica e abrandamento articulatrio na
slaba ps-tnica, marcando o impulso de movimento de Hamlet com fora
e abrandamento (pulso e subpulso).

79

A terceira nfase, pra cima, tem novamente curva meldica ascendente e abrandamento, s que desta vez concentrados na palavra cima. A partir da prxima nfase, pra baixo, h um crescente do movimento circular de
Ophlia e de sua voz, quando ento as ltimas nfases tm, nas palavras cima
e baixo, intensidade forte, reforadas por curva meldica ascendente e
firmeza marcada na fora articulatria das slabas tnicas destas palavras,
numa acelerao crescente, introduzido as linhas seguintes:

14

1------

--

t pr~ C!~~

pra tbaixo

15

pra baIXO

~ pra
~b
alXO ~t
pra cima

pra CIma

nfase

----::-

15

---

desfazia

forte
alongamento da slaba tnica
velocidade rpida
curva meldica ascendente na palavra

forte
alongamento da slaba tnica
velocidade rpida
curva meldica ascendente na palavra

forte
alongamento da slaba tnica
velocidade rpida
curva meldica ascendente na palavra

E soltou um suspiro to sentido e t aliviado /

que parecia que seu corpo se desfazia /

17

e sua vida

------:
t morria II

17

.>:

16

Estas linhas foram agrupadas para anlise , pois ao longo de suas


falas h um recurso vocal de base, que se inicia na linha 14 e culmina na
linha 17, de velocidade que vai acelerando e de uma curva meldica
ascendente (as cinco ltimas nfases tm, todas, este recurso) , que vai
agudizando at o pice, coincidindo com o gozo de amor e com a palavra
morria, numa espcie de aluso a Eros e Tanatos. Nas trs linha s 15,.16
e 17, as nfases aparecem no final das falas. Estas so de velocidade rpida , um recurso de base destas linhas, e tm na ltima palavra enfatizada um xtase de amor, em concordncia aos recursos vocais nas linhas 15
e 16 e um gozo de amor na 17:

A linha 15 tem vrias consoantes fricativas (como em : soltou, suspiro, sentido, aliviado) que, em sua caracterstica ininterrupta, d emisso uma fluidez em sua dinmica flutuante , ascendente. O alongamento da
slaba tnica da palavra desfazia inicia o grito do gozo de amor, que explode no demorado alongamento da slaba tnica da palavra morria, aliado aos recursos vocais de intensidade forte, velocidade rpida e curva
meldica ascendente. o cume da ao e, aps isso, Ophlia cai no cho.
Pausa psicolgica, silncio, suspenso de sentidos.
Reinicia na linha 18 - feito isso - , ps-gozo, sem nfase s. A partir
da, continua contando, mas agora olhando para Polnio, como se sasse
do sonho, da "embriaguez" e voltasse para (re)conectar seus sentidos , se
recompor. como uma ruptura do que ela acabou de (re)viver para, depois
de ter cado no cho, "acordar", dizendo para o pai que foi deixada. Como
Hamlet, presente na cena, arruma-se, cansada. Inspira e fala:

19

80

t aliviado

---:-

16

recursos vocais

~
v

me deixou

81

Na linha 19, usa fora articulatria na palavra me e na slaba tnica


da palavra deixou: na primeira, me, reafirmando para si prpria a ao
de ter sido deixada; na segunda, deixou, utilizando tambm alongamento da slaba tnica, curva meldica descendente (aps ascender), suspirando, com "luftpause", dando o sentido da situao de distanciamento
que Hamlet vai tendo dela ao ir embora.
Ophlia est ofegante, inspirando no incio e no final da fala, voltando a fazer pausas para retomada de ar na linha seguinte:

20

e com

'cabea' virada pra mim por cima do ombro I

Comea a ao fsica de deslocar-se, como Hamlet, indo embora,


olhando para o pai. Delicadamente alonga o a, mostrando a sua cabea
virada por cima do ombro. Andando na direo oposta a Polnio aproxima-se da porta; a ao fsica constante, acompanhada por falas de andamento lento, contnuo e pouco enfatizadas:
~

21

parecia encontrar seu caminho sem os olhos I

22

pois atravessou a porta sem a sua aj~da I

Suas aes vocais tm inteno carinhosa, agudizando e alongando.


Mesmo longe, Hamlet distanciava-se com seus olhos em Ophlia, e:

23

24

e at o fim I

-t grudou o brilho dele

25

A nfase fim dita afetuosamente. Para tal, a atriz utiliza de alongamento da vogal i e tambm da consoante fricativa f (em fim), agudizando. Ao mesmo tempo move delicadamente a sua cabea. oportuno frisar que as linhas de maior incidncia de consoantes fricativas so aquelas nas quais a ao amorosa tem o seu ponto culminante. A atriz utilizase de alongamentos das consoantes em acordo as suas intenes.

--

As duas palavras enfticas tm os mesmos recursos vocais e intenes:

- curva meldica ascendente na palavra


- alongamento
- fora na articulao da palavra

recursos vocais

21

alongamento da slaba tnica


curva meldica ascendente na slaba tnica
da palavra

22

curva meldica ascendente na palavra


alongamento da slaba tnica

Em contraponto vem a linha 24, toda em intensidade forte, com grupos


consonantais de consoantes mais cortantes, e fora articulatria nas slabas
tnicas (menos no artigo o). Estes recursos vocais fortes avivam a inteno
da fixao de Hamlet em Ophlia e do desejo dela que esta situao permanecesse:
recursos vocais

nfase

24

82

recursos vocais

nfase

fim

nfase

--------t grudou
o brilho dele

forte
curva meldica ascendente no sintagma
fora na articulao das slabas tnicas
das palavras grudou, brilho e dele

83

Depois de falar forte, rapidamente vira-se de costas para Polnio, e


em intensidade fraca e curva meldica descendente, finaliza sua fala:
nfase

25

I ---------.,....
t em mIm

recursos vocais

fraco
curva meldica descendente no
sintagma

Novamente a inteno de afetividade, falada docemente com


intensidade vocal fraca, agora com tristeza, por separar-se de Hamlet.
Como foi visto, o relato de Ophlia ao pai comea com a presena
de Hamlet, que a pega pelo pulso e com um puxo a traz para fora de si
mesma. Toma flego para contar o que aconteceu (falas de ciclos curtos).
Recria ento os toques que a levaram ao xtase, comeando pela cabea.
A ao sugere uma unio muito mais que carnal, uma unio profunda de
cumplicidade num territrio desconhecido por Ophlia, onde ela se deixa
entrar, como se sua paixo compreendesse o obscuro universo da febre
por que passa Hamlet.
Mergulha no terreno aguado das emoes, se aprofunda, e o tempo
agora longo, permitindo observaes demoradas, pausadas. Ela gira nesse
redemoinho de delrios. O fim, quase uma confisso de saudades pelo que
acabou de acontecer, foi precedido de sacudidelas que a levavam para uma
transio em forma de gozo, anunciando a morte de uma Ophlia e um
Hamlet. Agora uma Ophlia diferente a que vem tona, de volta daquilo
que ela contou como uma viagem ao territrio da paixo. O subtexto o subterrneo invisvel que as aes trazem para fora. O relato de Ophlia o relato do subtexto de seu encontro com Hamlet. Fugidio como o gozo e concreto
como os empurres, puxes e sacudidelas. Polnio, na fala seguinte, tenta
desesperadamente se apropriar do entendimento da cena e traa um diagnstico: "O que aconteceu aqui foi exatamente um gozo de amor", e na mesma
frase completa: "que arrasta o desejo para aes desesperadas e como qualquer paixo, aqui embaixo do cu, atormenta nossa natureza".

84

POLNIO

A cena comea com o ltimo apito do navio antes de partir. A situao de urgncia do embarque. Quando Polnio chega, encontra seu filho
Laertes ainda conversando com Ophlia. O texto falado numa linguagem
acelerada. O recurso de base, de velocidade rpida, est presente em toda a
cena, em funo da situao e do objetivo de Polnio: dizer muito em to
pouco tempo. Na fala inteira h somente uma quebra da ao contnua, na
qual a pausa psicolgica, na linha 20 com a nfase cuidado, gera silncio e
parada do movimento. Polnio alerta seu filho. Da para a frente a fluncia
da fala acelerada, numa constante, at a ltima palavra enfatizada: Adeus!
As aes fsicas, como as vocais, so urgentes, rpidas. O mapa das aes
fsicas composto de numerosas aes: o pai entra em cena a caminho do
cais do porto para se despedir do filho. Sua demora ou displicncia tem de
ser quebrada, tudo tem de ser colocado em ritmo de partida. Os conselhos
tm de ser dados num tempo bem pequeno, o que impe exatido - outro
recurso de base usado pelo ator a fora articulatria com preciso. A intensidade forte flui como outra caracterstica necessria situao cnica, na
qual os atores encontram-se afastados ou se distanciando.
uma situao de partida, evidentemente difcil e emotiva pois
ser a ltima vez que eles se encontraro. Os conselhos so
recomendaes de pai para filho. Ao mesmo tempo que eu falava pro meu filho, eu tambm ouvia dentro de mim a voz de meu
pai falando aos meus ouvidos as mesmas palavras, torcia para
no esquecer nada, me via jovem ouvindo meu pai e entendia o
modo emotivo e descarado daquelas recomendaes, assim, na
frente de estranhos, porque a despedida feita no porto e o pai
fala publicamente, como aquelas mes que do porto gritam
para a gente pegar o guarda-chuva, no tomar gelado etc. etc.
Pascoal da Conceio
A acelerao vem tambm da ambigidade, resultante da forte emoo
do momento de Polnio, dividido entre seus deveres de pai e homem pblico. O destino do filho, do qual ele se separa pela primeira vez, e o destino
da Dinamarca para a qual ele tem agora a preocupao de primeiro-ministro.
Na partitura do papel, feita pelo ato r Pascoal da Conceio, reproduzida na pgina 90, as notaes interpretativas so referncias fundamentais para anlise da sua partitura vocal, mostrada a seguir.
As notaes do ator foram feitas durante as leituras e os ensaios da
pea. A partitura vocal, por sua vez, foi elaborada e analisada quando a
pea estava h um ano em cartaz.
85

PARTITURA VOCAL DE POLNIO

----

ainda a Laerte s I

--;t

vai embarcar I

o vento j curva os ombros da tua vela I

so estao te t~
esperando I

toma

~
minha beno I

12

t ao nenhuma I

13

seja familiar I

14

o que no quer dizer ser

t~1

16

amigo coisa pra se guardar debaixo de sete chaves

~
t dentro

do corao I

t~

guarda na me~ria estas ~cas dicas I

cuida da +imgem I

10

no d

mas no caleja a mo I

18

abrindo a palma -toa I

19

pra qualquer

t lngua pro que estiver pens~ndo I

~~
irref1etido I

t /;,...

17

t um pensamento

~
uma vez adotado

e aprovado '

ti

t~
promscuo I

15

,t -

t- -

t~

~t~0

/i--...
fran~te

20

t cui/da/do /I

21

+ pra no comprar briga I

ou mau elemento que aparecer I

22

mas se comprar segura /

23

de tal modo que o adversrio que passe a temer voc /

24

25

26

----..

32

~
o dinheiro e o amigo /

33

pedir emprestado arrisa a confiana' e

34

acima de

35

seja fiel consigo mesmo /

36

e em conseqncia como a nOlte segue o dia /

37

novaiser+~/

~ --------------alto/do/munido /
t ouvidos

I~

t voz a poucos /

t ;;;a as opinies de t cada um /

ri

27

mas guarda para +

28

e que tuas roupas custem

o + julgamento /

~,

--

t qu~nto voc puder pagar

'

29

t ricas'

mas sem ostentao porque a roupa

-------

t -----;-

40

frutifique tudo isto em voc /

t-

41

---

31

empres~ faz perder' ao t m~smo t~mpo I

t----;

-- -

42

t-r:

e que a minha bno /

no empresta ' nem pede emprestado /

----- .,

39

sempre faz o homem /

30

---

t t~do /

38

no inventa moda /

.....

t liquida com a

-------..

d.~or.'

~nlra

deMais.

potonio\l

mi'

IP

VOC &,.

90

,l&e

amigo

Comp arando- se as partituras de Polnio, vrias referncias interpretativas da partitura do papel esto presente s nas opes de recursos
vocais usados pelo ator na partitura vocal. Na partitura do pap el, a
notao interpretativa refere que as dica s do pai so como os dez mandamentos dados por Deus a Moiss na Bblia. So os nmero s de 1 a 10,
anotados ao lado das falas. Por estes mandamentos o filho deveria constituir sua conduta na Frana.
A fala apresenta uma repetio alternada de recursos vocais, mais
fortes e mais brandos, coincidentes com as intenes, que em alguns
momento s so pblic as, abertas (fortes) e, em outros, mais privadas (fracas). A priori, O sentimento da sua vida privada deveria estar submetido
a sua vida pblic a, por sua ocupao no reino da Dinamarca. Esta fala
um bom exemplo da ambivalncia do personagem. A maioria das nfases
vem acompanhada de, por um lado: curva meldica ascendente, intensidade forte, fora articulatria nas slab as ou nas palavras, e velocidade
rpida - recurso s vocais de base, neste caso, associados situao de
pressa; a distncia que o pai e o filho vo tomand o na cena; ao lugar barulhento (o cais do porto), com os marinheiros chamando para o embarque
e o navio apitando; e ao objetivo de marcar firmemente os conselhos ao
filho. Por exemplo:

91

nfase

-------

t a Laertes

recursos vocais

- forte
- curva meldica ascendente no sintagma

Por outro lado, as nfases com recursos vocais de intensidade fraca,


abrandamento articulatrio nas slabas ou nas palavras e curva meldica
ascendente e descendente so o contraponto ao homem de Estado, pois
ele tambm pai e conselheiro e, nesta condio, "em particular", enfatiza palavras com recursos vocais, tais como:
nfase

- forte
- fora na articulao da slaba tnica

t tua vela

t esto

forte
velocidade rpida

forte
velocidade rpida

- forte
- fora na articulao da slaba tnica
- curva meldica ascendente na palavra

- forte
- curva meldica ascendente na palavra
- fora na articulao da palavra

t memrI;

92

I~

fraco
alongamento da slaba tnica
curva meldica ascendente e descendente
na palavra
- abrandamento na articulao da slaba tnica
da palavra

t Imagem

fraco
curva meldica ascendente e descendente
na palavra
- abrandamento na articulao da slaba tnica
da palavra
v

I~

t nao esquece

I~

t voz a poucos

- forte
- velocidade rpida
- fora na articulao da slaba tnica
- curva meldica ascendente na palavra

- forte
- fora na articulao da slaba pr-tnica

recursos vocais

+ julgamento

fraco
curva meldica ascendente e descendente no
sintagma
entrepausas para retomada de ar
abrandamento na articulao da palavra esquece

fraco
curva meldica ascendente e descendente no
sintagma
alongamento da palavra voz

alongamento
fraco

fraco
abrandamento na articulao da slaba tnica
da palavra

93

A relao entre as nfases, mais fortes e mais fracas, anteriormente


destacadas, d ao longo do texto pesos vocais diferentes, resultando em
combinaes de falas, como:

seja familiar /

14

- quer diizer ser t---=---/


o que nao
promiscuo

guarda na memrl; estas poucas dic: /

I~
cuida da t imagem /

As duas palavras enfatizadas esto no final das falas, e, por terem a


mesma curva, formam um desenho meldico similar, com inteno, neste
caso, de distinguir que apesar de parecido, ser famili ar no quer dizer ser
prom scuo. Esta ltima nfase intensificada pela fora articulatri a em
toda a palavra:
~
t promiscuo

A nica nfase nas oito primeiras linhas sem intensidade forte e/ou
velocidade rpida (natural na situao) a palavra bno (linha 6), proferida em tom afetivo.
A linha 9 introduz o primeiro dos dez mandamentos, que :
9

O terceiro mandamento diz:

cuiida da tI~/
Imagem
15

10

11

no d

t~
lngua pro que estiver pens~ndo /

...............
I -----------.
~
o amigo que tiver t conseguido ' uma vez adotado

e aprovado

~~
um pensamento irrefletido /
16

12

t~

13

t a~o nenhuma /

Este mandamento iniciado com uma nfase de caracterstica suave,


imagem, dirigida em particular ao filho, seguida de nfases, todas com
fora articulatria que, por sua preciso, refora as palavras e marca a
inteno de aconselhar, como em: lngua, pensando, a, pensamento, irreDetido, ao. O atar usa articulao exagerada, brincando na emisso das
palavras, resultando em dinmicas emissivas variadas, como nas nfases
acima.
O mandamento seguinte possui duas nfases com intensidade forte
e mesmo tipo de curva meldica (ascendente e descendente ):

+~
,
------ - -

amigo coisa pra se guardar debaixo de sete chaves '

t~
dentro

do corao /
Novamente h, na interpretao vocal, a repeti o de curva s meldicas similares, como em :

~
adotado

aprovad o

94

95

Estas falas tm nas palavras amigo, adotado e aprovado, curva meldica ascendente e descendente, fora articulatrianas slabas tnicas e, nas duas
ltimas palavras, alongamento das slabas tnicas. Alm do que, estas so
intercaladas pelo contraponto das nfases, conseguido e no esquece, com a
mesma curva meldica, intensidade fraca e abrandamento articulatrio, que
suavizam a emisso, caracterizando o tom mais afetivo dado pelo contedo
deste mandamento. O mesmo tipo de curva aparece nesta linha (15) e na
seguinte (16), que culmina com a palavra dentro, reforada por intensidade
forte, alongamento e fora articulatria na slaba tnica, denotando a profundidade do lugar ocupado pelo amigo: dentro do corao. A repetio de
recursos vocais semelhantes numa mesma fala, ou no mesmo mandamento,
salienta a relao entre as suas palavras-chave, casadas com a inteno do
discurso. Isto ocorre tambm no quarto mandamento:

~/
a mo
t caleja

17

mas no

18

abrindo a

19

pra qualquer

20

~t~0
palma -toa /
~

fran~te

ou mau elemento que aparecer /

t cui/daldo II

Todas as nfases contm ou alongamento, ou intensidade forte, ou


curva meldica ascendente e descendente, ou fora articulatria, compondo a inteno de Polnio de preservar Laertes do desgosto das ms
amizades. Na linha 19, depois da "luftpause", a fala segue sem nfases,
como que preparando a nfase seguinte (cuidado), isolada por duas
pausas interpretativas, o nico caso em toda a partitura - o fato de uma
palavra vir separada por duas pausas d a ela, comumente, uma qualidade
enftica, sendo composta de recursos vocais diversos, dependendo das
intenes, objetivos e situaes do personagem. Nesta nfase, cuidado,
o reforo vem tambm pela intensidade forte, pela fora articulatria em
cada slaba e pela cadncia silabada. Esta ao vocal ligada a uma ao
fsica forte, quando o ator corre de um lado para o outro do palco e pra
fazendo silncio com pausa psicolgica (mais longa).

96

Realiza a inteno de alerta ao filho do possvel mau elemento que


aparecer, do prprio Hamlet - "prevendo" o duelo que eles teriam - e, pra
no comprar briga, introduzindo, aps a pausa, o quinto mandamento:

21

---

pra no comprar briga /

22

mas se comprar segura /

23

de tal modo que o adver srio que passe a temer voc /

Na partitura do papel do ator Pascoal da Conceio h no 3, no 4,


no 5 e no 7 mandamentos pausas psicolgicas representadas pelas duas
barras II: uma depois da palavra corao, a segunda ante s da palavra
cuidado, a terceira depois da palavra voc e a ltima no final do 7 mandamento, depois da palavra julgamento. Assim, cada um desses conselhos bem assinalado, tanto na' concepo criativa inici al quanto na
emi sso cnica da partitura vocal, apesar de no terem sido mantidas
toda s as pausas psicolgicas anotadas na partitura do papel. interessante observar que na ruptura feita em cuidado, o andamento do discurso
se modifica , contaminando a fala que vem depois - pra no comprar
briga - dita inteira com nfase de intensidade fraca, acompanhada por
uma inteno de um pequeno suspense (comeado na nfase cuidado),
que acarretar em nfases num crescente de intensidade vocal: briga, se,
segura e adversrio.
O sexto mandamento revela trs nfases com um mesmo recurso
vocal de base, a curva meldica ascendente e descendente, e outras
especficas a cada inteno, imbricadas nas palavras-chave:

24

25

ouvidos
t~

I~ I

---------

altoldolmunldo /

t voz a poucos

97

o tipo de curva meldica, igual em todas as nfases, cria uma musicalidade parecida, mas que na palavra ouvido entoada com intensidade
forte, alongamento da slaba tnica e fora articulatria em toda a
palavra, firmando a inteno e significao de onipresena, de "radar" reforado pela ao fsica do ator, com as mos em concha atrs das orelhas, quase como uma antena parablica. Esta fala se sobrepe nfase
seguinte, a todo mundo, toda silabada - com a voracidade de quem no
quer perder nada - e com fora articulatria em cada slaba, dirigida a
todos (pblico e atores). Depois suaviza: a melodia amenizada na nfase,
voz a poucos, emitida com intensidade fraca e dirigida confidencialmente a Laertes, sugere um ouvido apurado que, embora oua todo mundo, tem de ter o discernimento para ouvir a voz que cmplice. Uma das
linhas mestras da pea sugere o ouvido como um ponto importante da
tragdia do reinado da Dinamarca. "Tem alguma coisa podre no estado
da Dinamarca...", como diz o personagem Marcelo (ato I, cenal), e a situao, por cautela, pressupe mais ouvir do que falar. O rei Hamlet, pai
de Hamlet, foi envenenado pelo ouvido.
O mesmo contraponto, de uma linha com qualidades mais fortes e a
outra com recursos vocais mais fracos, ocorre nas linhas 26 e 27, stimo
mandamento:
26

27

ti

mas guarda para +

e que tuas

~
r~upas c~stem

--

t qu~nto voc puder pagar

~
no inventa moda I
29

~,
mas sem ostentao porque a roupa

-----

t ricas

sempre faz o homem I

Laertes est prestes a embarcar, cada vez mais se distanciando do


pai, que com recurso vocal de intensidade forte e agudizando, "fisga" a
ateno do filho nas palavras-chave do nono mandamento:

t ---.-

t--

30

no empresta' nem pede emprestado I

31

emprestar faz perder

32

o dinheiro e o amigo I

33

pedir emprestado arr~sa a confiana' e

t~ as opinies de t cada um I
o + julgamento I

Novamente, uma fala dita abertamente, para todos, e a outra em


especial para Laertes. Publicamente Laertes tem de ser poltico, aceitando as opinies de cada um, mas guardando para si o julgamento.
No oitavo mandamento Polnio comea a considerar os ltimos instantes da partida, utilizando recurso vocal de velocidade rpida na
palavra porque, concluindo o mandamento, na lgica de um raciocnio
que se completa com o reconhecimento da melodia do dito popular: a
roupa sempre faz o homem - reforada pelo aparecimento da curva
meldica descendente, afirmativa:

98

28

ao

t m~smo t~mpo I

~---.

t liquida com a poup~na I

As duas primeiras nfases, empresta e pede, quebram o andamento


das falas do oitavo mandamento, inserindo com maior intensidade (intensidade forte) a questo monetria, introduzida pela fala anterior (linha
29). Usa os mesmos recursos vocais, colocando assim as duas atitudes
em igualdade (emprestar e pedir emprestado). As linhas 31 e 32 se compem de uma dupla de nfases, emprestar - perder e dinheiro amigo, unidas pela nfase mesmo tempo, esta ltima como o ponteiro de
uma balana que tem nos pratos em equilbrio os conceitos: emprestar o
dinheiro, de um lado, significando perder o amigo, no outro. Polnio faz
do mandamento um senso comum ao prop-lo de modo categrico, como
na nfase amigo, que pontuada pelos recursos vocais de curva meldica descendente (afirmativa) e velocidade rpida e, ao finalizar, na linha
33, nas nfases arrasa e liquida, ambas com intensidade forte.
99

o dcimo mandamento dado com Laertes a distncia e dentro do


navio. Polnio fala ento suas ltimas palavras carregadas do amor de pai
e as entrega confiana do filho , que agora ser senhor das suas atitudes:

t t~do I

34

acima de

35

sej a

36

e em conseqncia como a nite segue o dia I

37

no vai ser +falso com ningum I

t fiel

consigo mesm""""' I

-------

Este mais um princpio bsico que Lae rtes deve seguir, sendo
aci ma de tudo fiel consigo mesmo. Mais uma vez os recursos vocais usa dos pelo ator o fazem concluir, na linha 37, com a curva meldica descendente: mesmo distncia o pai aconselha carinhosamente o filho, com
intensidade vocal branda, mantendo o forte contato emotivo.
Suas ltimas palavras so:

38

t ~I

39

e que a minha t~
bno I

40

frutifique tudo

41

t~
adeus I

42

t~
adeus I
---

100

trs;

em

t~
voc I

Nestas linhas, o ator usa em todas as nfases intensidade forte (menos


na palavra minha), particularmente em isto e voc, que encerram o contedo da fala , proferidos em especial a Laertes. A expresso auxiliada
pela curva meldica ascendente, intensivamente emotiva. A palavra
bno perceptivelmente ouvida como um lamento de pai se despedindo do filho - reforado tambm por uma quebra de sonoridade na emisso das nfases das linhas 39 e 40 , ditas com um "n na garganta".
Depois diz, pela primeira vez lentam ente, um alongado ADEUS!
Nesta cena, Polnio manda o filho para a Frana, despede-se dele e
faz-lhe, num curto espao de tempo, recomendaes que, a seu ver, lhe
sero teis durante sua estada em Pari s. Portanto usa muita preciso, priorizando recursos vocais tais como: fora e abrandamento articulatrio em
sintagmas, slabas e palavras, pontuando-as por meio da articulao;
cadncia silabada, reforando a inteno em cada slaba; velocidade rpida, no esquecendo de dizer nada .
Polnio tenta ser o mais exato possvel na inteno de alertar o
filho. Assim, o ator esculpe minuciosamente os recursos de voz nas
aes vocais . Fala com firmeza, como um a pessoa (poltico) que quer
transmitir um conhecimento de ca usa, expresso na utilizao de bastante
intensidade vocal forte e vrias curvas meldicas descendentes, afirmativas . Curiosamente, a cena ocorre no mesmo dia em que Polnio ascende a primeiro-ministro da corte da Dinamarca, uma prova do sucesso de
sua conduta, na reta de seu superobjetivo: manter a ordem do reino da
Dinamarca. Assim, o texto vem dividido com inmeras pau sas lgicas,
tambm associadas ao poltico, "lgico" em seu discurso. A fala ace lerada, mas extremamente dividida com pausas interpretativas e muito
enfatizada. O tipo de interpretao realizada no Teat (r)o Oficina refora
a "palavra viva", acarretando muitas nfases e pau sas.
A situao da cena no deixa de carregar no dramalho do superpaime protegendo o filho , refletido vocalmente nas inmeras variaes meldicas, sobrearticulae s e nfases realizadas na partitura vocal.

.....

101

HAMLET
Na cena de Hamlet, esto presentes os trs personagens escolhidos
para anlise das partituras vocais . No texto original a fala de Polnio,
que l para o rei Claudio e para a rainha Gertrude s o bilhete de amor escrito por Hamlet para Ophlia. Nesta montagem o prprio Hamlet, presente na cena, d a fala, olhando nos olhos de Ophlia, atravessado por
tantos outros olhares.
O depoimento que segue de Pascoal da Concei o (que interpreta
Polnio), quando conversva mos sobre esta cena, na anlise desta partitura vocal. Sua leitura, um olhar de quem viveu a cena por dentro ,
enriquece muito a anlise da ao vocal nesta partitura, que pressupe
uma escuta que brota de dentro da situao cnica :

Era todo um exerccio orgnico: de como o diretor me introduziu


emocionalmente na situao, a geografia dos atores, o gancho da fala
que puxava minha fala, a transformao de minhas emoes daquele
momento nas emoes da pea... A cena comeava com o rei querendo saber o que Polnio tinha para lhe contar. Ele diz que "desco briu
a causa verdadeira do Hamlet luntico". Nos ensaios, o Z pediu para
eu chegar em cena como se tivesse descoberto, como Galileu Galilei,
que a Terra girava em tom o do Sol. Uma descoberta imensa. E eu
falava olhando para todos, como se dissesse: descobri a mensagem da
pea, o que quer dizer esse hfen em Ham-let, porque o Marcelo
Drummond que o faz, porque estamos aqui agora , e por a afora. E ia
com tudo concluir que Hamlet estava biruta , no havia o que entender de Hamlet, o que pensar de Hamlet, tudo se resumia ao fato de
que ele estava maluco e a sua maluquice, a "verdadeira maluqui ce",
explicava tudo o que estava acontecendo. A mensagem era que no
havia mensagem nenhuma, pois Hamlet estava maluco. Ento lia o
bilhete, a prova, encontrado com Ophlia, cortando o que no interessava a minha anlise. O fato de o Z colocar o Hamlet defe ndendo seu poema em cena mudou muito as coisas, porque se Polnio
fala o poema ia esculh amb ar com ele, defendendo seu lado, mas com
a presena de Hamlet , ele tem que suportar o fato de que Ophlia
deixa transparecer que ainda est apaixonada por aquele homem (a
Alleyona/Ophlia ficav a olhando para o Hamlet/Marcelo toda apaixonada e crdula durante o poema). Hamlet/Marcelo falava como
Cazuza, empenhado, sem o deboche com que eu comeava a cena.
102

Por fim, isso me deixava extremamente furio so e j que por persuaso no conseguia, nem por anlise, eu partia para violncia,
colocando Hamlet numa camisa-de-fora. Do seu lado, Hamlet
invocava a mqu ina de "Ham-let" para demon strar o amor que ele
sentia por Ophlia: 'T e amo acima de tudo... enquanto esta mquina
de Ham-Iet funcionar...". O amor era a base de tudo o que era HAMLET, tudo era uma prova de amor : a pea, os atores, a cena.
Shakespeare escreveu "Hamlet" por amor, o rei matou, a rainha
casou, ns vivemos e morremos, escrevemo s livros, por amor.
Podemos, como Hamlet diz a Ophlia , duvidar de tudo , meno s de
que o amor est por dentro de toda mquin a da existncia hum ana.

Na geografia da cena, os dois extremos do palco so ocupados por


Hamlet e Ophl ia, permeados ao centro por Polnio, pelo rei Cludio (tio
de Hamlet ) e pela rainha Gertrudes (me de Hamlet). Polnio introduz o
assunto, comeando a ler a carta. "D a deixa" para Hamlet revelar seu
amor, que ele comea cantando no seguinte trecho:

I234-

Duvide que as estrelas sejam fogo,


Duvide que o Sol se mova,
Duvide que verdade seja mentira ,
Mas no duvide que eu te amo.

o canto suave, com pausas longas a cada trmin o de frase e com


pequenas variaes de volume, quase numa curva meldica falada. Ele
desenhado como que preparando a fala seguinte, de recursos vocais similares. Apesar da distncia - dos extremos - que os separa, a fala dita
como uma declara o de amor ao p do ouvido:

103

PARTITURA VOCAL DE HAMLET


1

I
t Ophlia essa mtrica me pe

--:-

eu no sei cantar /

os meus suspiros /

mas eu te amo /

acima de tu/do /

---

doente /

~
/\

----

10

acredita em

.....

Das nfases, ou "palavras vivas", realadas nesta fala, quase a metade delas (oito de dezoito) tm o alongamento como um dos recursos
vocais percebidos. Das treze linhas, apenas cinco no tm em nenhuma
nfase esta qualidade. Em sua repetio, algumas caractersticas da situao afloram: o carter afetivo da fala, que em seu alongamento prolonga
o som at onde Ophlia est, como uma carcia a distncia, usando vocalmente para isso de qualidades mais brandas.
Hamlet, localizado cenicamente distante de Ophlia, ter, para compor a situao, de usar palavras com nfases "doces", ao mesmo tempo
cumprindo a necessidade bsica de envolvimento sonoro (ressonncia no
espao) dos outros atores presentes na cena, de Ophlia - a destinatria
de seus versos - e do pblico, distribudo ao seu redor.
O alongamento foi um trao muito repetido em todas as partituras
(quando este trao usado a slaba tnica tende a ser a mais alongada da
palavra). Em Hamlet, por exemplo, o alongamento da vogal "contamina"
as consoantes, que so tambm reforadas nas plosivas, de emisso mais
direta, e alongadas nas fricativas, mais contnuas, como neste exemplo:

~ mim /
7

teu /

pra t sempre /

t~u /

1-;--

I~

pra t sempre /

---

mais querida /

11

enquanto essa mquina de Ham-/let /

12

funcionar /

13

Ham-/let /

No primeiro caso, teu, o alongamento se espalha intencionalmente por


toda a nfase - precisando a consoante t e alongando a vogal e e a semivogal u; Hamlet se "alonga" corporalmente em direo a Ophlia e se levanta com os braos abertos, entregue. Fala: teu - com fora articulatria
na palavra, que assim bem marcada e pontuada na letra t - plosiva surda,
emitida aqui com um pouco de sopro e uma certa projeo de lngua para
a frente. A caracterstica de continuidade, inata s consoantes fricativas,
realada na letra s em sempre que, desdobrada na vogal e, ganha o sentido afirmativo de infinitude - reforado pela curva meldica descendente.
A recorrncia de alongamentos e intensidade vocal branda na fala de
Hamlet produzem no ambiente uma musicalidade falada.
As posturas que o ator vai tomando ao longo da fala, com pequenas
variaes de dinmica de movimento flutuante, so leves como a fala,
suavemente entoada. Todos escutam, estticos. A msica tocada na cena
cria uma base para a fala melodiosa, desde a primeira linha:

105

I
t Ophlia

essa mtrica me pe

Inicia com nfase de intensidade fraca, clamando por Ophlia rapidamente e olhando nos seus olhos. A linh a I inteira suave e rpida , culminando com a palavra doente, que com slaba tnica alongada e curva
meldica ascendente e descendente cria uma inflexo "em espiral", flexvel, talvez enjoativa ou doente, quando Hamlet reclama da mtrica
aps cantar com voz rouca os primeiros versos desta fala .
Em seguida, abre os braos num movimento brando - Ophlia
igualmente de braos abertos no outro extremo do palco - e, com voz
do ce, continua nas linhas 2 e 3:

nfase

doente I

--:

fora na articulao

curva meldica ascendente e descendente na


palavra
- alongamento na slaba tnica da palavra

A linha 5 tem nfase na palavra tudo, silabada e lenta; ela pre cisa a
quantidade e o tamanho: grande, muito, acima de tudo.
E , acima de tudo. acredita em mim (Hamlet). Este mim, com
inten sidade fraca e abrandamento articulatrio, como contraponto ao
grande da nfase anterior, pequeno, pessoal, moderado e...

eu no sei cantar I

-------..

os meus suspiros I

I ---.----

Reconhece a falta de potncia para ca ntar seu s suspiro s, mas compe na voz falada, de stas duas linhas, uma curva meldica de subida e
de scida, ascendente na nfas e cantar e de scendente no sintagma meus
suspiros, combinada com o alongamento, que corrobora a musicalidade.
Decl ara nas linhas seguintes:

ma s eu te amo I

acima de tu/do I

acredita em

~ mim I

Eu, dita com exatido pela fora articulatria, ma s em intensidade


branda, com afeio. Amo, palavra melodiosa na sua composio - toda
sonorizada, tanto na consoante nasal m qu anto nas dua s vogais a e o e na sua emi sso: alongada e com curva meldica ascendente e de scendente, "contaminando" toda a palavra:
106

recursos vocais

pra t sempre I

Pronuncia Ophlia:

10

--

minha dama I

-----

mais querida I

Todos os elogios tm, nas nfases, os recursos vocais de : ou fora


arti cul atria, ou curva meldica ascendente, que aqui esto ligadas
situao de fala amorosa. Hamlet marca as trs primeiras nfases , minha,
dama e mais (todas palavras compostas com som nasal m - con soante
bilabial sonora, de contato de lbio com lbio - que vrias vezes est
ligado a palavras de afeto), utilizando: fora articulatria na slaba tnica das palavras minha e dama, coincidindo de ambas serem paroxtonas,
seguidas pela nfase mais, tambm com fora na articulao, resultando
em uma fala ritmada. As trs ltimas nfases, dama, mais, querida, so
todas com curva meldica ascendente, agudizadas sem muita fora de
voz , quando Hamlet se dirige a Ophlia com inteno amorosa.
107

Esta fala pe em evidncia uma tendncia de as nfases aparecerem


nos finai s das frases. Em todas as linhas desta partitura de Hamlet a ltima palavra enfatizada (nas partituras dos personagens Ophlia e
Polnio, muitas so as linhas nas quais isto ocorre). Esta relao se d
pelo fato de a nfase ser comumente mais intensa e, por isso , gastar mais
ar, coincidindo com o final da expirao.

recursos vocais

nfase

10

10

---

dama

mais

-----

querida

curva meldica ascendente


fora na articulao da slaba tnica

curva meldica ascendente na palavra


fora na articulao

curva meldica ascendente na palavra

Ainda de braos abertos, volta-se para o pblico enquanto fala da


mquina de "Ham-let"; ela o prprio grupo do Oficina, seus atores no
palco em comunho com o pblico, tomando o fazer teatro, historicamente,
como reflexo de seu momento . No apenas um texto do sculo XVII
chamado "Hamlet", mas este intensificado pelo dilogo e problematizao que faz da nossa atualidade. Em "Ham-let" a fora de Shakespeare no
foi usurpada: a mquina funciona e , tambm, o prprio Hamlet.

11

enquanto essa mquina de Ham-/let /

12

funcionr /

recursos vocais

nfase

11

Ham-/let

fora na articulao da palavra


cadncia silabada

13

t Ham-/let

fora na articulao da palavra


cadncia silabada
intensidade forte
velocidade rpida

O tnu s outro quando, na nfa se funcionar (linha 12), o ator fala ,


alongando a slaba tnica e dando fora articulatria, acompanhada pelas
aes fsica s: prolonga os braos mais inten samente para cima e, depois,
num movimento abrupto, com fora, diz rapidamente:

13

t Ham-Ilet I

Depois disso, vira-se de costas para todos, rapidamente, como que


tomado por um impulso que precede o que ir acontecer na seqncia:
colocaro a camisa-de-fora nele por con sider-lo louco .

A mquina de "Ham-let": seu nome, ele - o personagem e o ator - ,


o espetculo , os atores, o Teat(r)o Oficina, tudo enfatizado em Ham-let (linhas II e 13): nfases com cadncia silabada, fora articulatria em ambas
as slabas - bem marcadas e articuladas - ; e em Ham-let , linha 13, mais
dois outros recursos vocais encerram, tambm, esta fala: intensidade forte
- nica palavra desta partitura com este recurso - , e velocidade rpida.
Estas duas nfases so duplamente silabadas: pela cadncia silabada e pelo
reforo tnico nas slabas que a diviso das palavras com hfen traz.

108

109

IV
VOZCNICA:
DOMNIO TCNICO,
DIMENSO CRIATIVA

Belavoz a mais importante das musas, porque ela que acompanha os reis venerandos. A voz bela no porque seja agradvel e requintada, no bela por caractersticas que
consideraramos formais - mas por este poder, compartilhado
por reis e poetas, de configurar e assegurar a ordem, por este
poder de manuteno da vida e de custdia do ser. (...) - Bela,
pelo poder de influir decisivamente nas fontes do ser e da vida,
pela sua pertinncia s dimenses do mundo e ao sentido e
totalidade da vida.
Torrano'
Em cada anlise do captulo anterior, a incidncia maior de alguns
recursos vocais mostrou-se afinada com as cenas, com as caractersticas
da personagem e com a voz do ator em suas interpretaes.
A partitura da fala de Ophlia, com inmeros alongamentos e curvas
meldicas, deixa transparecer na ao vocal da atriz, por meio dos desenhos realizados por vogais estendidas em subidas e descidas, rpidas pausas para retomar o flego, tanto o prazer gozoso do encontro com Hamlet
quanto os medos e as angstias dos desencontros da prpria pea.
.
N.a fala de Polnio, as qualidades freqentes de fora articulatria,
intensidade forte, velocidade rpida, cadncia silabada e algumas frases
com ciclos emissivos mais longos, sugerem uma situao de fala acelerada, mas imprescindivelmente pontuada e rigorosa. Numa nfase com ca1. Torrano, J. Hestodo/Teogonia: origem dos deuses. So Paulo: Massao Ohnol Roswitha
Kempf Editores, 1981.

110

dncia silabada ou com articulao precisa, a ao vocal do ator deixa


ver, com clareza, a importncia que o pai Polnio d a cada um dos mandamentos transmitidos para o filho.
No personagem Hamlet o clima amoroso, derramado nos versos escritos para Ophlia, aponta, na partitura, a utilizao de recursos de intensidade vocal mais branda - apenas uma palavra com intensidade forte
- , vrios alongamentos associados a curvas meldicas ascendentes. Estas curvas, em ciclos de fala curtos, do voz entonaes melodiosas e
temas, mas no deixam de objetivar, em seus versos, uma ao vocal que
dirige a todos, com recados de Hamlet para a mquina de "Ham-let" e do
prprio ator para o personagem.
As anlises das partituras definem vozes de personagens corporificadas nos atores. Cada ator, na construo de seu personagem, foi ganhando um corpo vocal, fuso das caractersticas timbrsticas de sua prpria
voz e dos recursos que (re)elaborou para o personagem. como se o ator,
com suas dificuldades, capacidades e percebendo/transcendendo seus limites, emprestasse e tomasse emprestado do personagem outras tantas
possibilidades, que vo compondo uma voz, fruto da combinao dos
recursos vocais do ator e do personagem.
A escuta destas partituras vocais e a avaliao da voz dos atores
evidenciou recursos dos atores nos personagens e vice-versa. Comeando pelas caractersticas vocais da atriz Alleyona em seu personagem
Ophlia, nos seus recursos vocais primrios:
1. voz de freqncia mais grave - em Ophlia, o personagem que traz
mais fortemente o feminino da pea, o reforo dos tons agudos foi necessrio e inerente s suas situaes;
2. articulao precisa, auxiliada tambm pelo sotaque gacho da atriz,
que pronuncia bem as palavras - na cena analisada a articulao de
Ophlia clara, com algumas slabas reforadas e muitas palavras precisamente enfatizadas no detalhamento de sua narrativa;
3. a atriz realiza, com facilidade, variaes de intensidade, mas normalmente se mantm suave no discurso - a diversidade de intensidades,
nesta fala de Ophlia, dada inicialmente por um nvel mais fraco em
suas primeiras aes, depois, num crescente, alcana o forte e, no final,
um nvel de intensidade bem suave. Na trajetria do espetculo sua
intensidade e freqncia de voz se elevam, num misto de voz cantada e
falada, principalmente em suas ltimas cenas, quando considerada
louca. Foi necessrio, nos treinamentos vocais, um aprimoramento da
percepo auditiva da atriz para discriminao de tons;
4. a ressonncia da atriz alta, de cabea, s vezes com um pouco de
nasalidade - em Ophlia os recursos vocais de curvas meldicas e
111

alongamentos foi muito trabalhado pela atriz, originando quase um canto


falado, com uma qualidade brilhante, um timbre cristalino, de "cascata".

o cruzamento dos recursos vocais do ator Pascoal da Conceio e de


sua criao de Polnio demonstra que tambm o ator se apropriou dos
recursos que seu personagem sugeriu e vice-versa:
1. voz de freqncia grave - no houve exatamente a escolha do reforo
desta qualidade para o personagem, mas certamente em Polnio a voz
grave compe sua natureza;
2. articulao precisa - foi reforada no personagem, sendo s vezes
sobrearticulada (exageradamente emitida), dada a necessidade de emisso clara de Polnio em toda a pea, ao desejo de ser polido. Alm
disso, a durao maior dada pelos alongamentos uma caracterstica
marcante do ator, muito usada em Polnio;
3. intensidade varivel de voz, com tendncia para o forte - Polnio
inventado com intensidade forte de voz, principalmente pelo tipo de
relao que estabelece com os outros personagens e com o pblico, na
qual a aparente franqueza, a vitalidade do poltico e sua energia so
verbalizadas e intensificadas;
4. ressonncia mista (de cabea, mediana e de peito) - a facilidade do
ator em englobar vrias ressonncias, demonstrando sua versatilidade
vocal, permitiu que a partitura de Polnio fosse estruturada tambm
com curvas meldicas variadas. A boa colocao de voz do ator, com
intensidade forte, ampla ressonncia e articulao exagerada, era dirigida
para que seu personagem se relacionasse com tudo e com todos. O trabalho de colocao de voz no Teat(r)o Oficina pressups tambm o
reforo do treino na articulao e na inten sidade vocal, e isto certamente influiu nas vozes dos personagens. Em Polnio, especialmente estes
dois recurso s vocais foram potencializados para o personagem que,
sendo um homem pblico, diz algumas de suas falas intencionalmente
dirigidas para os espectadores - que no Oficina ficam espalhados em
trs nveis na platia.
A "maratona" vocal por que passava o ator Marcelo Drummond em
cada espetculo fazia com que ele tivesse , muitas vezes , de lidar com o
cansao vocal e rouquido na ao de seu personagem. O espetculo tinha quatro horas e meia de durao, e o ator, interpretando Hamlet, estava
presente em quase todas as cenas, com muitos monlogos e dilogos. Foi
um longo processo, entre gritos, rouquides e descobertas vocai s que
viabilizassem a ao vocal do ator em seu personagem Hamlet. A partitura vocal e a anlise de sua voz expem seus recursos vocais, sendo
algun s descritos a seguir:
112

1. voz de freqncia habitualmente grave, tambm em decorrncia de sua


alterao vocal - em momentos diferentes o personagem tem de variar
o tom de voz entre o grave e o agudo , o que levou o ator a exercitar, nos
treinamentos, a exten so de sua voz para adaptao ao personagem;
2. articulao imprecisa com distrbio articulatrio. Pronncia com sotaque carioca do ator - o Hamlet criado por Marcelo incorporava estas
particularidades, exibindo na ao vocal os conflitos do personagem e
a nece ssidade de articul-los em sua fala;
3. a intensidade vocal do ator forte e, vrias vezes, a de seu personagem
tambm. Quando disfnico, inicialmente forava sua voz. O fato de o
ator, quando estava disfnico, usar intensidade forte com freqncia
grave gerav a maior esforo fala e, desta maneira, o treino e os cuidados vocais foram fundamentai s. O HamletlMarcelo foi um personagem
que teve de conquistar sua voz, muitas vezes em cena, numa espcie de
"ter ou no ter a voz", "ser ou no ser" . Como fala Hamlet: "Ophlia,
essa mtrica me pe doente. Eu no sei cantar os meu s suspiros". Com
o treino e a adaptao desta voz para seu personagem, comeou a descobrir a suavidade, saudvel para si e possvel na composio de seu
Hamlet. A intensidade vocal pode ser diminuda, mesmo em situaes
de tenso e agressividade, e a inteno reforada em outros recursos
vocais , por exemplo, como articulao precisa e nfase nas palavras,
com diversificao de outros recursos;
4. predomnio do foco de ressonncia na regio da laringe e da faringe
(laringo-farngica), misturando- se ressonncia nasal. Com os treino s, o
ator passou a usar a voz na mscara: o uso das caixas de ressonncia do
nariz, da boca, das maxilas e da testa; uma das suas primeiras conqui stas
na projeo da voz - na cena analisada, as escolhas de recursos vocais
levam a uma fala melodiosa, contaminadas pelo clima da situao e pelos primeiros versos que so cantados por Hamlet, fazendo o uso da ressonncia ser variado nas subidas e descidas das curvas entoacionais.
Como foi visto, o timbre da voz dos atore s se amolda ao personagem
e vice-versa, o que refora a importncia de se trabalhar os recursos vocais do ator tambm para superar distrbios e dificuldades. Sendo assim,
a cada nova pea preciso que o ator cuide, treine e renove sua voz.
O treinamento da voz no teatro traz a reflex o sobre as abordagens
fundamentais a este trabalho, que sempre ser uma mescla das exigncias
do personagem na pea, do ator em seu personagem e do ator consigo
mesmo, sua manuteno e sade vocal.
preci so reconhecer que (...) certas falhas tcnica s podem . eventualmente. adquirir uma indiscut vel eficcia dramtica. Seria absurdo excluir dogmaticamente UM

II ~

falas que se aceleram sob o efeito da emoo, as foras vocais momentaneamente


quebradas pela tenso ... A dico, a priori defeituosa - sincopada, seca, montona - , de Jouvet tornou-se, como sabemos, uma das caractersticas principais de
sua personalidade de ator e talvez da modernidade das suas interpretaes. E os
puristas no deixavam de recriminar Vilar por "despejar" seu texto, isto , diz-lo
de maneira corrida e inexpressiva, quando ele estava cansado. Acontece que, embora se tratando de um defeito, do ponto de vista acadmico, o pblico desprevenido e pouco atento a essas questes de tcnica ortodoxa no deixava de perceber a
fora e a beleza da declamao estilizada que Vilar extraa do seu "defeito". Valeria
lembrar que Molire, o "patrono" dos atares, sofria de uma "volubilidade da lngua que acelerava por demais a sua declamao" (segundo Mlle. Poisson,jilha de
um dos atares de sua troupe) e de um "soluo" (ou sibilo) talvez resultante das
dificuldades respiratrias provocadas pela tuberculose que iria mat-lo. E que ele
soube transformar tais "defeitos" em eminentes virtudes cmicas?

Obviamente no se trata, aqui, de justificar possveis alteraes vocais, mas, sim, de trabalh-las a favor do ator e da sua interpretao na
voz dos personagens.
A anlise da partitura vocal traz um registro o mais vivo possvel,
como uma "fotografia" do movimento da cena: como se cada recurso vocal
desse uma dica, um detalhe do personagem, do seu momento emotivo, da
contracenao e da situao por ele vivida. Penetrando na compreenso da
partitura, a ao vocal aflora, a cena (re)visitada, o que permite uma
aproximao em relao s caractersticas cnicas, ao estilo e aos sentidos
empregados pelo ator no personagem por meio da voz.
No trabalho de preparao vocal aqui sugerido, a partitura elaborada pelos atores, pelo diretor e pelo preparador vocal em etapas, acompanhando o processo criativo e dando contribuies tcnicas e interpretativas
voz dos atores. Atua tambm como uma espcie de direo vocal do
espetculo: trabalha as necessidades vocais bsicas para o palco, a construo vocal do personagem e a sade vocal do ator.
O preparador vocal pode fazer predominar uma ou mais de uma
dessas dimenses do trabalho, de acordo com o momento e as demandas da montagem e dos atores. Com isso, fica explcito que h atividades de treino vocal mais especificamente tcnicas. No entanto,
importante que fique claro tambm que este trabalho no se d em separado das exigncias da pea, mas que se estabelece numa relao de
reciprocidade com os vrios planos de trabalho do ator.
Nessa ptica, o preparador vocal deve trabalhar os recursos vocais
dos atores aplicados ao texto e montagem teatral, no separando um
aspecto do outro, como se fazer a partitura fosse simplesmente a aplica2. Roubine, J.J. A arte do ator. Trad. Yan Michalski e Rosyane Trotta. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1987, p.24.

114

o de um grfico voz falada. Ao contrrio disso, a descoberta dos recursos na ao vocal e a feitura/anlise da partitura so possibilidades de se
compreender e liberar foras contidas na pea, no personagem e no ator.
Para que a ao vocal se efetue mais plenamente desejvel que a sade
vocal do ator esteja em boas condies. Inclusive a prtica da ao vocal
pode trazer sade voz porque a vitaliza e, com isso, a distende, flexibiliza e
fortalece. Estando fortalecida, tem menor propenso a alteraes. O treinamento dos recursos vocais aperfeioa a ao vocal, ajuda a promover a sade
da voz e toma a voz do ator mais apta para o desempenho no palco. Porm,
imprescindvel lembrar que pode existir ao vocal mesmo na disfonia. Foi
neste sentido que, percebendo o potencial do ator Marcelo Drummond em
realizar ao vocal e, ao mesmo tempo, suas dificuldades, trabalhamos nos
treinamentos a conjugao da sade de sua voz e a necessidade de uma outra
possibilidade vocal para a realizao de seu personagem. Sobre este processo, o diretor Z Celso Martinez Correa escreveu:
Foi preciso este eclipse da terceira lua cheia de "Ham-let", no dia 29, para eu entender. Neste espetculo do ltimo domingo, a conjuno desfavorvel da voz agonizante do bode Marcelo exigia uma outra voz - ou a condenao morte, ao no
ser. Lucia Helena Gayotto, fonoaudiloga, velou at revelar-se esta nova voz. Ela
sabia que a concepo do "Ham-let" inicial de Marcelo, gritando como um beb
para existir contra tudo e contra todos, teria um limite fsico nas suas cordas vocais
e precisava dar um salto interpretativo de qualidade. Aconteceu esta noite. (...) nesta noite no Oficina, que espelha toda relao social dentro e fora, abriu-se espao
para o "Ham-let" de Marcelo chegar, ser compreendido, e ele veio.'

No processo deste ator, e especialmente neste dia, a ao vocal em


Hamlet foi uma busca deliberada, assim como comum aos atores na
criao de seus personagens. Ao ator, conhecer e treinar sua capacidade
vocal na ao permitir, a um s tempo, a prtica tcnica e interpretativa.
Referindo-se a isto o ator Pascoal da Conceio diz: "Se eu pegar minha
partitura vocal vou sentir a ginstica vocal da minha emoo num certo
momento, vou sentir o ar, o caminho do ar na cena". Ento, o "pulo" vocal,
a voz que salta com as foras vitais do espetculo, produz o prazer da
tcnica implicada na criao.
A tcnica d forma s potencialidades da expresso vocal e, em seu
exerccio, vai impregnando no ator uma espcie de memria, ou seja, o
treinamento vocal vai deixando marcas que, voluntria ou involuntariamente, vm tona no momento da emisso. O ator Rubens Corra
aborda este tema contando:
3. Z Celso Martinez Correa. O bode se coroa com o eclipse. Folha de S. Paulo, So Paulo:
Caderno Mais!, 5 de dez. 1993, p.9.

115

No Rio, a gente tem muito uma transao de umbanda que eu sempre gostei muito
de assistir. Por deslumbr amento mesmo, porque eu acho uma coisa to bonita, uma
coisa to brasileira, aquelas msicas so incrveis. E tem a transao do cavalo que
a prpria imagem do ator. Quer dizer, o cavalo pra receber o esprito tem que
treinar, ele tem que saber que gesto de Ians um raio , ento ele tem que treinar,
ento sai assim (imita ). Tem que sair um raio assim. Eles treinam muito tempo .
Cada deus tem a sua manifestao fsica. Ento pra mim ator um pouc o isso.Voc
tem que estar pronto pra esse tipo de transao que no teu corpo, na tua voz, nos
teus sons. Em tudo, voc tem que estar apto pra traduzir este mundo de inconsciente. Eu acho que a tcnica muit o isso. Quanto mais voc tiver melhor!

A tcnica entranhada na voz do atar deve estar a seu servio, ela no


exatamente exercitada no espetculo, mas ele a percebe presente . Marlia
Pera, atriz de um excelente preparo tcnico, diz:
Pra voc soltar a poesia e a loucura, voc tem que ter uma tcnica te apoiando,
seno no tem interesse a tua poesia e a tua loucura , se voc tem pssima dico , se
a tua barri ga est solta, se voc no sabe andar, se voc no sabe sentar, se voc no
tem o mnimo. Pra contar a histria de um personagem , voc tem que preparar o teu
instrumento. Voc pega um instrumento desafinado, solta l a poesia e a loucur a, e
fica tudo meio desagrad vel de ouv ir. Podem sair notas lindas, mas pode ser desagradvel. (...) Ento, eu estando em cena, pude mostrar para as pessoa s o que era,
por exemplo. a forma, o moviment o, a coreografia, sem perde r a emoo . Pelo
contrrio, a forma e o moviment o abrem portas para a emoo (...)5

A insegurana causada pela falta de preparo tcnico pode truncar a


emoo emergente ; no encontrando o corpo do atar preparad o ela pode
interromper seu fluxo. No h portanto dicotomia entre tcnica e arte. No
caso da voz, a ao vocal favorece a fuso entre este s planos.
O atar Pascoal da Conceio, num depoimento visceral, expe seu
processo de atuao. Ele diz:

inspirao no se tran smut a, nem se transmite. Uma dor escancarada e alegre


com o a dor do part o. Assim a criao e a tcnica.

A ao vocal ocorre no corpo do atar como se uma nica pele alinhasse sua carne (as cavidades, os msculos, as membranas, as cartilagens) e
sua interpretao." A voz vai se tomando melodia, em sua voluptuosidade
traz algo que vai alm do entendimento estritamente intelectual.
A absoro da partitura vocal pode facilitar o acesso a "esta coisa"
indizvel. No uma frmula de interpretao vocal, mas uma ponte que
nos permite, ainda que parcialmente, transitar entre a reflexo e a manifestao da voz em cena. Quando o atar atua, a interpretao passa atravs
dele, pelo seu corpo todo, "eroticamente" ; no simplesmente a expressividade emocional de sua voz que ouvimos ; , para alm disso, um
artista que se deixa possuir, que um canal por meio do qual a arte passa e
inunda a quem assiste.
necessrio que o atar interfira na ao cnica: ele pode falar horas
e ningum escutar, pode falar um s minuto e fisgar a ateno dos espectadores. Com ao vocal o personagem percorre o curso da pea , e o
pblico v, ouve, (re)conhece sua existncia. Ela vitaliza a palavra emitida e pode ser um trampolim para descobertas cnicas .
H uma cena de "Ham-let", no incio do ltimo ato, num cemitrio,
quando os coveiros discutem e analisam os derradeiro s acontecimentos
da pea. como se ficasse para ns, coveiro s de tudo o que morre, discutirmos se , se no , se pode , se no pode. Enquanto discutem fazem a
cova, a vala sagrada , como um ventre de onde tudo veio, se transformou,
e agora retoma para outro ciclo de transformaes. este dilogo com o
provisrio, com o que morre - valores, verdades, modos de existir que anuncia e traz a vida que se (re)cria. Talvez seja este dilogo tambm,
em ltima anlise, o motor da ao vocal.

Quando entr o em cena quand o estou mais frgil. Tud o o qu e preciso fazer reque r sempre uma coragem que est alm das minh as foras. Ento evoco todo o
invisvel mundo de foras que me inspiram. Sei que ser um tormento eu no me
perder, eu no me esqu ecer. Se eu ficar cuid ando de mim tudo ser excessivamente rid cul o. Tenho sempre a cert eza que todo mundo sabe o que estou pensando, ento caminho pra ser o mais sincero possvel. E me ataca a obsesso de
revelar tudo o que est me acontece ndo ... O mito de Prom eteu vem bem a calhar:
a exposio s aves que bicam o seu fgado, a dor horrvel que dar as entranhas
para alimento, a priso nas correntes do rochedo e o reconhecimento trgico de
que aquela purgao nece ssr ia pro homem que passa o fogo ao outr o homem.
H um sofrimento, uma dor, um a perda, da qual no d pra fugir e sem a qual a
4. Apud Meiches, M.; Fernandes, S. Sobre o trabalho do ator. So Paulo: Perspectiva. 1988, p.37.

5. Op. cit., pp.48 e 56.

116

6. Banhes, R. The grain of the voice. ln: - Image - Music - Text. Trad. Stephen Heath,
Gr-Bretanha: Communications Series, 1979.

117

DEDOS E OLHOS ENSAIAVAM


PRIMEIROS SINAIS DE UM CONTACTO
PARA O QUE IA SER TRANSPLANT~ DE RESTOS AINDA VIVOS
PARA A ANATOMIA NOVA NA HISTORIA DE UMA VOZ
RECM-DESCABAADA, MORTA
E PRONTA
PARA SER RESSUSCITADA.

POSFCIO

ESCUTA INICIAL
DOS LTIMOS RECURSOS
OS PRIMEIROS
DA AO VOCAL.

UMA VOZ DE UM BODE NOVO, BERROU


MILNIOS DE MINUTOS
NAS POEIRAS EMBAADAS
DE UM RENASCIMENTO DE TEATRO,
AT VIRAR VOZ SEM VOZ, ESTRAALHADA,
ARREMESSADA EM FIOS DE FIAPOS
PRA MORRER NO FUNDO DO PEITO
NO TERREIRO INTERIOR ENSA NGENTADO
DO CORAO DE UM ATaR.
MAS NUM RARO FORA DE CENA,
DE UMA PRESENTAO
QUASE MUDA DO PRNCIPE DO ESTADO PODRE DA DINAMARCA,
UMA AO DE TEATO COMEOU ATUAR:
UM OUVIDO, COLADO AO PEITO DE HAM-LET
ENTRAVA EM CONTACTO COM OS CHIADOS
QUASE SILNCIO
DE LTIMOS RESTOS,
UMA BOCA SOPRAVA MUITO BAIXO,
SILNCIOS ...
11 8

O OUVIDO, O SOPRO, AS EXTREMIDADES DOS DEDOS


E DOS OLHOS OLHANDO PARA DENTRO
DO CORAO DAS VOZES,
AGIAM, AGIAM NA AO DE "HAM-LET '
TENDO DE BUSCAR OUTRO JEITO PARA VINGAR O ASSASSINATO
DO PAI SEM VINGANA, SEM MGOA OU RESSENTIMENTO,
DE OUTRO JEITO
COM OUTRA VOZ,
COM A DO SILNCIO,
DE OUTRO JEITO.
O OUVIDO OS LBIOS SOPRANTES, OS DEDOS,
OS OLHOS 'DA FaNO AUDILOGA ,
OUVIAM , TOCAVAM, AGIAM,
AGITAVAM-SE
_
COM OUTRO RENASCIMENTO:
A DESCOBERTA DO BRASIL NA VOZ ASSASSINADA PELA AAO
DA MQUINA DE DESEJO E~CESSIVO pE SHAKESPEARE,
A REVELAO DA REVULSAO DA AAO VOCAL NOVA,
QUE VINHA VINDO
COMO DE UM POO DE PETROLEO ,
NA POSSIBILIDADE DANA LOUCA DAS PALAVRAS
E DOS SONS DESDOMINADOS,
DO GOZO LOUCO PHALADO
CANTADO E CHORINHADO ASPIRADO
DE OFLYONA CAVALLI,
DO DISCURSO APAIXONADO
RIA CVICO BRIZOLISTA
DE POLONIOPASCOAL,
E COMO PRMIO DA BUSCA,
A MEIA VOZ MARINA CANTANDO SEUS SUSPIROS
FORA DA MTRICA,
DE MAR-CELa
BALBUCIANDO SUA JURA
DE AMOR ETHERNO
MAQUINA DE HAM-LET .
119

LUCIA HELENA OUVIU, VIU, OUVIU,


E VIU QUE TINHA QUE ENTRAR DENTRO DAQUELES PEITOS,
DAQUELAS CAVIDADES E PROTUBERNCIAS,
SER AQUELES PULMES
PARASABER DE ONDE VINHA A MORTE E O RENASCIMENTO DA VOZ
QUE ELA J ANTEVIA,
SER A VOZ DO CORPO TODO DA VOZ,
NA AO DE TUDO COM TUDO NO TE-ATO,
NO O QUE
"TE UNO A MIM, TE OBRIGO A UNIR-SE A MIM",
COMO TRADUZIU ARMANDO SERGIO DA SILVA,
NO SEU LIVRO "OFICINA: DO TEATRO AO TEATO", QUE LUCIA CITA,
MAS O DE ATO,
O OPOSTO DE ATAR, PRENDER:
O DE SOLTAR, ATUAR, AGIR...
TETO, TE LIGO, POR QUE SOU AO,
SOU ATaR, SOU ATUADO,
AGIDO E FAO ATUAR.
TATEIO. TATO.
TEAT(R)O BRAZYLEIRO,
"TIATO" BRASILEIRO,
ASSIM COMO SE FALA: "VOU NO TIATO".
ASSIM SE FALA, ASSIM SE OUVE.
E NOSSOS TRABALHOS E O DE LUCIA,
QUEREM DIZER MAIS QUE
- VOU VER OU VOU OUVIR, COMO QUEM OUVE UM CD,
QUEREM MAIS:
- VOU VEROUVIRSERVISTO E OUVIDO, E VOU DANAR
SER, SENDO, "TEATO".
A AO VOCAL SACUDIU LUCIA PRaS ENSAIOS DE BACANTES
LUCIA PROCUROU TRAZER O CORO DAS BACAS,
PRAS VOZES DOS VAZIOS DAS TRIPAS, INTESTINOS, NUS, PS
DE DAR P,
NA PIERIA,
NO SOPRO PRaS BAIXOS,
AT TUDO TRANSAR COM TUDO.
A AO DA VOZ DANOU NO CORPO TODO,
NO ESPAO TODO,
NO CORPO SEM RGO DE TODOS OS PRESENTES E AUSENTES.
OS GEMIDOS HISTRICOS DE BACANTES GANHARAM,
O TERRENO DO CORPO TODO.

120

A VOZ SEDIADA SOMENTE NO APARELHO VOCAL


QUE FAZIMAGINAR O CORPO DE UMA FaNO AUDILOGA CLSSICA
COMO UM SER s GARGANTA,
GALINHA PAPUDA,
DISSOLVEU-SE PELAS NDEGAS, PS, E PELO AR,
E OUVIU-SE O SOM EM AO DE TUDO.
AARTICULAOTENICAMENTE PREOCUPADACOM A SALIVAO
DANDO A IMPRESSAO
DE UM MASTIGAR ETERNO DE CHICLETE,
SE ESCORREGOU POR TODOS OS TUBOS DO CORPO INTERNO
PENETRADO PELA PARTITURA DA AO
MAIS QUE DO PERSONAGEM DA PEA,
MAIS QUE DA PEA,
DO RITUAL ATIVO DE ESTAR VIVO.
ESTAS DESCOBER.TAS E OUTRAS QUE DESCONHEO,
DO MUNDO QUE E UMA ORELHA,
VIRARAM UM LIVRO.
NELE, OS "RECURSOS VOCAIS",
A CINCIA DA CURA DA VOZ
TAL QUAL O OCIDENTE ANALISA, ESTUDA, ENSINA E CURA
ENCONTRA-SE COM A AO VOCAL DO TEATRO,
DO PERSONAGEM,
DO TEATRO, DO TEATO,
DA DANA,
NO RITO TUPY DO NDIO CURANDEIRO DE HAM-LET.
NA PEA CNONE DO OCIDENTE,
NO VACILO DO "TO BE on NOT TO BE"
HAMLET DEU UMA ESCORREGADELA
E CAIU NUMA CIRANDA DE SURUBIM,
FELICIANO DA PAIXO,
UM PICASSO TARAHUMARA DO NORDESTE
QUE CANTOU A RESPOSTA QUE OSWALD BUSCAVA PRO
"TUPY oa NOT TUPY":
O SER "TUPY",
s.
SIM ,YES, TUPY, THAT IS THE ANSWER.
A MESMA RESPOSTA AFIRMATIVA
DO EMBAIXADOR BRASILEIRO NU E PINTADO
QUE ATaR CABOCLO PASCOAL DA CONCEIO
DEU EM HAM-LET, NA ARTE, NA VIDA
E COMO MUSA YOKO aNO DESTE LIVRO.
YES, TUPY.
121

TACARAM FOGO NO NDIO PRA DEIXAR A CIDADE LIMPA


E A TRIBO DELE DE VINGANA SEM RESSENTIMENTO
REOCUPOU AS TERRAS E MAIS TERRAS DELES ROUBADAS,
COM SAIAS DE PALHA, TUPY, YES, HAM-LET,
FAZENDO RODAS, VOZEANDO CANTOS MILENARES.
A CULTURA DOS ANTROPFAGOS
A DA AO ALIMENTAR PERMANENTE.
RENASCE FORTE AGORA COMO A NEGRA,
COMENDO TUDO
NA RODA DE NDIO
QUE NO PRA.
A PARTITURA DA AO
VIRANDO VOZ, SOM, DANA, BRUXARIA, ZUM, ZUM, VOZERIO
ATIVO.
SEMPRE REDONDA,
MESMO QUE ANTES TENHA QUE PASSAR POR DECLIVES
GALGANDO OU DESCENDO CUMES,
RETAS, DESVIOS E LABIRINTOS.
ELA, A PARTITURA DA AO SEMPRE UMA RODA.
NESTE LIVRO H O ENCONTRO DE DOIS HEMISFRIOS
NUM S CORPO:
ODELUCIA.
A UNIVERSIDADE, A CINCIA OCIDENTAL,
A TESE,
OS "RECURSOS VOCAIS "NO CORPO DA CIDAD
FORAM UMA NOITE ATENDER UM CORAO QUASE SEM VOZ
E NA AO VOCAL
ESTE CORPO DE MULHER
PENETROU NA GLOSSOLALIA MULATA DA PRTICA DO TEATRO,
DOTEATO
DA BRUXARIA,
DA AO SOPRADA PELO TESO DA ORGYA.
A CIENTISTA SE ENCONTROU DE NOVO
DEPOIS DE SCULOS
COM A BRUXA.
GRAVAES DE VDEO, AUDIES, GRFICOS, CURVAS,
SINAIS ESCRITOS, CALIGRAFIAS RUPESTRES, SONS AGIDOS QUE
AS LETRAS E OS SINAIS AINDA NO CAPTAM
QUE ASSIM COMEAM A SER IMPRESSOS NA PGINA
COMO TAPUMES DE PARTITURA,
FUTURAS PEMBAS.
122

ARTAUD COMEOU A ESCREVER O QUE OU-VIA


E FOI SE DANDO CONTA QUE NO CONSEGUIA,
E A S SE INTERESSAVA CADA VEZ MAIS
EXATAMENTE PELO QUE NO CONSEGUIA.
IA INDO,
MUITO MAIS
PELAS PONTUAES, PELAS VRGULAS,
PONTO E VRGULAS;
PELOS VAZIOS DAS PGINAS
DOS DESENHOS,
PELO SOPRO
DO QUE PELA COISA SOPRADA.
APALAVRA
COMO UMA FASE DA MATRIA,
S
UM INSTANTE,
FRAO MNIMA DE TEMPO DO CORPO TODO MANTRANDO-SE
NO PESO DOS NERVOS,
DOS SONS DA DANAS DO PLENO DOS VAZIOS
SENTIDOS
DO NO DITO.
PAULE THVENIN OUVIU O CORAO DE ARTAUD
E VIROU A EDITORA DOS FLUXOS DE ELETROS DA AO ORAL
SEM FIM,
DO ETERNAMENTE MOMO
QUE ARTAUDDEIXOU POR ESCRITO NA RESPIRAO NO ESCRITA
COMO UMA PEA INTERMINVEL DE TEATRO.
COM PALAVRAS ESCRITAS COMO SINAISINHOS
DE UM FLEGO CSMICO ETERNO MAIOR SEMPRE VIVO,
UM CANAL INTESTINAL INTERNTCO CSMICO
DO VIVO ETERNAMENTE VIVO AGORA E SEMPRE.
A MESMA ELUCIDAO DA SABEDORIA DA IGNORNCIA,
DA CINCIA E DA ARTE DA LOUCURA
MESTRA DE VOZES MESTIAS
QUE TEMOS DENTRO E POMOS PRA FORA DE NS,
COMEA AGORA
NESTA AVENTURA DE ESTUDAR A AO DO FALAR-OUVIR NO
BRASIL.
UMA AVENTURA COLETIVA
QUE NENHUM DE NS PODER FAZER SOZINHO:
A DE ILUMINAR A CRIAO DAS VOZES,
DA PHALA CANTO, SOLO E CORAL DO T(H)EAT(R)O BRAZYLEIRO
QUE EST AGORA COMEANDO A REVULSAR.

123

LUCIA D UM PONTO DE PARTIDA


EXATAMENTE NA PEA CNONE DO OCIDENTE:
"HAMLET".
OS DENTES DA ANTROPOFAGIA DOS CANIBAIS,
DOS CALIBS
COMEAM A COMER AFONO AUDILOGIA OCIDENTAL.
STANISLAVSKI COMEOU NO INCIO DO SCULO
A SE LEMBRAR DA MEMRIA EMOTIVA DO NDIO ESLAVO,
DO ANIMISMO RUSSO,
FOI ROUBADO PELOS EDIPIANOS DA AMRICA DO DRAMA
PURITANO,
E SUAS PERSONAGENS,
PELAS MFIAS DAS FAMLHAS.
MAS ARTAUD NESTE SCULO,
FEZ A TRAIO:
VEIO PRO MXICO, COMUNGOU O PEYOTE
E ACELEROU A FUGA DA AO DA VOZ
DO PAPAI, DA MAME E DO PEDERASTA INATO
E TROUXE A AO DA VOZ NO TEATRO DE NOVO
PARA A VOZ DO POVO,
A VOZ DO TODO MUNDO,
A VOZ DO CORPO SEM RGO,
A VOZ DO RITUAL DO NDIO.
O TEATRO OFICINA VEM SE ATIRANDO NESTE CAMINHO.
TEM TODA UMA HISTRIA VOCAL DE ATORES
QUE QUISERAM SER CANTORES
MAS QUE ENCONTRAVAM UM APARELHAMENTO TEATRAL
OCIDENTAL POUCO CANTVEL E DANVEL
FORAM ESTRAALHADOS E ESTRAALHARAM
AQUELA MQUINA SEM DESEJO.
A MORTE E A RESSURREIO DA VOZ DE HAM-LET,
O TRABALHO DE SUA CURANDEIRA
AGORA UM LIVRO NA "PRAA"
QUE SAI JUNTO COM MUITOS OUTROS,
DE OUTRAS ESPECIALIDADES
SOBRE A TRILHA ATUAL DA BUSCA VIVA DO OFICINA UZYNA
UZONA , CACILDA, RAJADA, SERTES, ELA, SEI L ...
ESTE LIVRO SINTONIZA O X DO PROBLEMA:
O FALAR, O PHALAR, A VOZ SENTIDA, AGIDA AO VIVO
NO PAS QUE FALA DENGOSO COMO DORIVAL CAYMMI.
124

NOSSO TIME, OCTILHA, TIAZO, COMPANHIA, TRIBO, AJUNTAMENTO,

SEI L,
AINDA NO FALA MUITO BEM ,
OU MENOS MODESTAMENTE,
ESTAMOS BALBUCIANDO O QUE QUEREMOS BREVEMENTE
PHALAR.
PERDEMOS A VOZ COMO HAM-LET.
MAS NOSSO DESEJO DE PHALAR CANTATANDO
TEM
NOS OUVIDOS, DEDOS, OLHOS, SOPROS DE LUCIA
A MAJESTADE DE UMA CUMPLICIDADE.
ALGUM NOS ESCUTOU, ESSES ANOS TODOS,
ESCREVEU SOBRE O QUE ESCUTOU,
FEZ GRFICOS E PUBLICOU.
AGORA O DESEJO DE PHALAR, NO DIGO BEM,
PORQUE O BEM NO EXISTE"
,
MAS PHALAR GOSTOSO, FORTE, HUMIDO, LUCIDO,
DE PRODUZIR MATRIA SONORA DE NOSSA TREMEDEIRA
APAIXONADA, AUMENTA.
O TEATRO BRASILEIRO ATUAL FALA AINDA NA SUA MAIORIA,
COM A POMPA DO TEATRO INFANTIL.
VOZES VIVAS DE VERDADEIRAS PRINCESAS, PRNCIPES E REIS
SO SUBMETIDAS,
"SUCUMBADAS"
PARA FALAR UMA ESTRANHA LNGUA DE ESCRAVOS,
"IDIAS" DE REALEZA DE TEATRO INFANTIL.
A VOZ VIVA DO ATaR ATRIZ, QUE A VOZ DO SEU CORPO
E DO CORPO DO MUNDO,
SUBSTITUDA POR UM ESTRANHO CLONE VOCAL GLOBAL,
QUE IMPE A HUMILHAO DO NO TER VOZ PRPRIA,
DE SER A VOZ PARA A LINHA GLOBAL DE MONTAGEM
QUE O MAJORITRIO MERCADO SEM RAZO CHAMA:
VOZPADRO .
O XAMAR A ATENO PARA O LUXO DA AO VOCAL,
O FATO DE ALGUM ESTAR ESCREVENDO,
OUVINDO A VOZ DE QUEM EST EM CENA
O SINTOMA DESTE LUXO NOVO.
A BRUTALIDADE ECONMICA DA ORDEM LIBERAL
QUE PREGA A EXCLUSO DO TEATRO,
OBRIGA UMA PRESSA NA REALIZAO DOS TRABALHOS ,
QUE VEM DAS PRESSES DE DINHEIRO E DE CENSURA EXPLICITA.
125

PRECARIEDADE RADICAL!
ASSIM MESMO CONSEGUIMOS DRIBLAR
SER MAIS RPIDOS E S VEZES VENCER'
FALANDO, E FAZENDO,
'
COM O PODE!< DE CAUTERIZAO DE NOSSA VOZ
DAS PODRIDOES DESTAS ATMOSFERAS.
MAS O SONHO DE TER UMA FASE DE PAZ
DE UMA TRANQILIDADE
'
QUE PERMITA UM TRABALHO DE QUALIDADE,
EM QUE SE POSSA TER O RETORNO DA VOZ QUE SE LANA NO
ESPAO PRA SER REFINADO
COMO FAZ JOO GILBERTO,
OU COMO UMA TRIBO QUANDO NOS RITUAIS MATERIALIZA
A VOZ DO SEU ESTAR NO MUNDO
UMA POSSIBILIDADE
'
QUE O ESTUDO DE LUCIA GAYOTTO
PROFETICAMENTE OUVE
DESDE J.
'
A NFASE NA AO,
E ~ ESCU'~A NO SOM QUE ELA FAZ,
NAO VIRA DE UM "DOMNIO" DE UMA TCNICA
MAS AO CO,NTRRIO DE UMA ABOLIO TOTAL DO DOMNIO,
DE UMA TECNICA VOCAL DA LIBERTAO,
DE SOLTURA DE TODO O DESCONHECIDO
QUE ESTE SCULO AINDA NO EST SABENDO FALAR NEM OUVIR.
AS VANGUARDAS VOCAIS
CC?M SEUS VIRTUOSES E MALABARISMOS CULTUROSOS
NAO DIFEREM MUITO DA EMPOLAO DE CLOWN SRIO
E DO TEATRO INFANTIL.
O CANTO DA MSICA BRASILEIRA
DA MSICA NEGRO-NDIA DOS SUBRBIOS DO MUNDO
TEM A DELCIA DE UMA SONORIDADE
QUE O TEATRO AINDA NO TORNOU ALIADA TRIUNFAL.
FALA-SE AINDA COMO CATECISMO, O DE ANCHIETA, PROS NDIOS.
VEM UMA CACILDA, ESTREMECE TUDO,
AI ELA MORRE,
VOLTA TUDO DE NOVO AO LATIM
E DESCONCENTRAO.
.

126

A REVULSO EST VINDO DE UM MOVIMENTO DE TORNAR


PBLICO,
DE PUBLICAO,
DE TORNAR EXPLCITA A CRIAO DESTA LNGUA FALADA.
SENTIDA QUANDO FALAMOS COM SENTIDOS,
OS DA VIDA, DA NOVELA, DO TEATRO
DESTE PRA L DE PORTUGUS,
,
DESTE BRAZYLEIRO QUE VEM COMENDO O PORTUGUS
DESDE GREGRIO DE MATOS.
VEM PARTITURAS DE AES NOVAS
QUE ENVOLVEM TUDO DE NOVO
ALM DO NOSSO INDIVDUO,
AINDA QUE O COROE,
MAS QUE ATRAVESSA O PAS DA GRAMTICA,
O DA ANESTESIA,
NUMA ATIVIDADE CONSTANTE
DE AO VOCAL DAS VOZES DE TODOS OS BRAZIS,
PRINCIPALMENTE OS DAS BELAS AES FORA DA ORDEM
DAS PALAVRAS DE DESORDEM
QUE ESTAS AES BANDIDAS, DROGADAS, ERRADAS, INVENTAM.
H, PRA QUEM GOSTA DE SE COMUNICAR,
UM COMBATE TEATRAL TODAS AS LNGUAS MORTAS:
QUE ELAS SEJAM IMITADAS, MUITO IMITADAS PARA SEREM PERCEBIDAS,
PRA PODERMOS ENFIM,
OUVIR-FALAR AS VOZES QUE TODAS TEMOS
QUANDO AGIMOS NO QUEREMOS PORQUE QUEREMOS,
EM ESTADO PURO DE VIVO TESO
COMO JOANA D' ARC,
LOUCA PELA FOGUEIRA,
A TRAZEMOS NOSSq"S TES9UROS ARCAICOS TONA,
EM FOGUEIRAS DE SAO JOAO.
EM REVULSO.
TENDO LIDO ESTE LIVRO
ME SINTO COMO LUCIA
OUVINDO HAM-LET NOS OUVINDO A TODOS NS,
AINDA
NO MEIO DO DISCURSO
AINDA
NO AMESTIADO,
AINDA
ENTRE CINCIA-ARTE E VIDA,
AINDA
127

NO ESTRAALHADO,
AINDA
NA UNIVERSIDADE.
MAS
J SENTINDO
FIOS, FIAPOS ELTRICOS QUE CORREM
QUANTO MAIS A PALAVRA VAI NA AO
DO QUE CHAMA-SE PERSONAGEM
E MUITO MAIS AINDA QUANDO VAI NA DO QUE CHAMA-SE
"HAM-LET",
NO DA PEA PROPRIAMENTE,
MAS DESTA MQUINA DE DESEJO
QUE TODOS OS VIVOS MORTAIS FAZEMOS PARTE
NO SEMPRE QUERENDO MAIS E MAIS.
LUCIA CIENTIFICA-SE,
OUVE, COME, O QUE O MUNDO TEATRAL MUNDIAL FALA,
DA AFONIA DO BEBE HAM-LET,
GOZA COM OFLIA,
APAIXONA-SE PELO PODER POLTICO VOCAL DE POLNIO,
RENDE-SE AO CANTO DOCE DA MQUINA DE HAM-LET
RECANTADO
E NOS POSSUI NA MGICA DE UM DESEJO DE TUDO
EM QUE A VOZ PAQUERA, CANTA, JORRA
POR TODOS OS NOSSOS BURACOS
AOS DE ALGUM NINGUM OU DE ALGUMA COISA.

ALM DO ALM DE NS,


AQUI
EM NS
UM CANTO
AGE, CANTA E CURA
OUOTEATO
TEOUO
FALO,
CORAO,
FOGUEIRA.

PARASO, 28 DE ABRIL DE 1997


JOS CELSO MARTINEZ CORREA

CIENTISTAS DA FONOAUDIOLOGIA VO ENCONTRAR


MATERIAL DE PESQUISA VIVA,
MAS ELES MESMOS,
ATORES, NO IMPORTA QUEM LER,
VO CAIR NA ARMADILHA DA AO E NA TENTAO DE OUVIR
O SEM FIM DO VOZERIO DA AO DA VIDA E DA MORTE.
DAQUI, DO PS-I-'-'ACIO,
PS-MORTE REVIDA DE UM LIVRO
A CENA DOS COVEIROS DE HAM-LET ECOA
A VISO DESTA CENA QUE LUCIA ,
GAIATAMENTE ECOA
TRANSANDO COM A VIDA E A MORTE,
MOSTRANDO BEM QUE
"VIVER E MORRER NO AINDA O BASTANTE".
POIS TUDO AINDA FALA, SOA E EST SOANDO
AGORA,
H CANTO CANTANDO
128

129

I
I

l
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LUCIA HELENA GAYOTTO

Formada em fonoaudiologia pela PUC-SP em 1985 , com especializao em voz profissional e mestrado em Distrbios da Comunicao
pela PUC-SP. Fonoaudiloga e supervisora clnica, preparadora vocal de
teatro profissional e atriz. Participou de cursos com o prof. Andreas Sippel
- preparador vocal de teatro em Munique - e com a fonoaudiloga e
atriz russa lrina Promptova, no curso "A voz do ator e a ao cnica" em
Lectoure - Frana. Trabalha em diversas reas que envolvam preparao
vocal, ministra cursos e atende em consultrio particular. Foi professora
da Faculdade Camilo Castelo Branco, na disciplina "Fono e Arte".
Em teatro, foi responsvel pela preparao vocal de atores junto aos
diretores Francisco Medeiros, Roberto Lage, Gerald Thomas, Jos Rubens
Siqueira, Jo s Cel so Martinez Correa, Renato Borghi, Cibele Forjaz e
Creusa Borges; em televiso, realizou preparao vocal de reprteres da
TV Gazeta SP; em rdio, ministrou curso de formao de locutores na
"Rdio Oficina" ; em escolas de teatro, ministrou cursos de expresso vocal no Teatro Escola Macunama e no Teatro Escola Clia Helena.
Como atriz , atuou nos espet culos "Mistrios Gozozos" de Oswald
de Andrade, e "Bacantes" de Eurpedes, ambas sob a direo de Z Celso
Martinez Correa, no teatro Oficina; e em leituras da pea "Cacilda", de
Jos Celso Martinez Correa. Participou da novela "ramos Seis" do SBT.

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