Grandiosos Batuques

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MATHEUS SERVA PEREIRA

MATHEUS SERVA PEREIRA

TENSÕES, ARR ANJOS E EXPERIÊNCIAS COLONIAIS EM MOÇAMBIQUE


“GR ANDIOSOS BATUQUES”
O “batuque” possui uma história múltipla. O termo foi empregado para
designar diferentes práticas musicais e tipos de performance produzidos
por africanos ou afrodescendentes. Este livro investiga as formas como os
“Grandiosos
“batuques” foram praticados e ressignificados pelo colonialismo português
em Lourenço Marques (atual Maputo) e no sul de Moçambique durante o
período de 1890-1940.
As categorias criadas e implementadas pela ação colonial portuguesa não
batuques”
foram capazes de conter a multiplicidade das experiências e das práticas das
populações africanas. Por meio de ferramentas teórico-metodológicas da Tensões, arranjos e experiências
História Social da Cultura, da história “vista de baixo” e da microhistória,
os “batuques” são aqui configurados como objeto de investigação e janela coloniais em Moçambique
privilegiada para analisar resistências, tensões e arranjos cotidianos daque-
les que foram subalternizados pelo poder colonizador português na região. (1890-1940)
Matheus Serva Pereira (Rio de Janeiro, 1985) é investigador no Instituto de Ciências
Sociais, da Universidade de Lisboa. Doutor em História Social da África pela Universidade
Estadual de Campinas, realiza pesquisas nas áreas da História Social, História da África
e História de Moçambique no século xx.

ISBN 978-989-8956-10-1
“Grandiosos
batuques”:
Tensões, arranjos e experiências
coloniais em Moçambique
(1890­‑1940)
IMPRENSA DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA

A Imprensa de História Contemporânea é a editora universitária do Instituto de


História Contemporânea, especializada na divulgação de trabalhos de investiga‑
ção originais nas áreas da História e das Ciências Sociais. A IHC publica estudos
inovadores que incidam sobre o período contemporâneo, privilegiando as abor‑
dagens de carácter transdisciplinar.

Conselho Editorial

Paulo Jorge Fernandes (Coord.)


Álvaro Garrido
Luís Trindade
Maria Alexandre Lousada
Maria João Vaz
MATHEUS SERVA PEREIRA

“Grandiosos
batuques”
Tensões, arranjos e experiências
coloniais em Moçambique
(1890­‑1940)
© 2019 Matheus Serva Pereira
Título: “Grandiosos batuques”: Tensões, arranjos e experiências coloniais
em Moçambique (1890-1940)
Autor: Matheus Serva Pereira
Revisão de texto e coordenação executiva: Elisa Lopes da Silva
Capa e paginação: Gráfica 99
Tiragem: 150 exemplares, Gráfica 99

Este livro foi objecto de avaliação científica


A ortografia segue a variante brasileira do Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa de 1990

Imprensa de História Contemporânea – Catalogação na Publicação


PEREIRA, Matheus Serva, 1985-
Grandiosos batuques: Tensões, arranjos e experiências coloniais
em Moçambique (1890-1940)
CDU 94(679)”1890/1940”

ISBN: 978-989-8956-10-1 (Impresso)


ISBN: 978-989-8956-11-8 (EPUB)
ISBN: 978-989-8956-12-5 (Mobi)
ISBN: 978-989-8956-13-2 (PDF)
DOI: https://doi.org/10.34619/06z3-w430

Depósito legal n.º 472 778/20

1.ª edição: Julho de 2020

Imprensa de História Contemporânea


[email protected]
http://imprensa.ihc.fcsh.unl.pt
Av. de Berna, 26 C
1069-061 Lisboa

Esta é uma obra em Acesso Aberto, disponibilizada online e licenciada segundo uma licença Creative
Commons de Atribuição Internacional Não Comercial – Sem Derivações 4.0 Internacional (CC-BY‑
­NC-ND 4.0).

Financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito
dos projetos UID/HIS/04209/2013, UID/HIS/04209/2019 e UIDP/HIS/04209/2020.
Índice

prefácio
Os grandiosos batuques, o tempo e a alegria................................. 7
por Omar Ribeiro Thomaz

agradecimento.......................................................................... 11

introdução
Nesses batuques têm histórias...................................................... 15

capítulo 1
Algazarras ensurdecedoras
Cantando e dançando até altas horas................................................ 49
Batuques na cidade............................................................................ 54
As letras impressas periódicas, os batuques
e seus participantes/praticantes ........................................................ 58
Uma geografia dos batuques em Lourenço Marques.......................... 79
Representação e repressão dos batuques no espaço urbano............... 87

capítulo 2
Construindo categorias, homogeneizando diferenças,
enquadrando pessoas e práticas
Um alferes-médico e os “pretos” em Lourenço Marques.................. 105
Construindo categorias, homogeneizando diferenças,
enquadrando pessoas......................................................................... 113
Imaginando “homens degenerados e mulheres dissolutas”................... 130
Batuques negros, ouvidos e olhares brancos...................................... 146
O nome e as coisas: uma palavra para muitas práticas ..................... 155
capítulo 3
Cosmopolitismo enevoado e a criação de uma civilização
das necessidades
Cosmopolitismo enevoado................................................................ 165
Espaços de lazer e a criação de uma civilização das necessidades ..... 170
Para além da “conversa burguesa”................................................... 190

capítulo 4
Forçando as frestas do poder colonial
Entre a “escola de vício” e o “mundo temperado de ritmo e poesia” . 215
Um “membrudo negralhão”............................................................... 221
Poder, pudor e agenciabilidade africana nos espaços públicos
de Lourenço Marques .................................................................... 228
Experiências da “maior parte da população”...................................... 244
Batuques e experiências de mulheres trabalhadoras “indígenas”
em Lourenço Marques ................................................................... 266

capítulo 5
Entre o subsídio e a subversão: apropriações, negociações
e resistências ao redor dos “batuques” e das “danças nativas”
Apropriações, negociações e resistências .......................................... 293
Subsídios............................................................................................ 303
Espetacularização dos “batuques” e das “danças nativas”
como projeto colonial ..................................................................... 312
Subversões......................................................................................... 331
“Ouça como a música troveja”: experiências e resistências
nos “batuques” e “danças nativas”.................................................... 335

considerações finais.................................................................. 357

lista de abreviaturas.................................................................. 365

lista de mapas e imagens............................................................. 367

bibliografia............................................................................... 376

índice remissivo......................................................................... 395


PREFÁCIO

Os grandiosos batuques,
o tempo e a alegria

Em abril de 1998, e após um longo período entre o Chimoio e


Maputo, passei duas semanas em Cape Town. Entre as idas e vindas
à biblioteca, deixava­‑me levar por tudo o que me conectava direta‑
mente com os recentes tempos do apartheid ou com a explosão de
alegria que significou o seu fim institucional em 1992. Foi quando
visitei o pequeno museu do District Six, dedicado à memória de um
bairro que o regime do apartheid destruíra e às gentes que haviam
sido de lá deportadas. Uma série de fotos sobre a vida do antigo e
multirracial District Six me chamou particularmente a atenção:
tratava­‑se de fotos do carnaval de rua e das noites de jazz que mar‑
caram durante anos a vida do bairro. Havia uma beleza rara naquelas
fotos: afinal, havia alegria, mesmo durante o apartheid! A mesma
alegria que encontrei em mais de uma foto de Ricardo Rangel de
Lourenço Marques (anterior Maputo) no período tardo­‑colonial.
Imagens que revelam que o colonialismo tentava, mas não conse‑
guia, acabar com a alegria. Como lembra Chinua Achebe, “o mais
incrível é que os despossuídos muitas vezes transformam sua impo‑
tência em algo útil e riem dela”.1
O livro de Matheus Serva Pereira que ora tenho o prazer de
apresentar é, entre outras coisas, um livro sobre a alegria, aquela que
insistia em aparecer e que revelava que o sistema colonial, ou o
apartheid, não eram favas contadas. Pela mão do jovem historiador

1 Chinua Achebe, A educação de uma Criança sob o Protetorado Britânico (São Paulo: Com‑
panhia das Letras, 2012), 28.

7
PREFÁCIO

sou levado para outros tempos, aqueles anteriores aos das magníficas
fotos de Ricardo Rangel da Lourenço Marques dos anos 1950 e
1960. Seus grandiosos batuques ecoam os anos de formação, os
momentos decisivos que vão das guerras de ocupação do Sul de
Moçambique às turbulências da I República e à imposição da triste
e violenta versão colonial­‑fascista do Estado Novo. Mas os batuques
também ecoam outros espaços, em grande medida desconhecidos
até os dias atuais: os subúrbios da cidade de Lourenço Marques,
atual Maputo.
Nem esgotamento, nem ruína, a descoberta renovada dos arqui‑
vos em Portugal e Moçambique confirma que o passado é imprevi‑
sível. Os batuques – a tenacidade de seus sujeitos, as controvérsias
que geravam e sua continuidade no tempo – exigem uma nova apro‑
ximação ao mundo colonial, aquele marcado por hierarquia, ordem
e violência e que parecia reservar poucos lugares para os dominados,
quais sejam, a subversão que caminha para a construção do heroísmo,
ou a colaboração que se traduz na reprodução da indignidade e da
humilhação. Ou ainda, os batuques dos subúrbios urbanos nos
levam para outros africanos, longe dos autênticos que se encontra‑
vam nas zonas rurais, ou daqueles que se aproximavam de ideal do
assimilado. Quanto não têm a nos contar os batuques dos primór‑
dios dos tempos coloniais – os desbravados por Matheus Pereira –
sobre os subúrbios da atual Maputo, ainda em grande medida
desconhecido! Eis um dos desafios dos pesquisadores africanistas
na atualidade, a de levar adiante a agenda construída pelos africa‑
nistas da Escola de Manchester entre os anos 1940 e 1960 e que
interpelava uma África em rápida transformação, que se distanciava
do antigo universo tradicional e se se aproximava dos subúrbios das
cidades africanas coloniais.
Outros tempos, outros debates, é esta suspeita de autores como
Max Gluckman e J. Clyde Mitchell que dialoga diretamente com
os avanços de E. P Thompson, recuperado com a maestria por
Matheus Pereira: categorias, modelos, conceitos fazem sentido se
têm como referência seus contextos ou, em outros termos, a expe‑
riência. Assim, o conflito, a tensão e mesmo a violência devem ser
reequacionados tendo como referência os sujeitos. O africano de
Lourenço Marques das primeiras décadas do século surge com outra

8
MATHEUS SERVA PEREIRA

força, aquela que impõe a negociação e a barganha. Lendo o livro


de Matheus me reencontrei com a lucidez de João Albasini, tenaz
jornalista moçambicano das primeiras décadas do século XX: “Não
basta o domínio, a conquista para uma potência arrogar os seus direitos
às colónias. É preciso o consenso do nativo, dizer ele a dominação que
quer”.2 Bingo! Albasini em 1920 afirmava o certamente trabalhado
por Weber de uma cátedra alemã, ou por Gramsci de uma prisão
na Itália, só que de Lourenço Marques e olhando para aquela cidade
partida entre os brancos do cimento e os negros do caniço. Olhando
para os então denominados indígenas. “... [A] dominação que quer”
está longe da servidão voluntária, ou de qualquer sorte de confor‑
mismo. Está justamente na sua afirmação como sujeito da história
e não como o objeto de um sistema.
Em meio às tramas que se desenham em sua pesquisa docu‑
mental Matheus consegue estabelecer um rico e oportuno debate
entre a historiografia africanista mais contemporânea e os avanços
da historiografia brasileira no que diz respeito à história da escravi‑
dão. Mais de três séculos de tráfico e de escravidão africana no Brasil
foram incapazes de impor um ponto central da agenda escravista: o
silenciamento e a inação do escravizado. Da mesma forma, o colo‑
nialismo português em Moçambique e as formas de trabalho com‑
pulsório e segregação que o acompanharam entre finais do século
XIX e 1940 foram incapazes de deter o ato e aprisionar os sentidos
de cantar e dançar. A uma historiografia moçambicana em grande
medida empenhada justamente em desvendar as formas de impo‑
sição do trabalho aos nativos e sua tenacidade em resistir, o trabalho
de Matheus Pereira representa uma grande contribuição pois os
trabalhadores não só trabalham e a resistência tem muitas faces.
Uma delas é justamente a alegria. Algo raro, como lembra o histo‑
riador moçambicano António Sopa.3

2 Citado por João Albasini em “Coisas d’Africa. Terras do demo...”. O Combate, n.º 272,
23/01/1920, 2; O Brado Africano, n.º 62 (data ilegível). Apud Cesar Braga­‑Pinto e Fátima
Mendonça. João Albasini e as luzes de Nwandzengele. Jornalismo e política em Moçambique |
1908­‑1922 (Maputo: Alcance, 2014), 379.
3 António Sopa, A alegria é uma coisa rara. Subsídios para a história da música popular urbana
em Mourenço Marques (1920 – 1975) (Maputo: Marimbique, 2014).

9
PREFÁCIO

“Grandiosos batuques” de Matheus Pereira é uma contribuição


inestimável para a história de Lourenço Marques, de Moçambique
e, ouso dizer, da África. Em seu trabalho a documentação colonial
deixa de ser uma ilustração da evidente situação de exploração colo‑
nial racista. Entre a balbúrdia e a desordem que devem ser reprimi‑
das e o folclore que deve ser controlado e sistematizado, os batuques
subvertem a própria lógica colonial, pois cantam os grandes feitos
dos heróis nativos, dançam as mazelas da colonização e tocam as
particularidades de grupos insistentemente percebidos em meio a
categorias genéricas. Os grandiosos batuques escapam, enfim, do
controle, promovem uma outra ordem e lançam uma nova luz para
a história que virá depois – aquela ainda por desvendar, dos grandes
subúrbios que se reinventam em Lourenço Marques a partir dos
anos 1940 e até a atualidade, e que não cabem na história da qual a
FRELIMO se apropriou.
A desordem anunciada dos arquivos moçambicanos, seu suposto
desaparecimento ou a suspeita da sua destruição não atemorizou
Matheus Pereira que com o paciente trabalho de um historiador de
mão cheia nos trouxe o cantar e o dançar das primeiras décadas do
século XX em Lourenço Marques. Não é dizer pouca coisa: o colo‑
nialismo, assim como qualquer forma de autoritarismo contempo‑
râneo, tem entre seus grandes inimigos a alegria. Manifestá­‑la e
inventá­‑la é a mais bela forma de resistência.

Omar Ribeiro Thomaz

10
AGRADECIMENTOS

Este livro é uma versão atualizada e melhorada da minha tese de


doutorado, “Grandiosos Batuques”: identidades e experiências dos tra‑
balhadores urbanos africanos de Lourenço Marques (1890­‑1940) defen‑
dida em dezembro de 2016, no Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH – UNI‑
CAMP), no Brasil, na área de concentração em História Social, mais
especificamente História Social da África. O público encontrará
aqui algumas mudanças em relação ao trabalho apresentado ante‑
riormente, como uma reorganização dos capítulos previamente exis‑
tentes e alguns novos apontamentos realizados a partir de pesquisas,
bibliográficas e arquivísticas, desenvolvidas entre 2017 e 2019. Agra‑
deço a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP), o Centro de Pesquisa em História Social da Cultura
(CECULT) e ao Grupo de Investigação Impérios, Colonialismos e
Sociedades Pós­‑Coloniais do Instituto de Ciências Sociais da Uni‑
versidade de Lisboa (ICS­‑ULisboa), instituições fundamentais para
a concretização dessa obra. As bolsas de doutoramento (2013/11516­
‑8) e pós­‑doutoramento (2017/07096­‑4 e 2018/05617­‑0) concedi‑
das pela FAPESP tornaram possível a realização da escrita desse
livro e de minhas investigações em arquivos localizados em três
continentes. A escrita e as investigações foram também possibilita‑
das pela minha inserção no projeto INDICO – Arquivos coloniais
nativos: micro­‑histórias e comparações, financiado através de fundos
nacionais pela FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia, refe‑
rência PTDC/HAR­‑HIS/28577/2017), sediado no Instituto de
Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa. O amparo intelectual

11
AGRADECIMENTOS

e institucional do CECULT e do ICS­‑ULisboa foram fundamen‑


tais para a concretização do resultado aqui apresentado. Aproveito
a oportunidade para deixar minha gratidão a Flávia Peral, secretária
do CECULT, e a todos os funcionários e funcionárias dos arquivos,
bibliotecas, fundações e centros de pesquisa que percorri desde
2010/2011, quando iniciei a pesquisa para a confecção do doutora‑
mento e, consequentemente, do livro. Também quero deixar publi‑
camente registrado o meu agradecimento à Imprensa de História
Contemporânea, seu conselho editorial, os pareceristas da obra e a
revisora do livro, Elisa Lopes da Silva, por tornarem possível a publi‑
cação deste livro.
A minha orientadora, Lucilene Reginaldo, merece inúmeros
louvores. Nossas conversas a respeito de temas diversos auxiliaram­
‑me, inúmeras vezes, ao longo desse trabalho. Os professores José
Luís de Oliveira Cabaço, Lorenzo Gustavo Macagno, Omar Ribeiro
Thomaz e Robert Slenes, membros da banca avaliadora da tese que
originou o livro, foram de uma distinção ímpar. A formação dessa
banca interdisciplinar e internacional mostrou­‑se valiosíssima.
Agradeço ao José Cabaço, pessoa de uma gentileza fenomenal. Os
comentários criteriosos de Lorenzo Macagno instigaram­‑me na
realização de um acurado trabalho científico. A inteligência e o
carinho emanados de Omar Ribeiro Thomaz e Robert Slenes, que
haviam auxiliado a pesquisa com suas excelentes contribuições no
exame de qualificação, trouxeram imensa alegria.
Foram inúmeros os professores, professoras, pesquisadores e
pesquisadoras que participaram direta ou indiretamente das inves‑
tigações que realizei. Como são muitos, posso acabar cometendo a
indelicadeza de esquecer alguns. Peço desculpas. Agradeço aos pro‑
fessores Aurélio Rocha, Chapane Mutiua e Teresa Cruz e Silva, que
muito me ajudaram durante minha primeira estadia em Maputo,
no segundo semestre de 2014. Em Lisboa estive sempre na boa
companhia de Augusto Nascimento, Carlos Almeida, Diogo
Ramada Curto, Eugênia Rodrigues, José Neves, Maria Manuel
Quintela, Nuno Domingos, Paulo Jorge Fernandes e Ricardo
Roque. No Brasil, Marcelo Bittencourt, um dos primeiros a
auxiliarem­‑me nas pesquisas sobre Moçambique. Hebe Mattos,
Martha Abreu e Silvia Lara, exemplos de pesquisadoras. Fernanda

12
MATHEUS SERVA PEREIRA

Thomaz, que ajudou no meu ingresso no campo da História da


África desde o tempo em que ainda era aluno de graduação na Uni‑
versidade Federal Fluminense (UFF). Regiane Mattos, amiga que
compartilha comigo a paixão pelos estudos do passado moçambi‑
cano. Alexander Gebara, Mariza Soares de Carvalho e Alexandre
Ribeiro, sempre com as portas abertas no Núcleo de Estudos Afri‑
canos da UFF (NEAF­‑UFF). Washington Nascimento e Silvio de
Almeida Carvalho Filho, coordenadores do Grupo de Pesquisa
Interinstitucional ÁFRICAS (UERJ­‑UFRJ), juntamente com os
demais membros do grupo, como Carolina Bezerra, Gustavo Durão,
Amanda Palomo, Karina Ramos, Giovanni Manarino, Marilda
Flores, que participaram diretamente da última fase de escrita do
material bruto para o livro.
Das viagens de pesquisa que fiz trouxe comigo algo além dos
documentos. Minhas estadias em Maputo e em Lisboa, em dife‑
rentes momentos da pesquisa, estiveram recheadas de amizades. De
Maputo, veio o amigo maputense Adiodato Gomes, fotógrafo de
mão cheia. Ainda tive a sorte de conhecer outros brasileiros que,
como eu, frequentavam a Universidade Eduardo Mondlane (UEM).
Tenho um carinho especial por todos. Merecem destaque Lauana
Alves e Thiago Mota. Companheiros permanentes. De Lisboa,
tenho fantásticas recordações, especialmente daquelas que pude
construir com as amizades de Diogo Duarte, Inês Galvão, José Fer‑
reira, Lais Pereira e Pedro Martins.
A lista de agradecimentos é grande. Aos amigos da Unicamp,
que conheci ao longo do doutorado, como a Crislayne Alfagali,
Felipe Souza, João Paulo, José Pereira e Manuel Bivar. Outros do
longo período em que estive vinculado a UFF. Alexandre Reis, Eric
Brasil, Juliana Magalhães, Carolina Maíra Morais, Luiz Guilherme
Burlamaqui, Renato Silva, bem­‑humorados, possuidores de uma
inteligência aguçada, companheiros.
Outros tantos precisam ser agradecidos por compartilharem
comigo um pouquinho dos seus tempos. Ao pessoal da Rep 51:
Thiago Tavares, Luis Espinoza e William Soldera, cheios de alegria
de viver, me acolheram mais de uma vez em Barão Geraldo. Outros
que me acolheram e que só tenho a agradecer foram os amigos
Chico Santana, Rodrigo Bulamah e Ludmila Maia (e a Lola, a

13
AGRADECIMENTOS

cachorra mais fofa de Barão). Aos amigos André, Bill, Bruninho,


Dudu, Gustavo e Yuri, sempre prontos para um bom papo pelos
bares do Rio de Janeiro.
Agradeço aos meus familiares. Tenho certeza que sem eles não
teria conseguido concluir a tese. Minha mãe, Geysa. Fui seu aluno
ao longo dos três anos do ensino médio. Hoje levo sua dedicação,
força e seriedade ao magistério como grandes ensinamentos. Ao
meu pai, Camilo. Ensinou a mim e meus irmãos, desde cedo, a
respeitar as diferenças, não tolerar injustiças e a importância da
compaixão. Aos meus irmãos, Camila e Vinícius, engraçados, par‑
ceiros, sempre prontos para deixar a vida mais leve e divertida. Aos
meus avós, José Francisco, Silvina e José Luiz, que, infelizmente,
faleceram antes de eu conseguir concluir essa fase da minha vida.
E a minha avó, Marlene, que acompanha o seu segundo neto a
defender um doutorado.
São muitos nomes para lembrar. Dois nunca vou esquecer. Os
amores da minha vida: minha esposa Claudia e nossa filha Alice.
Claudia, sua personalidade me traz muita paz e amor, seu jeito
carinhoso de ser, seu bom humor contagiante, tudo que existe em
você é belo e me faz amá­‑la cada vez mais. Você e a Alice, nosso
pequeno tornado que cresce cada dia mais rápido, são os principais
motivos da minha constante alegria. Amo muito vocês!

14
INTRODUÇÃO

Nesses batuques têm histórias

Havia um ditado em Umófia que dizia: o batuque dos tambores


acompanha o modo de dançar de cada homem.1
Chinua Achebe

Ao passar por uma rua no bairro da Tijuca, zona norte do Rio de


Janeiro/Brasil, encontrei um cartaz que chamou minha atenção.
Colado nas pilastras de sustentação de um viaduto, ao lado de tantos
outros da agenda de eventos dos subúrbios cariocas, estava o anúncio
de uma festa. Em um final de semana próximo, asseguravam cerveja
à noite toda, ao som das picapes de DJs que se alternariam enquanto
houvesse gente dançando. No entanto, essas promessas, apesar de
sempre interessantes, não foram o que mais cativaram meus olhos.
Antes, foi o nome da equipe que organizava aquela versão contem‑
porânea das festas de Baco que me instigou: “Esse batuque é funk”.
A palavra batuque possui uma história longa, multifacetada e
plural. Fosse no seu uso pelo padre capuchinho João António Cava‑
zzi de Montecuccolo, no século XVII, para descrever hábitos e cos‑
tumes dos reinos do Congo, Angola e Matamba,2 ou do seu emprego
disseminado, no século XIX, para referenciar danças realizadas ao

1 Chinua Achebe, O Mundo se Despedaça (Companhia das Letras: São Paulo, 2009), 171.
2 A riqueza dos relatos elaborados por João António Cavazzi de Montecuccolo fizeram com
que uma série de estudos fossem produzidos ao redor de sua obra. Para um exemplo im‑
portante dessa produção, ver: Carlos Almeida, “Uma Infelicidade Feliz: A Imagem da África
e dos Africanos na Literatura Missionária sobre o Kingo e a Região Mbundu (Meados do
séc. XVI – Primeiro Quartel do séc. XVIII)” (Tese de Doutoramento em Antropologia,
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 2009).

15
INTRODUÇÃO

som de tambores e outros instrumentos feitas por africanos no Bra‑


sil, como constatou Luís da Câmara Cascudo e Mario de Andrade,3
a polifonia do termo para designar um arco­‑íris de danças, ritmos e
práticas majoritariamente produzidas por populações de origens
africanas pode ser remetida a diferentes contextos históricos que não
dialogam necessariamente entre si.4
A apropriação do termo batuque pela equipe de som promotora
de festas no subúrbio carioca demonstra a permanência de uma
característica genérica a respeito da palavra: a sua capacidade de defi‑
nição daquilo que é nomeado e que unifica o seu uso ao longo do
tempo. Essa longevidade persiste, exatamente, porque ainda permite
estabelecer uma associação com aquilo que “é som de preto / de
favelado / mas quando toca / ninguém fica parado”.5 No entanto, a
sobrevivência da palavra no século XXI não esconde a sua incapaci‑
dade de trazer clareza para o que se pretende designar. Aquele batu‑
que não é qualquer um, aquele é o do funk, o da música eletrônica
carioca nascida nas favelas. Ou seja, os promotores de festejos urba‑
nos no Rio de Janeiro perceberam que precisavam de uma segunda
definição agregadora de esclarecimento ao “esse batuque”, podendo,
assim, explicar­‑se com maior objetividade.

3 Ver Gerhard Kubik, “Drum Patterns in the ‘Batuque’ of Benedito Caxias”, Latin American
Music Review / Revista de Música Latinoamericana 11, n.º 2 (Autumn–Winter, 1990):
115­‑181. Mario de Andrade classificou o “batuque” como uma “das nossas danças [brasi‑
leiras], a que dispõe de mais antiga referência”. O importante literato brasileiro identificou
a característica polifônica da palavra batuque, entendendo que a mesma “deixou de designar
uma dança particular, tornando­‑se, como o samba, nome genérico de determinadas coreo‑
grafias ou danças apoiadas em forte instrumental de percussão”. Mário de Andrade, Di‑
cionário Musical Brasileiro (Brasília: Ministério da Cultura, 1989), 53. É importante
perceber que Mario de Andrade, em seu esforço de estudar o que definia enquanto “folclore
brasileiro”, ainda que identificasse uma proveniência de Angola ou Congo do que era
definido como “batuque” no Brasil do início do século XX, esforçou­‑se em compreendê­‑lo
dentro de uma lógica de autenticidade compositora de um povo brasileiro, ou seja, não
necessariamente distinguido enquanto negro.
4 Em sua tese de doutoramento, Francisco de Assis Santana pormenoriza os empregos do
termo batuque por uma vasta bibliografia produzida no Brasil preocupada em estudar
músicas e danças afro­‑brasileiras. Ver: Chico Santana, “Batucada: Experiências em Movi‑
mento” (Tese de Doutoramento, Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes,
2018).
5 Som de preto. Composição de Amilcka e Chocolate.

16
MATHEUS SERVA PEREIRA

Aquilo que o linguajar português chamou de batuques, no final


do século XIX e nas quatro primeiras décadas do século XX, realiza‑
dos pelos habitantes do Sul do que hoje é o país independente de
Moçambique, serão um guia para o livro. Os batuques em si, os
momentos em que foram realizados, para quem ocorriam, onde
ocorreram, as interpretações e representações, podem ser entendidos
como um lugar de tensão existente nas situações coloniais. Como
janela privilegiada para enxergar aquela sociedade, sua polifonia
permitirá ir para determinados lugares, explorar questões e analisar
experiências. O que emerge desse exercício é um mundo para além
dos binômios colonizado e colonizador, bem como da ação daqueles
sujeitos subordinados a dominação colonial enquanto limitados
entre as opções de subversão ou colaboração ao sistema.
A importância dos trabalhos de intelectuais que militaram con‑
tra o colonialismo na África e defenderam as lutas de independência
no continente é inegável. Contudo, a postura de denúncia da con‑
dição de dominação imposta pelas potências europeias presente em
seus estudos, por vezes, os levaram a interpretar como passivas as
ações de indivíduos ou grupos históricos sob o jugo do colonialismo.
Como consequência, enxergaram essas pessoas como desprovidas
da capacidade de atuarem enquanto agentes históricos.6 Além disso,
os estudos pós­‑independência, marcados por essas perspetivas pro‑
duziram pesquisas centradas nas ações dos grupos sociais de origem
africana detentores de alguma forma de poder e suas posturas de
resistência militarizada contra o regime colonial, mantendo um

6 Existe uma longa problematização a respeito dessa questão, principalmente quando aten‑
tamos para os debates sobre os projetos desenvolvidos por lideranças africanas ou afro­
‑diaspóricas de combate ao colonialismo europeu na África. As obras de Frantz Fanon,
Albert Memmi e Amílcar Cabral, dentre muitos outros, vêm sendo revisitadas pela histo‑
riografia contemporânea dedicada ao estudo dos intelectuais em contextos africanos e da
diáspora. Nesse sentido, ver: Sílvio de Almeida Carvalho Filho e Washington Santos Nas‑
cimento, orgs., Intelectuais das Áfricas (Campinas: Pontes Editores, 2018). Ver, também:
Alexandre Almeida Marcussi, “Personalidade, Raça e Nação na África Pós­‑Colonial: Al‑
guns Apontamentos a Partir das Ideias de Kwame Nkrumah”, in Estudos sobre África Oci‑
dental: Dinâmicas Culturais, Diálogos Atlânticos, org. Raissa Brescia do Reis, Taciana Almeida
Garrido de Resende e Thiago Henrique Mota, 259­‑286 (Curitiba: Editora Prismas, 2016).

17
INTRODUÇÃO

caráter que marginalizava homens e mulheres “comuns” como agen‑


tes de seus destinos e de suas próprias histórias. Nesse sentido, o
novo campo da História da África, no período inicial das novas
nações que se constituíam enquanto independentes, foi ocupado por
estudos sobre a oposição africana aberta contra o colonialismo.
Quando a ação africana no período colonial era colocada em ques‑
tão, apresentada numa dimensão histórica dos contextos dos movi‑
mentos nacionalistas africanos e delimitada por suas agendas
políticas, essa perspectiva tendeu a analisá­‑la a partir de uma dico‑
tomia rígida entre dois polos, o da resistência e o da colaboração,
mantendo um enfoque na atuação das elites, tanto nos líderes tra‑
dicionais como nos letrados citadinos.7 A partir dos anos 1980/1990,
pesquisas passaram a problematizar essas perspectivas. Exemplos
são encontrados em obras que questionam a capacidade de uma
interpretação dicotômica da realidade colonial abarcar toda a sua
complexidade8 e em abordagens a partir de novas temáticas para
além da político­‑econômico­‑militar, como as relacionadas a aspec‑
tos da cultura e do cotidiano, elencando diferentes agentes sociais
como objetos de análise, expandindo seus olhares para a participação
de classes populares, fossem rurais ou urbanas.9
Esse foi um processo perceptível em uma ampla guinada histo‑
riográfica na direção de uma reflexão sobre as experiências sociais

7 Para um exemplo emblemático dessa perspectiva, ver: George Shepperson e Thomas Price,
Independent African: John Chilembwe and the Origins, Setting and Significance of the Nyasa‑
land Native Rising of 1915 (Edimburgo: Edinburgh University Press, 1958).
8 Para um questionamento da perspectiva dualista da realidade social moçambicana durante
o período colonial e pós­‑colonial, ver: Bridget O’Laughlin, “Class and the Customary: The
Ambiguous Legacy of the Indigenato in Mozambique”, African Affairs 99, n.º 394 (2000):
5­‑42.
9 Não cabe aqui discutir a viabilidade do termo “classes populares” nas ciências sociais e, mais
especificamente, para o estudo das realidades africanas coloniais e pós­‑coloniais. Campo
densamente discutido por uma vasta bibliografia, o seu emprego no livro é usado apenas
como explicativo da existência de outros agentes sociais para além daqueles compostos pelas
antigas lideranças africanas prévias ao período colonial, que mantiveram alguma forma de
poder durante o século XX, ou aos grupos rurais e citadinos letrados que ascenderam
socialmente durante o período colonial. Para um extenso balanço dessas perspectivas que
contribuem para se pensar contextos africanos contemporâneos, ver: Karin Barber, “Popular
Arts in Africa”, African Studies Review 30, n.º 3 (Sep. 1987): 1­‑78. Para esforços subsequen‑
tes, relacionados de maneira direta a aspectos das realidades urbanas africanas, predomi‑
nantemente durante o século XX, ver: Toyin Falola and Steven J. Salm, eds., Urbanization
and African Cultures (Durham, North Carolina: Carolina Academic Press, 2004).

18
MATHEUS SERVA PEREIRA

de sujeitos históricos excluídos e/ou subalternizados no passado.


Refletir sobre esses sujeitos a partir dos seus contextos específicos e
de suas próprias experiências levou a entendê­‑los como capazes de
agirem para além dos intentos modelares daqueles que “possuíam
História”. Ao mesmo tempo, valorizaram­‑se ações destes sujeitos,
tidas como capazes de interferir de maneira importante e, por vezes,
decisiva no caminhar dos acontecimentos. Para os contextos colo‑
niais africanos, o obstáculo reside na dificuldade de descodificação
dos processos de categorização produzidos pelos agentes imperiais
europeus que pululam os documentos. Partindo da noção de tempo
baseada na linearidade do progresso, esses produziram categorias
racializadas e racistas a respeito dos “Outros” que estavam sob seus
domínios. A legitimação das ações intervencionistas europeias sobre
o continente africano, embebidas da teorização da autenticidade que
corroborava a importância de um poder europeu tutelar sobre as
populações nativas, pressupunha um lugar no tempo para os africa‑
nos. A autenticidade etnográfica elaborada na construção epistemo‑
lógica daquele “Outro”, durante o colonialismo, estipulou o campo
da tradição, do tradicional, do autêntico, como local dos africanos.
Consequentemente, os africanos foram enquadrados nestas catego‑
rias estanques que não davam conta das múltiplas agenciabilidades
decorrentes dos processos promovidos pelas inúmeras encruzilha‑
das, muitas delas bastante dolorosas, ocorridas durante as negocia‑
ções, os conflitos, as reinterpretações e as ressignificações,
desencadeadas pelas multifacetadas experiências das populações
nativas africanas no decorrer da dominação externa.
Publicações como a organizada por Karin Barber, em 1997,
foram importantes ao buscar apresentar caminhos investigativos
pelos quais a cultura popular no continente africano poderia ser
interpretada a partir de um rompimento com algumas das visões
estanques que separavam um suposto mundo “tradicional africano”
de outras esferas temporais vivenciadas no continente, marcadas por
reapropriações da modernidade e da globalização.10 A questão cen‑

10 Karin Barber, org., Readings in African Popular Culture (Bloomington: Indiana University
Press, 1997).

19
INTRODUÇÃO

tral reside na problematização de determinados conceitos, como o


de autenticidade; ao mesmo tempo, defende-se uma interpretação
da cultura popular na África como um fenômeno delimitado tem‑
poralmente dentro de contextos históricos e sociais que marcaram
o continente ao longo do século XX.
Tendo em conta que a noção de “tradição africana” deve ser
vista como algo inventado e/ou construído pelos contextos coloniais,
outras categorias empregadas para definir as realidades sociocultu‑
rais africanas, como a de etnicidade, precisam ser pensadas na con‑
fluência de interpretações que partam de pressupostos antropológicos
e historiográficos/históricos que consigam escapar dos desejos de
sacralização identitários. Nem tradicional, nem moderno. Enquanto
processos arriscados de contatos, encontros, desencontros, formas
de dominação e de resistências, pensar contextualmente parece­‑me
importante. Abandonar uma perspectiva de transição histórica, que
estipule distinções de pertencimento marcadas por rupturas, é fun‑
damental para expurgar o pressuposto de um tempo histórico linear
evolutivo que funcionou como barreira para o avanço de investiga‑
ções que entendam a ação dos sujeitos sociais subalternizados no
passado como encruzilhadas de muitos caminhos. Ao mesmo
tempo, permite compreendê­‑los como sujeitos históricos múltiplos,
sem deixarem de ser aquilo pelos quais se identificam.
É importante destacar que minhas análises das relações sociais
nos contextos coloniais africanos como dinâmicas marcadas por
momentos distintos de conflitos, barganhas, negociações e resistên‑
cias, dialogam com perspectivas historiográficas enraizadas na aca‑
demia brasileira, sobretudo nos campos que dedicaram especial
atenção à história da escravidão, do negro e do pós­‑abolição nas
Américas e no Atlântico. O crescimento significativo da historio‑
grafia africanista produzida no Brasil, no século XXI, e o seu uso
relativamente distinto do conceito de resistência, em comparação
as perspectivas africanistas dos cenários acadêmicos africanos ou
europeus, se deve, dentre muitos fatores externos ao meio acadê‑
mico, à proliferação de investigações pioneiras no meio historiográ‑
fico brasileiro dos anos 1980 e 1990. As transformações pelas quais
passaram os trabalhos de historiadoras e historiadores nesse período
promoveram uma interpretação de classes, grupos ou indivíduos a

20
MATHEUS SERVA PEREIRA

partir de perspectivas da História Social que privilegiavam suas


experiências e ações, em detrimento de análises estruturantes. De
maneira geral, foi um exercício de retomada das clássicas palavras
de Marc Bloch, que definia o “bom historiador” como parecido
“com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está
a sua caça”.11
Muitos desses trabalhos foram inspirados por uma bibliografia
norte­‑americana sobre as experiências afro­‑americanas,12 pelas
variadas e influentes perspectivas da micro­‑história italiana,13 e,
principalmente, pelas obras de E. P. Thompson. Sua crítica às cate‑
gorias derivadas de modelos estanques para pensar as sociedades,
que não levavam em consideração contextos específicos, foi funda‑
mental na promoção de uma guinada para uma análise que levasse
em consideração as maneiras pelas quais os próprios sujeitos histó‑
ricos interpretaram e agiram de acordo com suas experiências.14 João

11 Marc Bloch, Apologia da História ou o Ofício do Historiador (Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001), 54.
12 Dentre muitas obras influenciadoras dessas perspectivas para o meio historiográfico bra‑
sileiro, ver: Eugene Genovese, A Terra Prometida: O Mundo que os Escravos Criaram (Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1988); Eric Foner, “O Significado da Liberdade”, Revista Brasileira
de História 8, n.º 16 (1988): 09­‑36; Peter Linebaugh, “Todas as Montanhas Atlânticas
Estremeceram”, Revista Brasileira de História 3, n.º 6 (1983): 07­‑46; Peter Linebaugh e
Marcus Rediker, A Hidra de Muitas Cabeças: Marinheiros, Escravos, Plebeus e a História
Oculta do Atlântico Revolucionário (São Paulo: Companhia das Letras, 2008).
13 Um balanço pode ser encontrado em Henrique Espada Lima, A Micro­‑História Italiana:
Escalas, Indícios e Singularidades (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006). As obras de
Carlo Ginzburg e Giovani Levi foram e continuam sendo publicadas com regularidade
no Brasil. O livro organizado por Jacques Revel também merece destaque na sua influência
da penetração da perspectiva da micro­‑história no cenário acadêmico brasileiro: Jacques
Revel, Jogos de Escalas: A Experiência da Microanálise (Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996).
14 Ver: E. P. Thompson, “Folclore, Antropologia e História Social”, in As Peculiaridades dos
Ingleses e Outros Artigos, 227­‑268 (Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001). As interações
duais entre formas culturais constituídas pelas sociedades e as vivências das pessoas, oca‑
sionadas pelas invariáveis confrontações entre modos divergentes de interpretação do
mundo ocasionadas pelas corridas coloniais europeias sobre a África podem ser entendidas
a partir da proposta de Thompson de entender que a “experiência não espera discretamente,
fora de seus gabinetes, o momento em que o discurso da demonstração convocará a sua
presença. A experiência entra sem bater à porta e anuncia mortes, crises de subsistência,
guerra de trincheira, desemprego, inflação, genocídio. Pessoas estão famintas: seus sobre‑
viventes têm novos modos de pensar em relação ao mercado. Pessoas são presas: na prisão,
pensam de modo diverso sobre as leis. Frente a essas experiências gerais, velhos sistemas
conceptuais podem desmoronar e novas problemáticas podem insistir em impor sua pre‑
sença”. E. P. Thompson, A Miséria da Teoria ou um Planetário de Erros: Uma Crítica ao
Pensamento de Althusser (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1981), 17.

21
INTRODUÇÃO

José Reis e Eduardo Silva, em obra canônica, ao questionarem “a


escravidão como um sistema absolutamente rígido”, por exemplo,
posicionaram­‑se contra interpretações dicotômicas das experiências
escravas que as dividiam entre “o escravo que aparece como vítima
[...] absoluta” e o herói “épico da rebeldia”. A preocupação desses
autores foi de demonstrar que “ao lado da sempre presente violência
[escravista], havia um espaço social que se tecia tanto de barganhas
como de conflitos”.15
Para o objectivo do presente livro, quero chamar a atenção para
a proximidade entre a adoção do conceito de resistência na histo‑
riografia brasileira e as abordagens que se distanciam do conceito,
acusando­‑o pela promoção de interpretações binárias sobre o pas‑
sado africano do período colonial. Analisar as relações estabelecidas
entre os Estados coloniais europeus e as sociedades africanas, a par‑
tir das diferentes maneiras pelas quais foram construídas as intera‑
ções entre grupos ou indivíduos subjugados a essa dominação, como
aponta Frederick Cooper, tendo como base um binarismo entre
cooptação e oposição, foi uma perspectiva fundamental para as
investigações realizadas nos anos 1960 e 1970.16 De forma seme‑
lhante, os trabalhos da História da África elaborados nessas décadas
apresentavam visões que dividiam as experiências e ações escravas
como colaboradoras ou oposições heroicas ao sistema escravagista,
tendendo a refletir sobre as possibilidades de ações africanas em
situações coloniais como colaborativas ao poder colonizador ou pau‑
tadas em formas de resistências primárias às dominações europeias
intimamente relacionadas aos movimentos nacionalistas africanos.17

15 João José Reis e Eduardo Silva, Negociação e Conflito: A Resistência Negra no Brasil Escravista
(São Paulo: Companhia das Letras, 1989), 7.
16 Frederick Cooper, “Conflito e Conexão: Repensando a História Colonial da África”, in
História de África: Capitalismo, Modernidade e Globalização, 71­‑128 (Lisboa: Edições 70,
2016).
17 Merecem destaque como pioneiros fundamentais para o estudo das relações de resistência
ao colonialismo na África as obras de Terence O. Ranger, Allen Isaacman e Barbara Isaacman.
Ranger, com uma longa e importante carreira, transitou por diferentes perspectivas. Seu artigo
de 1968 foi um dos primeiros a dedicar atenção as possíveis “conexões históricas” entre
movimentos contrários ao colonialismo e o desencadear dos nacionalismos africanos. Lan‑
çado antes das independências das colônias portuguesas na África, apontava para a necessi‑
dade de estudar as “resistências primárias” não apenas como movimentos de reação ou de
desejo de retorno a uma tradição supostamente existente antes da implementação do poder

22
MATHEUS SERVA PEREIRA

No entanto, o que parece ser relevante para a crítica bibliográfica


do conceito de resistência para a análise das ações africanas no pas‑
sado colonial está relacionado aos processos de construção dos Esta‑
dos independentes no período pós­‑colonial. As fundamentais
críticas ao eurocentrismo elaboradas nos contextos das descoloni‑
zações, verteram, no contexto pós­‑colonial, para análises que redu‑
ziam as possibilidades dos africanos de participarem activamente na
confecção de suas histórias a partir de zonas de identificações con‑
textuais que fossem variantes ao longo do tempo e do espaço. Ao
mesmo tempo, muitos dos grupos que assumiram os desafios de
formação dos Estados africanos após suas independências justifica‑
ram posturas autoritárias a partir de narrativas que usavam um
suposto passado de resistência ao colonialismo como forma de cor‑
roboração das privações de liberdades contemporâneas e/ou como
justificadoras de formas de repressões a grupos sociais questionado‑
res dos rumos tomados no período pós­‑colonial.18

colonial europeu na África. Terence O Ranger, “Connexions Between ‘Primary Resistance’


Movements and Modern Mass Nationalism in East and Central Africa. Part I”, Journal of
African History IX, n.º 3 (1968): 437­‑453. Para uma importante reflexão sobre a obra de
Ranger e como esse influenciou nas variadas percepções a respeito do conceito de resistência
na História da África, ver: Bonny Ibhawoh and Harvey Amani Whitfield, “Problems, Pers‑
pectives, and Paradigms: Colonial Africanist Historiography and the Question of Audience”,
Canadian Journal of African Studies 39, n.º 3 (2005): 582­‑600. Na obra de Allen Isaacman e
Barbara Isaacman, desenvolvida principalmente sobre a região central de Moçambique, me‑
rece destaque o artigo de balanço “Resistance and collaboration in southern and central
Africa, c. 1850­‑1920”. Publicado em 1977, o texto analisa de maneira complexa a bibliografia
que abordou o tema da resistência africana ao colonialismo europeu enfocando as múltiplas
possibilidades que existiram, de acordo com os contextos políticos e sociais específicos. Cabe
salientar que a percepção dos autores sobre o conceito de resistência para analisar as ações
diárias de insatisfação dos africanos para com a dominação colonial europeia foi influenciada
justamente por pesquisas realizadas nos anos 1970 sobre as ações escravas nos EUA, como
as de Eugene Genovese: “Like the slaves in the American South, many oppressed workers
covertly retaliated against the colonial economic system. Because both groups lacked any
significant power, direct confrontation was not often aviable strategy. Instead, the African
peasants and workers expressed their hostility through tax evasion, work slowdowns, and
destruction of European property. The dominant European population, as in the United
States, perceived these forms of day­‑to­‑day resistance as prima facie evidence of the docility
and ignorance of their subordinates rather than as expressions of discontent”. In: Allen
Isaacman and Barbara Isaacman, “Resistance and Collaboration in Southern and Central
Africa, c. 1850­‑1920”, The International Journal of African Studies 10, n.º 1 (1977): 48.
18 Para uma reflexão sistemática sobre a história da produção historiográfica sobre a África
e uma análise crítica da relação entre os movimentos nacionalistas, a construção dos Es‑
tados independentes e a produção do passado africano, ver: Joseph C. Miller, “History and

23
INTRODUÇÃO

Nesse sentido, diferentemente da historiografia brasileira


brevemente apresentada, a historiografia africanista, sobretudo
anglófona, dos anos 1990, foi marcada por uma crítica à validade
do termo resistência como conceito e como categoria empírica
de análise. Alegando uma incapacidade explicativa, seu emprego
em análises que reduziam o colonialismo a um sistema de domi‑
nação promovedor de uma sociedade binária dividida exclusiva‑
mente entre colonizados e colonizadores ou como limitador das
motivações e possibilidades das ações africanas para com as rela‑
ções de poder instituídas, levaram a uma renúncia do uso do
conceito.
Em um exercício crítico dessa historiografia, Frederick Cooper
também salienta a influência da obra de E. P. Thompson na História
da África produzida nos anos 1970 e 1980. Segundo o autor, as
leituras africanistas a partir do estudo da formação da classe operária
inglesa de Thompson, ao buscarem apresentar interpretações dife‑
rentes daquelas que atribuíam aos africanos um lugar intrinsica‑
mente vinculado ao tradicionalismo ou a uma busca por uma
autenticidade pré­‑colonial, promoveram um modelo interpretativo
da modernização na África e da participação dos africanos na con‑
temporaneidade a partir de uma noção teleológica da proletariza‑
ção.19 Efectivamente, Cooper, ao longo de sua vastíssima obra,
contabilizou­‑se como um importante crítico do uso da resistência
como conceito primordial para a análise da história africana. Sua
preocupação centra­‑se, com razão, no uso retórico da resistência que
“escondeu a forma como as elites africanas anticolonialistas foram

Africa / Africa and History”, The American Historical Review 104, n.º 1 (Feb. 1999):1­‑32;
Frederick Cooper, “A Escrita da História de África durante e depois de Um Tempo de
Libertação: Apontamentos Pessoais”, in História de África: Capitalismo, Modernidade e
Globalização, 43­‑70 (Lisboa: Edições 70, 2016); Terence Ranger, “Nationalist Historiogra‑
phy, Patriotic History and the History of the Nation: The Struggle over the Past in Zim‑
babwe”, Journal of Southern African Studies 30, n.º 2 ( June 2004): 215­‑234.
19 Frederick Cooper, “Class and Empire: An African Historian’s Retrospective on E. P.
Thompson”, Social History 20, n.º 2 (May 1995): 235­‑241. O mesmo autor analisa de
maneira pormenorizada o tema da proletarização em contextos africanos, em: Frederick
Cooper, “Trabalhadores Africano e Projetos Imperiais” e “Descolonização e Cidadania:
A África entre os Impérios e Um Mundo de Nações”, in História de África: Capitalismo,
Modernidade e Globalização, 263­‑306 e 307­‑350 (Lisboa: Edições 70, 2016).

24
MATHEUS SERVA PEREIRA

privilegiadas e desvalorizou as tensões e desigualdades das socieda‑


des africanas”.20
O intricado debate sobre o conceito não inviabiliza o seu
emprego ou exclui sua importância nas análises que buscam com‑
preender as imbricadas relações de poder estabelecidas entre os regi‑
mes coloniais e as populações dominadas, incluindo as maneiras
pelas quais estas agiram em relação à tentativa, nunca completa‑
mente eficaz, de controle sobre suas vidas. Os estudos elaborados
no calor dos contextos das descolonizações e o campo por eles
aberto, com suas análises sobre a formação dos impérios, suas críti‑
cas ao eurocentrismo, as descrições da natureza das sociedades colo‑
niais e suas formas de poder, violência e dinâmicas discriminatórias,
continuam sendo importantes vias de aprendizagem. Metodologi‑
camente, abriram caminhos para o emprego de novas ferramentas
de pesquisa, como a história oral, e a diversificação das fontes. As
atuais pesquisas sobre os movimentos anti­‑coloniais e as variadas
relações com as trajetórias dos nacionalismos africanos, colocando
em questão as dinâmicas das lutas anti­‑coloniais e suas vinculações
com as metanarrativas dos movimentos de independência, indicam
uma vitalidade da ideia de resistência na História da África para a
promoção de interpretações que não necessariamente descambem
para uma explicação dicotômica das ações africanas sob o domínio
colonial.21
Este livro está situado numa intersecção entre a perspectiva
exemplificada por João José Reis e Eduardo Silva, que defendem o
emprego do conceito de resistência como válido para analisar o
“espaço social que se tecia tanto de barganhas quanto de conflitos”22,

20 Frederick Cooper, “Conflito e Conexão: Repensando a História Colonial da África”, in


História de África: Capitalismo, Modernidade e Globalização (Lisboa: Edições 70, 2016), 79.
Pesquisas recentes produzidas no Brasil têm empregado de maneira criativa o conceito de
resistência, sendo eficientes no seu uso ao evitarem cair nas armadilhas apontadas por
Cooper. Ver, como exemplo: Regiane Augusto de Mattos, As Dimensões da Resistência em
Angoche: Da Expansão Política do Sultanato à Política Colonialista Portuguesa no Norte de
Moçambique (1842­‑1910) (São Paulo: Alameda, 2015).
21 Michel Cahen, “Luta de Emancipação Anti­‑Colonial ou Movimento de Libertação Na‑
cional? Processo Histórico e Discurso Ideológico: O caso das Colónias Portuguesas e de
Moçambique em Particular”, Africana Studia, n.º 8 (2005): 39­‑67.
22 Reis e Silva, Negociação e Conflito, 7.

25
INTRODUÇÃO

e a de Frederick Cooper, ao questionar a validade do seu uso na


escrita da história da África. Leituras distintas e, ao mesmo tempo,
tangenciais, sobre o emprego e a validade do conceito, poderiam
ser entendidas como um impeditivo de sua aplicabilidade. O con‑
senso atual está na necessidade de evitar análises que retratem de
forma monolítica aqueles que dominaram e, principalmente, aque‑
les que foram dominados. Isso não quer dizer que devemos negar
o valor da resistência como conceito ou como fenômeno histórico.
Como conceito e como prática, analisar a agenciabilidade dos “de
baixo” a partir da ideia de resistência continua sendo fundamental
para promover interessantes e inovadoras análises das experiências
de sujeitos aos quais foi negada a voz durante suas vidas. Ao
mesmo tempo, tal análise faz ressoar pautas contemporâneas
de movimentos em prol de igualdades e de defesa pela dignidade
humana.
Fica evidente que os debates sobre o conceito de resistência,
especialmente em contextos coloniais africanos, estão longe de
encerrados. Neste livro, o seu uso corresponde a uma tentativa de
originar o estudo daquilo que veio a ser designado como “batuques”
a partir das experiências daqueles que estavam envolvidos nessas
práticas e de compreender esse exercício de análise do passado não
como um fenômeno trivial do período colonial, mas como uma
maneira de escrever uma história social da situação colonial. A noção
de “repertórios de resistência” empregada por James C. Scott,
quando desenvolvida a partir de contextos históricos, sociais, cultu‑
rais e econômicos específicos, é entendida enquanto prática política
prosaica daqueles sem poder, que, por conta da verticalidade hie‑
rárquica das relações de dominação, a exercem de forma velada.23
Afinal, “como estudamos as relações de poder quando os impotentes
são frequentemente obrigados a adotar uma postura estratégica na
presença dos poderosos e quando os poderosos podem ter interesse

23 As ideias de “registo escondido” (hidden resistance) e “resistência quotidiana” (everyday re‑


sistance) foram desenvolvidas por James C. Scott ao longo de seus trabalhos. Ver: James C.
Scott, Weapons of the Weak: Everyday Forms of Peasant Resistance (New Haven/Londres:
Yale University Press, 1985).

26
MATHEUS SERVA PEREIRA

em dramatizar excessivamente sua reputação e domínio?”.24 Esse é


um questionamento fundamental para uma análise dos esforços de
controle empregados pelo poder colonial português e como esses
dialogaram com um repertório de resistências perceptíveis nos
“batuques”, marcado por variadas dinâmicas e estratégias; controle
e resistências que se influenciaram mutuamente.
Porém, se os batuques serão uma janela para se ter acesso às
experiências das populações originárias do sul de Moçambique
durante o período colonial português vespertino, os documentos
encontrados nos arquivos estão repletos de cortinas que impedem
que a plenitude da luz do passado adentre pelas vidraças do presente.
Os textos presentes nas fontes e os contextos de produção das fontes
trazem dificuldades para dialogar com a multiplicidade de docu‑
mentos que foram elaborados por diferentes agentes, em diferentes
momentos e com diferentes objetivos. Nesse sentido, a importância
de descortinar as fontes, despindo­‑as de seus filtros, mas sem deixar
de ter atenção aos mecanismos de construção desses filtros, será uma
das preocupações que perpassará todo o livro.
A própria polifonia dos batuques representa uma dificuldade
para o trato com as fontes coletadas. De características muito varia‑
das, foram recolhidos relatórios de missões geográficas e militares,
relatórios de administradores coloniais, fotografias, censos, artigos
de jornais, publicações impressas, memórias, correspondências
administrativas, etc. A intencionalidade da produção de cada uma
destas fontes – que poderiam estar relacionadas ao processo de ocu‑
pação colonial e ao acumulo de informações necessárias para essa
ação, o dia a dia do controle sobre os territórios e as populações
subjugadas, ou o noticiar cotidiano dos acontecimentos da cidade

24 “How do we study power relations when the powerless are often obliged to adopt a strategic
pose in the presence of the powerful and when the powerful may have an interest in over‑
dramatizing their reputation and mastery? [...] Every subordinate group creates, out of its
ordeal, a ‘hidden transcript’ that represents a critique of power spoken behind the back of
the dominant. The powerful, for their part, also develop a hidden transcript representing
the practices and claims of their rule that cannot be openly avowed. A comparison of the
hidden transcript of the weak with that of the powerful and of both hidden transcripts to
the public transcript of power relations offers a substantially new way of understanding
resistance to domination”. In: James C. Scott. Dominantion and the Art of Resistance: Hidden
Transcripts (New Haven/Londres: Yale University Press, 1990), XII [tradução livre].

27
INTRODUÇÃO

Lourenço Marques (atual Maputo) e os desejos de interferência nos


rumos da vida naquele espaço – demonstra que esta precisa ser enca‑
rada como um problema historiográfico. Acrescido a isso, todas as
fontes estão localizadas em diferentes acervos arquivísticos, com
variadas formas de organização e de disponibilidade de acesso, o que
permite um caledoscópio de possibilidades interpretativas, mas que
não encerram a capacidade de utilizar os batuques enquanto fio
condutor narrativo/interpretativo.
Os batuques como objeto permitirão acessar características dos
projetos coloniais que trouxeram consigo noções de inferioridade a
respeito dos “Outros” subjugados. O poderoso processo de catego‑
rizações racializantes intrínseco a esses projetos, em relação a perío‑
dos anteriores da história da África, transformou as maneiras de
historiar os testemunhos dos africanos, silenciando ou homogenei‑
zando uma polifonia de vozes registradas em tempos anteriores. Por
meio de um conjunto de disposições legais formuladas entre os finais
do século XIX e as primeiras décadas do século XX, foram criadas
duas categorias jurídicas que definiram formalmente o lugar das
populações naturais da África nos quadros do colonialismo portu‑
guês, distinguindo­‑as o acesso que tinham a desiguais formas de
cidadania: o assimilado e o indígena. Os assimilados, segundo as
descrições legais implementadas pelas políticas coloniais, seriam os
africanos que “tivessem abandonado inteiramente os usos e costu‑
mes daquela raça” e adotado hábitos do chamado mundo civilizado,
isto é, do mundo burguês europeu citadino.25 Os indígenas, que
compunham a esmagadora maioria, seriam os africanos que conti‑
nuavam praticando e vivendo a partir dos “usos e costumes daquela
raça”, sendo entendidos, sobretudo, como aqueles que habitavam
zonas distantes das áreas urbanizadas. Dessa maneira, os indivíduos

25 Portaria Provincial n.º 317, de 9 de Janeiro de 1917, publicada no Boletim Oficial n°


02/1917, conhecida como Portaria do Assimilado ou Alvará do Assimilado. As regras para a
obtenção da copndição de “assimilado ao europeu”, estipuladas pelo 2.º artigo da Portaria,
eram: “a) que tivesse abandonado inteiramente os usos e costumes daquela raça; b) que
falasse, lesse e escrevesse a língua portuguesa; c) adotasse a monogamia; d) exercesse pro‑
fissão, arte ou ofício, compatíveis com a civilização européia ou que tivesse obtido por meio
lícito rendimento que fosse suficiente para alimentação, sustento, habitação e vestuário dele
e de sua família”.

28
MATHEUS SERVA PEREIRA

classificados como indígenas foram excluídos de qualquer modelo


de cidadania oficializado pelo poder. Ou seja, na medida em que o
Estado colonial português efetivou­‑se enquanto força capaz de con‑
trolar o espaço social moçambicano, com a adoção de classificações
racializantes e hierarquizantes das populações nativas, a partir de
um modelo ideal de cultura a ser seguido, as estruturas que foram
sendo construídas e implementadas dificultam interpretações a res‑
peito das experiências dos grupos africanos abarcados pelos guarda­
‑chuva estanque, homogêneo e binominal de assimilados ou
indígenas.26
De maneira geral, ambos os rótulos dificilmente foram capazes
de traduzir as variações sociais, políticas, étnicas e culturais daqueles
“Outros” que foram sumariamente classificados. No entanto, por
um lado, apesar daqueles nativos que se enquadravam na categoria
de assimilados serem um número ínfimo da população, uma parcela
significativa notabilizou­‑se por sua atuação enquanto representantes
dos anseios desse grupo e questionou essa forma de categorização
imposta pelo colonialismo a respeito de si. Sua capacidade enquanto
produtores de documentos permite, inclusive, percebermos nuances
identitárias que os rótulos coloniais enevoavam.27 Por outro lado, as
dificuldades relacionadas com o estudo da diversidade obliterada
pela taxação aglutinadora da heterogeneidade com o desígnio indí‑
gena, obscurecem de maneira avassaladora as múltiplas e conflitan‑
tes experiências e identidades existentes nessa camada populacional.
A necessidade de se recorrer às entrelinhas para encontrar as vozes
no passado dos chamados indígenas e, principalmente, demonstrar
a panóplia de combinações existentes dentro dessa categoria, estão
relacionadas com a impossibilidade desses indivíduos em produzi‑

26 Para uma análise dessas características no mundo colonial português, ver: Ana Cristina
Fonseca Nogueira da Silva, “Da Carta de Alforria ao Alvará de Assimilação: A Cidadania
dos ‘Originários de África’ na América e na África Portuguesas, Séculos XIX e XX”, in
A Experiência Constitucional de Cádis – Espanha, Portugal e Brasil, org. Cecília Helena Salles
de Oliveira e Márcia Berbel, 109­‑137 (São Paulo: Editora Alameda, 2012).
27 Para uma análise da complexidade desse grupo dentro do Moçambique colonial, ver: César
Braga­‑Pinto, “João Albasini e o Olhar Estrábico de O Africano”, in João Albasini e as Luzes
de Nwandzengele, César Braga­‑Pinto e Fátima Mendonça, 41­‑64 (Maputo: Alcance Edi‑
tores, 2014).

29
INTRODUÇÃO

rem seus próprios registros escritos. Os indígenas não detinham os


mecanismos de produção documental muito por conta da visão
racista que a quase totalidade dos produtores das fontes possuíam a
respeito dessa população.28 Portanto, a utilização do termo indígena
ao longo do livro, em momento algum tem como intuito reforçar a
capacidade explicativa desse desígnio e, sempre que possível, tenta‑
rei demonstrar a diversidade que o rótulo insistiu em apagar.
Como mencionado anteriormente, uma solução empregada
pelos primeiros historiadores que resolveram debruçar­‑se sobre o
passado africano para além das perspectivas eurocêntricas, predo‑
minante até meados do século XX, foi o recurso à recolha e análise
de narrativas orais. Estas seriam capazes de dizer algo não encon‑
trado na produção documental, marcadamente enviesada pelas fra‑
gilidades dos rótulos coloniais.29 Apesar da importância da oralidade
para se pensar o passado africano e dos debates teórico­‑metodológicos
aprofundados sobre a memória e a História Oral, os arquivos escri‑
tos produzidos no decorrer da implementação, construção e conso‑
lidação das estruturas administrativas do poder colonial continuam
a ser importantes para se pensar o início do século xx e, principal‑
mente, como meio para a produção de análises sobre a agenciabili‑
dade africana durante os contextos de intensa dominação colonial.30
As arenas conflituosas dos órgãos reguladores da vida social africana,
criados no decorrer da colonização, têm sido considerados como
locais propícios para a observação de estratégias desenvolvidas pelas
populações nativas que tiveram como intuito subverter os sentidos
originais das legislações e das instituições coloniais.31

28 Pesquisas recentes vêm questionando a capacidade das categorias do Estado colonial por‑
tuguês que fracionavam e hierarquizavam, especialmente as de cunho racial, os habitantes
das colónias em explicar a complexidade daquela realidade. Ver: Cláudia Castelo, Omar
Ribeiro Thomaz, Sebastião Nascimento e Teresa Cruz e Silva, org., Os Outros da Coloni‑
zação: Ensaios sobre o Colonialismo Tardio em Moçambique (Lisboa: Imprensa de Ciências
Sociais, 2012).
29 Anderson Ribeiro Oliva, “A História da África em Perspectiva”, Revista Múltipla 10, n.º
16 (2004): 9­‑40.
30 Ibhawoh e Whitfield, “Problems, Perspectives, and Paradigms: Colonial Africanist His‑
toriography and the Question of Audience”.
31 Os usos da documentação cartorial para se estudar o passado colonial europeu na África
têm resultado em pesquisas inovadoras a partir de fontes produzidas pelos colonizadores.
Alguns exemplos dessa bibliografia podem ser encontrados em Carol Dickerman, “The

30
MATHEUS SERVA PEREIRA

As fragilidades explicativas dos rótulos coloniais e as tentativas


de compreender a diversidade que velavam, especialmente dentro
de contextos urbanos, também estiveram no cerne de estudos
antropológicos que realizaram seus trabalhos de campo no conti‑
nente africano entre as décadas de 1950 e 1970. Após a Segunda
Guerra Mundial, em razão da importância econômica das cidades
africanas e do seu modo singular de promover a convivência entre
indivíduos de proveniências variadas e com vínculos instáveis entre
si, estas constituíram espaços basilares do colonialismo e das ciên‑
cias sociais. A construção de um conhecimento sobre essas socie‑
dades, devido à necessidade de dotar de princípios de ação as
instituições de fomento econômico internacionais, está direta‑
mente relacionada com o crescimento das ciências sociais interes‑
sadas nomeadamente pelo tema da urbanização na África e pelas
sociedades criadas por esse processo.32 Os trabalhos de campo
desenvolvidos sobretudo pelos investigadores do Instituto Rhodes
Livingstone – que, fundado em 1937, ganhou especial destaque
durante os anos 1940, quando esteve capitaneado pelas abordagens
de Max Gluckman – foram pioneiros em refletir sobre os múltiplos
contatos entre diferentes pessoas, muitas vezes proporcionados
pelas transformações advindas dos contextos coloniais.33 A partir
de uma valorização do trabalho de campo como fundamental para
o saber antropológico, pesquisas como as de Gluckman, bem como
as de Clyde Mitchell e Jaap van Velsen, tiveram como objetivo se

Use of Court Records as Sources for African History: Some Examples from Bujumbura,
Burundi”, African Studies Association 11, (1984): 69­‑81; Carol Dickerman, “African Courts
Under the Colonial Regime: Usumbura, Ruanda­‑Urundi, 1938­‑62”, Canadian Journal of
African Studies 26, n.º 1 (1992): 55­‑69; Richard Roberts, “Text and Testimony in the
Tribunal de Première Instance, Dakar, during the Early Twentieth Century”, The Journal
of African History vol. 31, n.º 3 (1990): 447­‑463; Lorena Rizzo, “The Elephant Shooting:
Colonial Law and Indirect Rule in Kaoko, Northwestern Namibia, in the 1920s and
1930s,” Journal of African History 48, n.º 2 (2007): 245­‑266; Fernanda do Nascimento
Thomaz, “Casaco que se Despe pelas Costas: A Formação da Justiça Colonial e a (Re)ação
dos Africanos no Norte de Moçambique, 1894 – c. 1940” (Tese de doutoramento, Depar‑
tamento de História, Universidade Federal Fluminense, 2012).
32 Frederick Cooper and Randall Packard, org., International Development and the Social Sci‑
ences (Berkeley: University of California Press, 1997).
33 Sobre a importância do Instituto Rhodes Livingstone para a antropologia contemporânea,
ver: Lyn Schumaker, Africanizing Anthropology: Fieldwork, Network, and the Making of
Cultural Knowledge in Central Africa (Durham/Londres: Duke University Press, 2001).

31
INTRODUÇÃO

“concentrar na vida social ‘real’ na qual as normas e valores, fre‑


quentemente contraditórios entre si, seriam utilizados de acordo
com a racionalidade do agente social em situações sociais concre‑
tas”.34 Questionando as categorias estanques de análise dos con‑
tatos culturais, seus estudos abordaram as relações que os nativos
africanos estabeleceram com o mundo que os circundava não
como o abandono de um padrão normativo cultural para o ganho
de outro, ou como alguém que se encontrava “fora de lugar” por
não se basear em normas e padrões basilares. Suas obras privile‑
giaram a autonomia do indivíduo, legitimando suas ações a partir
de uma visão que abordava os valores que aquele sujeito encon‑
trava adequadamente à sua disposição. Essas pesquisas corrobo‑
ravam um posicionamento político em defesa de um cidadão
africano que poderia ser “tribal” e, ao mesmo tempo, participar
das políticas nacionais que passaram a emergir no pós­‑Segunda
Guerra Mundial.
No entanto, muitas das investigações que se desenvolveram nos
contextos pós­‑1945, especialmente aquelas que estiveram atreladas
aos recondicionamentos das políticas coloniais europeias sobre a
África, deram ênfase às noções de coesão social, estabilidade e, prin‑
cipalmente, a uma perspectiva do tradicional enquanto algo fixo e
imutável. Com isso, ignoravam o impacto das mudanças históricas
no continente, ocorridas desde, pelo menos, meados do século XIX,
trazidas pelo colonialismo e pelo capitalismo. Nesse sentido, traba‑
lharam com uma perspectiva das sociedades africanas como sendo
naturalmente “homeostáticas” e, quanto menos afetadas por mudan‑
ças, mais apropriadas para serem estudadas. A influência dessas
argumentações teve como impacto o negligenciamento das disputas
e relações de poder existentes dentro dessas sociedades e, principal‑
mente, na redefinição de uma versão menos pejorativa do estereó‑

34 Peter Fry, “Nas Redes Antropológicas da Escola de Manchester: Reminiscências de um


Trajeto Intelectual”, Iluminaras 12, n.º 27 (2011): 1­‑13. Sobre essa perspectiva, ver, também:
Lyn Schumaker, “The Director as Significant Other: Max Gluckman and Team Research
at the Rhodes­‑Livingstone Institute”, in Significant Others. Interpersonal and Professional
Commitments in Anthropology, ed. Richard Handler, 91­‑130 (Madison: The University of
Wisconsin Press, 2004).

32
MATHEUS SERVA PEREIRA

tipo dos africanos enquanto “definidos como pessoas, essencialmente,


rurais, fora de lugar nas cidades”.35
Pensados como indivíduos sem preparação para a vivência na
urbe, os indígenas que habitavam as cidades e transitavam entre
mundos distintos sofreriam com o que veio a ser convencionado
designar­‑se de “destribalização”. Segundo Rita­‑Ferreira, cientista
social e funcionário colonial português em Moçambique nos anos
1960, autor de um dos estudos mais pormenorizados sobre os “afri‑
canos de Lourenço Marques”, esse seria um fenômeno perceptível
nos subúrbios da capital moçambicana. O afrouxamento de laços
considerados tradicionais e o contato com um mundo que suposta‑
mente não lhes era compreensível, ocasionado pela presença dos
chamados indígenas no espaço urbano, seriam fatores geradores do
descontrole colonial em relação à população africana, sobretudo a
situada nos subúrbios, e das ações e práticas consideradas como
amorais e/ou criminosas perpetradas por essa população.36
No seu trabalho, Rita­‑Ferreira buscou entender, sobretudo, os
costumes e hábitos daqueles classificados como indígenas quando
integrados na sociedade de consumo capitalista existente em Lou‑
renço Marques e que compunham a parcela majoritária da população
citadina.37 Seu intuito era o de angariar dados passíveis de auxiliarem
na formulação de políticas públicas de cunho paternalista que garan‑
tissem a manutenção do controle colonial. Visavam solucionar as

35 Leroy Vail and Landeg White, “The Invention of ‘Oral Man’: Anthropology, Literary
Theory, and a Western Intellectual Tradition”, in Power and the Praise Poem: Southern Af‑
rican Voices in History, 1­‑39 (Charlottesville: University Press of Virginia, 1991), 13. No
original: “Africans were defined as essentially rural people, out of place in the cities”
[tradução livre].
36 António Rita­‑Ferreira, Os Africanos de Lourenço Marques Separata de Memórias do Instituto
de Investigação Científica de Moçambique, 93­‑491 (Lourenço Marques: I.I.C.M, 1967/1968).
37 Vale a pena ressaltar que após o fim do regime do indigenato, em 1962, ocorrido dentro
de um contexto crescente de transformações em Portugal e, principalmente, dentro das
próprias possessões coloniais portuguesas, as populações africanas deixaram de ser classi‑
ficadas enquanto indígenas ou assimiladas, passando a serem englobadas como cidadãos
portugueses. Por isso mesmo Rita­‑Ferreira, dentro de seu estudo, evita a utilização dos
termos coloniais jurídicos para designar a população negra de Lourenço Marques. No
entanto, apesar das mudanças legais, aparentemente pouco de concreto haveria de ser
mudado. Ver: Diogo Ramada Curto e Bernardo Pinto da Cruz, “Destribalização, Regedo‑
rias e Desenvolvimento Comunitário: Notas acerca do Pensamento Colonial Português
(1910­‑1965)”, Práticas da História 1, n.º 1 (2015): 113­‑172.

33
INTRODUÇÃO

péssimas condições de vida nos subúrbios, interpretadas na época


como potencializadoras para uma penetração dos ideais de indepen‑
dência. Sua pesquisa interpretou as ações dos “africanos de Lourenço
Marques” como um desvio em relação ao “regime tribal” que amea‑
çava a organização social em razão da “desintegração da estrutura
social e ao relaxamento do controle exercido pela comunidade e pela
família”.38 Os objetivos de Rita­‑Ferreira e as suas preocupações de
pesquisa não o deixaram ver o processo de reorganização de identi‑
dades e experiências existentes no sul de Moçambique a partir das
interpretações dos próprios agentes envolvidos nesse processo.39
Apesar da existência da obra de Rita­‑Ferreira, Portugal tardou
em patrocinar e produzir estudos sobre a mão de obra africana nas
cidades e, até recentemente, poucos haviam sido as pesquisas, prin‑
cipalmente historiográficas, que se debruçaram sobre a realidade
urbana na África lusófona.40 Essa lacuna vem sendo preenchida
progressivamente com o florescer de investigações que possuem
como problema central as cidades coloniais portuguesas no conti‑
nente. Como afirmam Isabel Castro Henrique e Miguel Pais Vieira,
por um lado, “a cidade [colonial] deve ser encarada como o espaço
preferencial onde se definem as formas de dominação colonial e os
meios e os métodos da sua aplicação”, por outro lado, “ela é também
o centro de inovação social, econômica, técnica, do alargamento das
redes relacionais e das relações civilizacionais”.41
Para os objetivos da introdução, de apresentação de questões
amplas que permeiam a obra, ainda cabem algumas palavras sobre
o campo historiográfico dedicado à análise da situação colonial e das
dinâmicas africanas, durante o início do século XX, ocorridas na
cidade de Lourenço Marques e no sul de Moçambique. Esses estu‑

38 Rita­‑Ferreira, “Os Africanos de Lourenço Marques,” 269.


39 Para uma interpretação da obra de Rita­‑Ferreira sobre Lourenço Marques, ver: Nuno Do‑
mingos, “A Desigualdade como Legado da Cidade Colonial: Racismo e Reprodução de Mão
de Obra em Lourenço Marques”, in Cidade e Império: Dinâmicas Coloniais e Reconfigurações
Pós­‑Coloniais, org. Nuno Domingos e Elsa Peralta, 59­‑112 (Lisboa: Edições 70, 2013).
40 Para um balanço, ver: Domingos e Peralta, “A Cidade e o Colonial”, in Cidade e Império:
Dinâmicas Coloniais e Reconfigurações Pós­‑Coloniais.
41 Isabel Castro Henriques e Miguel Pais Vieira, “Cidades em Angola: Construções Coloniais
e Reinvenções Africanas”, in Cidade e Império: Dinâmicas Coloniais e Reconfigurações Pós­
‑Coloniais, 8.

34
MATHEUS SERVA PEREIRA

dos, de maneira geral, tem privilegiado a análise das diferentes res‑


postas dos africanos aos processos de transformação impostos pela
efetiva presença portuguesa sobre o território moçambicano e os
percalços existentes nesse processo. É perceptível um enfoque nos
movimentos migratórios das populações sul moçambicanas para
regiões fronteiriças, como o Transvaal e a África do Sul, as conse‑
quências desses fluxos nas condições de trabalho e o desenvolvi‑
mento de uma política laboral pelo Estado português com o objetivo
de explorar a mão de obra nativa.42 Uma série de estudos sobre as
elites africanas letradas, especialmente as que habitaram Lourenço
Marques, foram e continuam a ser produzidos. Neste caso, a biblio‑
grafia procurou identificar as principais características desse grupo,
seus ideais e objetivos políticos, sua imprensa, perspetivas, formas
de sociabilidade e conflitos internos. Por terem adotado uma pos‑
tura de porta­‑vozes dos africanos não letrados e com críticas às
políticas coloniais, alguns estudos que dedicaram atenção a esses
sujeitos sociais tentaram encontrar nesse grupo a origem do nacio‑
nalismo moçambicano.43
Dois autores são intransponíveis para qualquer pessoa que
deseje realizar pesquisas sobre Lourenço Marques no início do

42 Os sistemas de exploração da mão de obra africana e a construção dos mecanismos do


trabalho forçado que serviram como meio para o enriquecimento da empresa colonial,
assim como a denúncia das atrocidades provocadas pelo sistema elaborado pelos portu‑
gueses para a exploração dessa mão de obra, é um tema recorrente da produção historio‑
gráfica sobre o colonialismo português em Moçambique. Ver: Patrick Harries, Work,
Culture, and Identity: Migrant Laborers in Mozambique and South Africa, c. 1860­‑1910
( Jonesburgo: Witwatersrand University Press, 1994). Para um exemplo recente dessa bib‑
liografia, ver: Eric Allina, Slavery by Any Other Name: African Life under Company Rule in
Colonial Mozambique (Charlottesville: University of Virginia Press, 2012). Os estudos
clássicos de José Capela também são importantes para as primeiras interpretações sobre o
domínio colonial português na região: José Capela, O Imposto de Palhota e a Introdução do
Modo de Produção Capitalista nas Colónias (Porto: Afrontamento, 1977).
43 José Moreira, Os Assimilados, João Albasini e as Eleições, 1900­‑1922 (Maputo: Arquivo His‑
tórico de Moçambique, 1997); Aurélio Rocha, Associativismo e Nativismo em Moçambique:
Contribuição para o Estudo das Origens do Nacionalismo Moçambicano (1900­‑1940) (Maputo:
Promédia, 2002); Olga Maria Lopes Serrão Iglésias Neves, “O Movimento Associativo
Africano em Moçambique: Tradição e Luta (1926­‑1962)”, Africanologia – Revista Lusófona
de Estudos Africanos 2, (2009): 179­‑193; Fernanda do Nascimento Thomaz, “Os ‘Filhos da
Terra’: Discurso e Resistência nas Relações Coloniais no Sul de Moçambique (1890­
‑1930)”. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
História, 2008.

35
INTRODUÇÃO

século XX: Jeanne Penvenne e Valdemir Zamparoni. De maneira


geral, ambos tendem suas análises para uma demonstração do
racismo e da exploração intrínsecos à empresa colonial portuguesa.
Dentre os vários trabalhos de Penvenne, seu livro African workers
and colonial racism. Mozambican strategies and struggles in Lourenço
Marques, 1877­‑1962 é uma obra essencial. Seu enfoque na análise
das relações de trabalho em Lourenço Marques estabelecidas entre
patrões, administração colonial portuguesa e trabalhadores africanos
durante o período de vigência das distinções jurídico­‑classificatórias
coloniais portuguesas, foi fundamental para a compreensão das
experiências da mão de obra africana e como sua exploração con‑
vergiu para a formação de uma classe trabalhadora com caracterís‑
ticas específicas.44
As palavras que atestam a importância da obra de Penvenne
podem ser repetidas a propósito da tese de doutoramento de Zam‑
paroni. Publicada, de forma reduzida, em 2007, no livro De escravo
a cozinheiro: colonialismo & racismo em Moçambique, sua tese, defen‑
dida em 1998, coroou uma pesquisa realizada por mais de vinte anos
e apresenta uma panorâmica do cenário de colonização portuguesa
no sul de Moçambique e, mais especificamente, em Lourenço Mar‑
ques.45 O objetivo de Zamparoni era o de evidenciar a construção
dos mecanismos portugueses de dominação colonial sobre as popu‑
lações africanas, interpretando como as estruturas do poder colonial
afetaram as vidas das populações africanas urbanas laurentinas.
Sua investigação privilegia um diálogo com a documentação
elaborada pelo grupo social que se autonomeava como “filhos da
terra” e que o colonialismo português designou como assimilados.
Estes são compreendidos como agentes de suas histórias. Porém,
os chamados indígenas são constantemente apresentados como
aqueles que sofrem com o poder desejoso de ser totalizante do colo‑

44 Jeanne Marie Penvenne, African Workers and Colonial Racism: Mozambican Strategies and
Struggles in Lourenço Marques, 1877­‑1962 (Portsmouth: Heinemann, 1995).
45 Valdemir Zamparoni, “Entre ‘Narros’ e ‘Mulungos’: Colonialismo e Paisagem Social em
Lourenço Marques, c.1890­‑ c.1940” (Tese de doutorado em História Social, Universidade
de São Paulo, 1998); Valdemir Zamparoni, De Escravo a Cozinheiro: Colonialismo e Racismo
em Moçambique (Salvador: EDUFBA, CEAO, 2007).

36
MATHEUS SERVA PEREIRA

nialismo, tendo pouco espaço de manobra para ação, a não ser


quando se posicionam de maneira explícita contra o colonialismo
ou quando estão inseridos nas pautas reivindicatórias dos “filhos da
terra”. Uma maneira admissível de interpretar essa visão de Zam‑
paroni está relacionada com a sua utilização das fontes, principal‑
mente a imprensa periódica laurentina. Ainda que sua obra esteja
recheada de uma riqueza arquivística inestimável, por vezes o autor
tende a escolher um caminho interpretativo para algumas dessas
fontes que merece ser problematizado, principalmente em sua forma
de enxergar a imprensa produzida pelas associações africanas em
Lourenço Marques. O risco desse tipo de proposta fica evidente se
colocarmos em questão os debates sobre o uso da imprensa como
documentação histórica. Como explicam Heloisa Cruz e Maria
Peixoto, o exercício do historiador em converter o jornal em fonte
histórica passa pela compreensão da “Imprensa como linguagem
constitutiva do social, que detém uma historicidade e peculiaridades
próprias, e requer ser trabalhada e compreendida como tal, desven‑
dando, a cada momento, as relações imprensa/sociedade, e os movi‑
mentos de constituição e instituição do social que esta relação
propõe”.46
Muitos foram os trabalhos historiográficos sobre o passado
moçambicano que balizaram suas pesquisas no uso da imprensa
como fonte privilegiada, sobretudo a partir dos jornais O Africano e
O Brado Africano. Valdemir Zamparoni, no seu esforço em analisar
as dinâmicas cotidianas da colonização em Lourenço Marques,
compreende a fonte periódica, por vezes, como uma retratação fide‑
digna da realidade. Alertando seus leitores de que sua escolha por
longas citações de trechos desses jornais não inibia sua própria aná‑
lise, o autor defende que ambos os jornais foram expressões “dire‑
tamente e de forma militante” dos “sentimentos da classe social que
representavam” e capazes de suprimir “a lacuna das fontes orais”, no
sentido de “trazerem à tona, por entre as linhas, a voz daqueles que

46 Heloisa de Faria Cruz e Maria do Rosário da Cunha Peixoto, “Na Oficina do Historiador:
Conversas sobre História e Imprensa”, Projeto História. História e Imprensa. Revista do
Programa de Pós­‑Graduados em História e do Departamento de História 35, (2007): 260.

37
INTRODUÇÃO

não tinham outro canal de expressão, daqueles que sequer domina‑


vam a língua portuguesa”. A interpretação metodológica de Zam‑
paroni posiciona­‑se numa leitura das fontes periódicas como aquelas
que deveriam ser privilegiadas para o encontro de um mundo exte‑
rior às palavras impressas. O autor deixa claro compreender os riscos
que correu ao reservar para esses jornais “amplos espaços, citando­‑os
abundantemente”.47
A crítica a esse tipo de crença projetada sobre os jornais como
documentação privilegiada para encontrar um mundo da realidade
oral, das verdadeiras experiências vividas pelos indivíduos, é com‑
partilhada por uma vasta gama de pensadores da contemporanei‑
dade. Ítalo Calvino, por exemplo, no seu desejo de estar em contato
com essa realidade oral vivida quotidianamente procurou­‑a nos
jornais. Porém, desiludido, afirmava que através deles só encontraria
“uma leitura do mundo feita por terceiros, ou então por uma
máquina anônima especializada em selecionar, entre a poeira infi‑
nita de eventos, aqueles que podem cair na malha da ‘notícia’”.48
A vasta obra de Zamparoni continua sendo uma das mais habi‑
lidosas em analisar os processos (correlacionados) entre a construção
dos aparatos coloniais e o racismo intrínseco desse processo. Como
panorama da vida social, sua investigação é formidável. Porém,
Zamparoni carrega sua análise da situação colonial a partir de uma
visão da imprensa demasiadamente capaz de espelhar o real e não
como uma das forças que estavam em disputa dentro de contextos
conflitivos da produção do real. Outra crítica importante a ser feita
sobre sua obra é a da diminuta atenção a agenciabilidade dos cha‑
mados indígenas nos processos de dominação muito bem analisados
por Zamparoni. Em seu artigo Copos e corpos: a disciplinarização do
prazer em terras coloniais, resultado de um dos capítulos de sua tese,
por exemplo, temos uma bela interpretação sobre as ações coloniais
portuguesas de cunho moralizante sobre os espaços urbanos do lazer

47 Zamparoni, “Entre “Narros” e “Mulungos”...”, 4.


48 Italo Calvino, “A Palavra Escrita e a Não­‑Escrita”, in Usos e Abusos da História Oral, org.
Janaína Amado e Marieta de Moraes Ferreira (Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006), 143.
Outro que dedicou especial atenção a essa questão foi Robert Darnton. Ver: Robert Darton,
O beijo de Lamourette. Mídia, cultura e revolução (São Paulo: Companhia das Letras, 2010).

38
MATHEUS SERVA PEREIRA

em Lourenço Marques. Porém, aspectos sobre as experiências das


mulheres que trabalhavam e viviam naqueles espaços são
praticamente inexplorados.49
Antes de passar para o próximo tópico desta introdução, quero
chamar a atenção para o livro recentemente publicado por António
Sopa. Ímpar em seu objetivo, o autor buscou analisar o cenário
musical produzido por africanos em Lourenço Marques ao longo
de todo o período colonial português. Sua obra segue uma tendên‑
cia historiográfica de buscar interpretar o emaranhado do mundo
urbano colonial na África durante o século XX e a emergência de
uma cultura popular que marcaria a vida dos africanos nos contex‑
tos citadinos.50 Merece destaque sua capacidade em congregar um
vasto corpo documental espalhado pelos arquivos localizados em
Maputo. No entanto, é necessário questionar como sua pesquisa
pouco problematiza conceitos­‑chave que o mesmo emprega para
refletir sobre a ideia de “popular” ou de “povo” e a relação destes
– e de sua própria escrita – com as pautas nacionalistas. Sua abor‑
dagem tende demasiado para aspectos descritivos­‑factuais, ficando,
por vezes, presa na busca por uma autenticidade moçambicana
supostamente existente nas músicas produzidas na periferia da
capital do país.51

Por agora, segue um mapa do livro, que está dividido em cinco


capítulos. Talvez a melhor metáfora não seja a cartográfica. Os capí‑
tulos funcionam quase como uma partitura; cada um deles pos‑
suindo um compasso, que carrega um andamento distinto a respeito
das questões que acabei de apresentar.

49 Valdemir Zamparoni. “Copos e Corpos: A Disciplinarização do Prazer em Terras Colo‑


niais”, Travessia, n.º 4/5 (2004): 119­‑137.
50 Nuno Domingos, “Cultura Popular Urbana e Configurações Imperiais”, in O Império Co‑
lonial em Questão (sécs. XIX­‑XX): Poderes, Saberes e Instituições, org. Miguel Bandeira Je‑
rónimo, 391­‑421 (Lisboa: Edições 70, 2012).
51 António Sopa, A Alegria é Uma Coisa Rara: Subsídios para a História da Música Popular
Urbana em Lourenço Marques (1920­‑1975) (Maputo: Marimbique, 2014).

39
INTRODUÇÃO

Seguindo algumas das inquietações apresentadas anteriormente,


o panorama, ou o que pode ser chamado de contexto, é compreen‑
dido no livro de maneira diferente do que aparece normalmente nas
obras sobre o sul de Moçambique. Adota­‑se o ponto de vista de que
o contexto só existe em relação com o micro, com as questões locais,
com as ações dos indivíduos e grupos, não cabendo ao primeiro o
papel único de emoldurar o segundo; compreende­‑se ainda a ideia
de estrutura a partir de relações de variadas escalas que promovem
construções de realidades distintas na medida em que as ações ques‑
tionam os contextos e os contextos pressionam as ações.
Dito isso, o que foi convencionalmente chamado de batuques
será aqui pensado dentro de uma perspectiva que entende os espaços
urbanos de Lourenço Marques e o sul de Moçambique enquanto
locais de interação capazes de revelar, ao mesmo tempo, a opressão
colonial e o dinamismo criativo das populações locais em resposta
a essa situação. A problemática da minha investigação é organizada
pensando o estar na cidade, os trânsitos entre seu subúrbio, as zonas
mineradoras sul­‑africanas e as regiões rurais de origem, como situa‑
ções sociais. As populações nativas sul moçambicanas são entendidas
como indivíduos e grupos em constante movimento, portando iden‑
tidades situacionais que vão sendo invocadas na medida que esta‑
belecem complexas interações dinâmicas, onde as ações individuais
não aparecem como mera ilustração de estruturas sociais, mas como
ações dentro de contextos que reforçam ao mesmo tempo em que
modificam esses contextos. Estudar situações concretas, com o
intuito de melhor compreender a intricada inserção social daqueles
classificados como indígenas com o colonialismo, é buscar com‑
preender as transformações de hábitos e costumes daqueles que se
deslocaram para Lourenço Marques, bem como suas experiências,
as interações entre si e com o poder colonial que se constituía, pau‑
tadas, uma parte por suas vivências anteriores, mas também pela
nova condição de trabalhadores inseridos nas dinâmicas coloniais.
No primeiro capítulo, com o título de “Algazarras ensurdece‑
doras”, analiso a dimensão e as dinâmicas dos batuques realizados
por uma gama de distintos indivíduos classificados, majoritaria‑
mente, como indígenas, na cidade de Lourenço Marques. Locali‑
zada no sul de Moçambique, Lourenço Marques tornou­‑se capital

40
MATHEUS SERVA PEREIRA

do colonialismo português na região durante a década de 1890,


tendo crescido aceleradamente nas três primeiras décadas do século
XX. Sua importância estratégica enquanto lugar de passagem de
trabalhadores e mercadorias atraiu uma população diversificada,
composta por pessoas de diferentes regiões: europeus de diversas
nações, indianos, chineses e, sobretudo, africanos que habitavam
áreas rurais ao redor da cidade ou áreas mais distantes localizadas
por todo o sul do rio Save. Neste capítulo, o principal objetivo é a
análise da presença de sons, músicas e danças na cidade, dando
ênfase à multiplicidade de maneiras pelas quais foram apresentadas
na documentação, algumas das práticas de repressão adotadas para
controlar a sua ocorrência, os principais locais em que aconteciam
dentro da urbe colonial, como os bairros e espaços privilegiados
pelos seus praticantes para se reunirem, quando eram realizados e
quem eram os participantes. Estudar esses “batuques urbanos” per‑
mitirá vislumbrar grupos subordinados enquanto agentes de suas
histórias, mesmo num contexto de construção de estruturas de
dominação que perpassariam por boa parte do século XX.52
A principal fonte utilizada é a imprensa periódica que circulou
em Lourenço Marques de finais do século XIX, sobretudo após a
virada para o século XX, até meados dos anos de 1940. A ascensão
meteórica de Lourenço Marques de região periférica da presença
portuguesa na costa oriental africana para capital do colonialismo
português veio acompanhada de um crescimento urbanístico que
trouxe consigo um florescimento no número de periódicos. Esse
processo permite ao historiador ter acesso a uma série de caracte‑
rísticas cotidianas da vivência de uma urbe colonial africana. Por um
lado, as notícias referentes aos batuques nos permitirão ter acesso à
visão que os produtores dessa imprensa possuíam a respeito dessas
práticas culturais e alguns dos mecanismos de exclusão das popula‑
ções que batucavam pela cidade. Por outro lado, as notícias que
foram publicadas nesses meios de comunicação nos ajudarão a obter

52 Para uma perspectiva de análise do espaço urbano africano enquanto local possível para se
interpretar a atuação dos subordinados em busca de formas de vida que terminavam por
pressionar as estruturas de dominação, ver: Frederick Cooper, ed., Struggle for the City:
Migrant Labor, Capital and the State in Urban Africa (Beverly Hills: Sage, 1983).

41
INTRODUÇÃO

informações a respeito de algumas de suas características, dos locais


onde ocorriam dentro da cidade e quem eram os seus principais
participantes. Ou seja, os batuques fora do controle colonial são
percebidos aqui enquanto uma manifestação barulhenta que
demonstra que a cidade colonial é mais do que um local propagador
da civilização.
Com o título “Construindo categorias, homogeneizando dife‑
renças, enquadrando pessoas e práticas”, o segundo capítulo tem
como objetivo analisar as tensões existentes entre a construção e a
produção de representações da maior parte da população da cidade.
Classificados pelo missionário e etnógrafo Henri Alexandre Junod,
como “homens degenerados e mulheres dissolutas”, essas pessoas
moveram­‑se pela cidade produzindo imbricados processos de res‑
significação e apropriação por meio do acionamento, dependendo
da situação social em que se encontravam, dos distintos poderes
constituídos. Esses poderes, especialmente aqueles que lidavam
diretamente com o trato cotidiano das questões dos indígenas, esti‑
veram relacionados com as elaborações de categorias classificatórias
que, do ponto de vista social e jurídico, visavam criar homogenei‑
zações e, por conseguinte, controlar as populações sob o domínio
português. O meu argumento é de que essa categorização realizada
pelos agentes coloniais portugueses sobre as populações originárias
do atual Moçambique e de suas práticas culturais não foi capaz de
dar conta da multiplicidade e da porosidade da vida daqueles que se
buscava compreender para dominar.
As sociedades do sul de Moçambique, na qual os portugueses
já haviam estabelecido contatos ao longo de muitos séculos, marca‑
das por formas organizacionais assentadas em determinados costu‑
mes, encontravam­‑se, no início do século XX, em processos de
despedaçamento. Melhor dizendo, as pressões coloniais levadas a
cabo pelas autoridades portuguesas na região causaram um processo
de reestruturação, onde o mundo desses sujeitos passou a ser recons‑
truído, entre outras coisas, nos próprios batuques. Era um universo
de tradições que estava sendo acossado por novas instituições regu‑
ladoras da vida social, que se esforçavam para legitimarem­‑se como
detentoras da única verdade – a civilização europeia –, em detri‑
mento de outras acreditadas por longo tempo na região. O mundo

42
MATHEUS SERVA PEREIRA

urbano era pensado como local detentor por excelência dessas ver‑
dades. A consolidação e a expansão de Lourenço Marques como
centro atrativo de pessoas e capitais coincidiram com o desmante‑
lamento de formas culturais pré­‑existentes e o alvorecer de uma
nova forma de vida que se desenvolvia naquele espaço citadino.
Nesse sentido, no capítulo busco compreender essas novas maneiras
de ser, que, trazidas à tona pelo colonialismo, também bagunçaram
o intuito organizativo de catalogação das populações locais e de suas
culturas.
A imprensa deixa de ser a fonte primordial, dando espaço para
o acervo de publicações existentes na Biblioteca Nacional de Por‑
tugal e para a vasta documentação do Arquivo Histórico de Moçam‑
bique. É por meio delas que percebo a construção de categorias
classificatórias homogeneizadoras das populações nativas do Sul de
Moçambique existente em obras de homens da colonização portu‑
guesa, como o político e militar Ayres d’Ornellas ou o administrador
colonial António Augusto Pereira Cabral. Por um lado, fica evi‑
dente que o linguajar colonial que unificava diferentes práticas musi‑
cais e dançantes nativas na palavra batuque era semelhante ao
processo racializante de homogeneização das diversidades popula‑
cionais na construção da figura do indígena. Nesse sentido, os pro‑
jetos coloniais portugueses em Moçambique promoveram
interpretações e ações que produziram formas de apresentação
designadas como batuques que foram incorporadas na retórica da
dominação. Por outro lado, a problematização dos conceitos colo‑
niais a respeito do “Outro” é complexificada com a compreensão de
que o próprio termo batuque foi mais um dos vocábulos usados para
descrever uma variedade de ações e práticas que sumariamente ter‑
minaram englobadas em uma única palavra. O destrinchar dessa
variedade de práticas revela traços de uma multifacetada experiência
dessas populações dominadas que, por meio de suas ações, produ‑
ziram incontáveis e inesperadas reinterpretações e ressignificações.
No terceiro capítulo, intitulado “Cosmopolitismo enevoado e a
criação de uma civilização das necessidades”, analiso o processo de
consolidação da urbe laurentina enquanto capital colonial de
Moçambique. As práticas dançantes e musicais durante os anos
iniciais de consolidação da presença portuguesa no sul de Moçam‑

43
INTRODUÇÃO

bique demonstram uma multiplicidade de realidades que não con‑


diziam necessariamente com os projetos coloniais civilizacionais.53
Nesse sentido, ao pensarmos a existência de muitas cidades dentro
de uma só, que travaram diálogos conflitantes constantes, o princi‑
pal objetivo será o de pensar como o exercício de construção de
Lourenço Marques enquanto exemplo propagador do projeto civi‑
lizacional colonial enfrentou outras formas de ocupar e viver naquele
espaço urbano e, nesse processo, construiu­‑se enquanto excelência
moderna do projeto colonial português.
Num primeiro momento, apresento a relação entre lógicas de
exploração da mão de obra, a construção de espaços de lazer na
cidade e projetos coloniais civilizacionais. Essas são questões que
conjuntamente podem ser entendidas como a elaboração de uma
“civilização das necessidades”. Para explorar essa concepção, enfa‑
tizo tanto as representações elaboradas a respeito da cidade de Lou‑
renço Marques, como dos locais de lazer que começaram a ser
construídos no final do século XIX e se consolidaram enquanto locais
de divertimento e de consumo cultural nas duas primeiras décadas
do século XX. Reconstruindo esses espaços (como os teatros, os
hotéis, os cinematógrafos, os bares, os quiosques, as lojas de roupas),
os novos serviços que passaram a ser oferecidos e produtos que
poderiam ser adquiridos, apontam para a construção de novas neces‑
sidades materiais e para uma pluralidade das transformações de
hábitos e costumes.
Ao mesmo tempo, busco demonstrar como a imprensa lauren‑
tina atuou como mais um agente histórico que compreendia a cidade
como um espaço que deveria ser moldado. Alguns exemplos de
textos publicados em diferentes seções desses jornais podem ajudar

53 Sobre os diferentes projetos coloniais portugueses e a noção de colonização enquanto


projeto civilizacional, ver: Miguel Bandeira Jerónimo, Livros Brancos, Almas Negras: A “Mis‑
são Civilizadora” do Colonialismo Português (c. 1870­‑1930) (Lisboa: Imprensa de Ciências
Sociais, 2009). O surgimento e/ou o crescimento de cidades na África durante o processo
de consolidação da presença europeia no continente pode encontrar paralelos interessante
que demonstram características em comum dos diferentes projetos coloniais e das respostas
africanas a esses projetos. Como exemplo, ver: Tsuneo Yoshikuni, African Urban Experience
in Colonial Zimbabwe: A Social History of Harare before 1925 (Harere, Zimbabwe: Weaver
Press, 2007), ou Terence Ranger, Bulawayo Burning: The Social History of a Southern African
City, 1893­‑1960 (Londres: James Currey, 2010).

44
MATHEUS SERVA PEREIRA

a entender de que maneira farei essa reconstrução. A Tribuna, por


exemplo, em novembro de 1907, informava que o proprietário de
um cinematógrafo, localizado no centro da cidade, havia encomen‑
dado, direto de Paris, “34 fitas coloridas de grandes efeitos cênicos”
e estava em negociações para que mensalmente fossem “expedidas
remessas das fitas que mais conquistaram o agrado e o aplauso do
público”.54 Dois anos depois, O Africano, que muito dependia dos
anúncios de sua seção de classificados para poder sobreviver,55 publi‑
cou, durante vários meses, a existência, em Lourenço Marques, do
“Chalet kiosque (quiosque da má língua) de Biagio Sorgentini”,
onde poderiam ser encontradas as bebidas das “melhores marcas,
leite fresco, sanduiches, tabacos, charutos, chá, café, chocolates”.
Não apenas os paladares poderiam ser ali aguçados, mas também o
sentido da audição, com a “boa música as 3.ª, 6.ª e domingos e
palestra de primeira ordem a todas as horas do dia e da noite”.56
A imprensa não apenas anunciou, mas também discutiu a
importância desses espaços. Em artigo de opinião publicado no
A Tribuna, em setembro de 1907, discordando da maneira como o
restante da imprensa caracterizava os bares de Lourenço Marques,
vulgarmente designados como “perigosos focos de desmoralização”,
o colunista afirmou que os mesmos cumpriam uma função pública
de utilidade social. Na questão dos bares, o que preocupava, majo‑
ritariamente, os colunistas dos jornais era uma suposta ausência de
locais de divertimento propícios para uma “conversa burguesa” que
não fosse apenas aqueles onde se vendiam bebidas alcóolicas.57
Nessa cidade em que determinados seguimentos lutavam para
que a “conversa burguesa” reinasse soberana, existiram desafios
concretos para a realização desse projeto. Uma série de encontros
e desencontros ocorreram na medida em que a dominação e a

54 A Tribuna, 26 de novembro de 1907. Biblioteca Nacional de Portugal (doravante BNP).


55 Ver: Matheus Serva Pereira, “‘Anúncios e Comunicados: 80 Réis por Linha’: Propaganda
e Cotidiano nas Páginas de O Africano (1909­‑1919)”, in Estudos Africanos: Múltiplas
Abordagens, org. Alexandre Vieira Ribeiro e Alexsander Lemos de Almeida Gebara, 73­‑97
(Niterói: Editora da UFF, 2013).
56 O Africano, 31 de julho de 1909. Esse mesmo anúncio pode ser encontrado em diversos
outros exemplares desse ano. World Newspaper Archive (doravante, WNA).
57 A Tribuna, 30 de setembro de 1907. BNP.

45
INTRODUÇÃO

expansão colonial, com o seu intento classificador e hierarquizante


das realidades socioculturais, expandiu seu domínio no continente
africano. O colonialismo português na cidade de Lourenço Mar‑
ques, considerada como centro exemplar e propagador desses obje‑
tivos no Moçambique colonial, encontrou dificuldades concretas
para a efetivação desse desígnio. As ações dos colonizadores não
foram homogêneas e muito menos recebidas de maneira passiva.
Diferentes reações, interpretações e ressignificações foram sendo
produzidas pelos povos colonizados na medida em que um sistema
mundial veio a ser implementado por europeus em sociedades com
lógicas culturais autônomas. O afloramento de múltiplas cidades
dentro de Lourenço Marques obrigou os adeptos da “conversa bur‑
guesa” a dialogar, mas também, por vezes, discutir aos berros com
outros grupos que a todo momento fugiam ao seu controle. Nesse
sentido, no capítulo quatro, “Forçando as frestas do poder colo‑
nial”, analiso a realidade criativa daqueles que não se enquadravam
dentro de um projeto pré­‑determinado de construção do espaço
urbano colonial africano. Usar uma determinada vestimenta ou não
é aqui compreendido como parte de um processo de transforma‑
ções criativas da ordem cultural de uma parcela da população cita‑
dina africana que insistia em andar com uma gama variada de
vestimentas – ou simplesmente sem vestimenta alguma – pelas ruas
laurentinas, burlando a obrigatoriedade, instituída por inúmeras
portarias ao longo do início do século XX, do uso de calças. Nos
registros realizados pela Secretaria dos Negócios Indígenas tam‑
bém encontro as averiguações a respeito das andanças de Albino
pelos subúrbios de Lourenço Marques ou as tentativas de controlar
as trabalhadoras indígenas nas cantinas,58 tornado possível analisar

58 Vale a pena frisar que a importância das cantinas, especialmente para a venda do vinho,
principal produto de exportação colonial português, vêm sendo objeto de análise da biblio‑
grafia. Infelizmente, a devastação produzida pelo consumo excessivo de álcool, muitas vezes
de péssima qualidade, ofuscou um caleidoscópio de experiências que transitaram ao redor
desses espaços de comércio e sociabilidade. Para exemplos dessa bibliografia, ver: José
Capela, O Vinho para o Preto: Notas e Textos sobre a Exportação do Vinho para África (Porto:
Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, 2009); José Capela, O Álcool na
Colonização do Sul do Save, 1860­‑1920 (Maputo: Edição de Autor, 1995); David Birmin‑
gham, “Vinho, Mulheres e Guerra,” in O Império Africano (Séculos XIX e XX), org. Valentim
Alexandre, 165­‑174 (Lisboa: Colibri e Instituto de História Contemporânea da Faculdade

46
MATHEUS SERVA PEREIRA

um mundo cheio de novos gingados que vinham sendo construídos


e que pouco se encaixavam nas categorias que se tentava
implementar.
Para além da exploração da mão de obra mercantil africana
perpetrada pelo poder colonial, é fundamental compreender aspectos
cotidianos da vivência das pessoas que ocupavam as cantinas, as
esquinas, as ruas, os quintais, os postos de trabalho, os subúrbios
em geral, num contínuo processo migratório entre suas terras de
origem, a cidade de Lourenço Marques e as zonas de exploração
econômica no Transvaal ou na África do Sul. O tipo de reivindica‑
ção predominantemente encontrada na documentação da Secretaria
dos Negócios Indígenas, instituição criada pelo poder colonial para
controlar os classificados como indígenas, é referente às reclamações
que dizem respeito aos maus tratos, abusos ou o não pagamento de
salários previamente acordados entre os indígenas e seus patrões, na
sua maioria colonos europeus. As diversas artimanhas adotadas
pelos empregadores para o descumprimento desses acordos e os
percalços enfrentados para que as reclamações fossem, ao menos,
ouvidas, demonstram aspectos cruéis intrínsecos ao sistema colonial.
Porém, essas vidas, definitivamente difíceis, não se resumiam à
opressão que sofriam. Suas condutas diversas confrontavam­‑se com
a construção das categorias sócio­‑jurídicas adotadas pelo colonia‑
lismo português. A análise das experiências e ações desses sujeitos
dentro de suas próprias expectativas permite perceber, nas entreli‑
nhas da documentação, como aquela secretria acabou sendo usada,
por vezes, como um espaço propício para a apresentação e o cum‑
primento de reivindicações.
Em conversas informais realizadas em Maputo, pessoas relem‑
bravam que durante suas infâncias, vividas nos anos 1950 e 1960,
administradores coloniais portugueses organizavam apresentações
do que vulgarmente chamavam de batuques para serem realizados
em frente às sedes do poder colonial. O objetivo desses espetáculos

de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa, 2008). Para uma abordagem a res‑
peito da importância das cantinas em outro contexto colonial africano, ver: Tshidiso Ma‑
loka, “Khomo Lia Oela: Canteens, Brothels and Labour Migrancy in Colonial Lesotho,
1900­‑1940”, The Journal of African History 38, n.º 1 (1997): 101­‑122.

47
INTRODUÇÃO

promovidos para um público específico, naquele contexto de deses‑


truturação da dominação colonial e crescimento das contestações
contrárias ao regime, seria o da demonstração de um controle pleno
sobre as populações locais e, também, uma adesão dessas populações
à autoridade portuguesa instituída.59 A escolha por esse tipo de
demonstrativo simbólico da dominação, nesses anos derradeiros da
presença do poder colonial português na região, não parece ter sido
ao acaso. A prática de promover, sobretudo para autoridades euro‑
peias, um “grande batuque” e a utilização desse momento em prol
de determinadas reivindicações foi algo disseminado tão rapida‑
mente quanto a própria presença da administração colonial portu‑
guesa pelo território do que é hoje Moçambique. No quinto e último
capítulo, chamado “Entre o subsídio e a subversão: apropriações,
negociações e resistências ao redor dos ‘batuques’ e das ‘danças nati‑
vas’”, produzo uma espécie de genealogia desse fenômeno. As prá‑
ticas socioculturais dos “batuques” e “danças nativas”, os processos
de espetacularização dessas para serem apresentadas para um público
específico e os repertórios de resistências acionados a partir de expe‑
riências e expectativas dos indígenas que engajaram­‑se em apresen‑
tações para um público branco/europeu, são analisadas como
momentos onde forças coloniais e populações nativas entravam em
conflito e elaboravam negociações.

59 Ainda são recentes as pesquisas que buscam associar aspectos das transformações culturais
vivenciadas pelas populações nativas nos anos 1950 e 1960 e os processos de independên‑
cias na África portuguesa. Para alguns exemplos de bibliografia, ver: Edward Alpers, “The
Role of Culture in the Liberation of Mozambique”, Ufahamu 12, n.º 3 (1983): 143­‑189;
Rui Laranjeiras, A Marrabenta: Sua Evolução e Estilização, 1950­‑2002 (Maputo: Minerva
Print, 2014); Eléusio dos Prazeres Viegas Filipe, “A Invenção de Uma Sociedade Luso‑
tropical na Era da Descolonização em África: Música e Espaços Culturais em Lourenço
Marques entre 1960­‑1974”, in Áfricas: Histórias, Identidades e Narrativas, org. Regiane
Augusto de Mattos, 151­‑182 (Rio de Janeiro: Editora Prismas, 2017); Eléusio dos Prazeres
Viegas Filipe, “Where Are the Mozambican Musicians?” Music, Marrabenta and National
Identity in Lourenço Marques, Mozambique, 1950­‑1975” (Tese de Doutoramento, Uni‑
versity of Minnesota, 2012). Para um exemplo dessa bibliografia voltada para o caso an‑
golano, ver: Marissa J. Moorman, Intonations: A Social History of Music and Nation in
Luanda, Angola, from 1945 to Recent Times (Athens: Ohio University Press, 2008).

48
CAPÍTULO 1

Algazarras ensurdecedoras

CANTANDO E DANÇANDO ATÉ ALTAS HORAS

Em 22 de dezembro de 1904, o jornal O Distrito: semanário de notí‑


cias, chamou a atenção para fatos ocorridos em uma localidade não
muito distante da cidade baixa, região central de Lourenço Marques.
Lançado em abril daquele ano, o periódico angariava para si impor‑
tância como um dos principais meios de comunicação no trato dos
reclames cotidianos da população da capital colonial. Nesse dia, a
reclamação não era nova. Os “moradores da avenida Afonso Albu‑
querque, próximo de Maxaquene” pediam visibilidade para serem
providenciadas medidas contra supostos “fatos anormais” de que
estariam sendo vítimas. Segundo o periódico, aqueles moradores
haviam procurado sua redação por conta das reuniões numas canti‑
nas que ali existiam, “onde, de dia [...] soldados das diversas unida‑
des” se juntavam e faziam “toda casta de obscuridades com pretos
que ali vivem em quartos”. O incomodo reinante não acontecia ape‑
nas durante a luz do dia, mas também à noite, nos eventos onde se
“enxameiam pretos, cantando e dançando até altas horas, fazendo
uma algazarra de ensurdecer”. Alguns vizinhos teriam solicitado aos
cantineiros que proibissem “os pretos de fazerem tal inferneira”.
Porém, sem resposta positiva, procuraram o jornal, que terminou
por cobrar ao responsável pela segurança na cidade, o sr. Comissário
de Polícia, a adoção de medidas que acabassem com aquela “série de
infâmias”.1

1 O Distrito: semanário independente, 22 de dezembro de 1904. BNP. Sempre que as grafias


de determinadas palavras apareceram nas fontes de maneira diferente de como são escritas
hoje em dia, optei por escrevê­‑las de acordo com a sua versão atual. Um exemplo é o do

49
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

Localizada no sul de Moçambique, Lourenço Marques, capital


do atual país independente e rebatizada de Maputo, teve como ponto
de partida a construção de um presídio, em 1782. Na primeira metade
do século XIX, para o estabelecimento da pequena malha urbana con‑
tribuíram os primeiros colonos portugueses e uma comunidade pro‑
veniente de Damão e Diu. Nesse mesmo período, provavelmente por
conta de sua privilegiada localização geográfica, desenvolveu­‑se o
comércio de escravos para o Brasil.2 Segundo Nuno Domingos, em
1850 Lourenço Marques possuía 600 habitantes. O poder português
estava confinado ao litoral e, para manter­‑se, precisou enfrentar os
reinos locais e a esquadra inglesa antitráfico de escravos.3 Durante este
período, Lourenço Marques possuía diminuto valor político e econô‑
mico para a administração colonial portuguesa em Moçambique.4
Na segunda metade do século XIX, esse cenário transformou­‑se
radicalmente. A princípio uma zona relativamente periférica, Lou‑
renço Marques paulatinamente ganhou importância. A descoberta de
jazidas de ouro no Transval (atual África do Sul), na década de 1870,
tornou a região um importante mercado para a aquisição de mão de
obra e de escoamento da indústria mineradora. O crescimento econô‑
mico da região, somado às disputas europeias por zonas de controle na
África, influenciaram a elevação de Lourenço Marques à categoria de
vila, em 1876. No ano seguinte, chegava à vila uma expedição de obras
públicas, com o objetivo de drenar o pântano que a circundava e pre‑
parar o terreno para a construção de uma estrutura urbana moderna.
Na década de 1880, Lourenço Marques ganhou o título de cidade.5

bairro de Maxaquene. Originalmente, o jornal a grafou com “ch” e não com “x”. Quando
a diferença na grafia fizer alguma diferença no sentido que a fonte emprega a palavra, será
evidenciado no corpo do texto.
2 Ver: José Capela, O Tráfico de Escravos nos Portos de Moçambique, 1733­‑1904 (Porto: Afron‑
tamentos, 2002). Ou José Capela, Dicionário de Negreiros em Moçambique, 1750­‑1897
(Porto: Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, 2007).
3 Nuno Domingos, Futebol e Colonialismo: Corpo e Cultura Popular em Moçambique (Lisboa:
Imprensa de Ciências Sociais, 2012), 59.
4 Valdemir Zamparoni, De Escravo a Cozinheiro: Colonialismo e Racismo em Moçambique
(Salvador: EDUFBA, CEAO: 2007).
5 Aurélio Rocha, Associativismo e Nativismo em Moçambique: Contribuição para o Estudo das
Origens do Nacionalismo Moçambicano (1900­‑1940) (Maputo: Promédia, 2002); Nuno Do‑
mingos, “Urban Football Narratives and the Colonial Process in Lourenço Marques”, The
International Journal of the History of Sport 28, n.º15 (2011): 2159­‑2175.

50
MATHEUS SERVA PEREIRA

Ao longo da década de 1890, Lourenço Marques continuou


crescendo e manteve sua importância. Com o processo de con‑
quista efetiva do território na região sul de Moçambique, promo‑
vido pelos portugueses no último quartel do século XIX, e a
definição de fronteiras após 1891, a cidade consolidou­‑se como
um dos eixos da economia regional impulsionada pela precoce
industrialização sul­‑africana, tornando­‑se a capital de Moçambi‑
que.6 O processo de exploração das minas e da produção de açúcar
na África do Sul estiveram relacionados com a crescente necessi‑
dade de escoamento da produção através do mar, sendo o porto de
Lourenço Marques local estratégico. Concomitantemente, criou­
‑se uma demanda crescente de mão de obra moçambicana para as
zonas produtoras de açúcar e, principalmente, mineradoras. Ambos
foram fatores impulsionadores do crescente interesse de Portugal
pela região.7

6 Sobre a relação que Portugal estabeleceu com os reinos localizados no sul de Moçambique
ao longo do século XIX, ver: Gabriela Aparecida dos Santos, Reino de Gaza: O Desafio
Português na Ocupação do Sul de Moçambique (1821­‑1897) (São Paulo: Alameda, 2010).
Existe uma indefinição com relação as datas sobre a elevação de Lourenço Marques a
capital da província. Na bibliografia existente é possível encontrar datas diferentes para a
sua transformação em capital oficial da colônia portuguesa de Moçambique. Por exemplo,
segundo Nuno Domingos, isso teria ocorrido em 1897. Ver: Nuno Domingos. “Desporto
Moderno e Situações Coloniais: O Caso do Futebol em Lourenço Marques”, in Mais do
que Um Jogo: O Esporte e o Continente Africano, org. Vitor Andrade de Melo, Marcelo Bi‑
ttencourt e Augusto Nascimento (Rio de Janeiro: Apicuri, 2010), 214. Enquanto que para
Malyn Newitt teria sido em 1902. Ver: Malyn Newitt, História de Moçambique (Mem­
‑Martins: Publicações Europa­‑América, 1997), 340. Já para Valdemir Zamparoni, isso teria
ocorrido em 1893. Valdemir Zamparoni. “A Imprensa Negra em Moçambique: A Traje‑
tória de ‘O Africano’ – 1908­‑1920”, África: Revista do Centro de Estudos Africanos 11,
n.º 1 (1988): 73­‑86. Apesar da diferença na data, a argumentação desses autores sobre a
mudança da capital da Ilha de Moçambique para a cidade de Lourenço Marques está
relacionada aos rumos pelos quais a colônia e a colonização portuguesa na região se diri‑
giam e minhas argumentações – assim como a desses autores – não perdem o seu sentido
por conta dessa variação. No entanto, ainda cabe um questionamento a respeito dessa di‑
ferença. A minha hipótese é de que isso ocorra por conta do lento processo de transposição
da máquina burocrática da Ilha de Moçambique para Lourenço Marques e dos consequen‑
tes conflitos de interesses ocorridos por conta desse processo produzidos pelo deslocamento
da região de interesse dentro dos agentes que atuavam na administração colonial. Ver, por
exemplo: Arquivo Histórico Ultramarino (doravante AHU), Direção Geral do Ultramar
(doravante DGU), 1.ª Repartição, Caixa 1181, Registro de Correspondência (1908­‑1911);
ou AHU, DGU, 1.ª Repartição, 2.ª Seção, Caixa Sem Número, Correspondência
(1903­‑1904).
7 Ver: René Pélissier, História de Moçambique: Formação e Oposição 1854­‑1918, Volume I­‑II
(Lisboa: Editorial Estampa, 2000).

51
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

Nas obras de Alexandre Lobato, um dos primeiros autores a se


debruçar na elaboração de uma história da formação da cidade,
publicadas majoritariamente em finais dos anos 1940, é possível
encontrar informações que, dadas as características descritivas de
seus trabalhos, têm sido usadas com frequência por pesquisadores
da história colonial moçambicana.8 Entretanto, seus estudos adota‑
ram como eixo discursivo as ações portuguesas para a consolidação
de sua presença na região e um esforço sistemático para incorporar
Moçambique como parte de uma nação lusitana intercontinental.
Escrevendo num contexto pós­‑1945, quando avançavam as pautas
nacionalistas africanas e o desmantelamento dos Impérios coloniais
europeus no continente, o autor, adotando uma interpretação que
se tornaria o principal argumento de Portugal a favor da manuten‑
ção de sua dominação de territórios africanos, em História da Fun‑
dação de Lourenço Marques, afirma:

A defesa contra a cobiça estrangeira, em toda a parte, tem sido a


preocupação mais dolorosa da Metrópole, e é por isso mesmo
que Portugal não pode deixar de considerar as Colônias como
seus prolongamentos naturais, em si integrados. Na orientação
política de Portugal não se consideram – e nunca se consideraram
– separadamente as Colônias; a Nação é um bloco político.9

Entendendo a cidade de Lourenço Marques como a “cidade dos


brancos”,10 para Lobato aquela deveria ser estudada a partir da pers‑
pectiva dos “brancos”, tidos como os habitantes por excelência do

8 Ver: Aurélio Rocha, Associativismo e Nativismo em Moçambique: Contribuição para o Estudo


das Origens do Nacionalismo Moçambicano (1900­‑1940), especialmente o capítulo II: “Lou‑
renço Marques: Evolução Histórica e Configuração Política”. Este não é o único exemplo
bibliográfico que reproduz informações apresentadas por Alexandre Lobato. O principal
problema desse tipo de utilização da obra de Lobato encontra­‑se na sua apropriação como
fonte de informação fidedigna sobre a realidade urbana colonial, sem a devida análise de
que suas descrições revelam uma leitura tendencialmente favorável a presença colonial
portuguesa na região.
9 Alexandre Lobato, História da Fundação de Lourenço Marques (Lisboa: Edições da Revista
Lusitânia, 1948), XIV.
10 Alexandre Lobato, Lourenço Marques, Xilunguíne: Biografia da Cidade (Lisboa: Agência
Geral do Ultramar, 1970).

52
MATHEUS SERVA PEREIRA

espaço urbano. Suas conclusões eurocêntricas seguiam uma pers‑


pectiva cronológica para a elaboração de um estudo da cidade que
deveria começar no “descobrimento, continuar pelas viagens anuais
[...], prosseguir com a história dos estrangeiros e tentativas nacionais
para se evitar a perda da baía [...] e entrar então na história propria‑
mente portuguesa de ocupação definitiva”.11
No que diz respeito ao processo de construção da cidade
enquanto uma urbe moderna, diversas pesquisas têm demonstrado
como esse fenômeno ocorreu por meio da elaboração de espaços
para a vivência de homens brancos/europeus e a partir de um con‑
tínuo procedimento rumo a uma segregação espacial de grupos
sociais e raciais considerados distintos. Durante a vigência do
período colonial, na capital moçambicana existiria, por um lado, o
seu centro marcadamente europeu. Por outro lado, o subúrbio afri‑
cano, no qual seus habitantes transitavam entre as categorizações
coloniais das populações africanas como assimiladas e/ou indíge‑
nas.12 A ênfase bibliográfica recorrente é de que cada um desses
espaços possuiria suas próprias características e pouco dialogariam
entre si, para além daqueles momentos expressivos das lógicas da
exploração colonial que exerciam o seu poder com o objetivo de
manutenção daquela separação.13
No entanto, a notícia que abre o capítulo coloca algumas ques‑
tões para essas interpretações, apresentando­‑nos uma não lineari‑
dade de um processo histórico que terminou por consolidar o apelido
de Lourenço Marques como Xi­‑lunguíne, ou seja, a cidade dos bran‑
cos. Baseando­‑se em José Capela, Nuno Domingos, por exemplo,
afirma que, em 1891, as populações locais, o que O Distrito chamou
simplesmente como “pretos”, teriam sido retiradas da zona central

11 Alexandre Lobato, História do Presídio de Lourenço Marques, Vol 1, 1782­‑1786 (Lisboa:


Junta de Investigação do Ultramar, 1949), XI.
12 A distinção jurídica das populações nativas africanas dentro do corpo legal colonial por‑
tuguês serão melhor exploradas ao longo do livro.
13 Para alguns exemplos, ver: Jeanne Marie Penvenne, Trabalhadores de Lourenço Marques
(1870­‑1974) (Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique, 1993); Jeanne Marie Penven‑
ne, African Workers and Colonial Racism: Mozambican Strategies and Struggles in Lourenço
Marques, 1877­‑1962 (Portsmouth: Heinemann, 1995); Rocha, Associativismo e Nativismo
em Moçambique: Contribuição para o Estudo das Origens do Nacionalismo Moçambicano
(1900­‑1940); Zamparoni, De Escravo a Cozinheiro; Domingos, Futebol e Colonialismo.

53
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

de Maxaquene para bairros mais distantes, como Munhuana,


Hulene e Chamanculo.14 Os reclames publicados em 1904 não colo‑
cam necessariamente em xeque os deslocamentos forçados de mora‑
dias realizados em períodos anteriores. Porém, evidencia que,
provavelmente, nem todos os “pretos” saíram de Maxaquene ou que,
pelo menos, posteriormente a esse primeiro processo de expulsão,
alguns voltaram a ocupar essa zona da cidade, o que ocasionou con‑
flitos. Esses “pretos” traziam consigo uma série de práticas que não
condiziam com a maneira de se viver numa urbe de acordo com os
preceitos dos novos moradores do bairro. Nesse sentido, antes de
questionar a existência desses espaços separados que, efetivamente,
se consolidaram a partir de meados dos anos 1920/1930, pretendo
analisar a ocorrência dos “batuques” em Lourenço Marques com o
objetivo de demonstrar algumas das formas estrepitosas que seus
praticantes encontraram para expressar outras maneiras de ocupação
e usufruto da cidade, revelando aspectos que, naquele período, ainda
fugiam ao controle colonial. Ao mesmo tempo, serão nas respostas
a essas supostas algazarras ensurdecedoras que posso perceber algu‑
mas das construções de ferramentas que terminariam por silenciar
aquela polifonia de sons, corpos e vozes.

BATUQUES NA CIDADE

Retorno ao reclame feito pel’O Distrito, no final de 1904. O jor‑


nal insistiu em chamar aquelas reuniões noturnas, com muita can‑
toria e dança, de “fatos anormais”. Essa caracterização dá a entender
que as ações dos “pretos” fogiam ao padrão considerado correto para
se agir dentro do meio urbano, que escaparia à ordem habitual das
coisas. Ao mesmo tempo, a “anormalidade” induz a uma leitura
daquilo como uma ocorrência incomum aos arredores das principais
avenidas e ruas do bairro de Maxaquene. No entanto, alguns anos
antes, outro jornal que circulou por Lourenço Marques nessa pri‑
meira década do século XX, já havia chamado a atenção para esse

14 Domingos, Futebol e Colonialismo, 59.

54
MATHEUS SERVA PEREIRA

tipo de evento. Afinal, os batuques em Maxaquene não eram tão


raros assim. No dia 03 de abril de 1901, o jornal O Português, que
possuía um subtítulo pomposo de Semanário independente, noticioso,
literário e comercial – órgão dos interesses das colónias portuguesas,
levantou uma bandeira, para quem pudesse competir, muito seme‑
lhante àquela erguida em 1904.
Segundo o periódico, apesar das proibições, não existiriam
dúvidas sobre a realização constante de “batuques cafreais [...], não
só na cidade alta, como na baixa”, o coração nervoso do perímetro
cimentado e aquele considerado como mais civilizado da cidade.
O autor do texto argumentou, acusando as autoridades de “consen‑
timento tácito” e “indiferentismo inaudito”, de que não era preciso
ir muito longe para se presenciar os “batuques de pretos” que ocor‑
riam em “qualquer cantina da cidade baixa”. Porém, quem mais
sofreria com os “batuques e toques cafreais desta ordem” seriam os
habitantes de Maxaquene, banhados com aqueles sons “de dia, de
noite e de toda hora”.15
No periódico afirmou­‑se que, apesar de “terem pago renda,
contribuições”, os vizinhos das cantinas sofriam um duplo inco‑
modo com os batuques formalmente proibidos na cidade. Esses
estariam sendo afrontados no que consideravam ser os bons cos‑
tumes. Eram prejudicados no seu momento de descanso, após as
“fadigas durante o dia”. Novamente, os mais incomodados com
aquilo eram os moradores de Maxaquene, que tinham seus “negó‑
cios a tratar na cidade baixa” e não conseguiriam dormir de noite,
não podendo mais “suportar semelhante pouca vergonha dos tais
infernais batuques cafreais, que ali se repetem a todos os
estantes”.16
Para os jornais da primeira década do século XX, a ocorrência
desses “espetáculos” em Lourenço Marques era considerada esta‑
pafúrdia dentro dos limites da cidade, causando embaraços para o
viver cotidiano de alguns de seus habitantes, principalmente aqueles

15 O Português: Semanário Independente, Noticioso, Literário e Comercial – Órgão dos Interesses


das Colónias Portuguesas, 3 de abril de 1901. BNP.
16 O Português, 3 de abril de 1901.

55
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

que não compartilhavam da relevância daquelas práticas sonoras


para suas vidas. Assim como O Distrito havia solicitado em 1904,
O Português, em 1901, também pediu “providências energéticas”
contra os fatos que havia descrito. A solução defendida para aquele
tipo de descabido contra a ordem que se tentava construir no perí‑
metro urbano era o da expulsão “para o mato onde não incomode
ninguém” daqueles que desejavam “fazer batuque”.17

Mapa 1. “Lourenço Marques, 1903”. O mapa, elaborado em 1903, foi publicado em Carlos
Santos Reis, A População de Lourenço Marques em 1894 (um censo inédito) (Lisboa: Instituto
Nacional de Estatística, Publicações do Centro de Estudos Demográficos, 1973). As marcações
indicam os possíveis locais de alguns dos batuques analisados ao longo do capítulo.

O crescimento acelerado da cidade, ao longo da primeira metade


do século XX, não veio acompanhado por uma representação gráfica
que incorporasse os bairros suburbanos onde residiam a maioria
esmagadora da mão de obra existente e classificada como indígena.
O silenciamento dessa presença restringe as possibilidades de iden‑
tificação com precisão de algumas zonas suburbanas constantemente

17 O Português, 3 de abril de 1901.

56
MATHEUS SERVA PEREIRA

referenciadas pela imprensa, como a Munhuana. Ainda assim, é


possível localizar alguns pontos que correspondem a localizações
aproximadas que os jornais identificaram como sítios de ocorrência
dos chamados batuques. No mapa, o círculo vermelho corresponde,
aproximadamente, ao local dos reclames dos batuques nas cantinas
de Maxaquene. O sublinhado vermelho é um realce da localização
da Avenida Francisco Costa, que o jornal O Português, em 1901,
identificou como da ocorrência de “infernais batuques”. O círculo
verde dá a localização aproximada da estrada da Zixaxa, onde “rapa‑
rigas de Maxaquene” se apresentaram em 1912. A estrada ligava o
perímetro urbano da cidade às zonas suburbanas de Xipamanine,
Munhuana e Mafalala. A marca a azul indica a presumível locali‑
zação da estrada de Anguane, onde, em janeiro de 1913, ocorreram
batuques apresentados por “belas raparigas dos arredores”. Por
último, o círculo preto é referente a reclamação publicada pelo Lou‑
renço Marques Guardian de batuques que ocorriam em frente a algu‑
mas cantinas, em 1914.
A partir desses exemplos posso traçar determinadas caracterís‑
ticas importantes sobre a ocorrência daquilo que convencionou­‑se
ser chamado de batuque pelo léxico gramatical português, das vivên‑
cias cotidiana em Lourenço Marques e das representações das prá‑
ticas culturais das populações nativas africanas naquele espaço
urbano. Contudo, para melhor compreender a configuração socio‑
cultural laurentina nesse período, é importante analisar, primeira‑
mente, a própria imprensa que era publicada na cidade. A cobertura
periódica para aquelas práticas que varavam noites tendeu para uma
adjetivação quase sempre pejorativa e, sobretudo, racializante, das
cantorias, danças e seus participantes/praticantes. Aqueles que se
encontravam nos batuques foram constantemente categorizados
como os “pretos” ou os “cafreais” e os espetáculos como “infernais”,
infames, dignos de protesto. As atribuições de valores pouco falam
a respeito dessas pessoas ou das características das práticas musicais,
mas informam sobre o meio social no qual foram produzidas as
informações. Perceber essa fonte, riquíssima para aquele contexto,
como mais um dos espaços em que os embates ao redor dos proces‑
sos de construção do mundo colonial, é fundamental para escapar
de interpretações sobre a imprensa laurentina como as realizadas

57
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

pelo historiador Valdemir Zamparoni.18 Afastando­‑me de uma


naturalização dos textos impressos como espelhos capazes de refletir
imagens concretas do real, o objetivo do próximo tópico é o de
localizar essas fontes como um ambiente de embate, que registrou,
ao mesmo tempo em que inferiu, valores e projetos.

As letras impressas periódicas, os batuques


e seus participantes/praticantes

A imprensa periódica em Moçambique surgiu por incentivo do


governo metropolitano português. O primeiro jornal publicado data
de 1854. Intitulado Boletim do Governo de Moçambique, sua vida,
obviamente não homogênea, foi longa, tendo perdurado até à inde‑
pendência, em 1975. Apesar de possuir seções dedicadas a notícias
gerais, sua vocação era de cunho oficial e apresentava­‑se como a
publicação oficiosa da metrópole. A tipografia para sua impressão
foi instalada na então capital, a Ilha de Moçambique, funcionando
também para impressos particulares. O Boletim reinou sozinho no
meio periodista moçambicano até a década de 1870, quando apare‑
ceram jornais particulares em outras cidades, como Quelimane. Para
Lourenço Marques, o primeiro jornal é datado de 1888. A cidade
rapidamente presenciou o surgimento de títulos, especialmente após
a virada do século XIX para o xx. O próprio Boletim, a partir de 1898,
transferiu sua tipografia para Lourenço Marques. O desenvolvi‑
mento da imprensa na cidade é um dos indicativos do crescimento
de sua importância frente à administração colonial portuguesa.19
A partir da leitura dos principais jornais publicados na capital
colonial portuguesa em Moçambique, durante as quatro primeiras
décadas do século XX, é possível adiantar algumas hipóteses, sejam
sobre aspectos tipográficos, dos grupos sociais que aquela imprensa

18 Para uma crítica pormenorizada do uso da imprensa como fonte histórica por Valdemir
Zamparoni, ver a introdução do livro.
19 Essa breve narrativa sobre o surgimento da imprensa em Moçambique é baseada no tra‑
balho de síntese desenvolvido por Ilídio Rocha. Ver: Ilídio Rocha, A Imprensa de Moçam‑
bique: História e Catálogo (1854­‑1975) (Lisboa: Edição Livros do Brasil, 2000).

58
MATHEUS SERVA PEREIRA

majoritariamente representava ou das temáticas predominantes.20


Também encontro em suas páginas indicações das dificuldades
enfrentadas pelos homens de letras que publicavam nos primeiros
periódicos existentes em Lourenço Marques. Infelizmente, jornais
como o Heraldo e O Chocarreiro não estão completos nos arquivos.
A Biblioteca Nacional de Portugal ou o Arquivo Histórico de
Moçambique possuem apenas alguns exemplares avulsos. Ainda
assim, o que fica evidente ao ler esses poucos volumes é que a tira‑
gem dos mesmos era pequena e, provavelmente, tiveram um curto
período de vida. O Distrito e A Tribuna, por outro lado, foram jor‑
nais que perduram por mais tempo. A existência quase que completa
de suas tiragens em acervos arquivísticos pode ser um indicativo de
suas importâncias. Jornais como o Lourenço Marques Guardian,
O Português e O Progresso são, provavelmente, os exemplos mais
bem­‑sucedidos das primeiras décadas do século XX.21

20 De maneira geral, a historiografia para esse período enfocou a utilização da imprensa como
fonte, não como objeto de pesquisa, analisando, sobretudo, os textos publicados pelos
africanos “filhos da terra” – ou assimilados, segundo o colonialismo português. Um exemplo
bibliográfico que buscou analisar os periódicos como objeto de pesquisa, que, no entanto,
mistura relatos memorialísticos com algumas tímidas abordagens históricas, pode ser en‑
contrado em: Fátima Ribeiro e António Sopa, orgs., 140 Anos de Imprensa em Moçambique:
Estudos e Relato (Maputo: Associação Moçambicana de Língua Portuguesa, 1996). Na
presente análise são usados, principalmente, os seguintes jornais: O Português, O Progresso,
O Distrito, A Tribuna, Lourenço Marques Guardian, Heraldo, O Chocarreiro, O Africano e
O Brado Africano.
21 A pesquisa para encontrar esses jornais nos arquivos nem sempre foi fácil. As coleções que
constam na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), quase todas microfilmadas e em bom
estado de conservação, nem sempre estão completas. Busquei, por isso, colmatar lacunas
dessa documentação e outros títulos que não constam do acervo da BNP, no Arquivo
Histórico de Moçambique. Infelizmente, o prédio em que estão armazenados os jornais
da primeira metade do século XX que circularam em Moçambique, localizado na Avenida
Felipe Samuel Magaia e originalmente sede do arquivo, encontra­‑se praticamente aban‑
donado, quando da minha pesquisa no segundo semestre de 2014. Naquele momento,
entrar no prédio só foi possível após a autorização do secretariado do arquivo e acompa‑
nhado por um de seus funcionários. O interior do edifício está sem luz, água, com infiltra‑
ções, baratas, ratos e pombos. Boa parte dos documentos que lá se encontram está espalhada
em mesas e cadeiras pelas antigas salas de consulta, amontoados em estantes ou, simples‑
mente, jogados no chão. As antigas salas de leitura e consulta do arquivo, com pilhas de
documentação, foram usadas por mim como locais de consulta, pois possuem janelas vol‑
tadas para a rua, permitindo que durante o dia pudesse realizar o trabalho de coleta da
documentação. Os funcionários e funcionárias que me acompanharam na busca por essas
fontes fazem o que podem, dentro das limitações impostas pela situação, para preservar a
memória histórica moçambicana. Com a ajuda deles consegui localizar algumas pastas
contendo coletâneas de edições de jornais do período histórico aqui analisado. O historia‑

59
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

O Lourenço Marques Guardian (1905­‑1952) foi fundado por um


jornalista inglês chamado Arthur William Bayly, que havia se radi‑
cado inicialmente na República Bôer do Transval e migrado para
Lourenço Marques em consequência da guerra Anglo­‑Bôer (1899­
‑1902). Publicado em português e inglês, representando de maneira
bastante direta os interesses das camadas europeias da cidade, espe‑
cialmente de uma crescente população de origem inglesa, é um
exemplo da relação íntima do sul de Moçambique com as colônias
vizinhas inglesas.22
A preocupação portuguesa com o que chamavam de “olhar
estrangeiro” sobre suas ações coloniais na África, considerado uma
ameaça à legitimidade da presença e da posse portuguesa sobre seus
territórios no continente, foi um tema recorrente na metrópole e
também internamente nas coloniais. Para o caso de Lourenço Mar‑
ques durante o final do século XIX e início do século XX, os interesses
ingleses de controle sobre a região eram entendidos como uma
ameaça concreta e constante.23 O jornal O Português, surgido em
outubro de 1900, sofreu com essa espécie de paranoia. Seu nome,
que remetia a um óbvio apelo aos interesses portugueses na região,
não foi suficiente para fazê­‑lo escapar das garras da autoridade colo‑
nial, sendo fechado sumariamente pelo administrador do conselho
de Lourenço Marques, em agosto de 1901, após acusações de atos
que desmoralizavam a autoridade portuguesa, que supostamente
auxiliariam interesses ingleses.24 Nas palavras de seus redatores, o
jornal sofreu um “atentado contra a liberdade de imprensa e pro‑
priedade alheia”, por conta de uma postura de “violência e ignorân‑
cia do administrador do conselho”.25
No final de janeiro de 1902, na mesma tipografia onde era
impresso O Português, e com o mesmo editor chefe, surgiu O Pro‑

dor António Sopa também me ajudou nesse trabalho.


22 Ver: Ilídio Rocha, A Imprensa de Moçambique, 323.
23 Nesse sentido, ver: Maria Emília Madeira Santos, “Ultimatum, Espaços Coloniais e For‑
mações Políticas Africanas”, África. Revista do CEA – USP, n.º 16 ­‑17 (1993­‑1994):
67­‑99.
24 Ver: AHU, DGU, Processo sobre a apreensão do jornal O Português, 1.ª Repartição, 1.ª
Seção, Caixa 1322, Correspondência, 1902.
25 O Português, 28 de agosto de 1901. BNP.

60
MATHEUS SERVA PEREIRA

gresso de Lourenço Marques: Semanário independente, noticioso, literá‑


rio e comercial – órgão dos interesses das colónias portuguesas, que
perdurou entre 1902 e 1908. Na primeira publicação d’O Progresso
fica evidente que a mudança de nome não significou uma mudança
imediata de postura com relação à linha editorial do jornal anterior.
Tal continuidade pode ser atestada com a decisão de enviar edições
do novo jornal para os leitores que já haviam pago a assinatura d’O
Português, quando o mesmo foi empastelado pelo governo.26
Esse não parece ter sido o único caso de mudança de nome sem,
necessariamente, uma transformação na linha editorial ou nos pro‑
dutores daquelas informações. Essa prática representou uma tática
da imprensa da época para burlar a tentativa de censura implemen‑
tada pelos diversos setores da administração colonial e, ao mesmo
tempo, um indicativo das incertas condições econômicas/financeiras
desses primeiros empreendimentos das letras periódicas em Lou‑
renço Marques. Como explica Ilídio Rocha, publicar “jornais com
títulos diferentes, ligeiramente iguais ou mesmo iguais, como núme‑
ros únicos ou como números programa, em substituição dos que
estavam suspensos ou que aguardavam habilitação foi um expediente
muito usado”27 até 1926, quando da criação da Lei João Belo, que
passou a exigir um diretor com título universitário para cada jornal.
Assumir a liderança de um jornal em Lourenço Marques não
foi uma empreitada muito fácil ou corriqueira. Primeiro, seus pro‑
prietários e/ou editores correram o risco de serem processados por
conta de seus questionamentos sobre a administração colonial.
Segundo, os homens que encabeçaram essas iniciativas tiveram ris‑
cos econômicos significativos, pois, apesar das diversas páginas
dedicadas à publicidade, dificilmente obtinham lucros com suas
publicações. De acordo com relatório publicado pelo O Progresso,
seu antecessor havia sofrido um prejuízo significativo em suas finan‑
ças.28 A Tribuna, por sua vez, precisou solicitar emprestada a
máquina de impressão d’O Futuro, em 23 de dezembro de 1907.

26 O Progresso, 26 de janeiro de 1902. BNP.


27 Ilídio Rocha, A Imprensa de Moçambique, 50.
28 O Progresso, 15 de maio de 1902. BNP.

61
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

A sua encontrava­‑se em conserto por conta do “muito uso”.29 Pro‑


vavelmente, a máquina nunca foi consertada. Poucos dias depois,
mais precisamente no dia 30 de dezembro de 1907, o jornal encer‑
rou suas atividades com a publicação de um último número.
Segundo o levantamento realizado por Ilídio Rocha, entre
1900 e 1930, chegaram a existir períodos com mais de 40 títulos
circulando por Lourenço Marques.30 Apesar de efêmeros, na sua
maioria, essa proliferação demonstra, um processo de amadureci‑
mento da empresa periodista na cidade, que, através de diferentes
experiências, adotou mecanismos de produção cada vez menos
amadores nas suas publicações. Outrossim, revelam um imbricado
meio social onde diferentes interesses se sobrepujavam e que bus‑
cavam apresentar suas opiniões e demandas através das páginas da
imprensa.
Tais jornais tinham uma importância evidente naquela sociedade
que via com obstinação a necessidade de afirmar o seu caráter de
progresso civilizacional. Nesse sentido, muitos dos fatos que foram
transformados em notícias foram aqueles relacionados com a vida dos
membros das elites locais, tendendo constantemente para a defesa
dos interesses portugueses na região. Isso não quer dizer que eram
cegos defensores da atuação colonizadora europeia na África. Ado‑
tando uma postura por vezes contraditória, mas não excludente, os
periódicos das primeiras décadas do século XX buscaram, por um lado,
demonstrar a capacidade de Portugal em assumir o compromisso
civilizacional que advogava ser capaz de cumprir. Por outro lado, não
deixaram de denunciar arbitrariedades realizadas por empregadores
privados ou administradores coloniais contra as populações nativas
africanas e a ineficácia das políticas metropolitanas para a região.
Com relação aos produtores e consumidores desse conteúdo,
tudo indica que seus idealizadores foram, majoritariamente, homens,
de origem europeia, chegados relativamente há poucos anos em
Lourenço Marques, que, apesar de advogarem para si uma postura
de independência em relação aos partidos políticos, dedicaram espe‑

29 A Tribuna, 23 de dezembro de 1907. BNP.


30 Ilídio Rocha, A Imprensa de Moçambique, 223­‑224.

62
MATHEUS SERVA PEREIRA

cial atenção em suas páginas as questões políticas do colonialismo


português. O Distrito, por exemplo, reforçou essa postura em seu
editorial de apresentação. No seu primeiro número afirmou que
“não vimos fazer política, não faremos propaganda”, deixado a cargo
do público a avaliação da “conduta do [...] jornal” e se o mesmo
mereceria “confiança, ou antes se é digno de sua proteção”.31 Esse
posicionamento levou a afirmações que reforçavam um pertenci‑
mento à nação e à pátria portuguesa, construindo uma marcação de
diferença em relação as populações locais e uma semelhança aos
europeus. Ao mesmo tempo, essa postura pode ser lida como uma
forma de proteger o empreendimento jornalístico de possíveis inter‑
venções da administração colonial sob acusações de que suas críticas
significariam uma postura emancipatória ou um sinal de apoio aos
interesses coloniais de outras potências europeias na região.
No entanto, existiram jornais que se diferenciavam da origem
branco­‑europeia dos redatores e proprietários dos periódicos circu‑
lantes na cidade. O Português, por exemplo, seria amplamente
apoiado por parcelas da população não­‑branca de Lourenço Mar‑
ques. A postura do Governador Geral de Moçambique, em 1902,
aquando das reivindicações contrárias ao fechamento sumário do
jornal, demonstram um grupo plural de apoiadores do periódico.
Essa característica parece ter sido fundamental para a adoção de
uma postura que menosprezava essas camadas populacionais como
dignas ou com capacidade para pressionarem o Estado colonial em
prol de suas demandas. No encaminhamento enviado ao Ministro
e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar a res‑
peito do empastelamento do jornal, o então governador afirmou,
com desdém, que, referente à “importância das representações ape‑
nas direi a V. Ex.ª que segundo informação do administrador do
concelho de Lourenço Marques, figuram entre os signatários diver‑
sos pretos, chins e monhés e nenhum negociante de importância”.32

31 O Distrito, 7 de abril de 1904. BNP.


32 AHU, DGU, Processo sobre a apreensão do jornal O Português, 1.ª Repartição, 1.ª Seção,
Caixa 1322, Correspondência, 1902. Carta do Governador Geral de Moçambique ao
Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, de 25 de janeiro de
1902.

63
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

Como O Progresso, surgido logo em seguida ao fechamento d’O


Português, manteve as características de seu predecessor, é plausível
supor que até 1908, aquando do encerramento das atividades d’O
Progresso, aquele continuou a ser o principal e, provavelmente, o
único espaço no meio periodista laurentino para “pretos, chins e
monhés” apresentarem suas reivindicações.
Naquele mesmo ano de 1908, mais precisamente em dezembro,
surgiu o jornal O Africano. Tendo uma vida atribulada em 1909,
deixando de ser publicado no ano seguinte e retornando em 1911
com uma força que perdurou por muitos anos, sendo propriedade
do Grêmio Africano de Lourenço Marques até ser vendido ao padre
Vicente de Sacramento, em 1918, o jornal tinha como importante
diferencial dentro do meio periodista laurentino a origem social dos
seus produtores. Os irmãos José e João Albasini, conjuntamente
com Estácio Dias, foram alguns dos principais idealizadores do
Grêmio e fundadores dos jornais O Africano e O Brado Africano, seu
sucessor direto no campo das ideias. Ambos os periódicos e, sobre‑
tudo, João Albasini, o irmão mais atuante na imprensa e no cenário
político moçambicano no início do século XX, são largamente estu‑
dados pela bibliografia, tanto como fonte, quanto como objeto de
análise.33
Num contexto mais amplo de diálogo entre as publicações
jornalísticas existentes no meio laurentino das primeiras décadas

33 Como alguns exemplos de estudos centrados principalmente na atuação dessa imprensa,


ver: Zamparoni, “Entre ‘Narros’ e ‘Mulungos’”; Fátima Ribeiro e António Sopa, orgs., 140
Anos de Imprensa em Moçambique: Estudos e Relato; Jeanne Marie Penvenne, “João dos
Santos Albasini (1876­‑1922): The Contradictions of Politics and Identity in Colonial
Mozambique,” Journal of African History 37, n.º 3 (1996): 419­‑464; Antonio Hohlfeldt e
Fernanda Grabauska, “Pioneiros da Imprensa em Moçambique: João Albasini e seu Irmão”,
Brazilian Journalism Research 6, n.º 1 (2010): 195­‑214; Matheus Serva Pereira, “Anúncios
e Comunicados: 80 réis por Linha: Propaganda e Cotidiano nas Páginas de O Africano
(1909­‑1919)”, in Estudos Africanos: Múltiplas Abordagens, org. Alexandre Vieira Ribeiro e
Alexsander Lemos de Almeida Gebara, 73­‑97 (Niterói: Editora da UFF, 2013); Cesar
Braga­‑Pinto e Fátima Mendonça, João Albasini e as Luzes de Nwandzengele: Jornalismo e
Política em Moçambique, 1908­‑1922 (Maputo: Alcance Editores, 2014). Existe uma dis‑
cussão a respeito do fato de João Albasini ser ou não um dos pais da literatura moçambi‑
cana. Nesse sentido, ver: Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa
(Lisboa: Universidade Aberta, 1995); para uma visão controversa sobre o tema, ver: Or‑
lando de Albuquerque e José Ferra Motta, História da Literatura em Moçambique (Braga:
Edições APPACDM Distrital de Braga, 1998).

64
MATHEUS SERVA PEREIRA

do século XX, O Africano surgiu exatamente durante um período


onde jornais semanários como O Intransigente, criado na segunda
metade de 1911, satirizavam a capacidade de determinados grupos
sociais, como os que compunham o Grêmio Africano de Lourenço
Marques, de atuarem politicamente no cenário colonial
moçambicano.
Tendo uma vida curta, O Intransigente não aparenta ter exibido
características especialmente inovadoras em relação aos demais
impressos periódicos circulantes pela cidade no início do século XX.34
Porém, provavelmente com o objetivo de alavancar suas vendas, em
dezembro de seu primeiro ano lançou um suplemento de cunho
humorístico. Trazia na edição inaugural desse novo projeto editorial
um programa simples: “Rir, sempre rir”.35 Prometendo publicar as
melhores piadas, anedotas e pequenas histórias satíricas, o impresso
também assegurou trazer, a cada lançamento, caricaturas que repre‑
sentassem figuras consideradas típicas do meio laurentino. Na pri‑
meira edição, o “vertical cá da terra” escolhido para ser caricaturado
era o do que parece ser um homem negro, vestindo um fraque, com
sapatos e chapéu. Desenhado de maneira a aparentar estar desajei‑
tado dentro daquela vestimenta, o personagem era descrito como
possuidor de uma boca grande demais para os padrões de beleza,
um “beiço a mais”, e, associado a essa característica visual, uma
deficiência na sua inteligência, “miolo a menos”, remetendo­‑o a uma
postura simiesca36

34 Infelizmente, a Biblioteca Nacional de Portugal possui apenas dois exemplares completos


do jornal. O primeiro deles é datado de outubro de 1911, o segundo é um número especial
referente as comemorações do aniversário da proclamação da República em Portugal, de
setembro de 1911. Ver: O Intransigente. 05 de setembro de 1911. BNP. No Arquivo His‑
tórico de Moçambique, por conta das já relatadas péssimas condições que encontrei, não
pude ter acesso a outros exemplares d’O Intransigente que poderiam existir naquele
arquivo.
35 O Intransigente: Suplemento Humorístico e Ilustrado, 14 de dezembro de 1911. BNP.
36 O Intransigente: Suplemento Humorístico e Ilustrado, 14 de dezembro de 1911. BNP.

65
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

1. “O vertical cá da terra. Beiço a mais, miolo a menos...”.


In O Intransigente: suplemento humorístico e ilustrado, 14
de dezembro de 1911. BNP.
Descrever personagens que seriam típicos da cidade de
forma satírica, às vezes recorrendo a formas que depre‑
ciavam a figura, foi tema recorrente na imprensa lauren‑
tina. Outros jornais fizeram isso, como O Brado Africano,
nos anos 1920. Um exemplo pode ser visto, em: O Brado
Africano, 30 de julho de 1921. WNA. Para além disso, as
caricaturas de negros com lábios grossos, orelhas proemi‑
nentes e características simiescas está diretamente ligada
à história do racismo e, mais especificamente, do racismo
científico surgido no século XIX. Esse modo de caricatu‑
rizar a população negra incorporou referências da freno‑
logia e de outras ciências da racialização e circulou por
diversos continentes no mesmo período.37

No suplemento humorístico d’O


Intransigente não foi realizada uma asso‑
ciação direta e explicita da sua sátira car‑
tunista com algo que estaria represen-
tando abertamente um homem negro.
No entanto, em conjunto com a carac‑
terização do personagem como alguém possuidor de um traço físico
considerado marcante dessa população e ao utilizar a expressão “cá
da terra”, fica aberta a possibilidade de fazermos uma associação do
desenho àqueles homens responsáveis pela fundação do Grêmio
Africano de Lourenço Marques e produtores dos jornais O Africano
e O Brado Africano, que se autodesignavam como “filhos da terra”.38
O suplemento humorístico, ao mesmo tempo que espelhou, cons‑
truiu e reforçou uma noção pejorativa sobre as populações negras/

37 Silvia Capanema Almeida e Rogério Sousa Silva, “Do (in)visível ao risível: o negro e a ‘raça
nacional’ na criação caricatural da Primeira República”, Estudos Históricos, v 26, n.º 52 (julho
– dezembro 2013): 316­‑345.
38 O nome dado ao grupo social que havia fundado e compunha o Grêmio Africano de
Lourenço Marques, O Africano e O Brado Africano, assim como suas principais caracterís‑
ticas, continua sendo tema de inúmeros debates. Para maiores detalhes, ver: José Moreira,
Os Assimilados, João Albasini e as Eleições, 1900­‑1922 (Maputo: Arquivo Histórico de Mo‑
çambique, 1997); Zamparoni, “Entre ‘Narros’ e ‘Mulungos’”; Aurélio Rocha, Associativismo
e Nativismo em Moçambique: Contribuição para o Estudo das Origens do Nacionalismo Mo‑
çambicano (1900­‑1940); Fernanda Thomaz, “Os ‘Filhos da Terra’: Discurso e Resistência
nas Relações Coloniais no Sul de Moçambique (1890­‑1930)”. Dissertação de Mestrado,
Universidade Federal Fluminense, 2008.

66
MATHEUS SERVA PEREIRA

africanas como um todo, especialmente aquelas que estavam no


limiar das classificações hierarquizantes impostas pelo colonialismo
português e encontravam no mundo urbano de Lourenço Marques
um local propício para desenvolver um movimento de lusco­‑fusco
cultural iniciado pela dominação portuguesa na região.39
Os membros do Grêmio Africano de Lourenço Marques,
quando de seu surgimento enquanto associação, buscaram se afirmar
como um grupo homogêneo que produziu sua união a partir de uma
identidade racial, em oposição a posicionamentos como o exempli‑
ficado pela caricatura. No entanto, a partir da década de 1920, ques‑
tões ligadas às clivagens de origem socioeconômica e cultural que
se materializavam em disputas raciais internas da associação, deram
origem a dissidências. As experiências de discriminação nos espaços
e momentos de convívio social do Grêmio foram destacadas nas
memórias de Raúl Bernardo Honwana como um dos principais
motivos para a ocorrência de cisões. Seu relato de frustação durante
os bailes de sua juventude apresenta clivagens de cunho racial exis‑
tentes entre os que se autodenominavam “filhos da terra”:

Quando chegou a altura de eu e outros jovens fazermos vida asso‑


ciativa, inscrevíamo­‑nos na única agremiação que então existia para
nós, o Grêmio Africano. Eu fui assinante de O Brado Africano, do
qual era também colaborador. Porém, quando chegava altura dos
bailes e das festas, as raparigas, na sua maioria mistas, recusavam­‑se
a dançar conosco, os pretos. Havia, portanto, participação intelec‑
tual, se posso assim dizer, mas não integração social. Nós quase nos
tornamos numa associação dentro do próprio Grêmio.40

A primeira cisão institucional, que durou um curto período de


tempo, ocorreu com a fundação do Congresso Nacional Africano,

39 É interessante notar a existência de um diálogo entre os processos de construção das “cores


locais” e questões mais gerais em torno da racialização produzida pelo pensamento colonial
português. Nesse sentido, ver: Isabel Castro Henriques, Percursos da Modernidade em Angola:
Dinâmicas Comerciais e Transformações Sociais no Século XIX (Lisboa: Instituto de Investi‑
gação Científica Tropical, 1997).
40 Raúl Bernardo Honwana, Memórias (Maputo: Marimbique, 2010), 101.

67
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

formado por membros negros não católicos do Grêmio, sobretudo


maometanos e protestantes, insatisfeitos com os rumos da agremia‑
ção.41 Segundo Honwana, “no Grêmio Africano se tinha instalado
a ideia de que os mistos queriam dominar os pretos ou pelo menos
estes assim o entenderam”.42 Por esse motivo resolveram constituir
uma associação própria. O desmantelamento da unidade desse grupo
social, ocorrida no início do século XX, encontrou uma segunda cisão,
quando da fundação, em 1932, do Instituto Negrófilo. Apoiado por
importantes membros do governo colonial, o instituto teria adotado
uma atitude menos agressiva em relação às posturas de segregação
desenvolvidas pelo colonialismo português e agregado um significa‑
tivo número de membros junto à maioria negra.43 Porém, apesar de
se beneficiar dessas cisões, a fragmentação das organizações nativis‑
tas não deve ser vista apenas como uma consequência das interfe‑
rências da administração colonial. Seus conflitos internos se
manifestavam, na maioria das vezes, de maneira independente dos
interesses coloniais e representavam uma competição entre grupos
em busca de uma representatividade na sociedade colonial.44
O grande número de pesquisas sobre os produtores dos jornais
O Africano e O Brado Africano, suas ações no campo político, o asso‑
ciativismo que fundaram e no qual agiram, não direcionou seu olhar,
até o momento, para um recorte analítico baseado em perspectivas
de gênero.45 Pouco sabemos sobre as “raparigas” mencionadas por
Honwana que dançavam nos bailes organizados pelo Grêmio Afri‑
cano ou pelo Instituto Negrófilo. Também são diminutos os esforços
em analisar a vida das mulheres que faziam parte das listas de asso‑
ciados dessas instituições. Muitas vezes aparecem nessa imprensa
como esposas de suas lideranças, que deveriam seguir os moldes dos
padrões e ideário dos brancos­‑europeus sobre as mulheres. Valdemir
Zamparoni, em sua tese de doutoramento, pincela algumas dessas

41 Thomaz, “Os ‘Filhos da Terra’”, 80.


42 Honwana, Memórias, 99.
43 Zamparoni, ‘Entre “Narros’ e ‘Mulungos’...”, 515.
44 Nesse sentido, ver: Rocha, Associativismo e Nativismo em Moçambique, 376­‑377; Fátima
Mendonça, “Dos Confrontos Ideológicos na Imprensa em Moçambique”, in João Albasini
e as Luzes de Nwandzengele: Jornalismo e Política em Moçambique, 1908­‑1922, 27.
45 Agradeço a Elisa Lopes da Silva por atentar­‑me para essa questão.

68
MATHEUS SERVA PEREIRA

questões. Porém, sua discussão sobre a formação desse grupo social


está pautada, principalmente, em um debate que privilegia uma
perspectiva marxista de entendê­ ‑los enquanto classe social,
definindo­‑os como uma “burguesia filha da terra”, em oposição a
interpretações que lançam mão de uma perspectiva desses enquanto
intelectuais.46 Pesquisas subsequentes, com um importante folêgo
arquivístico e analítico sobre a imprensa e o associativismo existente
em Lourenço Marques, como é o caso da obra de José Moreia ou
de Aurélio Rocha, dedicadas ao “estudo das origens do nacionalismo
moçambicano”, ignoram a presença ou as ações das mulheres dentro
desses ambientes.47 Outros trabalhos como os de Fernanda Thomaz
e Olga Maria Iglesia Neves, salientam a ausência de mulheres na
listagem de sócios do Grêmio Africano, entre 1908 e 1921, o que
pode explicar o silêncio, pelo menos a partir de uma abordagem
panorâmica, de vozes femininas nas palavras impressas pelos jornais
desse grupo social. O surgimento de mulheres como associadas ao
Grémio Africano, nas listas de sócios existentes para a década de
1920, não significa uma mudança na hierarquização social dessas em
relação aos homens. Afinal, não lhes era permitido exercer as mes‑
mas funções. Como aponta Thomaz, no contexto da primeira metade
do século XX, as “associadas tinham a função de membro de uma
comissão organizadora de tea­‑meeting, não havendo outra atividade
ocupada pelas mulheres. Além disso, a maioria delas era dependente
de seus maridos e pais”.48 A inexistência de mulheres escrevendo para
a imprensa parece ter mudado, ainda que de maneira bastante redu‑
zida, nos anos 1950, quando do surgimento de figuras emblemáticas
da literatura moçambicana, como é o caso de Noémia de Sousa, que
publicou em alguns jornais a partir do final da década de 1940.49

46 Zamparoni, ‘Entre “Narros’ e ‘Mulungos’...”, 364­‑394


47 Aurélio Rocha, Associativismo e Nativismo em Moçambique. José Moreira, Os Assimilados,
João Albasini e as Eleições, 1900­‑1922. Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique, 1995.
48 Thomaz, “Os ‘Filhos da Terra’”, 78. Olga Maria Iglésias Neves. Em defesa da causa africana.
Intervenção do Grémio Africano na sociedade de Lourenço Marques. 1908­‑1938. Dissertação
de Mestrado em História. Universidade Nova de Lisboa, 1989, 136­‑146 e 184­‑214.
49 Sobre a poesia de Noémia de Sousa, ver: Anselmo Peres Alós. “Uma voz fundadora na
literatura moçambicana: a poética negra pós­‑colonial de Noêmia de Sousa.” Todas as Letras,
São Paulo, v. 13, n.º 2 (2011): 62­‑70.

69
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

De maneira geral, os estudos da atuação desses homens – sem‑


pre homens e nunca mulheres – e, consequentemente, dos meios
que utilizaram para se organizarem e produzirem reivindicações
frente ao Estado colonial, deram ênfase às ambiguidades que ema‑
navam em seus discursos. Colocando­‑se estrategicamente num pên‑
dulo que ia, por um lado, para uma identificação enquanto “nós
negros/africanos/indígenas” e, por outro lado, para “nós portugue‑
ses/civilizados”, estes homens buscaram, por meio de um gesto retó‑
rico do uso da língua portuguesa, mas sem abandonar o uso escrito
de línguas locais, como o ronga, “dirigir cobranças ao colono e con‑
vocar o africano a exigir seus direitos”. O efeito era o de “fazer com
que um se coloque no lugar do outro, mas também posicionar a elite
intelectual não­‑branca no centro de um conflito do qual ela será [ou
melhor, pretendia ser] porta­‑voz”.50
O campo de publicações diárias em Lourenço Marques revela um
diálogo que ajuda a complexificar algumas questões, abrindo novas
possibilidades de análise. A imprensa rapidamente tornou­‑se um
importante agente social no contexto de consolidação das forças colo‑
niais portuguesas no sul de Moçambique. Uma das maiores dificulda‑
des encontradas por aqueles que se embrenharam em análises acadêmicas
utilizando­‑se das letras impressas no período aqui estudado é o de
conseguir identificar as identidades pelas quais poderiam responder os
indivíduos que aparecem referenciados nos jornais laurentinos.
Ao longo da primeira metade do século XX, os jornais utilizaram
diferentes termos para definir a população negra/africana da cidade.
Aparecem termos variados, sendo os mais comuns aqueles de cunho
racializante, como negro ou preto, por vezes somados aos empre‑
gados na legislação colonial, como indígena. Noutros momentos,
foram utilizados termos que remetiam a designações étnicas mais
específicas, mas que ainda assim careciam de precisão, como os
vátuas, landins ou macuas.
A limitação das nomenclaturas que aparecem na imprensa para
definir aquilo que pretendia­‑se nomear pode ser vista em paralelo com

50 Cesar Braga­‑Pinto, “João Albasini e o olhar estrábico de O Africano”, in João Albasini e as


Luzes de Nwandzengele: Jornalismo e Política em Moçambique, 1908­‑1922, 53.

70
MATHEUS SERVA PEREIRA

o emprego da denominação macua. No bairro da Munhuana, subúr‑


bio de Lourenço Marques, por exemplo, em 1909, O Africano, publi‑
cou uma pequena nota com o título de “Batuques”, onde protestou
“contra o barulho ensurdecedor que uns sujeitos macuas e em nome
de uma religião [...] fazem a noite na Munhuana”.51 A utilização de
uma designação específica para nomear aqueles que estavam prati‑
cando os batuques no subúrbio não significou necessariamente uma
postura anticolonial de negação da categorização das populações nati‑
vas dentro de categorias colonialistas e/ou eurocentradas. Também
não significou uma melhor definição dessas populações dentro de
categorias de autopertencimento. De forma sistemática, a alcunha
“macua” foi utilizada pejorativamente para descrever atos cometidos
por indivíduos que perpetravam furtos a residências e/ou outros crimes
que ocorriam pelas estradas, ruas e becos de Lourenço Marques.
A relação entre grupos sociais específicos e as denominações
coloniais serão melhor analisadas no decorrer do livro. Por agora, é
importante atentar para alguns exemplos, como o do jornal O Por‑
tuguês, que, em novembro de 1900, noticiou o caso em que “dois
macuas armados de machados” tentaram furtar uma casa. Sem
sucesso, acabaram sendo perseguidos pelos moradores da residência
ao longo de duas avenidas.52 Alguns anos depois, O Progresso, con‑
tinuou reclamando sobre a impunidade “nas suas proezas” de uma
“horda de salteadores macuas”.53 O jornal utilizou o termo macua
para se referir a ação de diferentes sujeitos na perpetração de crimes
e os responsabilizou por “quase todas as noites” fazerem “batuques
e descantes de ensurdecer os ouvidos”.54 No ano seguinte, os “mal‑

51 O Africano, 23 de dezembro de 1909, WNA. As sociedades macuas são, originalmente, do


norte de Moçambique, principalmente da região de Angoche. Ao buscar historicizar o uso
do etnônimo macua e as características das sociedades com essa designação, Regiane Au‑
gusto de Mattos analisa como o termo surge como uma designação externa, que, até o
século XIX, “essa palavra tinha uma conotação pejorativa” e de difícil delimitação, sendo
empregado genericamente para designar “africanos bárbaros” ou “africanos muçulmanos”.
In: Regiane Augusto de Mattos, As Dimensões da Resistência em Angoche: Da Expansão
Política do Sultanato à Política Colonialista Portuguesa no Norte de Moçambique (1842­‑1910).
São Paulo: Alameda, 2015.
52 O Português, 17 de novembro de 1900. BNP.
53 O Progresso, 28 de agosto de 1902. BNP.
54 O Progresso, 21 de janeiro de 1903. BNP.

71
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

ditos e infernais batuques” não eram mais correlacionados aos cha‑


mados macuas. Mas, mesmo sem a presença desses, os finais de
semana no bairro suburbano de Maxaquene continuavam sendo
banhados pelos sons e danças daqueles “divertimentos”.55
Por seu turno, em abril de 1904, O Distrito buscou complexi‑
ficar a utilização da alcunha macua como bodes­‑expiatórios dos
crimes ocorridos em Lourenço Marques. Sua interpretação foi de
que parecia ser muito simples “abrir­‑se a cabeça a qualquer cidadão
na volta de uma esquina, e no dia seguinte lá estão os macuas para
responderem pelas tratantadas dos outros”.56 Essa postura não
durou muito tempo. Em setembro daquele ano, o jornal passou a
corroborar com as posturas dos periódicos correntes, afirmando
categoricamente que a “maior parte dos ladrões são macuas, e bom
seria evitar tanto quanto possível a entrada desta raça na
cidade”.57
Quando da notícia dos batuques dada, em 1909, pel’O Africano,
a associação entre os supostos macuas dos subúrbios de Lourenço
Marques com práticas religiosas específicas também não era inédita.
Ao relatar as peripécias de Afai, um “macua que assassinou um preto
na estrada de Anguane”, O Progresso publicou que teriam ouvido o
mesmo afirmar que “Preto não é gente – é bicho. E português, inglês
e francês também não é gente. Gente é só mouro, esse sim; esse que
é gente”. A conclusão do periódico era de que todos os “macuas são
mais ou menos dominados pelo fanatismo religioso do alcorão, que
só considera filhos de Deus os sectários de Maomé”.58 Noutro
momento, O Africano continuou seus reclames dos sons produzidos
por supostos macuas. Apesar de não usar a palavra batuque, o jornal
havia chamado a atenção para o “barulho de ensurdecer” que era
feito numa casa na Munhuana. Afirmando que lá se reuniam “deze‑
nas de macuas”, assegurou que aquilo que escutavam era uma “reza
muçulmana, para a propaganda da religião Maometana” e que só
serviria como “pretexto para a vidinha ociosa” que atrapalhava a

55 O Progresso, 16 de junho de 1904. BNP.


56 O Distrito, 7 de abril de 1904. BNP.
57 O Distrito, 5 de setembro de 1904. BNP. Ver, também, 23 de abril de 1904.
58 O Progresso, 4 de setembro de 1902. BNP.

72
MATHEUS SERVA PEREIRA

colonização, pois aquilo terminava por “desviar o indígena da civi‑


lização portuguesa”.59
O jornal O Africano protestou com frequência e veemência da
presença do islamismo proclamado pelos que intitulavam como
macuas residentes nos subúrbios de Lourenço Marques. Chegou, em
mais de uma ocasião, a solicitar a atuação da repressão policial sobre
os praticantes dessa religião na cidade.60 Mesmo após anos atuando
no meio da imprensa periódica, e tendo encontrado barreiras concre‑
tas com o crescimento do racismo adotado pelas políticas coloniais,
o grupo social responsável pelo O Africano manteve sua postura de
desavença com o que designavam genericamente como os “macuas”
e com a religião islâmica. Para o Brado Africano, a solução para “tão
incômodos batuques”, como um que havia gerado uma “pancadaria
grossa entre macuas”, num domingo de outubro de 1920 na
Munhuana, era colocar cobro com aquelas manifestações “pelo menos
de noite [...], [com a utilização de] alguns soldados a cavalo”.61
Infelizmente, os censos existentes para esse período não dão
conta de uma possível composição étnica da população negra/afri‑
cana existente em Lourenço Marques. Para o período entre 1890­
‑1940, os dados estatísticos da composição da população da cidade
são escassos e imprecisos embora tenha sido possível encontrar
diferentes tentativas de recenseamento populacional. Todos os
dados produzidos durante esse período precisam ser questionados,
como revelam correspondências oficiais entre autoridades coloniais
datadas de 1902. Naquele ano, ocorreu a tentativa de elaboração de
mapas estatísticos das populações de diversos distritos de Moçam‑
bique. Ao remeter os mapas para Portugal, o Secretário Geral em
Lourenço Marques informou que alguns dos documentos que iam
em branco encontravam­‑se assim porque não havia sido “possível
preenche­‑los por absoluta falta de elementos necessários para
isso”.62

59 O Africano, 22 de maio de 1909. WNA.


60 Ver, dentre outros, as edições: O Africano, 16 de agosto de 1909, 9 de setembro de 1909 e
21 de agosto de 1915. WNA.
61 O Brado Africano, 23 de outubro de 1920. WNA.
62 AHU, DGU, 3.ª Repartição, Caixa 1644, 1900.

73
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

Ainda assim, é importante nos ater à percepção de que os cri‑


térios de categorização das populações nativas africanas tenderam
a produzir uma leitura racializante dos habitantes da cidade que
refletia as tendências classificatórias do corrente pensamento colo‑
nial. Em geral, os dados censitários dividiram os habitantes de Lou‑
renço Marques e do sul de Moçambique entre europeus/brancos,
asiáticos/amarelos e africanos/negros, por vezes adotando classifi‑
cações que englobavam também indivíduos que pudessem ser
designados como indianos e/ou mistos. Para o censo de 1894, por
exemplo, as estatísticas portuguesas previram como tipos somáticos
as categorias de “amarelo, branco, indiano misto e negro”.63 Alguns
anos depois, segundo um mapa da população de Lourenço Marques
produzido pela seção de estatísticas da Secretaria Geral do Governo
de Moçambique, referido a 31 de dezembro de 1897, a cidade pos‑
suiria um total de 4.902 habitantes. Essa população foi dividida de
acordo com sua “nacionalidade”, listando, ao todo, 22 países. A cate‑
goria “nacionalidade” subdividia­‑se na categoria “raças”, que, por
sua vez, foram separadas entre “europeus e americanos”, “asiáticos”
e “africanos”. Do total de 4.902 habitantes, 2.242 eram “europeus”,
913 “asiáticos” e 1.747 “africanos”.64 Dez anos depois, em 1907, foi
estimado no Boletim Oficial uma população total para a cidade de
9.849 habitantes. Nesse curto período de tempo, os “europeus”
deixaram de ser a maioria, correspondendo a cerca de 48% da popu‑
lação.65 Segundo o censo realizado em dezembro de 1912, a popu‑
lação de Lourenço Marques, englobando seus subúrbios, já atingia
a marca de 26.079 habitantes. Esse total foi dividido no recencia‑
mento de 1912 entre africanos e não­‑africanos, sendo que o segundo
critério era subdividido entre europeus e asiáticos/mistos.66 Cerca
de vinte anos depois, em 1930, de um total de 37 mil habitantes, a

63 Carlos Santos Reis, A População de Lourenço Marques em 1894 (Um Censo Inédito) (Lisboa:
Publicações do Centro de Estudos Demográficos, 1973), 33.
64 AHU, DGU, 3.ª Repartição, Caixa 2764, 1885­‑1898, Estatísticas.
65 Números extraídos do Boletim Oficial, no 48 de 1904, que informava existirem 4.691 euro‑
peus na cidade.
66 Rita­‑Ferreira, “Os Africanos de Lourenço Marques,” 223. Ver, também: Recenseamento da
População e das Habitações da Cidade de Lourenço Marques e seus Subúrbios: Referidos a 1.º de
Dezembro de 1912 (Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1913).

74
MATHEUS SERVA PEREIRA

população negra/africana da cidade foi estimada em 28 mil indiví‑


duos provenientes de diferentes distritos de Moçambique. No
entanto, novamente nenhuma referência a uma possível composi‑
ção étnica foi apresentada.67 Portanto, não fui capaz de averiguar a
efetiva presença de grupos com uma possível designação étnica
macua como membros importantes da camada populacional
suburbana.68

2. Legenda: “A ‘Mafalala’. Dança cafre de Moçambique”

67 Aurélio Rocha, Associativismo e Nativismo em Moçambique,114.


68 Os dados estatísticos aqui arrolados são apresentados de maneira gráfica no capítulo 4.

75
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

3. Legenda: “The ‘M’Shongola’. Dança cafre (Bakonga) da Baia de Delagoa”.69 A imagem da


“A Mafalala. Dança cafre de Moçambique” aponta para aspectos semelhantes aos encontrados
nas confrarias sufistas existentes no norte de Moçambique e, mais especificamente, na Ilha de
Moçambique. É plausível supor que tenha existido uma associação simplificadora entre práticas
da religião islâmica em contextos africanos e uma pertença étnica que remetia ao norte moçam‑
bicano e a predominância macua nessa região.70

As fotografias publicadas pelos irmãos Joseph e Moses Lazarus,


em 1901, foram, juntamente com as do fotógrafo português Manoel
Romão Pereira, que fundou um estúdio em Lourenço Marques no final
da década de 1880, as primeiras imagens da cidade a serem comercia‑

69 In: J. and M. Lazarus. A Souvenir of Lourenço Marques. An Album of Views of the Town
(Lourenço Marques: Tabler & Co., 1901), 41 e 42. No original: “The ‘Mafalala’. Mozam‑
bique Kafirs Dance” e “The ‘M’Shongola’. Delagoa Bay Kafirs’ (Bakonga) dance”.
70 Sobre as confrarias, ver: Lorenzo Macagno, “Islã, transe e liminaridade”, in Revista de
Antropologia, Vol. 50, n.º 1, São Paulo, ( Jan./Jun. 2007), 85­‑123. Sobre as expressões mu‑
sicais das sociedades do norte de Moçambique, ver: Regiane Augusto de Mattos, “Batuques
da terra, ritmos do mar: expressões musicais e conexões culturais no norte de Moçambique
(séculos XIX­­‑XXI), in Revista de História da USP, n.º 178, São Paulo, (2019), 1­‑39.

76
MATHEUS SERVA PEREIRA

lizadas (para os ingleses: “Delagoa Bay”).71 Apesar dos irmãos Lazarus


não especificarem o local onde essas imagens foram produzidas, a
pequena casa na direita, ao fundo, indica que ambas podem ter sido
realizadas no mesmo local. Na primeira imagem, aparentemente
posando para a foto e vestindo roupas que se assemelham às dos mem‑
bros das confrarias muçulmanas, posso supor que temos um registro
único do que os jornais insistiram em caracterizar de maneira pejorativa
como um batuque realizado pelos macuas. Esses são, provavelmente,
homens semelhantes àqueles que, em 1909, saíram numa noite de
sexta­‑feira “com cantorias e berros de ‘há­‑há­‑há­‑há’ satisfazendo uns
preceitos da religião maometana”.72 Assemelhando­‑se a outras formas
de dança e música que eram comuns entre populações do sul de
Moçambique, a imagem 3 parece apresentar algo que ficou comumente
conhecido no linguajar colonial português como um “batuque de
guerra”. Nesse, homens e, às vezes, mulheres, interpretavam, com suas
armas em mãos, aspectos das batalhas em que se viram envolvidos ou
questões relacionadas ao mundo e à vida cotidiana da comunidade.73
Como explica Patrick Harries, uma parte importante do pro‑
cesso de modernização na África implementado pela conquista
imperial dizia respeito à classificação de detalhes em unidades orga‑
nizadas que homogeneizaram a diversidade e que buscaram racio‑
nalizar práticas socioculturais africanas dentro das estruturas do
pensamento europeu. Baseados nessa forma de ver o mundo, admi‑
nistradores coloniais, homens do mundo das letras, como os jorna‑
listas, linguistas, etnógrafos e tantos outros adeptos das ciências
coloniais, classificaram os africanos em diferentes grupos étnicos
que refletiam, por vezes, mais uma produção do discurso europeu
do século XIX/xx, do que aspectos das realidades locais.74 Para o caso

71 Sobre o trabalho dos irmãos Lazarus na região, ver: Noeme Santana, “Olhares Britânicos:
Visualizar Lourenço Marques na Óptica de J and M Lazarus, 1899­‑1908”, in O Império
da Visão: Fotografia no Contexto Colonial Português (1860­‑1960), org. Filipa Lowndes Vi‑
cente, 211­‑222 (Lisboa: Edições 70, 2014). Sobre Manoel Romão Pereira, ver: Luísa Villa‑
rinho Pereira, Moçambique – Manoel Pereira (1815­‑1894). Fotógrafo Comissionado pelo
Governo Português (Lisboa: Edição de autor., 2013).
72 O Africano, 16 de agosto de 1909. WNA.
73 Sobre as comunidades muçulmanas em Moçambique, ver: Lorenzo Macagno, Outros Mu‑
çulmanos: Islão e Narrativas Coloniais (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2006).
74 Patrick Harries. “The Roots of Ethnicity: Discourse and the Politics of Language Con‑

77
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

dos macuas em Lourenço Marques, o que é possível afirmar é que


essa designação empregada pelos jornais pareceu servir para indicar
qualquer muçulmano africano e, num sentido lato, muitas vezes foi
empregado para acusar qualquer indivíduo que poderia ser classifi‑
cado como indígena que, migrado para a cidade, não seguia os
padrões de comportamento que os periódicos entendiam como civi‑
lizado para o meio urbano.
Nesse sentido, existiu uma visão compartilhada dentro do
campo letrado produtor de jornais em Lourenço Marques sobre as
reuniões ao som de danças e músicas feitas por “pretas, pretos” nas
cantinas e esquinas da cidade. A utilização da designação do que
viam com o emprego do genérico nome de batuque seguiu um
padrão, independente da origem de seus produtores, do público que
pretendiam alcançar ou dos objetivos políticos vinculados a suas
folhas impressas. Essas visões análogas reforçam uma continuidade
na postura dos periódicos a respeito da relação de seus produtores
com formas de pensamento que estavam a todo momento numa
afinidade ambígua com o colonialismo português na região. Ao
mesmo tempo, reforçam a postura conflitiva que adotaram com
formas de vida predominantemente rurais que se transformavam ao
deslocarem­‑se para um novo contexto urbano. Características como
essas demonstram como existe uma possibilidade de que a própria
utilização do termo macua, em detrimento da designação de indí‑
gena ou assimilado, por parte dos jornais produzidos pelos membros
do Grêmio Africano, possa ser uma atitude por parte desses homens
de recusa a adotar de maneira indiscriminada as formas de nomen‑
clatura homogeneizadoras criadas pelo colonialismo português. No
entanto, ao mesmo tempo, nas notas publicadas pelo O Africano e
pelo O Brado Africano o termo batuque foi usado de modo versátil
para definir de maneira homogênea as diferentes manifestações cul‑
turais observadas por sujeitos de fora dessas práticas.

struction in South­‑East Africa”, African Affairs 87, n.º 346 ( January 1988): 25­‑52. Sobre
o norte de Moçambique, seus grupos nativos e suas relações com o poder durante o colo‑
nialismo e no pós­‑colonialismo, ver: Harry G. West, Kupilikula: O Poder e o Invisível em
Mueda, Moçambique (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2009).

78
MATHEUS SERVA PEREIRA

Uma geografia dos batuques em Lourenço Marques

Mesmo havendo variações mais amplas dentro das diferentes mani‑


festações de dança e música que o genérico termo batuque poderia
englobar, as descrições produzidas pelos jornais dos irmãos Albasini
e, consequentemente, da camada social que o jornal representava,
demonstram a sua relação íntima com a construção de um espaço
urbano laurentino que exigia a adoção de comportamentos e códigos
de apresentação que “moldavam estilos de vida e reforçavam pro‑
cessos de diferenciação social e dominação simbólica”.75 Em 1914,
João Albasini afirmou que nas cantinas e dependências existentes
na Munhuana, bastava o “ligeiro esforço de abrir os olhos” para ver
que “dançava­‑se rebolados batuques salientando o posterior, descon‑
juntando os quadris nuns movimentos eróticos ‘de fazer babar um
morto’”.76 A descrição da Munhuana enquanto terra “dos vícios e
dos batuques”,77 palavras usadas por Albasini, evidencia, por um
lado, o incomodo causado pela presença de práticas culturais enten‑
didas como incivilizadas, símbolo de um atraso e assim interpretadas
enquanto fora do lugar dentro do mundo urbano. Por outro lado, a
despeito dos protestos, faziam parte da cultura citadina ao mesclar­
‑se com novas situações sociais onde elementos fundamentais da
experiência colonial aparecem em destaque, servindo como meca‑
nismo de adaptação ao espaço urbano e adquirindo uma função de
sociabilidade dos novos moradores.
Em outro texto, ainda em 1914, João Albasini, utilizando­‑se
do pseudônimo Chico das Pegas, conta que, ao retornar da
Munhuana, com “as mãos nos bolsos regressava [...], farto de poeira,
moído de cansaço”, acabou por ficar com “a cabeça cheia do barulho
infernal dos tambores de Quelimanes e outros narros que tornam a
vida detestável nos subúrbios”.78 A todo momento os jornais insis‑
tiram em demarcar regiões onde mais ocorriam aqueles encontros
com apresentações musicais e dançantes. A alusão aos bairros da

75 Domingos, “Cultura Popular Urbana e Configurações Imperiais”, 398.


76 O Africano, 13 de maio de 1914. WNA.
77 O Africano, 6 de julho de 1918. WNA.
78 O Africano, 3 de outubro de 1914. WNA.

79
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

Munhuana ou de Maxaquene são importantes para percebermos


como o processo de expansão da estrutura urbana cimentada da
cidade para locais anteriormente desocupados ou ocupados por
populações nativas, veio acompanhada de um processo de expulsão
desses indivíduos, pela fixação de novos moradores e, consequente‑
mente, pelos embates nas maneiras de ocupar esse espaço.
Os novos hábitos e as novas perspectivas trazidas pelos mora‑
dores recentes foram marcados por uma tensão de expectativas a
respeito das ações que os indivíduos deveriam possuir dentro de uma
urbe. Essa tensão aflorou na insistência da realização dos batuques.
O desrespeito pelas expectativas, revelado pelas constantes referên‑
cias ao “barulho infernal dos tambores” na Munhuana ou dos “pre‑
tos, cantando e dançando até altas horas” em Maxaquene, afrontavam
uma ordem cultural que se buscou infligir naquele espaço. O con‑
fronto entre as regras impostas e as vivências do uso do tempo dá
conta do processo não linear de consolidação das funções dos espa‑
ços laurentinos, – como a delimitação de horários diários para a
realização das tarefas hodiernas, com o tempo diurno sendo o do
trabalho e o noturno de descanso – em oposição aos múltiplos usos
do tempo – presente na ideia dos batuques que rompiam noite a
dentro com hora para começar, mas sem hora para acabar.
Para além dos exemplos dos bairros da Munhuana e de Maxa‑
quene, a presença “de pretos”, que incomodaram os vizinhos por
causa de seus hábitos ou seus padrões de comportamento no espaço
urbano, foi sentida em outras paragens, inclusive muito próximas
da cidade baixa. Foi o que ocorreu, por exemplo, na avenida D.
Carlos, onde o jornal O Distrito, talvez atendendo aos apelos dos
moradores da proximidade, solicitou providências ao presidente da
comissão municipal de Lourenço Marques para a retirada de um
“acampamento indígena” que ali existia. As fogueiras que acendiam
e a “gritaria infernal” que produziam gerou uma reação nos tran‑
seuntes, onde “o menos pudico” dizia sentir­‑se “ruborizar ao ver o
estado da indecência em que os acampados se mostram”.79
Esses embates revelam uma cidade muito mais prolixa do que
aquela desenhada pela bibliografia de Alexandre Lobato e uma atua‑

79 O Distrito, 23 de abril de 1904.

80
MATHEUS SERVA PEREIRA

ção preta/indígena longe de passiva em relação às instituições que


foram criadas para regular e fiscalizar o perímetro urbano de Lou‑
renço Marques. Ao mesmo tempo, para além de uma região especí‑
fica da cidade, os jornais destacaram a importância das cantinas
enquanto espaço de convívio, trabalho, moradia e lazer desses indi‑
víduos.80 Seria exatamente nesse local múltiplo que, ou melhor,
seguindo a metáfora da fonte, nessas colmeias onde enxames de “pre‑
tos” direcionavam­‑se, que, a despeito dos esforços iniciados para con‑
ceber Lourenço Marques enquanto local de moradia de uma camada
branca europeia, eram transmitidos aprendizados relacionados a for‑
mas de convívio com uma variedade de tipos, práticas e hábitos,
encontrados em acelerada transformação naquela virada de século.
Corroborando essas características, ao longo da existência do
jornal, O Português manteve uma postura de oposição ao que enten‑
dia como formas impróprias à “moralidade e a higiene” de se viver
no perímetro urbano de Lourenço Marques.81 Um dos primeiros
alvos dessa ação foram, justamente, os batuques. No dia 15 de maio
de 1901, o periódico alertou para a existência de “infernais batuques
que se dão dentro da cidade”. Dessa vez especificou a rua de onde
vinham aqueles sons. Era na Avenida Francisco Costa, paralela à
Avenida Afonso de Albuquerque (vide mapa 1).82
Exigindo uma ação da polícia para acabar com aqueles “indi‑
gestos divertimentos”, para, logo em seguida, acusá­‑la de conivência
com a sua realização e de “menosprezar o edital da autoridade admi‑
nistrativa que proíbe os batuques” na cidade, aquelas exibições dos
“amadores do gênero” estariam atormentando o sono e a vida dos
habitantes da cidade. A solução proposta pel’O Português, mais uma
vez, era a de afastar ao máximo do perímetro urbano a exibição
daqueles “esgares, que tanto divertem a pretalhada”. O destino não
era mais o mato, uma denominação genérica empregada comu‑

80 No capítulo 4 exploro a realidade das cantinas e de seus trabalhadores, sobretudo das


mulheres “indígenas”.
81 O Português. 13 de julho de 1901. BNP. Essa ação do jornal pode ser encontrada também
no seu sucessor, O Progresso, sobretudo na sua campanha maciça contrária aos bares da
cidade e a associação que faziam entre esse comércio e a prostituição. Ver, por exemplo, as
edições de 9 de fevereiro de 1901, de 17 de abril de 1901 ou 11 de maio de 1901. BNP.
82 O Português. 15 de maio de 1901. BNP.

81
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

mente para designara qualquer espaço não urbano ocupado por


populações africanas. Os batuques deveriam ser exilados para “bem
longe do povoado”, rumo a “lagoa de Munhuana”.83 Na edição
seguinte, três dias depois, o jornal voltou a reclamar dos “batuques
na Avenida Francisco Costa”, com o agravante de que “muito perto
da cantina onde tais batuques se dão” supostamente encontrava­‑se
enferma a esposa de um sargento. Mais incisivos, questionando altas
figuras da administração municipal, como o administrador do con‑
selho e o comandante de polícia, sobre o porquê de não terem
tomado providências imediatas contra “tão intolerável abuso”, o
jornal passou a identificar aquilo que viam como um “infernal e
nojento divertimento”. No final, ameaçaram recorrer ao “Sr. Gover‑
nador do Distrito”, caso suas demandas não fossem cumpridas.84
Após esses protestos, o jornal se calou sobre o assunto. Talvez as
demandas da imprensa tenham sido acolhidas. Esse silêncio pode
ter sido dos próprios batuques, que haviam parado momentanea‑
mente ou que apenas mudaram de lugar, não mais incomodando
indivíduos relacionados com a empresa d’O Português. Ao enfoca‑
rem a ausência de controle dos poderes coloniais na organização dos
preceitos urbanos, sobretudo nos aspectos considerados amorais do
divertimento promovido pelos batuques, transparece o afloramento
da conflitualidade provocado pela presença dos ditos indígenas na
cidade.
Como apresentei no início do capítulo, as cantinas localizadas
em Maxaquene foram paragens importantes para as apresentações
e os encontros aos sons dos chamados batuques. Neste caso, dife‑
rentemente do ocorrido em 1901, o jornal que protestou contra os
encontros promovidos nas cantinas, entendidas enquanto “verda‑
deiros focos de imoralidade”, terminou por celebrar junto ao seu
público o “muito acertado” procedimento adotado. A solução
encontrada pelo comissário de polícia “afim de evitar os escândalos
e as algazarras” de “pretas, pretos e soldados” foi a de colocar um
guarda de serviço permanente no local. A materialização do Estado

83 O Português. 15 de maio de 1901. BNP


84 O Português, 18 de maio de 1901. BNP.

82
MATHEUS SERVA PEREIRA

colonial era personificada através dessa figura, o que deixou aqueles


que não participavam dos batuques bastante satisfeitos.85
Regiões como a Munhuana, que não aparece como pertencente
ao perímetro cimentado da cidade no mapa de 1903 e que os jornais
insistiram em classificar como local quase que infestado pelos sons dos
batuques, transformou­‑se, ao longo do século XX, em uma referência
nos subúrbios de Lourenço Marques. Escolhida para a edificação de
residências destinadas aos indígenas, a Munhuana constituiu­‑se como
o primeiro, e praticamente único, projeto de construção de locais
específicos de moradia para a população nativa, os chamados “bairros
indígenas”. Embora uma série de regulamentos e taxas tenham sido
criadas desde o início do século XX, segundo Rita­‑Ferreira somente
em 1922 foi possível a “construção, embora numa baixa inundada e
insalubre, de 350 habitações no atual Bairro Popular da Munhuana,
único existente nos subúrbios”.86 Como admitia, em 1951, o chefe dos
Negócios Indígenas, aquele bairro estaria “longe, mas muito longe,
de chegar as necessidades”.87 O Progresso, em 1906, afirmou que as
condições de habitação dos indígenas deveriam ser motivo de preo‑
cupação pela sua insalubridade, sendo composta por um “retângulo
de zinco com pouco mais de dois metros de alto, cumprimento variá‑
vel, largura não chegando a dois metros, dividido em pequenos com‑
partimentos independentes, um para cada inquilino”.88
No esteio das medidas de controle sobre os espaços urbanos,
sobretudo em relação àqueles construídos ou ocupados por “pretas,
pretos”, em 1907, como resultado da peste que assolou a cidade,
criou­‑se um órgão que deveria zelar pela salubridade da cidade: o
Serviço de Saúde. Não foi possível encontrar amplas referências que
tenham produzido uma análise sistemática da relação entre disse‑
minação de doenças dentro do contexto urbano de Lourenço Mar‑

85 O Distrito, 29 de dezembro de 1904. BNP.


86 Rita­‑Ferreira, “Os Africanos de Lourenço Marques”, 211.
87 Arquivo Histórico de Moçambique (doravante AHM). Direção dos Serviços dos Negócios
Indígenas (doravante DSNI). Bairros e povoações indígenas. Caixa 528, Projeto de Diplo‑
ma Legislativo respeitante as “Vilas Indígenas” (1951). Para uma análise crítica do processo
de construção das habitações para os indígenas feitas pelo poder colonial, ver: Zamparoni,
“Entre ‘Narros’ e ‘Mulungos’...”, 315­‑321.
88 O Progresso, 22 de outubro de 1906. BNP.

83
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

ques do início do século XX e o processo de segregação das populações


nativas ou aquelas consideradas diferentes em relação aos europeus,
como as de origem indiana ou chinesa. Valdemir Zamparoni parece
ter sido o único a esboçar uma investigação sobre o assunto, ao
ponderar sobre a atuação de diferentes órgãos do Estado colonial
na cidade, como a Comissão de Melhoramentos Sanitários de Lou‑
renço Marques, o Serviço de Saúde e a Polícia Sanitária. Esses
órgãos teriam agido com o objetivo de culpabilizar “indígenas, chi‑
nas, monhés e baneanes” pela peste de 1907. Suas ações foram de
derrubar habitações ocupadas pelos indígenas, independente dos
materiais empregados na sua construção.89
Como braço direto para a atuação do Serviço de Saúde, organizou­
‑se uma Polícia Sanitária. Esse órgão tinha poder pleno para agir
como reguladora dos espaços públicos, mas também dentro do âmbito
privado das habitações.90 Como explica Zamparoni, foram criadas
diversas medidas profiláticas com o intuito de expurgar a peste e que
culpabilizaram as camadas populacionais não­‑brancas pela prolifera‑
ção da doença. Não se restringindo aos lugares de moradia, essas
ações foram colocadas em prática também nos “espaços circundantes
e [n]os espaços do prazer mais tipicamente africanos [...], tais como

89 Zamparoni, “Entre ‘Narros’ e ‘Mulungos’,” 322­‑330. Com relação aos processos de imple‑
mentação do colonialismo português em Moçambique, a importância da medicina colonial
nesse processo e a sua relação com práticas médicas locais, ver: Jacimara Souza Santana,
“A Experiência dos Tinyanga, Médicos­‑Sacerdotes ao Sul de Moçambique: Culturas,
Identidades e Relações de Poder (C. 1937­‑1988)” (Tese de doutorado em História Social,
UNICAMP, 2014); ou Carolina Maíra Gomes Morais, “Estado Colonial Português e
Medicinas ao Sul do Save. Moçambique (1930­‑1975)” (Dissertação de mestrado em His‑
tória das Ciências e da Saúde, Fundação Osvaldo Cruz, 2014). Luiz Henrique Passador,
“‘As Mulheres São Más’: Pessoa, Gênero e Doença no Sul de Moçambique”, Cadernos
Pagu, n.º 35 (julho­‑dezembro de 2010), 177­‑210. Para processos semelhantes ocorridos
em outros contextos coloniais africanos, ver: Giovani Grillo Salve, “O Médico Político e
o Político Médico: O Caso do Dr. Abdullah Abdurahman e a Medicina e Política Colonial
na Cidade do Cabo, 1895­‑1921” (Apresentação Oral, Seminário Internacional “Cultura,
Política e Trabalho na África Meridional”, UNICAMP, Campinas, 11­‑14 maio, 2015); ou
Augusto Nascimento, “Salubridade, Urbanismo e Ordenamento Social em S. Tomé”, in
Actas do Colóquio Construção e Ensino da História de África (Lisboa), 411­‑428.
90 Ver: Secretaria Geral do Governo de Moçambique. Regulamento de Prophylaxia Anti­‑Palustre
da Cidade de Lourenço Marques (Aprovado por Portaria Provincial n.º 86 de 4 de fevereiro de
1907) e Instruções para a Defesa contra os Mosquitos (Lourenço Marques: Imprensa Nacional,
1907), 7. Como estipulou o artigo 13 do regulamento, as “autoridades administrativas ou
sanitárias têm o direito de entrar em todas as propriedades e nas dependências de todos
os estabelecimentos ou habitações”.

84
MATHEUS SERVA PEREIRA

as cantinas, bares e principalmente os batuques nos bairros africanos


da Munhuana, Mafalala e Malanga que, perseguidos, mudavam de
lugar, mas não deixavam de animar as noites”.91 Efetivamente, antes
mesmo da construção das casas referidas por Rita­‑Ferreira, no início
do século XX, a Munhuana e seus arredores, como a Mafalala e
Xipamanine, vinham sendo ocupadas por uma parcela significativa
de trabalhadores migrantes africanos classificados pelo linguajar colo‑
nial como indígenas e que engrossava a mão de obra necessária para
as obras de infraestrutura e expansão de Lourenço Marques.92
Exemplos de batuques que animavam as noites suburbanas lau‑
rentinas e das pressões da imprensa e de órgãos administrativos colo‑
niais para os restringirem podem ser encontrados nos anúncios de
eventos voltados para atrair os moradores da capital colonial para a
ocorrência de “grandiosos batuques”.93 As convocações publicadas
n’O Africano, no segundo semestre de 1912, tiveram como intuito
propagandear um espetáculo programado para o entretenimento
urbano. A produção do “grande batuque”, que ocorreu em setembro
e em outubro “na estrada do Marracuene”, nas proximidades de
Malhangalene, região fronteiriça à Maxaquene, “defronte à cantina
de Alexandre Revez Duarte”, era maior do que outras ocorridas ante‑
riormente. Aquelas apresentações pareciam passar por um processo
de profissionalização, pois contariam com transporte “a preços bara‑
tíssimos”, saindo da Avenida Central, para os interessados em par‑
ticipar do evento, e com a apresentação de batuques “ao desafio, entre
raparigas da Maxaquene”.94

91 Zamparoni, “Entre ‘Narros’ e ‘Mulungos’”, 329. Ver, também: AHM, Administração do


Concelho de Moçambique. Diversos Confidenciais, cx. 05, ano 1907. Secretário Geral ao
Administrador do Concelho de Lourenço Marques. No 46 (urgente/confidencial/ reservada).
92 Sobre os processos migratórios das populações existentes no sul de Moçambique e as
transformações desse processo com a consolidação da presença portuguesa na região, pro‑
movendo o aumento significativo da leva de emigrantes para regiões fronteiriças com
Moçambique e/ou para Lourenço Marques, dentre muitos, ver: Patrick Harries, Work,
Culture, and Identity: Migrant Laborers in Mozambique and South Africa, c. 1860­‑1910
( Jonesburgo: Witwatersrand University Press, 1994). As memórias de Raul Bernardo
Honwana são uma fonte importante para percebermos a existência de uma circulação
constante das populações locais, por diferentes regiões, vilas e cidades nesse início do século
XX. Ver: Raúl Bernardo Honwana, Memórias, 60­‑109.
93 O Africano, 31 de dezembro de 1912. WNA.
94 O Africano, 12 de setembro de 1912 e 10 de outubro de 1912. WNA.

85
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

Maxaquene surge novamente como local privilegiado. Aparen‑


temente, a proliferação dos sons e danças designados como batuques
naquela região da cidade gerou frutos significativos, como a elabo‑
ração de grupos responsáveis por apresentações que transitavam
pelos diferentes bairros dos subúrbios. As apresentações das “rapa‑
rigas de Maxaquene” também animaram o mês de dezembro de
1912. No dia 25 daquele mês, ocorreu “uma dança cafreal (batuque)
entre dois grupos de raparigas da Maxaquene, num terreno na
estrada do Zixaxa”, hoje Rua dos Irmãos Roby, que conecta o fim
do perímetro considerado urbano naquela época e a Xipamanine,
local fronteiriço a Munhuana. Nesse mesmo mês, foi anunciado
para o dia primeiro de janeiro, que, para quem quisesse “passar bem
sem grande dispêndio e divertindo­‑se imenso”, poderia ir a estrada
de Anguane, ao fundo da Avenida Central, portanto, dentro do
perímetro urbano, para assistir batuques “ao desafio, entre belas
raparigas dos arredores”, provavelmente as mesmas que haviam ani‑
mado o dia de Natal na estrada do Zixaxa.95
A ousadia em marcar e propagandear um evento para ocorrer
durante importantes dias para os católicos parece não ter passado
desapercebido pelas autoridades coloniais. A divulgação dos batuques
nas páginas d’O Africano chamou a atenção de alguns administradores
coloniais. Esses teriam trocado correspondências entre si, convo‑
cando a polícia para “proibir uma dança de raparigas”, que seria
“expressamente proibido fazer­‑se batuques a porta das cantinas” e,
em caso de infração, previa­‑se aos indígenas participantes serem “pre‑
sos e castigados severamente”. Demonstrando indignação, o autor
anônimo do texto que divulgou essa ação do Estado não chegou a
questionar a ordem, entendendo­‑a como “bastante moral”. Porém,
criticou a postura de existir, por um lado, um “zelo rigoroso para
proibir um divertimento no dia de Natal” que nada fez para alterar a
“harmonia e o sossego” e, por outro lado, não proibir os “infernais
batuques crônico domingueiros, feitos [...] a porta das cantinas”.96

95 O Africano, 5 de dezembro de 1912, 12 de dezembro de 1912, 31 de dezembro de 1912.


WNA.
96 O Africano, 9 de janeiro de 1913. WNA.

86
MATHEUS SERVA PEREIRA

REPRESENTAÇÃO E REPRESSÃO DOS BATUQUES


NO ESPAÇO URBANO

Em 1929, dezesseis anos após os “batuques crônicos domingueiros”,


foi publicada uma das maiores coleções fotográficas feitas até então
sobre o espaço colonial moçambicano. A iniciativa partiu de José
dos Santos Rufino, português, importante comerciante em Lou‑
renço Marques e parceiro dos irmãos Albasini no jornal O Africano.97
A iniciativa também teve o apoio do militar tenente Mário Costa,
autor dos textos introdutórios dos volumes, dois fotógrafos e um
missionário, o padre Vicente do Sacramento, todos participando de
maneira ativa na produção do material.98 Os dez volumes que com‑
põem a coleção são divididos em três livros dedicados à cidade de
Lourenço Marques, outros seis aos demais distritos de Moçambique
e suas respectivas capitais e, encerrando a publicação, um último
intitulado “Raças, usos, costumes indígenas e alguns exemplares da
fauna moçambicana”. Ao longo dos tomos, pouco nos é informado
a respeito das intempéries no processo de produção e seleção das
imagens, assim como as possíveis reações dos indivíduos fotografa‑
dos por conta do processo de serem capturados pelas câmeras.
Segundo Cristina Nogueira da Silva, apesar das pistas que levam a
crer no insucesso comercial do álbum, o conjunto dos textos e regis‑
tros fotográficos publicados por Santos Rufino são fundamentais
para compreender as maneiras pelas quais o espaço moçambicano
e suas populações foram vistas e classificadas pela literatura colonial
portuguesa, especialmente na medida em que o mesmo foi organi‑
zado esperando agradar um público com expectativas marcadas por
um “olhar colonial”.99

97 Entre agosto de 1911, ou seja, no terceiro ano de existência do O Africano, até 1918, José
dos Santos Rufino ocupou os cargos de Administrador Secretário, Diretor e Editor no
jornal. Ver: O Africano, 1 de agosto de 1911. WNA.
98 José dos Santos Rufino, ed., Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique,
Volume 1, Lourenço Marques, Panoramas da Cidade (Lourenço Marques: J. S. Rufino, 1929), 3.
99 Cristina Nogueira da Silva, “O Registo da Diferença: Fotografia e Classificação Jurídica
das Populações Coloniais (Moçambique, Primeira Metade do Século XX)”, in O Império
da Visão: Fotografia no Contexto Colonial Português (1860­‑1960), org. Filipa Lowndes Vi‑
cente, 67­‑84 (Lisboa: Edições 70, 2014).

87
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

As representações do mundo colonial moçambicano expressas


nos álbuns buscaram reforçar uma linguagem da diferença com rela‑
ção às populações nativas africanas e construir uma presença da
máquina estatal colonizadora que omitia as fragilidades e desconti‑
nuidades da presença portuguesa, assim como a violência do sistema.
No conjunto, retratou o território colonial em três grandes espa‑
ços.100 Primeiramente, um dedicado às áreas produtivas, como as
zonas agrícolas e industriais afastadas dos perímetros urbanos, com
uma paisagem natural e humana ordenada e disciplinada. Os outros
dois retratos foram elaborados para servirem como representações
antagônicas. Os centros urbanos em Moçambique eram entendidos
como espaços que emanavam a obra colonizadora para as demais
regiões. Lourenço Marques ganhou especial proeminência nesse
processo. Os álbuns dedicados à cidade elencaram como destaque
as ruas, avenidas e seus edifícios, assim como seus habitantes de
origem europeia, buscando desafricanizar ao máximo aquela capital,
demonstrando­‑a como “um canto da Europa na África”.101
A desafricanização do espaço urbano é colocada em oposição
ao terceiro ambiente apresentado pela coleção. Esse era um ambiente
designado genericamente como “o mato”. De maneira semelhante
àquela empregada pelo jornal O Português para segregar os batuques
para longe do centro urbano de Lourenço Marques, “o mato” seria
qualquer território não enquadrado pela lógica civilizacional portu‑
guesa. Apresentado com maior destaque no décimo livro, dedicado
às “raças, usos, costumes indígenas”, esse era o local onde poderiam
ser exibidos aspectos fundamentais daquela realidade colonial sem
necessariamente contradizer a imagem elaborada a respeito dos
sucessos portugueses na sua empreitada civilizacional. De maneira

100 Sigo aqui a análise apresentada em Ana Cristina Fonseca Nogueira da Silva, “Fotografando
o Mundo Colonial Africano. Moçambique, 1929”, Varia História 25, n.º. 41 (janeiro/junho
2009): 107­‑128.
101 Rufino, ed., Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique, Volume 1, Lourenço
Marques, Panoramas da Cidade, V. Para uma análise desse processo de desafricanização de
Lourenço Marques a partir das lentes fotográficas e da produção de um saber sobre a mão
de obra nativa que insistiu em colocá­‑la como domesticada e atrasada, ver: Eric Allina,
“Fallacious Mirrors: Colonial Anxiety and Images of African Labor in Mozambique, ca.
1929”, History in Africa, 24 (1997): 9­‑52.

88
MATHEUS SERVA PEREIRA

oposta, foi promovido pelos álbuns fotográficos de Santos Rufino


um estilo e um tom que tendeu a uma maneira propositada de retra‑
tar Lourenço Marques como uma cidade de brancos. A perspectiva
passada pelo álbum era de uma visão contrastante sobre os africanos,
dividindo­‑os de maneira quase que estanque, por um lado, entre
aqueles pertencentes ao mundo rural, entendidos como uma “mis‑
tura de ser humano e animal” e com costumes do “homem pré­
‑histórico”.102 Por outro lado, como aqueles pertencentes ao mundo
urbano, com “um estatuto mais elevado, alegadamente devido à sua
maior exposição à presença civilizadora dos europeus”.103
Buscando apresentar ao leitor aquilo que entendiam como
“mais tipicamente indígena”, o livro afirmou ser capaz de medir os
diferentes estágios civilizacionais no qual estariam os indígenas de
Moçambique.104 Nesse sentido, dentro desse vasto guarda­‑chuva de
enquadramento da tipicidade populacional, surgem aspectos consi‑
derados naturais de todos os africanos, como o “modo de trajar, o
uso da tatuagem, a maneira de se adornarem, a distribuição do tra‑
balho por cada sexo”,105 a poligamia, as práticas da feitiçaria, da
medicina dos curandeiros e o “preceito que todo indígena cumpre:
o preito a Terpsícore”,106 o deleite da dança nos “batuques – dança
cafre”.107
Assim, mesmo com a ocorrência de práticas designadas como
batuques existindo dentro do perímetro urbano e suburbano de
Lourenço Marques, ao longo das primeiras décadas do século XX, o
espaço pensado como natural dedicado aos batuques foi o “mato”.
Os batuques foram associados ao suposto hábito da beberagem dis‑

102 José dos Santos Rufino, ed., Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique,
Volume X, Raças, Usos, Costumes Indígenas e Alguns Exemplares da Fauna Moçambicana (Lou‑
renço Marques: J. S. Rufino, 1929), IX.
103 Jeanne Marie Penvenne, “Fotografando Lourenço Marques: A Cidade e os Seus Habitantes
de 1960 a 1975,” in Os Outros da Colonização: Ensaios sobre o Colonialismo Tardio em Mo‑
çambique, org. Cláudia Castelo et al., 173­‑191 (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2012).
104 Rufino, ed., Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique, Volume X, Raças,
Usos, Costumes Indígenas e Alguns Exemplares da Fauna Moçambicana, III.
105 Rufino, ed., Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique, Volume X, III.
106 Rufino, ed., Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique, Volume X, V. Terpsí‑
core foi uma das nove musas da mitologia grega, filha de Zeus e Mnemosine, com o
atributo da dança como principal característica.
107 Rufino, ed., Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique, Volume X, V.

89
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

seminada pelas populações locais, classificando a música como “sim‑


ples ruídos constantemente repetidos horas e dias” que marcavam
o compasso da dança, entendendo as letras das canções como sendo
“quase sempre sem significado”.108 Porém, seria preciso que um
homem ou uma mulher, “de qualquer idade que seja”, estivessem
“inteiramente impossibilitados de se mover, para resistir ao apelo
do batuque”.109 Ao buscar elaborar uma cartilha comportamental
capaz de designar aquilo que era correspondente ao universo gené‑
rico do indígena, o autor dos Albúns Fotográficos afirmou que os
batuques teriam “lugar a propósito de tudo: casamento, nascimento,
morte; a propósito de um fato tornado notável; a qualquer pretexto
ou até, o que é mais simples, a pretexto algum”, portanto, como um
divertimento.110
As ambiguidades nessa interpretação dos batuques são variadas.
Elas reverberam a tendência pendular entre a incorporação e a dife‑
renciação ao campo da pertença imperial das populações colonizadas
e as dificuldades concretas existentes do seu enquadramento dentro
dos rótulos coloniais de vigilância das fronteiras que deveriam asse‑
gurar as dicotomias entre colonizadores e colonizados.111 Era algo
não agradável para os ouvidos. Porém, ninguém seria capaz de resistir
ao seu chamamento. Por um lado, os batuques eram entendidos
como algo ausente do perímetro urbano, restrito ao mato. Por outro
lado, seria algo intrínseco à natureza dos africanos, sendo realizado
por todos eles, a pretexto de qualquer coisa e onde quer que estives‑
sem. Nesse sentido, os trabalhadores e trabalhadoras urbanos que
povoavam as ruas de Lourenço Marques, majoritariamente classifi‑
cados como indígenas, ocupando os mais variados postos de trabalho,
principais participantes/praticantes dos batuques, e que faziam parte
daquele cenário citadino, foram sistematicamente apagados dos
volumes dedicados exclusivamente à cidade, somente aparecendo
com destaque no volume destinado aos seus “usos, costumes”.

108 Rufino, ed., Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique, Volume X, VI


109 Rufino, ed., Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique, Volume X, VI.
110 Rufino, ed., Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique, Volume X, V e VI.
111 Sobre esse processo, ver: Frederick Cooper, Colonialism in Question: Theory, Knowledge,
History (Berkeley: University of California Press, 2005).

90
MATHEUS SERVA PEREIRA

4. In Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de Moçambique, volume X, 30. As fotografias foram


produzidas no Distrito de Lourenço Marques. Na legenda está escrito: “Ensaio de ‘Jazz­‑Band’ para
um ‘batuque’ – onde só homens dançam”. A instrumentalização que aparece nas imagens nos remete
para as orquestras de timbila, características dos grupos chopi. Esse foi outro estilo que impressionou
agentes coloniais portugueses e foi acionado por seus praticantes, no trato com esses agentes, de
diferentes maneiras. O termo “jazz­‑band” aparece mais de uma vez nesse volume. Seu emprego é
repetido na página 53, quando são expostas fotografias de indivíduos do grupo étnico macua, do
Distrito de Moçambique, no norte do país. Essa nomenclatura parece ter sido usada pelo autor para
designar qualquer conjunto de pessoas negras que estivessem ensaiando com seus instrumentos.

91
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

5. In Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de Moçambique, volume X, 33. A fotografia foi feita
no Distrito de Inhambane. A legenda diz: “A ‘Dança da Morte’, num ‘batuque’ de guerra”. Vale
a pena ressaltar o uso da palavra batuque para designar manifestações muito diferentes entre si.

A solução encontrada pelos produtores da coleção para a repre‑


sentação dessa ambivalência foi a de menosprezar as identidades
múltiplas que vinham sendo construídas à medida em que o avançar
do capitalismo e do colonialismo no território moçambicano alte‑
rava hábitos e costumes, trazendo consigo novas experiências e ins‑
tituições reguladoras da vida social. Essas identidades, elaboradas
através da adoção de diferentes signos, entravam em choque com a
percepção de que o espaço indígena era aquele que estava afastado
da civilização europeia emanada pela cidade, ou seja, pertencente
aos espaços “onde se começa a ver coisas do mato”.112 Todavia, ao
mesmo tempo, os produtores desse rico material textual e ilustrativo
não conseguiam negar a importância, em Lourenço Marques, da

112 Rufino, ed., Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique, Volume X, 15


(legenda).

92
MATHEUS SERVA PEREIRA

presença de uma camada populacional de origem africana marcada


pela confluência de práticas e costumes diversos que os levavam a
ocupar um posicionamento de intermédio entre os dois mundos da
classificação jurídica colonial. O desconforto com essas contradições
aparece, notadamente, quando descrevem os indígenas que estabe‑
leceram maior contato com os europeus como “‘besuntado’ de civi‑
lização”.113 Com relação aos “nativos urbanos”, esses possuiriam “ares
de civilizado”.114 Chamados de “pseudocivilizados”, estariam apenas
cobertos com uma fina camada de “verniz de pura civilização”.115
Nessa altura, parecia ser impossível estar no meio do caminho. Ou
você era alguma coisa, ou simplesmente não era.

6. In Rufino, ed., Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique. Volume X, 5. Na


legenda: “Tipos de Criados da Capital da Colônia: o ‘papo­‑seco’ com ares de civilizado. O ‘Mu‑
fano’ que serve o chá. O Contínuo de escritório”. O “papo­‑seco” seria uma espécie de pão chique
que apenas os brancos comiam e o termo “mufano” possui uma conotação infantilizante.

113 Rufino, ed., Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique, Volume X, IV.
114 Rufino, ed., Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique, Volume X, 5
(legenda).
115 Rufino, ed., Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique, Volume X, VI.

93
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

7. In Rufino, ed., Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique, Volume X, 8. Na


legenda: “‘Páshiça’ – o ‘galego’ africano. Condutor de ‘Ricshaw’ com os ornamentos esquisitos
usados por ‘colegas’ estrangeiros, mas que a Polícia de Lourenço Marques não parece disposta
a permitir... fora da época carnavalesca. Um ‘Monhé Africano’”.

A legenda da fotografia sobre o condutor de “ricshaw”, infor‑


mando que a polícia de Lourenço Marques não estaria “disposta a
permitir” seus ornamentos decorativos, dão pistas da relação que foi
estabelecida entre instituições reguladoras da vida social existentes
naquele meio citadino, nesse caso a polícia, e práticas culturais que
foram vistas como fora do lugar quando existentes dentro da urbe.
As adjetivações manifestas nos jornais para descrever os batuques
são exemplares desse processo. As cantorias e danças descritas pela
imprensa ocorridas dentro de Lourenço Marques e com a partici‑
pação de “pretos e pretas” eram referidas de maneira depreciativa
como “indigestos divertimentos”, algo “infernal e nojento” ou como
uma “algazarra de ensurdecer”. A aplicação preconceituosa de ter‑
mos de cunho racista inferiorizava os apreciadores dos batuques
classificando­‑os como meros “pretos” ou, numa variação mais car‑
regada de ódio racial, “pretalhada”. A solução entendida pelos edi‑
tores dos periódicos para o desconforto que aquelas cenas provocavam
em seus brios civilizacionais foi a de recorrer à autoridade policial e
a sua atuação enquanto braço repressivo do Estado colonial.

94
MATHEUS SERVA PEREIRA

Nas páginas d’O Africano, as depreciações vinculadas às práticas


culturais que não eram consideradas civilizadas fugiam das leituras
racistas recorrentes. Porém, os praticantes dos batuques não esca‑
param de serem vistos a partir das lógicas do progresso europeu que
menosprezavam outras formas de viver no mundo que não a euro‑
centrada. João Albasini, utilizando­‑se do pseudônimo de João das
Regras, em fevereiro de 1916, ao reclamar do procedimento utili‑
zado para o recrutamento dos indígenas para o serviço militar,
defendeu que o melhor lugar para se encontrar indivíduos capazes
para a reformulação das tropas seria nos “arredores da cidade”, onde
estaria “uma bem folgada rapaziada que não trabalha – a maior parte
– que frequenta batuques, que anda de corpo bem tratado”.116 Por‑
tanto, os frequentadores dos batuques seriam gente folgada, da
malandragem.
Uma das primeiras referências que pude encontrar a respeito da
produção musical da camada populacional indígena no espaço
urbano e dos conflitos que isso poderia gerar, especialmente no
ambiente de trabalho, data de 1894, quando Lourenço Marques
ainda não havia se tornado capital da colônia.117 O documento pouco
informa a respeito dos praticantes ou da música que era tocada. Em
abril daquele ano, o chefe da Capitania dos Portos de Lourenço
Marques, ao dirigir­‑se para uma inspeção no farol da Ponta Verme‑
lha, encontrou o vigia semafórico fora do seu posto de trabalho e em
companhia de soldados, estando um deles “a tocar em um harmo‑
nium pertencente ao vigia semafórico” na porta do farol.118 Em res‑
posta ao abandono do posto de trabalho, o instrumento foi apreendido
e suspendeu­‑se o ordenado do vigia por oito dias. Aquele que tocava
o harmonium não chegou a sofrer nenhuma represália, pois conse‑

116 O Africano, 23 de fevereiro de 1906. WNA. A comprovação de que João Albasini utilizou
o pseudônimo de João das Regras foi realizada de maneira primordial por César Braga­
‑Pinto. Ver: César Braga­‑Pinto, “O Olhar Estrábico d’O Africano: Jornalismo e Literatura
em Moçambique”, Revista de Estudos Portugueses 7, (2005): 67­‑87.
117 Agradeço a António Sopa pelo auxílio prestado quando da minha estadia em Maputo. Sua
solidariedade ao ceder referências foi de grande importância para minha pesquisa.
118 AHM, Fundo do Governo do Distrito de Lourenço Marques, século XIX, caixa 71, Carta
do chefe da Capitania do Porto de Lourenço Marques para o senhor Governador do
Distrito, 21 de abril de 1894.

95
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

guiu fugir antes de ser anotado o seu número de identificação.119


A referência a um harmonium não deixa de ser inusitada. A proba‑
bilidade de se tratar de um órgão instrumental portátil é baixa.
O mais plausível é que o chefe da capitania dos portos tenha utilizado
a palavra para se referir a mbila, no plural timbila, que possui dife‑
rentes tamanhos e é uma espécie de xilofone muito comum entre os
chopi, grupo adversário dos angunes, que, por isso mesmo, haviam
se associado aos portugueses no final do século XIX.120
Especulações à parte, O Português, em 1901, relembrou as auto‑
ridades de Lourenço Marques a existência de um edital proibindo
os batuques dentro do perímetro urbano da cidade.121 Algo seme‑
lhante pode ser encontrado naquilo que foi promulgado, em setem‑
bro de 1880, para ser aplicado na Ilha de Moçambique.122 Apesar
de não existirem medidas que proibissem por completo a realização
dos batuques, a postura municipal obrigava seus organizadores a
pagarem uma taxa pela sua realização até a meia­‑noite. Para aqueles
que pretendiam realizar os batuques por toda a noite, o valor cobrado
aumentava significativamente.123 Em geral, os batuques cruzavam
noite adentro. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que ampliou a
arrecadação municipal, a postura buscou regulamentar algo que,
aparentemente, ocorria com frequência nas ruas daquela cidade e,
assim, conseguir controlar as reuniões feitas ao som dos tambores,

119 AHM, Fundo do Governo do Distrito de Lourenço Marques, século XIX, caixa 71, Carta
do chefe da Capitania do Porto de Lourenço Marques para o senhor Governador do
Distrito, 21 de abril de 1894.
120 Sobre a timbila, ver: Hugh Tracey, “Timbila: The Xylophones of the Chopi”, in Chopi
Musicians: Their Music, Poetry, and Instruments, 2.ª ed., 118­‑142 (Oxford: Oxford University
Press, 1970). Especificamente sobre os chopes, ver: David J Webster, A Sociedade Chope:
Indivíduo e Aliança no Sul de Moçambique, 1969­‑1976 (Lisboa: Imprensa de Ciências So‑
ciais, 2009). O ngodo, a timbila e sua relação com o colonialismo português serão melhor
analisados nos próximos capítulos.
121 Infelizmente, não consegui encontrar o edital a qual o periódico fez referência.
122 A relação entre as expressões musicais, sobretudo vinculadas a religião islâmica, existentes
no norte de Moçambique e o exercício colonial português de proibição ou restrição dessas,
pode ser remetido ao final do século XVIII, quando o Governador de Moçambique, Diogo
de Souza, promulgou um ofício proibindo “que toquem mais os cafres e gentios desta
Capital [Ilha de Moçambique] de dia ou de noite os engomas [corruptela de ngoma, que
significa tambor] ou batuques ao som dos quais costumam fazer as suas danças”. Arquivo
Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Cx. 67, Doc. n.º 5, 9 de maio de 1794.
123 Boletim Oficial, n.º 38, 20 de setembro de 1880. Apud António Sopa, A Alegria é Uma Coisa Rara:
Subsídios para a História da Música Popular Urbana em Lourenço Marques (1920­‑1975), 24.

96
MATHEUS SERVA PEREIRA

chegando a quase impossibilitar a sua realização com a aplicação de


taxas mais elevadas para aqueles que desejassem avançar pela noite
dançando e cantando. De maneira semelhante, o “Código de Pos‑
tura da Câmara Municipal de Inhambane”, importante cidade lito‑
rânea situada ao norte de Lourenço Marques, de agosto de 1885,
proibia o que designavam como batuques de origem árabe­
‑muçulmana124 dentro de seu perímetro urbano e obrigava ao paga‑
mento de uma taxa duas vezes maior, comparativamente àquela
cobrada na Ilha de Moçambique, a qualquer um que quisesse rea‑
lizar batuques para além das 22 horas.125
Apesar de não ter conseguido encontrar referências a legislações
semelhantes para Lourenço Marques, em 1914, o jornal The Lou‑
renço Marques Guardian publicou em suas páginas o que considerou
serem “medidas acertadas”. Essas medidas diziam respeito à publi‑
cação no Boletim Oficial, do mês de novembro daquele ano, de um
edital do Administrador do Concelho de Lourenço Marques que
instituiu uma série de “proibições aos proprietários de estabeleci‑
mentos de venda de bebidas destiladas ou fermentadas e de comida
a indígenas, denominados ‘cantinas’”. Semelhante às posturas para
a Ilha de Moçambique e Inhambane, o jornal defendeu esse tipo de
regulamentação excluindo o possível interesse e importância desses
estabelecimentos para uma parcela significativa dos habitantes de
Lourenço Marques, pois entendia que, sem dúvida, seria “aprovado
pela maior parte dos habitantes da cidade”. Ao mesmo tempo, legi‑
timou esse tipo de regulamentação afirmando que as restrições que
pretendiam ser impostas eram existentes nas demais cidades da
África austral, terminando por convocar a polícia para que o edital
fosse “comprido [sic] a rigor”. 126

124 O termo usado no código é “munhae ou mandeque”, variações do termo pejorativo monhé,
que significa o mestiço de árabe, muçulmano, com o negro. Ou, melhor dizendo, um negro
muçulmano: “Art. 27.º São proibidos os batuques de munhae e mandique”. In: Código de
Postura da Câmara Municipal do Distrito de Inhambane. Aprovado por acordão do conselho de
província n.º 22 de 8 de julho de 1887. Moçambique: Imprensa Nacional, 1887, 7. BNP.
125 Boletim Oficial, n.º 33, 15 de agosto de 1885. Apud António Sopa, A Alegria é Uma Coisa
Rara: Subsídios para a História da Música Popular Urbana em Lourenço Marques
(1920­‑1975).
126 Lourenço Marques Guardian, 26 de novembro de 1914. AHM.

97
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

De maneira geral, essa nova portaria oficial buscou restringir a


presença de “pretos e pretas” nos estabelecimentos vulgarmente cha‑
mados de cantinas, criando barreiras para os usos que haviam se
tornado corriqueiros naquele tipo de comércio, estabelecendo, por
exemplo, multas ao cantineiro que “comprar ou guardar nos seus
estabelecimentos objetos trazidos por indígenas” ou impedindo o
pernoite de qualquer indígena que não pertencesse “à família do
dono ou gerente do estabelecimento ou não sejam serviçais deste”.127
Conjuntamente a essas restrições, a primeira medida louvada pelo
periódico foi a da proibição de outra prática comum nas cantinas:
as cantorias e danças que animavam a vida urbana daquela parcela
que habitava Lourenço Marques e era classificada como indígena.
Segundo o jornal, teria ficado completamente proibido nas cantinas,
a partir daquele momento, “as cantorias ou descantos e o uso do
‘harmonium’, marimba ou qualquer outro instrumento que possam
provocar a atenção dos transeuntes”.128
A promulgação de legislações que buscavam controlar e disci‑
plinarizar as atitudes da camada populacional africana que se enqua‑
drava na categoria colonial de indígena, dentro do espaço urbano,
nem sempre conseguiu respostas condizentes com seus objetivos.
Algumas edições depois da que havia louvado a postura das autori‑
dades coloniais sobre as cantinas e, principalmente, da proibição das
cantorias que lá ocorriam, o Lourenço Marques Guardian se viu na
obrigação de chamar a atenção, novamente, da polícia. O periódico
retomou o assunto alegando que em “relação ao barulho que os
indígenas fazem dentro e fora” daqueles estabelecimentos era um
assunto que havia se tornado “notório desde há muito tempo”. A neces‑
sidade de retomar o tema estava vinculada à interpretação que
faziam a respeito da ação policial. Segundo a opinião do jornal, a
polícia mostrou­‑se pouco disposta a dar cabo daquelas “distrações”,

127 Lourenço Marques Guardian, 26 de novembro de 1914. AHM. A utilização das cantinas
como local para o depósito de bens e dinheiro, ou mesmo para a venda de artigos trazidos
no retorno do trabalho migratório na África do Sul, assim como dos quartos de aluguel
como moradia provisória, eram bastante comuns naquele contexto e serão analisadas em
outros capítulos do livro.
128 Lourenço Marques Guardian, 26 de novembro de 1914. AHM.

98
MATHEUS SERVA PEREIRA

julgando que “o sr. Comissário de Polícia devia voltar a sua atenção,


ao menos por um instante”, para os batuques ocorridos ao redor das
cantinas localizadas em toda Lourenço Marques.129
Essa atitude mais enérgica do periódico ocorreu em resposta a
uma correspondência endereçada ao seu diretor. O autor da carta
questionava a capacidade do que haviam classificado enquanto
“medidas acertadas” de serem realmente eficazes para o controle da
população indígena que trabalhava e morava na cidade. Elogiando
a postura anunciada como “louváveis medidas”, no texto era per‑
guntado até que ponto elas eram capazes de obterem resultados, na
medida em que “quando são simplesmente aplicáveis só dentro dos
estabelecimentos e não nas ruas, pois se lá lhes não é permitido
cantar e dançar, vêm para as ruas exibir as suas danças e concertos”.
Suas suspeitas estavam no fato de não serem raras as noites em que
“a petralhada depois de sair duma cantina na Rua Princesa Patrícia
vêm para a rua e esquina mais próxima da Avenida 24 de Julho [...]
dar concertos ao ar livre com variadíssimos instrumentos, e, com
gritos infernais, dão começo ao baile [...] que, por vezes, chegam a
durar até às duas da madrugada”. Ao que tudo indica, a Avenida 24
de Julho é a antiga Avenida Francisco Costa e a Rua Princesa Patrí‑
cia é a que aparece no mapa de 1903 com o nome de Rua da Maxa‑
quene, ao lado do hospital. As mudanças de nome provavelmente
ocorreram após a proclamação da República em Portugal, em 1910.
É interessante percebermos como o bairro “de moradia como a
Maxaquene” continuou aparecendo nas notícias de realizações de
batuques, sendo um dos locais, nessas primeiras décadas do século
XX em Lourenço Marques, com o maior número de batuques na
cidade. Por isso mesmo, as “exibições” ocorridas no bairro foram
constantemente alvo de reclamações e de solicitações pela ampliação
da sua vigilância.130
A representação dos batuques enquanto práticas fora de lugar
quando realizadas dentro do perímetro urbano de Lourenço Mar‑
ques – e, consequentemente, da própria presença de africanos deten‑

129 Lourenço Marques Guardian, 10 de dezembro de 1914. AHM.


130 Lourenço Marques Guardian, 10 de dezembro de 1914. AHM.

99
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

tores dessas práticas culturais naquele espaço – veio acompanhada


da elaboração de uma série de políticas de repressão. Efetivamente,
as notícias que pude encontrar a respeito dos batuques realizados
dentro do perímetro urbano, ou mesmo suburbano, diminuíram
significativamente após 1914, praticamente se extinguindo na
década seguinte. O fenômeno da redução dos artigos em periódicos
sobre essas práticas ou daqueles que indicavam uma presença da
população adepta aos chamados batuques que ocorriam na cidade
pode ser explicada pela transformação na diagramação dos jornais
consultados, no sentido em que, a partir daquele ano, voltaram suas
atenções para a guerra que havia começado na Europa. Porém,
parece­‑me plausível que esse desaparecimento dos batuques das
folhas impressas periódicas esteja baseado na consolidação do pro‑
jeto de construção da cidade colonial como uma cidade segregada.
Outro fator importante para essa mudança pode ser percebido atra‑
vés do destaque que passou a ser dado aos batuques organizados por
diferentes agentes coloniais e não mais aqueles realizados nas esqui‑
nas, quintais e cantinas da cidade. O silêncio na fonte para um tipo
de batuque, passando a aparecer com frequência maior outros que
simbolizavam os processos de dominação colonial, é uma pista con‑
tundente para essas conclusões.
As recorrentes reclamações dos periódicos a respeito da inefi‑
cácia da polícia para reprimir os costumes entendidos como naturais
de “pretas e pretos” dentro do espaço da urbe, demonstram que a
letra fria da lei, num primeiro momento, pode não ter sido eficiente,
tendo encontrado barreiras para a sua concretização. A própria
insistência na realização dos batuques, fosse nas cantinas, nas ruas
ou nos quintais, apesar das restrições que foram sendo aplicadas,
demonstram um questionamento ao processo de segregação imposto
pelas políticas de repressão.
Em 1919, por exemplo, as reclamações d’O Africano não mais
estavam direcionadas aos batuques ocorridos em zonas centrais de
Lourenço Marques, mas àqueles que, “nos marcos da cidade”, com
seu “infernal barulho”, diziam incomodar “os habitantes que lhes
ficam perto”. O cantar e dançar dos indígenas, que tanto tiravam “o
sono e tranquilidade ao vizinho”, poderia continuar existindo, desde
que “ao longe; onde não incomode ninguém”. Até que esse deslo‑

100
MATHEUS SERVA PEREIRA

camento não ocorresse, o artigo solicitou as autoridades competen‑


tes que não permitisse “mais batuques dentro da área chamada dos
subúrbios”.131
Ao mesmo tempo que condenou o “infernal barulho” que inun‑
dava com seus sons o ar dos subúrbios, O Africano não deixou de
anunciar, com um relativo tom de aprovação, os batuques que foram
realizados no âmbito de celebrações oficiais organizadas para dife‑
rentes fins cívicos. Comemorando a possibilidade de “concorrer
muito para aproximar o indígena ao convívio do europeu”, louvaram
a iniciativo do Sr. Mattos, administrador da Manhiça, região loca‑
lizada ao norte de Lourenço Marques, pela “pequena festa” por
ocasião do “feriado da República” e que constaria com os “costuma‑
dos batuques”.132 Algo semelhante ocorreu em 1915, quando, no
distrito de Gaza, realizaram­‑se festejos “deslumbrantes, a data
comemorativa do 5.º aniversário da República”. Com uma progra‑
mação extensa, enfeites com as bandeiras de Portugal e a visita de
importantes políticos, a partir das oito horas da manhã, do dia 5 de
outubro, tudo estava pronto para o “grande batuque que durou todo
o dia”. É possível imaginar que os batuques foram aqueles que mais
estimularam os que haviam comparecido aos festejos. Em outros
dois dias de regozijo pela República em Portugal, lá estavam os
batuques na programação.133
É importante notar que o jornal anunciou, para aquele ano, a
existência de outras festas pela proclamação da República em Por‑
tugal, inclusive as que ocorreram em Lourenço Marques. Porém,
em sua programação, nenhuma menção foi feita a realização de
batuques. Em contraste a essa ausência, em 1913, antes da promul‑
gação da portaria proibitiva de 1914, o periódico anunciou que
constaria no programa das festas pela república, a “música cafreal”
de Inhambane, com a vinda para a cidade de “um grande grupo de
tocadores de marimbas”.134 E, surpreendentemente, ainda naquele
ano, o periódico divulgou, em português e na língua ronga, a pro‑

131 O Africano, 16 de abril de 1919. WNA.


132 O Africano, 4 de outubro de1913. WNA.
133 O Africano, 20 de outubro de 1915. WNA.
134 O Africano, 9 de julho de 1913. WNA.

101
ALGAZARRAS ENSURDECEDORAS

gramação de festas que ocorreriam na Munhuana. Nessa cartilha


constavam provas desportivas, como corridas, corridas de sacos,
salto de vara, outros tipos de jogos, quermesses, momentos musicais
e, para o dia 25 de dezembro, batuques.135
O exercício de construção e efetivação de uma legislação regu‑
ladora da vida social dentro do espaço urbano de Lourenço Mar‑
ques, percebida aqui através das diferentes formas de enxergar e
reprimir aquilo que foi chamado de batuques, revelam um esforço
para tirar de vista aquelas pessoas que insistiam em batucar de uma
maneira específica pela cidade. Ao mesmo tempo, demonstra uma
convivência, obviamente não pacífica, entre diferentes grupos sociais
que efetivamente faziam parte daquele espaço. Apontando, em
determinados momentos, para a existência de uma zona propícia
para a prática dos batuques, no final, nem mesmo os subúrbios
pareciam escapar por completo das vigilâncias jornalísticas e admi‑
nistrativas coloniais.
As dificuldades de conceber os batuques como mais uma expe‑
riência pertencente à cultura da cidade colonial não tiveram apenas
como resposta a repressão direta exercida pela força policial. Con‑
juntamente com esse processo de tentativa de segregação dos batu‑
ques para o mais longe possível de Lourenço Marques, especialmente
de seu centro urbano, podemos perceber outro fenômeno, que, não
sem embates, buscou incorporar aquelas danças e cantorias ao
mundo imaginativo da colonização portuguesa e as cerimonias ofi‑
ciais do regime colonial. Por um lado, os batuques voltados para a
diversão, para ocasiões especiais de cunho particular e/ou ritualísti‑
cos, não eram vistos de maneira positiva. Classificados de maneira
pejorativa, acompanhados de denominações racializantes que bus‑
cavam inferiorizar as práticas e seus praticantes, eram vistos quase
sempre de forma negativa. Por outro lado, aqueles realizados dentro
de um ambiente controlado foram tolerados enquanto canal de
demonstração de uma incorporação das populações nativas ao
mundo simbólico do poder colonial português. A impossibilidade
desejada por alguns de expurgar aquelas práticas culturais do mundo

135 O Africano, 20 de dezembro de 1913. WNA.

102
MATHEUS SERVA PEREIRA

urbano encontrou como solução possível para os seus anseios a sua


domesticação. Para além, perceber a apropriação dessas práticas
culturais dentro de um mundo oficial é reconhecer a incapacidade
desse poder de extirpar uma agencialidade africana visível nas batu‑
cadas recorrentes no início de século XX em Lourenço Marques.
Entendendo que valiam a pena insistir no ato de festejar, mostrar
os corpos em movimentos com os quadris e fazer ecoar o som de
tambores, marimbas e vozes pelas ruas e avenidas da capital colonial
era um sinal de que o processo de incorporação dessas práticas não
foi capaz de retirar a sua força enquanto local de afirmação de um
desejo político de estar naquele mundo e fazer parte daquela cidade.
Os batuques funcionaram politicamente como um mecanismo do
lusco­‑fusco cultural colonial, que foi operacionalizado para tornar­
‑se em um canal de comunicação conflituoso com o mundo urbano
que cercava “pretos e pretas”, apesar da insistência em tentar cercear
e apagar essa presença.

103
CAPÍTULO 2

Construindo categorias,
homogeneizando diferenças,
enquadrando pessoas e práticas

UM ALFERES­‑MÉDICO E OS “PRETOS” EM
LOURENÇO MARQUES

Joaquim Alves Correia de Araújo era membro de uma família


relativamente abastada do norte de Portugal. Em 1917, recém­
‑formado em Medicina pela Universidade do Porto, foi convocado
para atuar na frente de guerra portuguesa em Moçambique contra
as tropas alemãs, num momento que ficou conhecido como perten‑
cente à I Guerra Mundial. Para o campo levou consigo alguns per‑
tences e um caderninho que lhe serviu de diário. As anotações do
alferes­‑médico realizadas no campo transparecem uma quase com‑
pleta ignorância reinante entre círculos metropolitanos a respeito
das populações colonizadas pelo império português na África. De
maneira geral, as mesmas foram tratadas no diário como mais um
aspecto da paisagem local, soldados rasos aliados ou guerreiros ini‑
migos a serem derrotados. O único grupo que aparece nomeado é
o dos macondes, retratados como principais inimigos dos portugue‑
ses.1 Os intensos combates travados dão a entender que a guerra

1 Os macondes possuem uma longa história de relações conflituosas com os portugueses.


O grupo étnico tornou­‑se mais relevante no cenário do colonialismo português ao longo
do século XX, com a relação estabelecida entre os escultores macondes, a administração
colonial portuguesa e seu protagonismo nas configurações da luta independentista. Sobre
esse contexto, ver: Lia Dias Laranjeira, Mashinamu na Uhuru: Arte Makonde e História
Política de Moçambique (1950­‑1974) (São Paulo: Intermeios/Kapicua, 2018). Sobre o con‑
texto dos territórios do norte de Moçambique ao longo do século XX, ver: Harry G. West,
Kupilikula: O Poder Invisível em Mueda (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2009).

105
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

ocorreu mais para dominar os próprios macondes, que insistiam em


manter­‑se fora do alcance colonial português, do que contra ações
militares alemães. Os únicos representantes daquele grupo de pes‑
soas que eram classificados como indígenas e que ganhou alguma
caracterização ligeiramente mais específica foram “o moleque de
nome Moçambique” e o “moleque” Ali.2 Nada mais sabemos sobre
eles. O emprego do termo “moleque” indica que ambos eram seus
serviçais domésticos. Terminaram nomeados graças a esse fato, que
levava o médico­‑alferes a anotar seus vencimentos.
Durante sua estadia em Moçambique entre 1917 e 1918, Joa‑
quim Araújo esteve em Lourenço Marques duas vezes. Aproveitou
a estadia na cidade, disfrutando­‑a como qualquer outro branco com
posses. Nas duas ocasiões, não ficou no navio que o trazia até ali.
Preferiu hospedar­‑se num hotel de renome, o Hotel Paris. Refor‑
mado no início da década de 1910, apresentava­‑se na imprensa
local como “um dos melhores hotéis da cidade”.3 Estava locali‑
zado distante do Hotel Africano, que ficava na Malanga, região
periférica da cidade, e que tinha como público alvo a “nossa gente”
que sabia ler e/ou escrever em ronga.4 Passeou. Comprou jornal,
foi em cafés, no cinematógrafo viu “fitas inglesas”.5 Fumou e
bebeu champanhe no “bar da Julieta”.6 Duas coisas lhe impres‑
sionaram. A primeira, o preço das coisas. Achou a cidade caríssima.
Só uma coisa lhe pareceu barata, o “requichó – carro puxado por
um preto”. A segunda característica impactante foram os seus habi‑
tantes. Aparentemente ficou bastante surpreso ao constatar que a
“maior parte da população [era] preta, principalmente trabalhado‑
res e criados”.7
Desde a ascensão de Lourenço Marques como centro do poder
colonial português em suas possessões na costa da África oriental,
existiu um embate entre a imagem que se construía sobre a cidade

2 Teresa Araújo, org., Moçambique na I Guerra Mundial: Diário de um Alferes­‑Médico, Joaquim


Alves Correia de Araújo, 1917­‑1918 (Ribeirão: Edições Húmus, 2015), 56 e 96.
3 O Africano, 28 de março de 1914. WNA.
4 O Brado Africano, 1 de novembro de 1919. WNA.
5 Aráujo, Moçambique na I Guerra Mundial, 52.
6 Aráujo, Moçambique na I Guerra Mundial, 118.
7 Aráujo, Moçambique na I Guerra Mundial, 52.

106
MATHEUS SERVA PEREIRA

e o ambiente vivido naquele espaço, especialmente quando direcio‑


namos o olhar para o mundo daqueles que ocupavam a maioria dos
postos de trabalho. Por um lado, independente das interpretações
múltiplas sobre a ação colonizadora portuguesa em Moçambique,
diferentes agentes sociais agiram em prol da edificação de uma
“cidade de África que procura não sentir a África”.8 Nesse sentido,
existiu um esforço para silenciar aquilo que era considerado mais
representativamente africano que poderia existir dentro do períme‑
tro urbano. O objetivo último era o de designar um espaço circuns‑
crito – o “mato” – para essas formas de ser e agir, expurgando­‑as da
“urbe”. Por outro lado, exemplos como o das apresentações de batu‑
ques “entre raparigas da Maxaquene”9 ou dos provocativos gestos
do “membrudo negralhão”10 e a persistente maneira de vestir­‑se
com capulanas, revelam cenas de um processo não linear. A surpresa
do alferes­‑médico sobre a cor da pele predominante dos habitantes
de Lourenço Marques é exemplo das sucessivas batalhas cotidianas
desse processo. É possível supor que suas informações a respeito da
cidade, baseadas naquela imagem de que a mesma corresponderia
a um mundo europeu em terras africanas, tenha entrado em choque
com aquilo que encontrou: uma urbe com uma vivência cotidiana
composta, majoritariamente, por “pretos”.
É dentro desse remelexo, que vai e vem entre representações e
experiências dos principais habitantes de Lourenço Marques e das
populações nativas africanas do sul de Moçambique, que o presente
capítulo pretende se debruçar. O objetivo fundamental aqui será o
de problematizar uma leitura daquele mundo que depreciava essas
experiências “pretas” urbanas, classificando­‑as como anômalas. Ao
mesmo tempo, essas experiências mostram novas e singulares for‑
mas de vida que foram sendo elaboradas na medida em que se viram
forçadas a interagir com as recém­‑criadas instituições coloniais
reguladoras da vida social.

8 Rufino, ed., Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique, Volume III, Lourenço
Marques – Aspectos da Cidade, Vida Comercial, Praia da Polana, etc. (Lourenço Marques: J.
S. Rufino, 1929), III.
9 O Africano, 12 de setembro de 1912 e 10 de outubro de 1912. WNA.
10 O Africano, 22 de dezembro de 1911. WNA.

107
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

Para atingir esses objetivos, primeiramente será analisada a ela‑


boração de um determinado conhecimento sobre as populações
colonizadas originárias do atual Moçambique. O tema não é pro‑
priamente novo. A relação entre o conhecimento das ciências sociais
elaborado em Portugal e os diálogos estabelecidos com o poder
colonial português, para diferentes regiões de suas possessões ultra‑
marinas, avolumou­‑se na última década.11 Os exemplos bibliográ‑
ficos recentes buscaram, de maneira geral, romper com uma
tendência historiográfica de aproximações indevidas entre diferentes
espaços do império colonial português. Ao promover um recorte
espaço­‑temporal ao sul de Moçambique no momento de instalação
e consolidação da presença colonial portuguesa, pretendo apontar
para a importância desse tipo de análise circunscrita. Com isso acre‑
dito ser possível compreender como essas formas de criação de cate‑
gorias nominativas coloniais estiveram vinculadas as dinâmicas
estabelecidas entre as práticas de dominação portuguesa e as expe‑
riências das populações africanas daquele contexto em específico.
O intuito é o de perceber como as interpretações sobre aquela rea‑
lidade produziram uma visão que excluía populações indígenas de
uma possível existência dentro do espaço urbano. Majoritariamente
tendo como intuito aperfeiçoar os mecanismos de dominação colo‑
nial, administradores, militares, missionários, médicos e, mais tar‑
diamente, os antropólogos, ou seja, toda uma gama de agentes do
poder colonial, dedicaram parte de suas vidas ao estudo daqueles
indivíduos que classificavam como indígenas. Selecionaram, inven‑
tariaram, tipificaram o que entendiam ser os usos e costumes daque‑
les que deveriam ser levados para o caminho da suposta civilização.
De maneira contraditória, a ampliação no conhecimento sobre os

11 A lista poderia ser longa. Atenho­‑me apenas a alguns exemplos importantes dessa biblio‑
grafia: Lorenzo Macagno, Os Outros Muçulmanos: Islão e Narrativas Coloniais (Lisboa:
Imprensa de Ciências Sociais, 2006); Rui Mateus Pereira, “Conhecer para Dominar: O De‑
senvolvimento do Conhecimento Antropológico na Política Colonial Portuguesa em Mo‑
çambique, 1926­‑1959” (Tese de Doutoramento em Antropologia, FCSH­‑UNL, 2005);
Ricardo Roque, Antropologia e Império: Fonseca Cardoso e a Expedição à Índia em 1895
(Lisboa: Imprensa de Ciência Sociais, 2001); Filipa Lowndes Vicente, Outros Orientalismos:
A Índia entre Florença e Bombaim (1850­‑1900) (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais,
2009).

108
MATHEUS SERVA PEREIRA

grupos e indivíduos que compunham a genérica categoria de indí‑


gena, não necessariamente levou a uma complexificação desses den‑
tro do espaço urbano. Muitas vezes o resultado foi exatamente o
oposto, terminando por serem entendidos como indivíduos fora de
seus lugares naturais, distantes de suas formações culturais de ori‑
gem, e, consequentemente, amorfos.
O esforço em superar as dificuldades encontradas por Portugal
no objetivo de compelir as populações nativas para o mercado de
trabalho, inserindo­‑as num sistema econômico monetário capita‑
lista, promoveu, dentre outras coisas, a formulação de legislações
que delimitassem o corpo populacional do mundo colonial a partir
de determinadas categorias, baseadas na região de origem e em
divisões raciais. Esse conjunto de disposições legais, formuladas
entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX,
estabeleceu juridicamente a existência de duas categorias que defi‑
niriam, formalmente, o lugar das populações negro/africanas nos
quadros do colonialismo português até a década de 1960: os assi‑
milados e os indígenas. Os assimilados foram descritos em diferen‑
tes códigos implementados pelas políticas coloniais como os
africanos que haviam abandonado os “usos e costumes da sua raça”,
adotando hábitos do chamado mundo civilizado. Os indígenas, que
compunham a esmagadora maioria da população, seriam os africa‑
nos que continuavam praticando e vivendo a partir dos “usos e cos‑
tumes da sua raça”. Sua definição era entendida como um grupo não
propenso ao trabalho e, consequentemente, naturalmente ocioso, o
que estimulou a produção de legislações que conceberam o trabalho
como ferramenta civilizacional.
O estabelecimento da obrigação moral do trabalho para os defi‑
nidos como indígenas, por meio do Código do Trabalho Indígena,
de 1899, ao qual se seguiram outros semelhantes em 1906, 1911,
1914, 1926 e 1928, e do Estatuto Político, Civil e Criminal dos
Indígenas de Guiné, Angola e Moçambique, de 1929, tiveram como
objetivo último promover o surgimento de uma força de trabalho
negra­‑africana sub­‑proletarizada e sub­‑remunerada, que tivesse
como características principais a abundância, o baixo custo e a dis‑
ciplina. Em geral, a construção de mecanismos que empurrassem
os africanos, sobretudo os indígenas, para o mercado de trabalho

109
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

capitalista desenvolvido com o advento do colonialismo, fossem por


meio do trabalho forçado ou da venda voluntária de sua força de
trabalho, andaram lado a lado com a produção da categoria indígena
e de suas supostas características socioculturais. A memória justifi‑
cativa da colonização portuguesa na África foi construída exata‑
mente tendo como base as medidas legislativas que tentaram regular
a produtividade do trabalhador nativo dentro de uma ideia de explo‑
ração digna e propensa para se conduzir essa mão de obra rumo a
civilização.12
A bibliografia sobre a construção desse arcabouço jurídico­
‑governamental colonizador português, assim como as investigações
sobre as dinâmicas estabelecidas entre as práticas colonizadoras e as
variadas lógicas socioculturais das populações nativas africanas, têm
interpretado os contatos a partir da existência de um paradoxo no
projeto de civilizar e evangelizar das missões colonialistas europeias.
Como explica Patrícia Ferraz de Matos, por um lado, no paradoxo
colonial “defendia­‑se a necessidade de proteger os ‘usos e costumes’
dos nativos; por outro, defendia­‑se a necessidade de conduzir os
nativos a um processo assimilatório (onde naturalmente parte desses
‘usos’ se esvaneceria)”.13
O fenômeno de construção da ideia de cultura popular – em
que os “usos e costumes” deveriam ser tipificados e corresponde‑
riam a um folclore, que, por sua vez, simbolizaria o amálgama
cultural de um determinado povo e, por conseguinte, de uma nação
unificada, promovedora da homogeneização e padronização de
variadas práticas culturais – foi um processo que pode ser percebido
em diferentes partes do mundo a partir da segunda metade do
século XIX. Para Portugal, trabalhos como os de Vera Marques
Alves, sobre a atuação do Secretariado da Propaganda Nacional e
os usos nacionalistas da cultura popular feitos pelas ciências sociais,

12 Jerónimo, Livros Brancos, Almas Negras.


13 Patrícia Ferraz de Matos, As “Cores” do Império: Representações Raciais no Império Colonial
Português (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2006), 253. Nessa perspectiva, ver, tam‑
bém: Lorenzo Macagno, “O Discurso Colonial e a Fabricação dos ‘Usos e Costumes’.
Antonio Enes e a Geração de 95”, in Moçambique, Ensaios, org. Peter Fry, 61­‑90 (Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2001).

110
MATHEUS SERVA PEREIRA

e os de Marcos Cardão, sobre as relações entre projetos políticos


ideológicos nacionalistas­‑colonialistas e o que o autor chama de
“cultura de massas”, demonstram como o Estado Novo português
(1933­‑1974) esforçou­‑se em desenvolver projetos de homogenei‑
zação de práticas culturais, afunilando­‑as para o desígnio de fol‑
clore e direcionando­‑as para um determinado fim político­‑ideológico,
no seu território metropolitano.14 No campo da História da África,
como aponta Karin Barber, “duas categorias, ‘tradicional’ e ‘elite’
(ou ‘moderno’ / ‘Ocidentalizado’), dominaram os estudos sobre
culturas africanas”.15 Atualmente, pesquisas problematizando as
divisões estanques do universo cultural africano entre dois polos
opostos supostamente estáticos apontam para a necessidade fun‑
damental de compreender o tradicional como produto da própria
modernidade.16
Para o caso das populações do sul de Moçambique, as visões
predominantes em círculos metropolitanos portugueses sobre as
relações que deveriam ser estabelecidas com as populações coloni‑
zadas, durante o período analisado, passaram por um processo de
tipificação que promoveu o fabrico de nativos dentro de uma ordem
social e cultural que deveria ser, paradoxalmente, preservada e com‑
batida. Como resultado desse método, o aprisionamento de uma
tipificação dos africanos, sobretudo os indígenas, numa forma de
ser que os entendia como imutáveis, consequentemente os limitou,
ao menos no esforço analítico dos homens do Império, a um deter‑

14 Vera Marques Alves, Arte Popular e Nação no Estado Novo: A Política Folclorista do Secreta‑
riado de Propaganda Nacional (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2013); Marcos Car‑
dão, Fado Tropical: O Luso­‑Tropicalismo na Cultura de Massas (1960­‑1974) (Lisboa: Edições
da Unipop, 2014).
15 Karin Barber, “Views of the Field. Introduction”, in Readings in African Popular Culture,
ed. Karin Barber (Indiana: Indiana University Press, 1997), 1 [tradução livre].
16 As reflexões sobre o passado e a escrita da História são fundamentais para uma problema‑
tização da relação entre a ação imperial europeia de meados do século XIX e XX e as dife‑
rentes maneiras pelas quais variados povos constituem suas noções com o tempo e com a
ideia de passado para além de uma divisão binária entre passado/tradição, futuro/moderno.
Como aponta Sanjay Seth, “enquanto continuarmos [...] escrevendo história, precisamos
re­‑conceber o que, exatamente, estamos fazendo quando escrevemos o passado dos outros
em termos muito distintos dos seus próprios; precisamos pensar na história não por um
veio imperialista, como a aplicação da Razão ao passado, e sim como o diálogo entre dife‑
rentes tradições de raciocínio”. Sanjay Seth, “Razão ou Raciocínio? Clio ou Shiva?”, História
da Historiografia, n.º 11 (2013): 175.

111
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

minado destino.17 No entanto, a própria perspectiva de um para‑


doxo colonial foi sendo construída, vivenciada e usada de diversas
maneiras e em variados níveis, na medida em que as múltiplas cate‑
gorias de intercâmbio empregadas naquele contexto encontraram­‑se
obrigadas a interagir dentro das instituições reguladoras da vida
social implementadas pela expansão colonial. As constantes reno‑
vações das condições jurídicas que abarcavam o espaço colonial,
sobretudo quando relacionadas às políticas que visavam estabelecer
um controle mais rígido sobre as populações nativas, demonstram
como um enfoque de análise no esforço legislativo colonizador por‑
tuguês não ajuda necessariamente a compreender as disputas coti‑
dianas que permeavam o exercício do poder colonial. Ao subverter
o olhar desses processos, percebendo diferentes clivagens desse con‑
texto, enxergando­‑o como um local de contestações e potencial‑
mente conflitivo, buscando aproximá­‑lo das realidades existentes
no campo do território cotidiano dos tratos coloniais com as popu‑
lações nativas do sul moçambicano, sobretudo daqueles juridica‑
mente classificados como indígenas, pretendo elaborar uma análise
que vá para além da constatação da existência do paradoxo
colonial.
Nesse sentido, no segundo tópico do capítulo aprofundo de
que maneira as práticas designadas genericamente nas fontes como
batuques passaram, ao mesmo tempo, por um processo de homo‑
geneização e de escrutinização por parte de diferentes agentes da
ação colonial portuguesa. Esse não é, necessariamente, um fenô‑
meno perceptível somente nas palavras desses sujeitos sociais.
Como demonstrei anteriormente, os membros que compunham o
Grêmio Africano de Lourenço Marques ou o Instituto Negrófilo,
duas das mais importantes agremiação da primeira metade do
século XX, compostas por importantes membros das elites africanas

17 Matheus Serva Pereira e Washington Santos Nascimento, “Etnicidades e os Outros em


Contextos Coloniais Africanos: Reflexões sobre as Encruzilhadas entre História e Antro‑
pologia”, in Etnicidade e Trânsitos: Estudos sobre Bahia e Luanda, org. Marise de Santana,
Edson Dias Ferreira e Washington Santos Nascimento, 20­‑36 ( Jequié; Rio de Janeiro:
Programa de Pós­‑Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade (UESB) e Áfri‑
cas: Grupo de pesquisa Interinstitucional (UERJ – UFRJ), 2017).

112
MATHEUS SERVA PEREIRA

letradas e que buscaram interferir no cenário colonial português


por meio da imprensa que controlavam, posicionaram­‑se contra‑
riamente à realização de “batuques” no espaço urbano de Lourenço
Marques e/ou a sua incorporação ritualística em celebrações da
presença portuguesa no território moçambicano. Predominante‑
mente, a atuação desses homens foi contrária à noção de proteção
do que imaginavam ser os “usos e costumes” locais, defendendo
um expurgo dos mesmos em prol de uma suposta assimilação com‑
pleta e igualitária ao mundo civilizacional europeu de todos aqueles
que se encontravam no guarda­‑chuva da categoria de africano/
colonizado.
Interessa­‑me analisar como os agentes coloniais que promove‑
ram e atuaram na empreitada colonizadora portuguesa do sul de
Moçambique nomearam, categorizaram e interviram através da
elaboração de conhecimentos “científicos” sobre as populações nati‑
vas. Os ditos batuques são significativos desse processo. Por um
lado, os agentes coloniais insistiram em unificar tudo aquilo que
viam como dança e música dentro da categoria genérica de batuque.
Por outro lado, as necessidades impostas pelas intemperes colonia‑
listas por uma melhor compreensão daqueles que estavam sendo
dominados, acabaram por produzir respostas coloniais que transi‑
taram entre um destrinchar desse termo atrás de uma apuração mais
fidedigna daquilo que era presenciado e uma incorporação dessas
práticas na empresa colonial. O objetivo parece ter sido o de
apropriá­‑las em prol da positivação de um discurso nacionalista
português.

CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO


DIFERENÇAS, ENQUADRANDO PESSOAS

Quando da elevação de Lourenço Marques para capital colonial


portuguesa em Moçambique, entre o final do século XIX e a pri‑
meira década do século XX, a partilha do continente africano em
possessões imperiais europeias encontrava­‑se em processo de con‑
solidação. Em diferentes partes do continente, assim como em
algumas regiões de Moçambique, continuavam sendo travados

113
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

intensos conflitos contra grupos locais que combatiam a presença


externa.18 A mudança do eixo de importância para as pretensões
imperiais portuguesas do norte e do centro moçambicano, para a
região ao sul do rio Save, tendo o porto de Lourenço Marques
especial importância, estiveram diretamente relacionadas com algu‑
mas dessas amplas transformações ocorridas durante a conquista e
a implementação das estruturas coloniais europeias em toda a
África. Alterações no pensamento imperial europeu sob o conti‑
nente africano, a partir de meados do século XIX, paulatinamente
produziram uma postura intervencionista e de defesa da necessidade
de subjugação dos povos considerados inferiores pelo pensamento
científico ocidental da época. Como explica Andrew Porter, é no
século XIX que ocorre uma transformação no pensamento ocidental,
marcado pelas hipóteses científicas a respeito da figura do Outro,
que levam a uma virada de um “imperialismo filantropo” para um
“imperialismo da inevitabilidade”.19
Como consequência do combate à escravidão na África perpe‑
trada, majoritariamente, pelos europeus, e pelo advento das políticas
coloniais, os costumes urbanos naquela realidade passaram por
intensos processos de ressignificação.20 Ambas transformações pro‑
moveram noções sobre a peculiaridade do trabalho e, principal‑
mente, do trabalhador africano/negro. Como resultado, diversas
formas de exploração da mão de obra do continente emergiram
através da noção da obrigatoriedade do trabalho como medida para
sobrepujar essas supostas peculiaridades. Nesse processo, construí‑
ram formas de exploração do trabalho de cunho compulsório, por
vezes bastante semelhantes a escravidão que se imaginou estar
combatendo.21

18 Assim como os macondes, outras populações que ocupavam o território moçambicano


continuavam a fazer uma oposição militar a presença portuguesa. Para um exemplo de
investigação que aborda diferentes aspectos desse processo, ver: Allen Isaacman and Bar‑
bara Isaacman, Slavery and Beyond: The Making of Men and Chikunda Ethnic Identities in
the Unstable World of South­‑Central Africa, 1750­‑1920 (Londres: Heinemann, 2004).
19 Andrew Porter, Imperialismo Europeu: 1860­‑1914 (Lisboa: Edições 70, 2011), 121 e 124.
20 Sobre esses processos, ver: Frederick Cooper, Thomas C. Holt, Rebeca J. Scott, Além da
Escravidão: Investigações sobre Raça, Trabalho e Cidadania em Sociedades Pós­‑Emancipação
(Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005).
21 Dentre muitas obras que abordam essa temática, ver: Frederick Copper, “From Free Labor

114
MATHEUS SERVA PEREIRA

A junção do combate à escravidão com a ideologia da inferiori‑


dade racial negra e da mão de obra livre assalariada foi fundamental
para transformar o empreendedorismo colonizador num projeto
moral coeso de cunho interventor que argumentava ter como obje‑
tivo a emancipação das sociedades africanas e sua guinada para o
progresso.22 A adoção dessas perspectivas veio acompanhada com a
necessidade da expansão da administração colonial europeia. A cons‑
trução das instituições reguladoras da vida social, resultantes da
expansão burocrática e controladora dos espaços colonizados na
África, acarretou num processo de exclusão de camadas populacio‑
nais de origem africana que haviam estabelecido relações em dife‑
rentes níveis com as estruturas de poder portuguesas existentes até
então em Moçambique.23 A construção dos mecanismos de explo‑
ração colonial em Moçambique durante o chamado 3.º Império Por‑
tuguês (1870­‑1975),24 sobretudo na região sul, estiveram relacionados
à importância que as zonas mineradoras do Transval adquiriram a
partir do último quartel do século XIX. Com uma localização privi‑
legiada, Lourenço Marques ganhou relevância graças às possibilida‑

to Family Allowances: Labor and African Society in Colonial Discourse”, American Eth‑
nologist 16, n.º 4 (Nov 1989): 745­‑765. Augusto Nascimento, “Escravatura, Trabalho For‑
çado e Contrato em S. Tomé e Príncipe nos Séculos XIX e XX: Sujeição e Ética Laboral”,
Africana Studia, n.º 7 (2004): 183­‑217. Eric Allina, “‘Captive to Civilization’: Law, Labor,
and Violence in Colonial Mozambique”, in Mobility Makes States: Migration and Power in
Africa, ed. Darshan Vigneswaram e Joel Quirk, 59­‑78 (Filadélfia: University of Pennsyl‑
vania Press, 2015).
22 Frederick Cooper, “Conflito e Conexão: Repensando a História Colonial da África”, Anos
90 15, n.º 27 (2008): 21­‑63.
23 Esse processo foi sentido de maneira significativa pelas elites letradas de origem africana
em Angola. Ver: Jill Dias, “Uma Questão de Identidade: Respostas Intelectuais às Trans‑
formações Económicas no Seio da Elite Crioula da Angola Portuguesa entre 1870 e 1930”,
Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 1 ( Jan­‑Jun. 1984). Para o caso moçambicano,
aparentemente aqueles que sentiram de maneira mais significativa essas mudanças foram
os senhores e senhoras dos prazos da Zambézia. Com um poder relativamente elevado e
praticamente nenhuma necessidade de se remeter aos ditames da metrópole, esses grandes
proprietários de terras e pessoas viram seu poder perecer ao longo do século XIX, e início
do século XX. Sobre os prazos da Zambézia, ver: Eugénia Rodrigues, “As Donas de Prazos
do Zambeze: Políticas Imperiais e Estratégias Locais”, in VI.ª Jornada Setecentista: Confe‑
rências e Comunicações (Curitiba: Aos Quatro Ventos, CEDOPE, 2006), 16­‑34; ou José
Capela, “Conflitos Sociais na Zambézia, 1878­‑1892: A Transição do Senhorio para a
Plantação”, Africana Studia, n.º 1 (1999): 143­‑173.
24 Ver: Valentim Alexandre, Velho Brasil, Novas Áfricas: Portugal e o Império, 1808­‑1975 (Porto:
Edições Afrontamento, 2000).

115
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

des de escoamento da produção mineradora e da importação de


maquinários e de outros bens necessário para a sua exploração.25
A expansão do porto e a construção de linhas férreas que ligavam a
cidade com as minas localizadas em Johanesburgo, ambas estruturas
símbolos daquilo que era visto como o progresso proporcionado pela
revolução industrial, foram responsáveis pelo crescimento de Lou‑
renço Marques e, consequentemente, do próprio aumento do con‑
trole burocrático português sobre as populações locais. A demanda
das empresas capitalistas mineradoras por uma mão de obra barata
capaz de proporcionar os lucros exorbitantes almejados uniu­‑se com
o fato de que, após a conquista militar portuguesa, Moçambique
tornou­‑se uma grande reserva de mão de obra.26
Para superar as dificuldades encontradas na concretização do
objetivo de compelir as populações nativas africanas para o mercado
de trabalho e inseri­‑las dentro de um sistema econômico monetário,
o Estado português encontrou como resposta a construção de polí‑
ticas de cobrança de impostos e inúmeras legislações que estipula‑
vam a obrigação moral do trabalho, criadas a partir da virada do
século XIX para o século XX.27 Ambas as estruturas, fundamentais
para compreender o colonialismo português na África, tiveram
como direção específica aquelas populações que eram identificadas
pelo escopo classificatório indígena.28 Nesse sentido, definir quem
se enquadrava – ou não – dentro dessa categoria tornou­‑se essência
fundamental na empreitada colonial, especialmente no contexto
moçambicano que rapidamente desenvolveu uma economia voltada

25 Ver: Departamento de História, Universidade Eduardo Mondlane, História de Moçambique,


Volume 1, Parte I: Primeiras Sociedades Sedentárias e Impacto dos Mercadores, 200/300­‑1885;
Parte II: Agressão Imperialista, 1886­‑1930 (Maputo: Livraria Universitária, Universidade
Eduardo Mondlane, 2000). Ver, especialmente, os capítulos VIII (“O Sul e o Trabalho
Migratório”) e IX (“Vias de Comunicação, Indústria e Emergência do Proletariado
Urbano”).
26 Ver: Zamparoni, “Entre ‘Narros” e ‘Mulungos’”, especialmente o capítulo 3.
27 Ver, como um exemplo pioneiro de uma bibliografia sobre Moçambique os trabalhos de
José Capela, em especial: José Capela, O Imposto de Palhota e a Introdução do Modo de Pro‑
dução Capitalista nas Colónias. Como exemplo dos estudos recentes que trazem consigo
novas perspectivas e revisitam temáticas clássicas a respeito do colonialismo português no
sul de Moçambique no início do século XX, ver: Allina, Slavery by Any Other Name.
28 Valdemir Zamparoni, “Da Escravatura ao Trabalho Forçado: Teorias e Práticas,” Africana
Studia, n.º 7 (2004): 299­‑325.

116
MATHEUS SERVA PEREIRA

para o fornecimento de mão de obra como uma de suas principais


formas de capitalização.29
Pensar a construção da definição de “indígena” como aquele não
propenso ao trabalho e, consequentemente, um ocioso segundo sua
suposta natureza, esteve relacionado à produção de legislações que
conceberam o trabalho como ferramenta civilizacional.30 De
maneira geral, é recorrente na bibliografia a tentativa de se buscar
um momento de origem dentro da implementação dos preceitos
legais que serviria para explicar uma virada na perspectiva da relação
do Estado português com as populações africanas que se encontra‑
vam sob o seu domínio.31 Apesar de realizar uma ótima investigação
sobre as representações raciais no império colonial português, tra‑
balhos como os de Patrícia Ferraz de Matos insistiram em estipular
uma data dentro do corpo legislativo criado pela metrópole como
momento de virada do olhar e da gerência das ações portuguesas
sobre as sociedades africanas no espaço colonial.32 A autora, ao
optar por colocar a promulgação do Ato Colonial, em 1930, como
o momento crucial da “criação” do “indígena”, produziu uma nar‑
rativa que não leva em consideração as interações cotidianas desen‑
volvidas nos próprios territórios de atuação daqueles que se buscava
classificar. Nesse sentido, ao pensarmos os espaços e organismos
imperiais como “contextos sociais de produção e governação da dife‑
rença, da produção e legitimação de fronteiras de cidadania [...] e
de identificação, classificação e hierarquização [...] das populações
imperiais”,33 urge como fundamental perceber a maneira como as
experiências no território moçambicano dialogaram com a elabora‑
ção da “persistente imaginação do povo colonial como um oceano
indígena”.34

29 Malyn Newitt, História de Moçambique (Mem Martins: Publicações Europa­‑América, 1997).


30 Jerónimo, Livros Brancos, Almas Negras.
31 Vide, por exemplo, José Moreira, Os Assimilados, João Albasini e as Eleições, 1900­‑1922.
Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique, 1995. Ou, José Luís Cabaço, Moçambique:
Identidade, Colonialismo e Libertação (São Paulo: Editora UNESP, 2009).
32 Matos, As “Cores” do Império, 62­‑68.
33 Miguel Bandeira Jerónimo, Nuno Domingos e Nuno Dias, “Indígenas, Imigrantes e Outros
Povos”, in Como Se Faz Um Povo, coord. José Neves, 153­‑166 (Lisboa: Tinta da China,
2010), 154­‑155.
34 Jerónimo, Domingos e Dias, “Indígenas, Imigrantes e Outros Povos”, 155.

117
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

Num sentido amplo, as políticas ultramarinas interventoras


europeias que tomaram forma ao longo do século XIX e xx,
concentraram­‑se, de diferentes maneiras, em manter as ordens
estabelecidas pela dominação colonial por meio de releituras das
supostas estruturas étnicas locais, muitas vezes apoiando­‑se naque‑
les considerados como produtores da melhor antropologia da
época. Para o caso português, apesar das dificuldades encontradas
para o seu desenvolvimento enquanto ciência acadêmica, a antro‑
pologia produzida no âmbito institucional, sobretudo a partir da
cidade do Porto, esforçou­‑se em coadunar suas pesquisas com as
vanguardas das propostas colonizadoras portuguesas na África.35
Conhecer cientificamente os “Outros” que se intentava dominar
era uma forma de legitimar o direito de posse portuguesa sobre os
territórios em disputas com outras potências imperiais. Os variados
registros que podem ser identificados como possuidores de preo‑
cupações caracteristicamente etnográficas/antropológicas, de finais
do século XIX até meados da primeira metade do século XX, tendem
a misturar uma diversidade de denominações, empregando de
maneira variada e embaralhada formas de autonominação das
populações locais com formas aportuguesadas/europeias de chamar
esse “Outro”.
Em regiões como o sul de Moçambique, a construção de ferra‑
mentas capazes de explicar a diversidade populacional existente
dentro do território começou a ser edificada antes mesmo da efeti‑
vação do controle português. Em novembro de 1869, a extensão do
código civil português para suas províncias ultramarinas esteve
acompanhada com o pressuposto da realização de uma codificação
do que era chamado de “usos e costumes dos indígenas”. Com as
imaginadas conflitualidades que essa extensão poderia causar, o
objetivo dessa codificação recaia na necessidade de compreender,
mas também enquadrar, formas de justiça elaboradas por grupos
populacionais nativos sem que essas entrassem em conflito com os

35 Ricardo Roque, “A Antropologia Colonial Portuguesa (c.1911­‑1950)”, in Estudos da So‑


ciologia da Leitura em Portugal no Século XX, org. Diogo Ramada Curto, 789­‑822 (Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2006).

118
MATHEUS SERVA PEREIRA

pressupostos portugueses que pretendiam ser aplicados.36 Após


sucessivas tentativas fracassadas nas décadas de 1870, Joaquim d’Al‑
meida da Cunha, advogado que exercia o cargo de secretário geral
de Moçambique, publicou, em 1885, o resultado de um inquérito
realizado com o intuito de responder às exigências das disposições
de 1869. Com o título de “Estudos acerca dos usos e costumes dos
Banianes, bathiás, parses, mouros, gentios e indígenas”, o trabalho
não foi completamente concluído. Depois de um período de quase
um ano de levantamento de dados, o autor afirmou ter ficado “longe
de ter reunido elementos” suficientes sobre todos “os povos indíge‑
nas de raça bantu designados sob o nome de Maconde, Macua,
Marave, Maganja, Landim, Vátua, etc.”.37
A maneira empregada por Joaquim d’Almeida da Cunha para
colher informações foi por meio de um questionário preenchido por
pessoas que, segundo sua avaliação, seriam as mais capazes de for‑
necer informações sobre os grupos que pretendia estudar. Esses
homens que ocupavam diferentes postos administrativos, deveriam
responder a sessenta e nove perguntas. Nesse momento, não parecia
ser uma questão primordial o fato de deixar de ouvir diretamente
aqueles a quem se pretendia identificar. A maioria dessas perguntas
diziam respeito às formas de governança e de justiça, quais seriam
as funções dos chefes locais, designados como régulos, e as maneiras
utilizadas para a resolução de conflitos. Outro categoria de questões
diziam respeito aquilo que hoje pode ser identificado como descri‑
ções etnográficas, como as que buscavam saber a existência de “sinais
distintivos” e em que idade eram feitos, “seu vestuário”, como usa‑

36 Para uma análise pormenorizada do processo da formulação jurídica do espaço colonial


moçambicano, ver: Fernanda Thomaz, “Casaco que se Despe pelas Costas: A Formação da
Justiça Colonial e a (Re)ação dos Africanos no Norte de Moçambique, 1894­‑c.1940” (Tese
de Doutorado em História Social, Universidade Federal Fluminense, 2012).
37 Joaquim D’Almeida da Cunha, Estudos acerca dos Usos e Costumes dos Banianes, Bathiás,
Parses, Mouros, Gentios e Indígenas. Para cumprimento do que dispõe o artigo 8.º, § 1.º do
Decreto de 18 de Novembro de 1869 (Moçambique: Imprensa Nacional, 1885). Conhecer
esses Outros era uma forma de legitimar o direito de posse portuguesa sobre o território
frente as disputas com as potências imperiais europeias. Na primeira parte de seu estudo,
Joaquim Cunha dedica­‑se a analisar os limites geográficos controlados pelos portugueses.
Enfocando nos processos de vassalagem que Portugal estabeleceu com chefes locais, seu
intuito era de argumentar como essas vassalagens comprovariam uma posse portuguesa
sob a região, em detrimento de acusações estrangeiras contra essa posse.

119
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

vam seus cabelos, se possuíam “algumas danças especiais”, quais


instrumentos de música construíam e tocavam, as formas de suas
habitações e qual língua falavam. Ainda existem outros tipos de
perguntas de cunho interpretativo, como a que buscava saber “a
índole desses povos”.38 Infelizmente, nada nos é informado sobre a
maneira como foram preenchidos os questionários. Com base nas
informações que conseguiu colher, Joaquim da Cunha dividiu a
“população da província em três grupos distintos”. Os “indígenas”
seriam um desses grupos. Formando “a maioria da população”, o
autor os classifica como pertencentes “aos diversos grupos em que
se subdivide a raça cafre”. Na interpretação apresentada em seu
levantamento, os “povos indígenas” estariam subdividos “em três
grandes grupos”, que seriam os “macuas”, os “povos da bacia do
Zambeze” e os “cafres do sul”.39
Maconde, macua, marave, mangaja, raça bantu, landim, vátua,
cafres, são apenas alguns dos exemplos que aparecem na literatura
produzida pelos colonialistas da virada do século XIX para o século
XX, tendo sido empregadas de maneira misturada para designar as
populações africanas viventes em território moçambicano. As difi‑
culdades encontradas por aqueles que se preocuparam em inventa‑
riar o que era chamado como “usos e costumes indígenas” estava na
própria dificuldade de associar a constatação de uma diversidade
que demarcava diferenças dentro de uma visão que unificava essas
multiplicidades na categoria homogeneizadora de “indígena”.
Nesse sentido, uma série de categorias para designar esse Outro
foram inventadas no decorrer do processo de codificação de suas
práticas. No enfrentamento dessas barreiras, através de ferramentas
epistemológicas que pressupunham a inferioridade do Outro ana‑
lisado, foram produzidos conhecimentos específicos sobre formas
supostamente autênticas de ser, pensar e agir “indígena”. A amplia‑
ção do que se sabia sobre as populações da costa oriental africana
dominada por Portugal esteve diretamente relacionada a uma

38 Cunha, Estudos acerca dos Usos e Costumes dos Banianes, Bathiás, Parses, Mouros, Gentios e
Indígenas, XXXIX até XLII.
39 Cunha, Estudos acerca dos Usos e Costumes dos Banianes, Bathiás, Parses, Mouros, Gentios e
Indígenas, 36­‑37.

120
MATHEUS SERVA PEREIRA

importante ambivalência existente na linguagem do império a res‑


peito das populações colonizadas. Um pêndulo em movimento
constante e cambiante entre uma incorporação dessas dentro de
lógicas missionárias civilizacionais e uma diferenciação vinculada a
construção de um ser estranho ao mundo civilizado, justificou refle‑
xões sobre formas de governo e dominação. A convicção da existên‑
cia de diferenças intransponíveis entre o eu/colonizador e o outro/
colonizado não impediu a coexistência de um esforço na diferencia‑
ção e um empenho em acabar com ela, entendendo esse fim como
um apagamento de práticas socioculturais locais e a incorporação
gradual daqueles categorizados como bantu/negro/preto/indígena
dentro de uma lógica hierarquizada da cidadania portuguesa.
Efetivamente, a formulação de uma série de disposições legais,
entre os finais do século XIX e as primeiras décadas do século XX,
levaram a categorização das populações imperiais africanas em três
grandes grupos, que tenderam a misturar desígnios raciais e de locais
de nascença, pressupondo padrões de comportamento para cada um
desses grupos. De um lado estariam os colonos/europeus/brancos.
Do outro lado, os negros/africanos assimilados ou indígenas, enten‑
dida como mão de obra potencialmente capaz de ser explorada pelos
mecanismos coloniais de dominação e capitalistas de produção.40
A ascensão da barreira racial para a obtenção de uma plena cidada‑
nia portuguesa encontrou no processo de homogeneização da diver‑
sidade local em duas categorias jurídicas estanques, sua principal
resposta. Por isso mesmo, o segundo grande grupo populacional
classificado como “assimilado” ou “indígena” esteve dentro de um
ininterrupto vai­‑e­‑vem de diferenciação e incorporação dentro dos
espaços coloniais portugueses.41

40 Ver: Anderson Ribeiro Oliva, “De Indígena a Imigrante: O Lugar da África e dos Africanos
no Universo Imaginário Português dos Séculos XIX ao XXI”, Sankofa. Revista de História
da África e de Estudos da Diáspora Africana, n.º 3 (junho 2009): 32­‑51.
41 Ver: Ana Cristina Fonseca Nogueira da Silva, “Da Carta de Alforria ao Alvará de Assi‑
milação: A Cidadania dos ‘Originários de África’ na América e na África Portuguesas,
Séculos XIX e XX”, in A Experiência Constitucional de Cádis – Espanha, Portugal e Brasil,
org. Cecília Helena Salles de Oliveira e Márcia Berbel, 109­‑137 (São Paulo: Editora
Alameda, 2012); Cooper, Colonialism in Question. Ou, Portaria Provincial n.º 317, de 9 de
Janeiro de 1917, publicada no Boletim Oficial n.° 02/1917, conhecida como Portaria do
Assimilado ou Alvará do Assimilado.

121
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

No entanto, é importante levar em consideração a distância


existente entre as formulações jurídicas metropolitanas que busca‑
vam homogeneizar e, consequentemente, tornar possível a constru‑
ção de uma determinada administração colonial, e as aplicações
cotidianas desse poder. As realidades práticas existentes nas tenta‑
tivas de ordenamento dos mecanismos de controle sobre as popu‑
lações africanas e os processos de inventariamento e classificação do
“oceano indígena”, estipularam suas formas de conhecer esse Outro
dentro de lógicas de coisificação das diferenças. Tratados como
objetos a serem mesurados e ordenados dentro de escopos que esti‑
pulavam suas capacidades, a produção de um conhecimento sobre
essas populações colonizadas muitas vezes misturou­‑se com a inven‑
ção de maneiras de ser e agir desse Outro. No mundo urbano de
Lourenço Marques, no qual objetos industrializados da moderni‑
dade europeia foram rapidamente difundidos, assim como intera‑
ções múltiplas com indivíduos, grupos e novas instituições
reguladoras da vida social produziram inesperados intercâmbios; os
esforços de promoção das categorias homogeneizadoras das expe‑
riências socioculturais africanas encontraram um significativo desa‑
fio no exercício de simplificação da diversidade que aquele mundo
apresentava.
O dia a dia das correspondências entre administradores locais
e o poder metropolitano demonstram a precocidade desse processo
e como pode ter afetado de maneira direta o cotidiano dos habitan‑
tes de Lourenço Marques. Mouzinho de Albuquerque, governador
do distrito de Lourenço Marques entre 1890 e 1892, enviou, em
1891, para o Conselheiro Diretor Geral dos Negócios da Marinha
e Ultramar, uma série de nove documentos entregues a ele pelo
Comandante do Corpo Policial. Tratava­‑se de reclamações sobre
as péssimas condições em que se encontravam o seu pessoal, o quar‑
tel, o calabouço e o hospital militar da cidade. Como Mouzinho de
Albuquerque explicou em sua carta, uma das solicitações que deveria
ser atendida era a da transformação de dois pavilhões, que estavam
na frente do quartel, em calabouços. De acordo com o governador,
o pedido era razoável, pois

122
MATHEUS SERVA PEREIRA

O quartel da polícia devia ter 6 calabouços a saber: um para os


praças do corpo castigados [...], um para presos paisanos euro‑
peus, um para asiáticos e pretos, um para mulheres brancas, outro
para pretas e finalmente um segredo para poder ter um preso
incomunicável. Com menos de 4 não pode passar, pois misturas
homens com mulheres e brancos com pretos, no mesmo cala‑
bouço é pouco decente, [d]a crédito pouco a nossa civilização e
poderia dar lugar a reclamações dos estrangeiros, a que seria difí‑
cil responder [...].42

No ano seguinte ao de 1895, quando da vitória da campanha


militar na captura de Gungunhana, líder do reino de Gaza, Mou‑
zinho de Albuquerque foi elevado ao cargo de Governador Geral
de Moçambique. Durante sua governança, uma de suas maiores
reclamações aparece num oficio confidencial enviado para o Minis‑
tério da Marinha e do Ultramar. Para o recém­‑empossado gover‑
nador, era de se lamentar que “um fato que se dá nessa província
[...] e que concorre não pouco para o desprestígio da nação portu‑
guesa” estava presente na “invasão e intrusão da gente de cor nos
cargos mais elevados da província”. Sua defesa da qualidade na
administração recaia na defesa racista de que “pouco e pouco” deve‑
riam ser excluídos “de fato o elemento mulato e canarim dos cargos
principais da província”, entendidos como motivos de “vergonhoso
vexame”.43
Mouzinho de Albuquerque manteve sua leitura racializada do
mundo e uma postura de segregação racial durante toda sua vida.44
Quando de seu regresso para Portugal, publicou uma espécie de
relatório que sintetizava suas experiências à frente do governo em
Moçambique. Lançado originalmente em 1899, sua preocupação
central estava em apresentar uma interpretação a respeito dos cami‑
nhos que a colonização portuguesa deveria seguir. O objetivo da
colonização que transparece no seu texto é o da necessidade de

42 AHU, DGU, 3.ª Repartição, Caixa: 1396, 1891­‑1892, Obras Públicas.


43 AHU, DGU, 1.ª Repartição, 2.ª Seção, Caixa: S/N, 1896, Correspondência.
44 Ver: Paulo Jorge Fernandes, Mouzinho de Albuquerque: Um Soldado ao Serviço do Império
(Lisboa: Esfera dos Livros, 2010).

123
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

ocupar, dominar e explorar o território colonial em proveito de Por‑


tugal. Para isso seria preciso dominar fisicamente, mas também
ampliar o detalhamento das características dos “habitantes” daquela
região. Esse esforço para a ampliação de ferramentas no trato com
essas pessoas andou de mão dadas com a compreensão de uma maior
eficácia em sua exploração como trabalhadores a partir do momento
que se conhecia as supostas potencialidades intrínsecas das suas res‑
pectivas “raças”. Delimitando uma série de “povos indígenas”,
apresentou­‑os como membros de variadas “raças” que ocupavam
diferentes faixas territoriais. As observações empíricas no trato da
administração colonial convertiam­‑se, assim, na invenção de grupos
com fronteiras muito bem delimitadas geograficamente, com carac‑
terísticas especificas no que diz respeito a costumes e crenças, e que
se diferenciavam bastante entre si. Ao mesmo tempo, essa diversi‑
dade era enquadrada numa perspectiva unificadora de suas diferen‑
ças. Toda essa multiplicidade estaria paralisada no tempo. Suas
características não teriam se alterado desde “há quatro séculos”
quando da chegada dos primeiros portugueses na região e, por conta
disso, estariam “em todos muito rudimentar, no grau de civilização
que têm atingido”.45
Outro exemplo importante de figura das campanhas militares
portuguesas em Moçambique na década de 1890, que cedo des‑
pontou como um dos primeiros intérpretes das “raças indígenas na
província de Moçambique”, foi Ayres d’Ornellas.46 Revelando
estar em dia com a bibliografia existente na época sobre essas
populações e legitimando suas afirmações com base nas informa‑
ções que teria adquirido durante sua estadia na África, sua obra
apresenta uma gigantesca variedade de grupos, cada qual com um
complexo entrelaçamento de diferentes aspectos políticos, sociais
e culturais. Essa intrincada diversidade não o impediu de acabar
por unificá­‑las dentro de categorias generalizantes, como a de
“povos bantu” / “raça bantu”, ou como membros da “raça negra”

45 Mouzinho de Albuquerque, Moçambique 1896­‑1898, Volume II (Lisboa: Divisão de Pu‑


blicações e Biblioteca. Agência Geral das Colónias, 1934), 39.
46 Ayres d’Ornellas, Raças e Línguas Indígenas em Moçambique: Memória Apresentada ao Con‑
gresso Colonial Nacional (Lisboa: A Liberal – Oficina Tipográfica, 1901), 3.

124
MATHEUS SERVA PEREIRA

que estariam “muito mais perto da animalidade que a branca”,47


legitimando, com isso, objetivos políticos portugueses de domina‑
ção imperial.48
A preocupação da codificação das populações locais, possibili‑
tando o que imaginavam ser uma melhor compreensão daqueles que
se encontravam sobre o guarda­‑chuva da dominação colonial em
Moçambique, e a formação de corpos legislativos que lidassem com
questões da governança sobre o território, também encontrou res‑
postas na atuação de António Augusto Pereira Cabral. Administra‑
dor colonial, que exerceu os cargos de Secretário Civil do governo
do distrito de Inhambane, entre 1908 e 1914, e o de Secretário dos
Negócios Indígenas em Lourenço Marques, entre 1915 e 1925,
preocupou­‑se em proporcionar informações sobre as populações
nativas a estrutura da administração colonial. Seu desejo em ser um
colonizador eficaz no esforço de promoção da civilização europeia
sob os recantos da África levou­‑o a elaboração de uma codificação
e tipificação das “raças, usos e costumes dos indígenas da Província
de Moçambique”. Para isso, elaborou e distribuiu “por todos os
distritos do norte” um “questionário etnográfico [...] acerca da
população indígena”, que, em suas palavras, obteve “muito pouco

47 Ayres d’Ornellas, Raças e Línguas Indígenas em Moçambique, 44. São inúmeras as passagens
racistas na obra de Ornellas. Seu racismo enquadrava a leitura que o mesmo empregava
sobre a forma como a ação colonial deveria ocorrer. Isso fica evidente, por exemplo, na
seguinte passagem: “Temos procurado dar uma ideia quanto possível exata e precisa do
estado social do indígena de Moçambique. É um selvagem que precisa primeiro que tudo,
ser domesticado. Nós aplicamos­‑lhe a Carta Constitucional, desse cidadão português fizemos
um eleitor, e carregamos para cima dele com toda a nossa legislação; uniformizamos tudo
no papel, julgando assim civiliza­‑lo. Ainda hoje Moçambique está à espera de uma legis‑
lação indígena apropriada, de alguma coisa que se pareça com as native laws das vizinhas
coloniais inglesas. Da constituição indígena da família, da sua organização governativa, da
administração, da sua justiça, da sua constituição de propriedade, cremos nós que se devem
tirar os elementos para essas leis, que deverão ir modificando os usos selvagens, cortando
as práticas bárbaras, mas não querendo fazer dos indígenas, brancos de cor preta se assim me
é permitido expressar. Não os devemos querer assimilar a nós, partindo do princípio que
são iguais a nós menos na cor. Não são tal iguais, são inferiores. E são no tanto mais que
quatro séculos de contato com a civilização europeia não tem revelado na generalidade
deles, grande aptidão para a nossa cultura”. Ayres d’Ornellas, Raças e Línguas Indígenas em
Moçambique, 61.
48 A respeito das principais referências do debate sobre raças no século XIX em Portugal e
que influenciou o pensamento de homens como Ayres d’Ornellas, ver: Henriques, Percursos
da Modernidade em Angola.

125
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

sucesso”. O desinteresse de outros administradores coloniais e das


populações em prestar esclarecimentos não o impediu de produzir
publicações de divulgação de seus relatórios e alguns projetos de
lei.49 Utilizando­‑se de trabalhos como os de Joaquim d’Almeida da
Cunha, Mouzinho de Albuquerque e Ayres d’Ornellas, assim como
das informações que conseguiu colher por conta própria, seguindo
a pista da proximidade dos “dialetos [...] falados”, e por meio do
relato de administradores coloniais atuantes em outras regiões, che‑
gou à conclusão de que todas “as raças” de Moçambique pertence‑
riam a “grande família bântu”.50
A categoria analítica de “bântu” era, mais uma vez, utilizada
como designadora de uma raça específica. Corroborando os enten‑
dimentos da bibliografia que utilizava, Pereira Cabral tendeu a
apresentar o “bântu” em concomitância com categorias homoge‑
neizadoras mais amplas, como a do “indígena de Moçambique”.
Essa seria possuidora dos “mesmos traços comuns à raça negra”,
que teria uma índole como “característica congénita da raça”,
entendida como “incapaz dum esforço prolongado” e como uma
“criança grande”.51 Nessa interpretação das populações nativas
localizadas sob o domínio português em Moçambique persistia o
anseio em unificá­‑las em categorias de cunho raciais inferiorizan‑
tes. Ao mesmo tempo, a ânsia por classificações precisas que agru‑
passem as variabilidades em categoriais mesuráveis, indicava a
percepção de uma multiplicidade difícil de ser reduzida em grupos

49 António Augusto Pereira Cabral, Raças, Usos e Costumes dos Indígenas da Província de
Moçambique (Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1925), 5, grifo no original. Em 1925,
Pereira Cabral já havia publicado pela Imprensa Nacional outros livros nessa mesma
perspectiva, como: “Raças, usos e costumes dos indígenas do distrito de Inhambane”,
“Compilação de todas as disposições legais em vigor referente a indígenas, etc.” e “Voca‑
bulário: português, shironga, shitsua, guitonga, shishope, shisena, shinhungue, shishuabo,
kikua, shi­‑yao e kissuahili”. Segundo Rui Mateus Pereira, a obra e a atuação de “Pereira
Cabral ajuda­‑nos a compreender, na sua essência, o empenho das autoridades dessa nova
era colonial em codificar os usos e costumes”. Rui Mateus Pereira, “A ‘Missão etognósica
de Moçambique’: A Codificação dos ‘Usos e Costumes Indígenas’ no Direito Colonial
Português. Notas de Investigação,” Cadernos de Estudos Africanos, n.º 1 (2001): 137.
50 Cabral, Raças, Usos e Costumes dos Indígenas da Província de Moçambique, 11. Sobre a “des‑
coberta” da família linguística banto, ver: Robert W Slenes. “‘Malungu ngoma Vem!’: África
Coberta e Descoberta do Brasil,” Revista USP, n.º 12 (1992): 48­‑67.
51 Cabral, Raças, Usos e Costumes dos Indígenas da Província de Moçambique, 26.

126
MATHEUS SERVA PEREIRA

estanques, mas que se tornava fundamental na medida em que que


indicariam ações específicas capazes de serem controladas a partir
desse conhecimento e, portanto, fundamentais para uma gover‑
nança almejada. Num contexto de ânsia por uma definição dos
negros/africanos do sul de Moçambique, a construção desse Outro
a partir de uma fragmentação étnica poderia ser relevante junto da
comunidade branca/europeia que compartilhava uma percepção da
fragilidade que possuía frente a um oceano negro que os
circundavam.
A fluidez das maneiras que essas populações utilizavam para se
autonomearem, empregando arranjos diferentes de identificação
para construir suas unidades, variando suas justificativas para suas
coesões a partir de conjuntos socioculturais, regionais, políticos,
etc., era reconhecida por António Cabral como uma dificuldade no
processo de “separação e classificação dos indígenas da Província
de Moçambique”.52 Porém, a importância desse processo e sua
justeza científica não entravam em questão. Por isso mesmo seu
esforço esteve concentrado na produção de uma “identificação per‑
feita” dos “povos indígenas” de Moçambique. Nesse sentido, os
distinguiu em “a raça a que eles pertencem”, em seguida os “grupos,
ou sub­‑raças” que representariam suas distinções de “caracteres
étnicos” e, por fim, as “tribos” que indicariam as separações causa‑
das por “convulsões políticas”, mas que mantinham “afinidades nos
dialetos”.53
O resultado desse trabalho foi a configuração de um quadro que
persistiu sendo usado como guia para as pesquisas antropológicas
portuguesas ao longo de todo o período colonial e como fonte de
informação fidedigna, sem questionamentos, para ser utilizada na
divulgação e popularização das características das populações que
constituíam o mundo colonial português em Moçambique.

52 Cabral, Raças, Usos e Costumes dos Indígenas da Província de Moçambique, 23.


53 Cabral, Raças, Usos e Costumes dos Indígenas da Província de Moçambique, 23.

127
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

RAÇA BANTU

Grupos ou sub­‑raças Distritos

Ba­‑Rongas
Ba­‑Tongas Lourenço Marques, Gaza e Inhambane

Ba­‑shopes
Ba­‑Sengas Companhia de Moçambique, Quelimane e Tete
Ba­‑Angonis Tete
Macuas Quelimane, Moçambique e Companhia do
Niassa
Ua­‑yaos ou Ajauas Companhia do Niassa
TRIBOS
Ba­‑Rongas ou Landins:
Tembes
Kossas
Shenganes
Machenguas
Makuakuas
Tsua
Ba­‑Tongas: Batongas
Ba­‑Shopes: Bashopes
Ba­‑Sengas:
Tauaras
Makangas
Manikos
Massingires
Borores
Maganjas
Macuas:
Maraves
Lomués
Makondes
Mavias
Macuas (Moçambique)
Ua­‑Yaos ou Ajauas: Ajauas
In: Cabral, Raças, Usos e Costumes dos Indígenas da Província de Moçambique, 24.

128
MATHEUS SERVA PEREIRA

Este mesmo quadro apareceu em outros momentos, como num


pequeno livro publicado no âmbito da Exposição Colonial Portu‑
guesa, realizada no Porto, em 1934. O intuito dessa publicação era
o de apresentar aos participantes do evento as principais caracterís‑
ticas dos “tipos indígenas” de Moçambique. As descrições dos gru‑
pos da “raça bantu” eram acompanhadas por fotografias do “Homem
ronga (landim)”, da “rapariga macua”, da “Mulher lomué” ou dos
“tipos de raça chope” e dos “tipos de raça maconde”. Na página ao
lado da fotografia da “Rapariga macua”, António Augusto Pereira
Cabral descreveu as características físicas dos “indígenas da Colónia
de Moçambique”. Empregando critérios de uma antropologia física
que remetia as análises frenológicas do século XIX, o autor listou a
“cor predominante”, a “forma do crânio”, o feitio dos rostos e o tipo
de cabelo. A partir de padrões estéticos eurocêntricos, avaliou e lis‑
tou a “cor predominante” e hierarquizou as “raças” com “maior
número de indígenas com feições mais corretas e bem constituídas”.
Esses seriam os “baronga”, não à toa aqueles com maior contato com
os europeus, enquanto que os “macua”, apresentados no capítulo
anterior como sinônimos de bárbaros, seriam “os mais feios”.54
O intuito do autor em apresentar essas pessoas de acordo com
o que entendia ser a maneira mais científica existente, tornava­‑as
despersonificadas, silenciando suas características individuais em
prol de uma unidade tipificadora. Ao mesmo tempo, construía uma
unidade imaginada apelando para as características que entendia
como sendo as mais distantes em relação aos brancos/europeus.
O livro termina por representar essas pessoas como seres primitivos
e que possuíam a floresta, na categoria nominativa da época desig‑
nado como o mato, como local específico de suas existências. Em
momento nenhum o espaço urbano apareceu como local de vivência
dos ou para os “tipos indígenas”. Os esforços para a ampliação do
conhecimento a respeito daqueles que se tentava dominar não
necessariamente trouxe consigo uma melhor clarividência sobre a

54 António Augusto Pereira Cabral, Primeira Exposição Colonial Portuguesa Porto, 1934. Co‑
lónia de Moçambique. Indígenas da Colónia de Moçambique. (Lourenço Marques: Imprensa
Nacional de Moçambique, 1934), 5­‑6.

129
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

vida desses grupos e indivíduos.55 A preocupação em conhecer as


populações do império português, presente nos homens que se tor‑
naram responsáveis pela penetração imperial no interior dos terri‑
tórios coloniais, demonstra, muitas vezes, mais o enquadramento
de seus pensamentos nas perspectivas racistas­‑científicas da época,
do que as próprias formas de vida daquelas populações.56
Apesar de perceberem a existência de uma variedade de grupos
e indivíduos, assim como uma diversidade de formas de pensar e de
agir, os militares, administradores, missionários, médicos, todos
homens do terreno e do cotidiano colonial que dedicaram parte de
suas atividades para o estudo das pessoas que estavam sendo domi‑
nadas, terminaram por negar formas de agenciabilidade daqueles
que tinham o mundo que até então conheciam sendo transformado
de maneira rápida, singular e bastante inesperada graças as próprias
instituições que eram construídas pela ação colonial. De maneira
sistemática, enquadraram as populações nativas em termos genéri‑
cos de cunho racializante e que foram entendidas como inferiores
aos brancos/europeus.

Imaginando “homens degenerados e mulheres dissolutas”

A leitura desses homens, fundamentais nas primeiras décadas


do século XX para a ampliação da produção de conhecimentos sobre
Moçambique, entendia Lourenço Marques e arredores como um
local de expoentes possibilidades. Sendo assim, conhecer melhor as
populações que predominavam nessas regiões foi compreendido
como algo de suma importância. Ayres d’Ornellas, ao explicar as

55 Sobre a relação entre conhecimento e dominação colonial, ver: Rui Mateus Pereira, “Co‑
nhecer para Dominar: O Desenvolvimento do Conhecimento Antropológico na Política
Colonial Portuguesa em Moçambique, 1926­‑1959” (Tese de Doutoramento em Antropo‑
logia, FCSH­‑UNL, 2005); Siegfried Huigen, Knowledge and Colonialism: Eighteenth­
‑Century Travellers in South Africa (Boston: Brill, 2009); ou Frederick Cooper and Randall
Packard, org., International Development and the Social Sciences (Berkeley: University of
California Press, 1997).
56 Nesse sentido, ver: Bruno Reinhard, “Poder, História e Coetaneidade: Os Lugares do
Colonialismo na Antropologia sobre a Áfric”, Revista de Antropologia 57, n.º 2 (2014):
329­‑375.

130
MATHEUS SERVA PEREIRA

características das “tribos de Lourenço Marques, Gaza e Inham‑


bane” afirmou que estava, basicamente, resumindo a introdução de
“uma grande autoridade linguística” que havia realizado seus estudos
nas décadas de 1880 e 1890.57 O principal trabalho utilizado por
Ornellas para delimitar os habitantes ao sul do Save como membros
“do grande grupo tonga”58 é o do hoje considerado “pai incontes‑
tado da antropologia da África Austral”,59 o missionário e etnógrafo
suíço Henri Alexandre Junod. Naquela época, como aponta Antó‑
nio Augusto Pereira Cabral alguns anos depois de Ornellas, a “mag‑
nífica obra [...] The Life of a South African Tribe [...] onde os costumes
e usos dos indígenas barongas (Lourenço Marques e Gaza) são cui‑
dadosamente estudados” possuíam um “alto valor científico”.60
As observações cuidadosas do missionário e etnógrafo suíço
iniciaram­‑se quando de sua primeira passagem por aquelas paragens
ainda no último quartel do século XIX. Apesar de certo ostracismo
imposto a sua obra, com o passar dos anos, seu livro basilar publicado
numa versão preliminar em 1898 e integralmente em 1913, Usos e
costumes dos Bantus, assim como os debates travados pelo autor com
Radcliffe­‑Brown sobre parentesco e evolução social, podem ser con‑
siderados como clássicos fundadores da antropologia moderna.61
Compostas por uma vasta gama de grupos cujas fronteiras
étnicas são pouco evidentes, mas que aparentam compartilhar um
universo de intercomunicação linguístico e institucional, as popu‑
lações originárias do sul de Moçambique foram e continuam sendo
classificadas comum e genericamente dentro de um grupo maior

57 D’Ornellas, Raças e Línguas Indígenas em Moçambique, 27 e 37.


58 D’Ornellas, Raças e Línguas Indígenas em Moçambique, p.272.
59 João de Pina­‑Cabral, “Um Livro de Boa Fé? A Contraditoriedade do Presente na Obra
de Henri­‑Alexandre Junod (1898­‑1927)”, in África em Movimento, org. Juliana Braz Dias
e Andréa de Souza Lobo, 271­‑297 (Brasília: ABA Publicações, 2012), 271.
60 Cabral, Raças, Usos e Costumes dos Indígenas da Província de Moçambique, 5.
61 A respeito da obra de Henri Junod e sua contribuição dentro do campo da antropologia,
ver: Lorenzo Macagno, “Missionários e Imaginação Etnográfica: Reflexões sobre o Legado
de Henri A. Junod (1863­‑1934)”, in O Antropólogo e Sua Bíblia: Ensaios sobre Missionários­
‑Etnógrafos, org. Melvina Araújo, 23­‑67 (São Paulo: FAP­‑UNIFESP, 2014); ou Paulo
Gajanigo, “O Sul de Moçambique e a História da Antropologia: Os Usos e Costumes dos
Bantos, de Henri Junod” (Dissertação de Mestrado, Programa de Pós­‑Graduação em
Antropologia Social, UNICAMP, 2006).

131
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

denominado tonga/tsonga.62 Atualmente o termo é frequentemente


questionado enquanto capaz de designar objetivamente essa popu‑
lação, uma vez que é comumente empregado apenas na bibliografia
ou entre “círculos intelectuais de Maputo”.63 Como explica Patrick
Harries, uma parte importante das reações dos exploradores euro‑
peus e colonialistas ao confrontarem­‑se com um mundo bastante
distinto daquele que conheciam foi o de reestruturarem essas dis‑
tinções dentro de unidades organizativas capazes de serem com‑
preendidas em estruturas de conhecimento europeias.64 Em contex‑
tos africanos, a classificação de detalhes em unidades organizadas
manejáveis, desenvolvido a partir de um processo amplo do cienti‑
ficismo europeu da racionalização moderna do mundo, influenciou
formas de divisões ditas como étnicas que muitas vezes não existiam
antes do final do século XIX.65
Junod pressupunha um destino para as “culturas tsonga” não
necessariamente contraditório, mas marcado por uma tensão que
perpassou sua obra. Como explica Lorenzo Macagno,

pareceria estar mais presente o ideal segregacionista de criar uma


‘alta cultura Banta’ do que o ideal assimilacionista de criar afri‑
canos europeizados. As ideias de Junod operam sempre sob essas
tensões, que às vezes se resolvem a favor do particularismo, outras
a favor do universalismo.66

62 Para além de características linguísticas compartilhadas, a prática do lobolo é comumente en‑


tendida como exemplo para identificar um universo de intercomunicação. Ver: Osmundo Pi‑
nho, “A Antropologia na África e o Lobolo no Sul de Moçambiqu”, Afro­‑Ásia, 43 (2011): 9­‑41.
63 Omar Ribeiro Thomaz, “Apresentação”, in Henri Junod, Usos e Costumes dos Bantu (Cam‑
pinas, SP: UNICAMP, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2009), 8. Ver: Patrick
Harries, “The Anthropologist as Historian and Liberal: H­‑A. Junod and the Thonga”,
Special issue on Anthropology and History, Journal of Southern African Studies 8, n.º 1
(October 1981): 37­‑50. Os termos mais comuns de auto intitulação empregados hoje em
dia, são shangana, ronga, chopi, tsua e bitonga.
64 Patrick Harries, “The Roots of Ethnicity: Discourse and the Politics of Language Con‑
struction in South­‑East Africa”, African Affairs 87, n.º 346 ( Janeiro1988): 25­‑52.
65 Para uma análise ampla sobre o processo de construção de formas de classificar o Outro
dentro de categorias étnicas majoritariamente estanques desenvolvidas, sobretudo, no final
do século XIX, ver: Leroy Vail, ed., The Criation of Tribalism in Southern Africa (Londres:
James Currey and Berkley: University of California Press, 1989).
66 Lorenzo Macagno, “Do Assimilacionismo ao Multiculturalismo: Educação e Represen‑
tações sobre a Diversidade Cultural em Moçambique” (Tese de Doutoramento, PPGSA­

132
MATHEUS SERVA PEREIRA

Essa tensão não implicou na inviabilidade do mesmo em atri‑


buir para sua obra uma função dupla, que juntava a ampliação do
saber sobre as populações africanas com o próprio sucesso da
empreitada colonial. Junod construiu sua pesquisa a partir de uma
preocupação com as transformações pelas quais aquelas populações
do sul de Moçambique estavam passando por conta da corrida colo‑
nial que alterava de maneira significativa os modos de vida pré­
‑existentes. Com uma perspectiva científica predominantemente
evolucionista característica da época, Junod via a necessidade de se
registrar para a posteridade os saberes locais que estariam fadados
ao desaparecimento graças ao avanço da civilização propagada pelo
colonialismo. Afinal, interpretou esses saberes como representantes
de “uma fase do desenvolvimento humano”67 que não mais podia
ser encontrado na Europa.68 Ao mesmo tempo, por entender que
para melhor “governar selvagens” era necessário “estudá­‑los a
fundo”, dedicou Usos e Costumes dos Bantus à duas categorias de
homens diretamente responsáveis pelas profundas modificações que
o próprio observou: “os administradores coloniais e os
missionários”.69
Entendendo a ação colonial europeia sob a África como uma
ação filantrópica que trazia esperanças de dias mais civilizados para
os indígenas, seria função daqueles que carregavam esse fardo de
“frutas tão variadas, tão tentadoras, que a civilização oferece ao indí‑
gena, [...] dever guiar sua mão inexperiente, mostrar­‑lhe as que são
boas para a sua felicidade e o seu progresso e as que são venenosas
e poderiam ser­‑lhe fatais”.70 Parecia ser consenso entre os diferentes
agentes coloniais uma compreensão paternalista a respeito da neces‑
sidade de agirem como guias tuteladores naquele mundo em reor‑

‑UFRJ, 2000), 172.


67 Junod, Usos e Costumes dos Bantu, 44.
68 A respeito das perspectivas que marcaram uma visão dos costumes nativos como ameaçados
de extinção e do estudo dos mesmos enquanto sinais de um passado longínquo que já não
existiria mais na Europa e, consequentemente, como um caminho possível para se estudar
o passado e as transformações da humanidade, ver: Patrick Harries, Junod e as Sociedades
Africanas: Impacto dos Missionários Suíços na África Austral (Maputo: Paulinas Editoras,
2007).
69 Junod, Usos e Costumes dos Bantu, 44.
70 Junod, Usos e Costumes dos Bantu, 46.

133
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

denamento. A leitura corrente era de que todos os indivíduos e


grupos populacionais entendidos como indígenas, independente das
divisões que emergiam na ampliação do conhecimento a respeito
dessa população, ainda não estariam preparados para filtrar as supos‑
tas benesses, excluindo os malefícios, trazidos com o avançar da
missão civilizacional engendrada pela colonização. A separação do
joio do trigo, capaz de colocá­‑los num caminho retilíneo que se
apresentava tortuoso a priori, era entendida como a função primor‑
dial das “pessoas capazes de influir nessa evolução, tanto às autori‑
dades interessadas pelo problema indígena como aos indígenas
cultos preocupados com o futuro da sua raça”.71
A defesa de Junod em promover a necessidade de se conhecer
costumes locais também perpassou por um engessamento daquilo
que o mesmo entendia como cultura. Seu trabalho etnográfico
preocupou­‑se em reforçar um caráter culturalmente primitivo que
produzia a ideia da existência de uma África autêntica, longe da
industrialização, da colonização e do capitalismo, estagnada no
tempo, quase que imutável. Ao mesmo tempo, essa caracterização
legitimou a ação de missionários, como ele mesmo, que viam na
busca por “raios de luz que descobrimos com alegria nas trevas do
paganismo” uma forma de influenciar na “transformação progressiva
das leis e dos costumes dos povos primitivos”.72 Nesse sentido, suas
ideias a respeito da civilização que deteriorava práticas sociais nati‑
vas encontraram nas vivências do cotidiano da cidade o elemento
primordial para a explicação de um suposto definhamento dessas
populações quando em contato com a modernidade.
Entendendo como algo prejudicial ao bem­‑estar dessas popu‑
lações, Junod dizia poder encontrar “nas proximidades da cidade
[...] muitos homens degenerados e mulheres dissolutas”. Afir‑
mando serem pessoas que haviam perdido “todo o sentido da jus‑
tiça” ou, no melhor dos casos, não seguindo “o caminho que ela
trilha”, na sua investigação as populações “indígenas” urbanizadas
foram afastadas para um lugar de ostracismo. O que mais pareceu

71 Junod, Usos e Costumes dos Bantu, 46.


72 Junod, Usos e Costumes dos Bantu, 419 e 421.

134
MATHEUS SERVA PEREIRA

incomodar o missionário/etnógrafo era o fato de que esses indiví‑


duos estariam “libertos [...] de quaisquer restrições, tribais ou cris‑
tãs”.73 As transformações proporcionadas pelas migrações para
Lourenço Marques são lidas a partir de um viés que as relaciona
com a degradação dessas populações quando em contato com as
mudanças que constata. Henri Junod afirma, por exemplo, que
existiriam “em volta da cidade de Lourenço Marques grandes aglo‑
merações de indígenas ordinários de todas as tribos. As viúvas têm
a certeza de encontrarem aí um cento de homens, quando desejam
‘lançar para longe’ a impureza [ideia de que uma viúva precisaria
seduzir um novo homem antes de estabelecer relações com o seu
novo marido]. Mas nesta promiscuidade a sífilis alastra”.74 Em
outro momento, ao descrever as habitações designadas como
palhotas e os objetos dentro delas, demonstrou inquietação ao
constatar que algumas “na vizinhança das cidades” enfeitavam suas
paredes com “cromos da rainha Vitória, de Eduardo VII ou de D.
Carlos, conforme os países!”.75 Também é interessante perceber
como alguns dos informantes de Junod chamavam a atenção do
missionário para essas transformações que vinham ocorrendo com
a efetivação da colonização europeia na região e como eles próprios
faziam conjecturas sobre elas. O costume do uso da coroa de cera,
símbolo importante de distinção social, estaria sofrendo com essas
transformações. A necessidade da venda da força de trabalho no
“porto de Lourenço Marques ou nas minas de ouro”, estariam
fazendo com que esse “costume não [fosse] tão religiosamente”
adotado como outrora. Segundo Junod, poderia acontecer que “um
súdito pouco afortunado” recusasse o uso da coroa e questionasse
a autoridade do “chefe”, dizendo: “Que é que eu comerei? Tu dás­
‑me de comer? Preciso transportar cargas a cabeça. Para que me
serve a ngiyana [coroa de cera]? Tiko dribolile, dizem os mais
velhos, abanando a cabeça! Akehena nawu­‑ isto é: ‘O país cai na
podridão! Já não há lei!’”.76

73 Junod, Usos e Costumes dos Bantu, 347.


74 Junod, Usos e Costumes dos Bantu, 182.
75 Junod, Usos e Costumes dos Bantu, 263.
76 Junod, Usos e Costumes dos Bantu, 133.

135
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

O esforço em omitir a presença de africanos “indígenas” dentro


de ambientes urbanos condizia com o intento de Junod em mostrar
os “verdadeiros Bantus”, entendidos enquanto pessoas rurais e fora
do espaço da cidade. As múltiplas experiências compartilhadas no
cotidiano citadino de Lourenço Marques eram um engodo na teo‑
rização da autenticidade, especialmente por promover transforma‑
ções que possibilitavam a fuga do controle tutelar defendido,
projetado e imaginado como fundamental para o sucesso da enge‑
nharia colonial.77 Tais características ficam manifestas, por exem‑
plo, quando o autor se dedica a explicar o que entendia como
“sentido muito forte de justiça” existente nos “Bantus”. A opção de
Junod por escrever somente sobre os “indígenas que vivem ligados
ao seu clã”, aparece, por um lado, enquanto mecanismo de constru‑
ção do seu objeto de pesquisa que pressupõe a existência de um tipo
ideal de “indígena”, isolado da modernidade capitalista que andava
de mãos dadas com o avançar colonial. Por outro lado, ao desqua‑
lificar o surgimento de novas ações criativas nos espaços urbanos
pôr entendê­‑las como fora de “quaisquer restrições, tribais ou cris‑
tãs” e, consequentemente, sem alguém para os guiar, Junod des‑
constrói a ação daqueles indivíduos que não se submetiam aos
pressupostos propalados pelos missionários e/ou que produziram
novas formas de relacionamentos sociais que não condiziam com a
autenticidade etnográfica elaborada na construção epistemológica
daquele Outro a ser investigado e controlado.78
Não me parece ser por acaso que na última parte de Usos e Cos‑
tumes dos Bantus, intitulada “Conclusões práticas”, quando Henri
Junod dedica­‑se a emitir abertamente suas opiniões e relacioná­‑las
a uma agenda de ações para eliminar o que apreendia como pri­
mitivismo existente nos costumes nativos, que a questão da pre‑
sença “indígena” em Lourenço Marques apareça de maneira crítica.

77 Segundo Patrick Harries, em uma novela escrita por Henri Junod, em 1910, o missionário
deixava claro seu posicionamento em defesa de legislações rigorosas que contivessem o
avanço das populações nativas dentro do espaço urbano como necessárias para se manter
a ordem. A justificativa para a existência dessas leis estaria no “estagio de selvageria em
que a raça” africana ainda se encontraria. In: Harries, Junod e as Sociedades Africanas, 275.
78 As citações desse parágrafo são referentes a Junod, Usos e Costumes dos Bantu, 346­‑347.

136
MATHEUS SERVA PEREIRA

Quando da preocupação de Junod na aplicabilidade de seus apon‑


tamentos em políticas colonialistas, a preocupação em delimitar de
maneira explicita as características específicas de cada grupo desa‑
parece. Ao descrever eventos ocorridos durante uma assembleia
“perto da cidade”, o autor deixa de lado sua recorrente denominação
dos grupos étnicos dos quais seus informantes faziam parte, empre‑
gando sistematicamente o termo indígena. Generalizando esses
indivíduos nessa alcunha, descreve­‑os como desapegados de qual‑
quer moral. Essa depreciação está diretamente relacionada ao incó‑
modo que esses indivíduos causavam com a sua postura de agentes
de seus próprios destinos, capazes de tomarem decisões ou de agi‑
rem por conta própria, sem a necessidade da tutela de uma entidade
externa supostamente superior. Suas atitudes, segundo Junod, os
afastava de qualquer possibilidade de ascensão civilizacional, na
medida em que lia suas posturas como uma rejeição da “autoridade
dos missionários brancos, certos como estão de muito bem saberem
o que têm para fazer”.79 Sendo assim, o problema que emerge das
novas relações sociais estabelecidas a partir das convivências múlti‑
plas existentes no cenário urbano laurentino relaciona­‑se com a
percepção daquela cidade como um ambiente que proporcionava a
possibilidade de um agenciamento africano independente de siste‑
mas tutelares desenvolvidos por administradores coloniais ou mis‑
sionários, mas também pelo próprio “enfraquecimento do laço
tribal”.80
Ao colocar um “indígena civilizado” como aquele que “aumen‑
tou dez vezes as suas necessidades”,81 ou seja, como aquele que
adentrou no mundo do trabalho assalariado e adquiriu hábitos novos
de consumo, Henri Junod enxergou como motivo para a diminuição
futura do interesse dos etnógrafos as transformações pelas quais as
habitações e, consequentemente, as próprias relações sociais, passa‑
vam. Afirmando que a “palhota indígena tem uma silhueta alegre”
e suas construções em círculo era algo “pitoresco”, condenava­‑as a

79 Junod, Usos e Costumes dos Bantu, 432­‑433.


80 Junod, Usos e Costumes dos Bantu, 432­‑433.
81 Junod, Usos e Costumes dos Bantu, 429.

137
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

uma “mudança inevitável” rumo ao progresso da “linha reta”. Clas‑


sificando­‑a como não higiênica, insistiu na ideia de que a palhota
poderia passar por transformações que permitisse que seus “defeitos
[fossem] corrigidos”. No entanto, lia as ações desses indivíduos
construindo suas novas habitações e mudando suas relações sociais
não como a execução de trabalhos não especializados que mistura‑
vam diferentes referências, mas como uma cópia apressada e mal‑
feita do “sistema europeu” de “casas quadradas”.82 A interpretação
das ações dos “indígenas semicivilizados”,83 outro termo empregado
por Junod para caracterizar aqueles que viviam nas cidades, as inse‑
riu dentro de um escopo analítico que os via trilhando caminhos
incorretos. As transformações criativas produzidas pelos “indígenas”
a partir das relações que estabeleciam com os símbolos da moder‑
nidade civilizacional eram desmerecidas, por Junod e toda uma
gama de agentes da colonização portuguesa no sul de Moçambique
que tiveram sua obra como referência, como cópias mal elaboradas
que ignoravam os sistemas de poder e de controle elaborados local‑
mente ou pelas ações coloniais.
O raciocínio apresentado tornava invisível a presença daqueles
classificados como indígenas na cidade, ao mesmo tempo em que
reafirmava a validade das categorias coloniais construídas para iden‑
tificar as populações nativas. Ao entender esses indivíduos como
pessoas que não mereciam a sua atenção, principalmente por esta‑
rem transitando entre diferentes mundos enquanto construíam algo
novo a partir de suas movimentações por mundos distintos que se
tocavam mutuamente, o missionário etnógrafo suíço que tanto
influenciou o pensamento e a ação colonial portuguesa na região ao
sul do rio Save deslegitimou as experiências dessas populações den‑
tro do espaço urbano.
A riqueza das abordagens de Henri Junod parece ter pautado, por
longos anos, as discussões sobre os conhecimentos produzidos dentro
de âmbitos coloniais portugueses sobre as relações sociais das popu‑
lações nativas localizadas ao sul do rio Save. É interessante perceber

82 Junod, Usos e Costumes dos Bantu, 428.


83 Junod, Usos e Costumes dos Bantu, 428.

138
MATHEUS SERVA PEREIRA

como uma grande parcela dos relatos de portugueses que estiveram


em Moçambique, publicados nas primeiras décadas do século XX,
versam, principalmente, sobre a região norte. Seguindo essa pista, até
o momento praticamente inexplorada pela bibliografia, vale salientar
algumas questões. É impressionante a proliferação de publicações no
cenário português sobre o norte de Moçambique. O volume dos tex‑
tos, em comparação com aqueles que falam sobre o sul, aparenta ser
muito maior. Excluindo os relatórios dos governadores gerais, a publi‑
cação de alguns compêndios de administradores da região de Inham‑
bane ou de Gaza e o trabalho etnográfico de Henri Junod, não localizei
qualquer esforço sistemático de elaboração de um conhecimento de
cunho antropológico e/ou etnográfico sobre as populações existentes
abaixo do rio Save até, pelo menos, os anos 1950.84
Uma explicação possível para isso pode ser encontrada no con‑
texto da ocupação imperial. Os intensos combates que continuaram
sendo travados contra poderes locais que recusavam subjugar­‑se ao
poder militar português nas províncias do norte de Moçambique
podem ser uma pista para indicar a proliferação desses relatos.
Enquanto no sul, o principal poder constituído que se opunha a
ocupação portuguesa foi derrotado entre 1895 e 1898, não se mos‑
trando capaz de impor resistência militarizada significativa após a
deposição de Gungunhana, no norte, os combates contra diferentes
grupos, especialmente os islamizados, estenderam­‑se, pelo menos,
até o fim da primeira Guerra Mundial. Essa longevidade combativa,
somada a própria presença portuguesa mais longínqua no centro e
no norte de Moçambique, parecem ter estimulado a produção e a
publicação sobre as populações que habitavam naquelas regiões.85
Essas publicações influenciaram a construção dos saberes de
cunho acadêmico, que viriam a emergir, a partir dos anos 1930,
sobre as populações colonizadas de Moçambique. Foi no contexto

84 Como exemplo de compêndios publicados a partir das experiências de campo desses ho‑
mens coloniais, ver: Francisco D’Assis Clemente, Estudos Indianos e Africanos (Lisboa:
Tipografia Matos Moreira, 1889).
85 Ver, dentre muitos: Algumas Palavras acerca das Operações de Guerra no Distrito de Moçam‑
bique durante o Governo do Exmo. Sr. Conselheiro Jayme Pereira de Sampaio Forjaz de Serpa
Pimentel (1903­‑1904) (Lisboa: Tipografia d’A Editora, 1904).

139
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

da década de trinta do século XX que foram realizados diversos


eventos de cunho científicos e de popularização desse mundo ima‑
ginado, assim como o crescimento no número de instituições cien‑
tíficas responsáveis por pensar o mundo colonial que,
consequentemente, levaram a cabo um grande número de pesquisas
de campo.86 Atuando com a pretensão de fazer com que a admi‑
nistração colonial portuguesa adquirisse características considera‑
das mais científicas, entendendo essa virada como algo necessário
para torná­‑la, supostamente, mais racional e eficaz, desenvolveram
um conhecimento sobre a composição populacional do Império
português legitimador das formas de exploração existentes até
então.87 Em 1934, por exemplo, com a realização da Exposição
Colonial Portuguesa e do 1.º Congresso Nacional de Antropologia
Colonial, ambas no Porto, foram levados para a cidade 139
“moçambicanos”. É impressionante como o número de “indígenas
moçambicanos” é muito maior do que o número de indivíduos
vindos de outras regiões das colônias portuguesas na África. Da
Guiné teriam sido 79 e, de Angola, 40.88 Por conta da presença
dessas populações em solo português, uma série de trabalhos cien‑
tíficos foram realizados. No seu conjunto, reverberam visões recor‑
rentes do racismo colonial difundido em Portugal, com ênfase na
coleta de dados que buscassem explicar aquele Outro dentro de uma
perspectiva desenvolvida pela antropologia física.89 Porém, também

86 Alguns desses eventos ocorridos em Portugal, são: I Conferência dos Governadores Co‑
loniais (1933), Congresso de Agricultura Colonial, I Congresso de Antropologia Colonial,
I Congresso Nacional de Colonização, Congresso de Ensino Colonial na Metrópole,
I Congresso de Intercâmbio Comercial com as Colónias, I Congresso Militar e Colonial,
todos em 1934, Semana das Colónias (1935), dentre outros.
87 A relação entre produção de saberes sobre o território colonial e a administração colonial
dentro de contextos imperiais ocorridos na África é muito mais complexo e menos linear
do que pode parecer num primeiro momento. Para uma visão complexificadora dessa
relação, ver: Lyn Schumaker, “A Tent With a View: Colonial Officers, Anthropologists,
and the Making of the Field in Northern Rhodesia, 1937­‑1960,” Osiris 11, (1996): 237­
‑258. Ou Lyn Schumaker, “The Director as Significant Other: Max Gluckman and Team
Research at the Rhodes­‑Livingstone Institute”, in Significant Others: Interpersonal and
Professional Commitments in Anthropology, ed. Richard Handler, 91­‑130 (Madison: Uni‑
versity of Wisconsin Press, 2004).
88 Anónimo. “Le Congrès d’Anthropologia Coloniale de Porto”, in L’Anthropologie, t.45 (Par‑
is, Masson et Cie. Éditeurs, 1935). Apud, Matos, As “Cores” do Império, 72.
89 Ver: Trabalhos do 1.º Congresso Nacional de Antropologia Colonial. Porto – Setembro de 1934.

140
MATHEUS SERVA PEREIRA

existiram casos como o das publicações de Fernando de Castro


Pires de Lima, médico e destacado etnógrafo português, que baseou
toda uma tipificação do “Folclore de Moçambique” apenas com
base nos relatos dos funcionários da Companhia de Moçambique,
localizada na Zambézia, centro de Moçambique, e nas observações
que fez por conta dos “indígenas” que essa companhia trouxe para
a exposição.90
A virada da escola antropológica portuguesa para o mundo
colonial, desenvolvida através de sua consolidação a partir da Facul‑
dade de Medicina do Porto, dialogou com esses saberes previamente
elaborados. A missão antropológica portuguesa em Moçambique,
capitaneada por Joaquim Rodrigues dos Santos Júnior ao longo dos
anos 1930 e 1940, por exemplo, realizou seus trabalhos de campo
sobretudo nas regiões de Tete e da Zambézia, no centro, e de Nam‑
pula, no norte, excluindo qualquer perspectiva de recolha de dados
nas províncias de Gaza, Inhambane e Lourenço Marques, localiza‑
das no sul. Quando dirigiu suas reflexões para esse território, Santos
Júnior recorreu a obra de Henri Junod, citando­‑o como “o melhor
trabalho de Etnografia de Moçambique, [...] senão o melhor de toda
a África”, reproduzindo de maneira acrítica as divisões “tribais”
identificadas pelo missionário suíço.91 Os objetivos do líder da mis‑
são de compreender a “alma do indígena através da etnografia de
Moçambique” produziu um conhecimento delimitado pelos dita‑
mes do governo português e seus interesses sobre a colônia. Tendo
como objetivo intervir no processo de colonização para maximizar
a capacidade metropolitana portuguesa de exploração da mão de
obra local, seus “inquéritos tribais”, semelhante ao elaborado por
Joaquim d’Almeida da Cunha na década de 1880, foram “um ver‑

Por iniciativa da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia. Edições da 1.ª Ex‑


posição Colonial Portuguesa, Porto, 1934.
90 Fernando de Castro Pires Lima, Contribuição para o Estudo do Folclore de Moçambique.
(Porto: Separata da revista de etnografia n.º 14. Museu de Etnografia e História, 1934).
91 J. R. dos Santos Júnior, A Alma do Indígena Através da Etnografia de Moçambique (Instituto
de Antropologia da Universidade do Porto (Diretor – Prof. Dr. Mendes Correa). Lisboa,
1950, 11. Ver, também: J. R. dos Santos Júnior, “Carta Etnológica de Moçambique”, in
XIII Congresso da Associação Portuguesa para o Progresso das Ciências. Tomo V – 4.º Sessão,
Ciências Naturais (Porto: Imprensa Portuguesa, 1951), 625­‑645.

141
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

dadeiro logro, pois ignoravam a extensão cultural dos etnónimos,


preso que estava a critérios de natureza ‘rácica’”.92
O racismo científico era marca desses trabalhos de campo. Seus
objetivos e resultados estiveram intimamente ligados a uma legiti‑
mação científica da ideologia colonial de supremacia racial branca
e de reforço da dominação colonial. Os estudos de António Augusto,
chefe da brigada psicotécnica da missão de antropologia em Moçam‑
bique, basearam­‑se em noções raciais para elaborar uma tipificação
das populações que entrevistou, subdividindo­‑as em “tribos”. Seu
objetivo era o de medir o “nível intelectual” dessas pessoas, para,
assim, saber quais estariam mais aptas a determinados tipos de tra‑
balho. Apesar de reclamar da interferência de seus intérpretes nas
respostas e da necessidade do uso da força para que muitos entre‑
vistados fornecessem dados, em momento algum questionou a fra‑
gilidade das informações colhidas ou sua capacidade de fornecerem
interpretações fidedignas. Sua conclusão, corroborativa da ação
colonizadora, era de que “as tribos de condição intelectual idêntica
à das que a Missão Antropológica observou só podem viver e pros‑
perar conservando­‑se sob a tutela das nações de superior nível men‑
tal ou nelas incorporadas”.93
A diminuta atenção aos “indígenas” do sul pelos intelectuais
portugueses que se debruçaram na análise das populações coloniza‑
das em Moçambique também pode ser entendida como resultado
do próprio contexto de transformações aceleradas ocasionadas pela
implementação da máquina administrativa colonial. A noção de
Henri Junod a respeito dos grupos onde havia desenvolvido suas
pesquisas, imaginando­‑os como fadados ao desaparecimento devido
as novas interações propiciadas pelos contatos com os meios urbanos

92 Rui M. Pereira, “Raça, Sangue e Robustez: Os Paradigmas da Antropologia Física Colonial


Portuguesa”, Caderno de Estudos Africanos, n.º 7­‑8 (2005): 225. Para um exemplo da ten‑
dência em misturar tipificação dos “usos e costumes indígenas” dentro de perspectivas
raciais e culturais, ver: António Augusto Pereira Cabral, Primeira Exposição Colonial Por‑
tuguesa. Porto, 1934. Colónia de Moçambique. Indígenas da Colónia de Moçambique (Lourenço
Marques: Imprensa Nacional de Moçambique – Publicada pela Comissão encarregada da
representação da Colónia, 1934).
93 António Augusto, Estudos Psicotécnicos: Nível Intelectual de Algumas Tribos de Moçambique
(Lisboa: Ministério das Colónias. Série Antropológica e Etnológica, 1949), 73.

142
MATHEUS SERVA PEREIRA

da África do Sul e de Lourenço Marques, transformaram esses sujei‑


tos em não representativos para o saber que pretendia ser desenvol‑
vido.94 Apenas com o surgimento de um novo contexto político,
marcado pelos processos de independência em toda a África e pelos
esforços europeus em controlá­‑los, e de um novo contexto intelec‑
tual, onde os trabalhos desenvolvidos pelo Rhodes­‑Livingstone
Institute debruçavam­‑se sobre o mundo urbano africano em uma
perspectiva distinta da existente até então, enxergou­‑se os “africanos
de Lourenço Marques” como um dilema a ser enfrentado.95
Outro aspecto da produção da categoria “indígena” e de suas
características foi o da relação íntima com a criação de uma com‑
preensão da obrigação moral ao trabalho, de mecanismos de coerção
de inserção dessa mão de obra ao trabalho, forçado ou livre, e de
uma interpretação desses como naturalmente propensos a vadia‑
gem.96 Porém, homogeneizar a diversidade encontrada no terreno
não foi um processo simples, especialmente quando analisado da
perspectiva do dia a dia das instituições coloniais reguladoras da vida
social. A precariedade das estruturas físicas no início da empreitada
colonial do século XX foi uma importante barreira nesse processo.

94 Harries, Junod e as Sociedades Africanas.


95 Utilizo como exemplo primordial dessa virada a obra de António Rita­‑Ferreira, “Os Afri‑
canos de Lourenço Marques”. É importante destacar que a transformação de uma antro‑
pologia predominantemente física para uma cultural, ou sociocultural, ocorreu ainda nos
anos 1950, tendo como grande expoente os trabalhos de Jorge Dias. No entanto, a obra de
Jorge Dias, bastante pautada pelos processos de independência em Moçambique que co‑
meçavam a emergir, e a sua relação com a escola de antropologia do Porto, levaram o seu
trabalho etnográfico para o norte de Moçambique, mais especificamente para os denomi‑
nados macondes. Sobre o Rose Livingstone Institute e a importância de suas pesquisas,
ver: Lyn Schumaker, Africanizing Anthropology: Fieldwork, Networks, and the Making of
Cultural Knowledge in Central Africa (Durham & Londres: Duke University Press, 2001).
Sobre as ambivalências existentes no trabalho de Jorge Dias, ver: Harry G. West “Inverting
the Camel’s Hump: Jorge Dias, His Wife, Their Interpreter, and I”, in Significant Others:
Interpersonal and Professional Commitments in Anthropology, ed. Richard Handler, 51­‑90
(Madison: University of Wisconsin Press, 2004).
96 O chibalo era como se designava o trabalho compelido forçado instituído pelo colonialismo
português em Moçambique. Foi comumente utilizado pelos agentes coloniais para angariar
rapidamente e de forma barata trabalhadores para obras públicas ou para agentes privados.
Sobre a relação entre trabalho forçado e vadiagem no contexto africano, ver: Alexander
Keese, “Slow Abolition Within the Colonial Mind: British and French Debates about
“Vagrancy”, “African Laziness”, and Forced Labour in West Central and South Central
Africa, 1945­‑1965”, IRSH, 59 (2014): 377­‑407.

143
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

Em junho de 1912, por exemplo, o Comissário da Polícia Civil de


Lourenço Marques reclamou com o chefe do gabinete do Governo
Geral que o seu local de trabalho, e também o de seu adjunto, não
eram “providos de luz”. Os inconvenientes pela precária infraestru‑
tura eram enormes, especialmente quando havia “necessidade de
atender a serviços a altas horas da noite”. Terminou por solicitar a
instalação de luzes “com urgência possível, por ser de extrema
necessidade”.97
Os intérpretes desse mundo moçambicano, ao selecionarem
determinadas ferramentas analíticas disponíveis para pensar o Outro
negro/africano, não necessariamente conseguiram encontrar formu‑
lações capazes de encaixar suas demandas classificatórias nas peque‑
nas demarcações de mensuração do mundo colonial. No final, ao
reduziram uma variedade de possibilidades a duas categorias jurí‑
dicas (assimilado ou indígena), as interpretações dos agentes colo‑
niais não foram capazes de traduzir um amplo léxico de combinações
variáveis quando confrontadas com a vivência desse Outro dentro
do mundo urbano. Esses indivíduos pensados sempre como seres
ausentes da cidade, ao se encontrarem vivendo ou transitando por
ela, foram entendidos, ao mesmo tempo, como um problema admi‑
nistrativo e epistemológico. Nesse sentido, formas de categoriza‑
ções do Outro foram desenvolvidas na relação entre processos de
expansão e de contatos, formulações de políticas de conquista e
dominação, juntando­‑as com as formas utilizadas para teorizar cien‑
tificamente a diferença. Ao invés de questionarem a incapacidade
de suas ferramentas, os intérpretes portugueses do mundo colonial
constantemente dobraram o cotidiano para que ele coubesse dentro
das formulações pré­‑determinadas de como os indivíduos pensados
como substancialmente diferentes deveriam ser constituídos.
O resultado concreto desse processo, de esforço dos agentes colo‑
niais em asseverar a dicotomia politicamente construída entre colo‑
nizadores e colonizados e, consequentemente, a própria empreitada

97 AHM, Fundo do Governo Geral (doravante GG), Processos, 1908­‑1914, Caixa 19. Carta
do Comissário de Polícia Civil de Lourenço Marques para o Chefe do Gabinete do Go‑
verno Geral, 19 de junho de 1912.

144
MATHEUS SERVA PEREIRA

colonial, encontrou, na prática, um “problema da vigilância das


fronteiras”.98
Uma miríade de subcategorias que emergiam a partir da inten‑
sificação dos contatos, como a dos semi­‑assimilados, dos destribali‑
zados ou dos brancos degenerados, que não se enquadravam nessas
fronteiras rígidas, foram sempre um problema para os teóricos colo‑
niais. Conjuntamente, esforços de pensar as trocas culturais entre
colonizadores e colonizados através de um prisma que buscava
entender como o “Europeu influi nos indígenas”, mas também da
“influência do elemento inferior sobre o superior”,99 como os de
José Gonçalo de Santa Rita, professor da Escola Superior Colonial
nos anos 1930 e 1940, encontraram no campo cotidiano das trocas
culturais ocorridas nas ruas de Lourenço Marques um espaço mar‑
cado pela incompreensão mútua que provocava uma série de con‑
flitos constantes e reformulações difíceis de serem enquadradas.
As práticas socioculturais dos grupos populacionais do sul de
Moçambique passaram por um processo semelhante de homoge‑
neização. Nesse sentido, é fundamental analisar de que maneira as
práticas designadas genericamente como batuques foram objetos de
um processo de homogeneização e de escrutinização por parte de
diferentes agentes da ação colonial portuguesa. Por um lado, esses
insistiram em unificar danças e músicas dentro da categoria genérica
de batuque. Por outro lado, as necessidades impostas pelas intem‑
péries colonialistas por uma melhor compreensão daqueles que esta‑
vam sendo dominados acabaram por produzir respostas coloniais
que transitaram entre um destrinchar desse termo atrás de uma
apuração mais fidedigna daquilo que era presenciado. Ao mesmo
tempo, promoveram uma incorporação dessas práticas na empresa
colonial. Este processo foi concebido pelos agentes coloniais por‑
tugueses como uma forma de apropriação para uma positivação de
um discurso nacionalista português das danças, canções e músicas
feitas pelos nativos do sul de Moçambique.

98 Silva, “Fotografando o Mundo Colonial Africano. Moçambique, 1929”, 109.


99 José Gonçalo Santa Rita, “O Contato das Raças nas Colónias Portuguesas: Seus Efeitos
Políticos e Sociais”, in Congresso do Mundo Português, vol. XV (Lisboa: 1940), 65.

145
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

BATUQUES NEGROS, OUVIDOS


E OLHARES BRANCOS

Publicados com o título de As Explorações Portuguesas em Lou‑


renço Marques. Relatórios da Comissão de Limitação da Fronteira de
Lourenço Marques, os relatórios apresentados por Alfredo Freire de
Andrade e José António Matheus Serrano correspondiam as suas
anotações e apontamentos a respeito da expedição que realizaram no
sul de Moçambique, entre junho e agosto de 1891.100 Os engenheiros­
‑militares responsáveis pela Comissão tinham como objetivo prio‑
ritário a construção de marcos fronteiriços entre Moçambique e o
Transvaal – atual África do Sul. Cumpridos os trabalhos de demar‑
cação territorial, a comitiva portuguesa continuou percorrendo o
território, passando pelos distritos de Lourenço Marques, Gaza e
Inhambane, ocupados, majoritariamente, pelos grupos shangana,
tonga e chopi. Nesse momento, a ênfase da expedição foi direcionada
para a necessidade de reconhecer a região que se pretendia dominar,
tanto fisicamente como socioculturalmente, assim como a possibili‑
dade de estabelecer alianças com as populações locais.
O estabelecimento dessas fronteiras foi um passo importante
para o reconhecimento da legitimidade da dominação portuguesa
sobre a região frente aos desejos de outros países europeus e suas
pretensões colonialistas. A influência inglesa em Lourenço Marques
era considerada um fator de risco para as possibilidades de possessão
portuguesa. O processo de delimitação fronteiriço, no último quartel
do século XIX, foi marcado por conflitos entre as metrópoles coloni‑
zadoras que disputavam as regiões que cada qual deveria controlar na
África. Para o caso português, os exemplos do Mapa Cor de Rosa,
que representou as pretensões lusitanas de controlar territórios afri‑
canos da costa atlântica angolana até a costa do Índico moçambicano,
assim como a resposta inglesa, por meio de um Ultimatum, em 1890,
que pôs fim ao desejo de Portugal, são emblemáticos. Ambos podem

100 Alfredo Freire de Andrade e José António Mateus Serrano, Explorações Portuguesas em
Lourenço Marques: Relatórios da Comissão de Limitação da Fronteira de Lourenço Marques
(Lisboa: Imprensa Nacional, 1894).

146
MATHEUS SERVA PEREIRA

ser entendidos como alguns dos principais elementos indicativos da


extrema importância da missão comandada por Freire de Andrade e
Matheus Serrano com o processo de consolidação da ocupação por‑
tuguesa no atual território sul­‑moçambicano. Infelizmente, a maioria
dos trabalhos sobre esse contexto possuem um viés de análise cen‑
trado nas questões das relações internacionais entre Portugal e Ingla‑
terra e/ou da política interna portuguesa, deixando de lado questões
relacionadas aos contextos africanos.101
Os ingleses não eram os únicos que ameaçavam os anseios colo‑
niais lusitanos. As sublevações dos poderes locais à administração
portuguesa também puseram em sérios riscos a empresa colonial
portuguesa. No sul de Moçambique, o reino de Gaza, fundado pelos
ngunis no início do século XIX por meio de movimentos migratórios
que subjugaram outros povos da região, tinham em Gungunhana
sua grande liderança. Empossado em 1884, Gungunhana teve que
enfrentar transformações que acabaram levando a sua deposição e
prisão por tropas portuguesas, em 1895.102
A insistência de Freire de Andrade e Matheus Serrano de esta‑
belecerem uma aproximação mais contundente com Gungunhana e,
ao mesmo tempo, mapear e constituir contatos com as demais chefias
locais insatisfeitas com o cenário político criado pelo reino de Gaza,
revelam o interesse português pela região, assim como um imbricado
jogo de poder. Por um lado, esse cenário desenhava­‑se como ideal
para os militares portugueses conseguirem estabelecer parcerias com
grupos insatisfeitos. Por outro lado, as resistências ao poderio por‑
tuguês eram maiores, tendo alguns “régulos” negado auxílio as cara‑
vanas da expedição ou repudiado vassalagem a Portugal.103
Os documentos elaborados pela Comissão apresentam a necessi‑
dade imperiosa do estabelecimento de parcerias para sobreviver as
intempéries do terreno, a visão racista dos produtores desse corpus

101 Nuno Severiano Teixeira, “Política Externa e Política Interna no Portugal de 1890: O Ul‑
timatum Inglês”, Análise Social XXIII, n.º 98 (1987): 687­‑719; para uma perspectiva dife‑
rente, ver: Maria Emília Madeira Santos, “Ultimatum, Espaços Coloniais e Formações
Políticas Africanas”, África. Revista do CEA – USP, n.º 16 – 17 (1993­‑1994): 67­‑99.
102 Gabriela Aparecida dos Santos, Reino de Gaza: O desafio português na ocupação do sul de
Moçambique (1821­‑1897) (São Paulo: Alameda, 2010).
103 Andrade e Serrano, Explorações Portuguesas em Lourenço Marques, 70 e 134.

147
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

documental e o crescimento da curiosidade europeia por práticas socio‑


culturais africanas. Porém, estas são descritas e fotografadas quase como
mais um elemento na paisagem. Trabalhadores que acompanhavam a
expedição, carregando os equipamentos pelos rios, construindo botes
e arriscando suas vidas, em sua grande maioria homens, raramente
foram nomeados. Em poucos momentos, a máquina fotográfica dos
expedicionários portugueses foi utilizada para capturar eventos como
os do dia em que a “noite todos os swasis [que trabalhavam como
carregadores para os bôeres] dança[ram] no acampamento”.104

8. In [Álbum fotográfico n.º 10] Comissão de Delimitação de Fronteiras de Lourenço Marques


1890­‑91. Arquivo Científ ico Tropical. Dif ital Repository (ACT/DR). “Suaris [Suazis?]
dançando”.105

A importância das fontes fotográficas na História da África é


algo consolidado. O amadurecimento de um arcabouço teórico­
‑metodológico para se trabalhar com essas imagens caminhou con‑
juntamente com a constatação da carga ideológica do ato de
fotografar. É possível perceber uma ênfase na ideia da fotografia
como uma escolha baseada na decisão do seu autor, que, por seu
turno, está impregnado pela sua própria cultura. Uma parcela sig‑
nificativa da bibliografia apresenta certo ceticismo na capacidade
das fotografias produzidas em contextos coloniais de revelarem
temas para além daqueles relacionados com a cultura e o racismo

104 Andrade e Serrano, Explorações Portuguesas em Lourenço Marques, 26.


105 Consultado em 23 de abril de 2018: https://actd.iict.pt/view/actd:AHUD5613

148
MATHEUS SERVA PEREIRA

dos produtores dessas imagens, especialmente durante a primeira


metade do século XX, quando o ato de fotografar estava concentrado
em mãos europeias.106 Mais recentemente, investigações têm bus‑
cado sanar uma lacuna existente para o uso das fotografias como
fontes e objetos de análises para os contextos coloniais portugueses.
Trabalhos que utilizam um vasto corpo imagético de fontes produ‑
zidas ao longo de todo o período colonial português, como os publi‑
cados na obra organizada por Filipa Lowndes Vicente, indicam para
uma pluralidade de abordagens que intentam ir além de uma análise
das culturas daqueles produtores dessas fontes, buscando interpre‑
tações sobre aqueles que foram fotografados.107
O acervo imagético da Comissão Exploratória de 1890 é com‑
posto por dois álbuns fotográficos, com um total de oitenta e seis
fotografias. Registrar os marcos de delimitação territorial, os cursos
dos rios, a fauna e a flora, os acampamentos e as dificuldades enfren‑
tadas durante a expedição ou as ruas da cidade de Inhambane, ponto
final da expedição, era uma forma de legitimar e autenticar o poder
português na região. Por isso mesmo, do total de imagens, 53%
delas (ou 62) são referentes a esses aspectos.108 Justamente nessas
imagens, confrontadas com as descrições que as acompanham,
torna­‑se possível refletir sobre os modos de vida das populações
nativas, as formas de relação que estabeleciam entre si e como pen‑
savam a sua relação com os europeus. O encontro da Comissão com
Gungunhana, por exemplo, foi bastante tumultuado. Desconfiando
do mediador/intérprete, os chefes expedicionários portugueses afir‑
maram estarem surpresos e indignados com a maneira subserviente
empregada pelo representante português junto à corte de Gungu‑
nhana, quando o mesmo dirigia a palavra ao poderoso líder de
Gaza.109 Para corroborar a realização desse encontro e promover um

106 David Killingray e Andrew Roberts, “An outline of photograph in Africa to ca. 1940”,
History in Africa, 16 (1989): 197­‑208; ou Christraud M. Geary “Old Pictures, New Ap‑
proaches: Researching Historical Photographs”, African Arts, 24, n.º 4, Special Issue: His‑
torical Photographs of Africa (Oct., 1991): 36­‑39+98.
107 Filipa Lowndes Vicente, org., O Império Da Visão: Fotografia No Contexto Colonial Portu‑
guês. (Lisboa: Edições 70, 2014).
108 Os álbuns completos podem ser vistos em: http://actd.iict.pt/collection/actd:AHUC141
e http://actd.iict.pt/collection/actd:AHUC148, consultados em 13/09/2018.
109 Andrade e Serrano, Explorações Portuguesas em Lourenço Marques, 139­‑145.

149
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

diálogo maior entre as duas partes, foram realizadas fotografias de


Gungunhana e de algumas de suas esposas.110
Deixar ser fotografado possuía mais significados do que o sim‑
ples posar para uma máquina. Noutra ocasião, o “régulo de Mapanda”,
por exemplo, “resistiu [...] a deixar­‑se fotografar” pelos portugueses,
com receio de desagradar Gungunhana.111 Porém, correndo o risco
de represálias, o “régulo Novéle” não parece ter se importando em
estar em contato com a comissão portuguesa. Achegado do final da
expedição, Freire de Andrade estacionou sua caravana por alguns
dias nas terras de Novéle, localizadas na região de Malasche, próxima
da cidade de Inhambane. Tributário do “régulo Massibi”, que havia
negado auxílio a campanha portuguesa, Novéle tentou estabelecer
uma relação positiva com o expedicionário português.112 Não à toa
essa é a população mais fotografada pela expedição. São sete fotos.
Freire de Andrade acabou por elaborar algumas descrições de costu‑
mes locais, como a crença no gagáo – prática referente a adivinhação
– e o hábito de usar o cabelo “rapado em parte, [...] deixando­‑o quase
sempre crescer em linhas longitudinais, geralmente paralelas”.113
A demonstração de insatisfação de Novéle com as guerras cau‑
sadas por Gungunhana, assim como sua aproximação da comitiva de
Freire de Andrade, demonstram como Novéle compreendia que a
presença portuguesa na região poderia ser útil para seu objetivo polí‑
tico de retomar sua independência perdida com a submissão ao reino
de Gaza. Como forma de pressionar a adoção por parte dos portu‑
gueses de medidas a seu favor, ao mesmo tempo em que narrou e
engrandeceu os feitos de sua gente, Novéle enviou, “quase todas as
noites”, homens e mulheres para cantar e dançar no acampamento da

110 Desconheço pesquisas que tenham atribuído a autoria dessa fotografia de Gungunhana
ou dado mais informações sobre essas imagens, usando­‑as, na maioria das vezes, de forma
ilustrativa. As fotografias podem ser vistas em: http://actd.iict.pt/view/actd:AHUD5177;
http://actd.iict.pt/view/actd:AHUD5179; http://actd.iict.pt/view/actd:AHUD5176;
http://actd.iict.pt/view/actd:AHUD5180, links consultados em 13/09/2018.
111 António Enes, Relatório apresentado ao governo por António Enes (publicado, pela primeira
vez, em 1893), in O Africano, 04 de agosto de 1915. WNA.
112 Andrade e Serrano, Explorações Portuguesas em Lourenço Marques, 70­‑71.
113 Andrade e Serrano, Explorações Portuguesas em Lourenço Marques, 70­‑71. A fotografia dos
“Rapazes de Malashe” pode ser vista em: http://actd.iict.pt/view/actd:AHUD5170, con‑
sultado em 13/09/2018.

150
MATHEUS SERVA PEREIRA

Comissão. Apesar de adjetivar aquilo que via como composto por um


som monótono, as apresentações feitas pela “gente de guerra” teriam
obrigado Freire de Andrade a esconder o medo que sentiu.
O engenheiro­‑militar, que nos anos subsequentes iria se tornar uma
das figuras mais emblemáticas da campanha de ocupação portuguesa
naquelas paragens, temeu os guerreiros que chegaram quase a tocá­‑lo,
com o avançar de suas zagaias em punho, a fingirem atacar “os ini‑
migos ausentes”.114 No final de sua estadia em Malasche, a ação de
propaganda feita por Novéle parece ter surtido efeito. O líder da
Comissão ficou convencido de que ali existia “gente guerreira e boa”.
Para reforçar o seu posicionamento de parceria com o governo por‑
tuguês, Novéle abasteceu os expedicionários com mantimentos, pro‑
meteu fornecer pessoal e os acompanhou com “mais de quatrocentos
pretos [...] durante hora e meia de caminho [..], com a música cafre”.115
As duas fotografias feitas dessa espécie de cortejo revelam que
os sons daquilo que Freire de Andrade chamou genericamente como
“música cafre” foi produzido por um grande tambor e xilofones
chamados por aqueles que o tocavam como timbila (no singular,
mbila). Tambores e xilofones compunham o ngodo (no plural,
migodo). Os chefes locais do grupo étnico chopi financiavam essas
orquestras, que correspondiam a “um conjunto de canções e instru‑
mentos organizados em uma composição” 116 a ser performada por
músicos e dançarinos e que funcionavam, principalmente, como um
importante demarcador de pertencimento cultural. Nesse sentido,
apesar do relatório apontar em momentos específicos para uma ori‑
gem regional das populações com as quais o corpo expedicionário
português estabeleceu contatos, as fotografias nos permitem ir além
e indicar um possível pertencimento étnico de Novéle. É plausível
imaginar que o mesmo se considerava chopi, um grupo que vendeu
cara a sua independência ao reino de Gaza.

114 Andrade e Serrano, Explorações Portuguesas em Lourenço Marques, 72.


115 Andrade e Serrano, Explorações Portuguesas em Lourenço Marques, 75.
116 Leroy Vail e Landeg White, “The Development of Forms. The Chopi Migodo”, in Power
and the praise poem. Southern African voices in History (Charlottesville: University Press of
Virginia, 1991): 112. No original: “a set of songs and instrumental pieces arranged into a
composition”.

151
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

9.

10. In [Álbum fotográfico n.º 10] Comissão de Delimitação de Fronteira de Lourenço Marques
1890­‑1891. ACT/DR. “Batuques em Malasche”.117

117 Consultado em 23/04/2018: http://actd.iict.pt/view/actd:AHUD5644, http://actd.iict.pt/


view/actd:AHUD5645

152
MATHEUS SERVA PEREIRA

Disponíveis no Instituto de Investigação Científica Tropical


(IICT), as duas fotografias resultantes desse encontro apresentam
a legenda “Batuque em Malashe”. As imagens feitas pela Comissão
não foram publicadas conjuntamente com o seu relatório. Apenas
em 2013, quando o IICT as disponibilizou online, foi possível ter
acesso as imagens produzidas pela expedição. Apesar do esforço
louvável de digitalização de um vasto corpo documental, majorita‑
riamente produzido por órgãos científicos coloniais portugueses, as
fotografias do acervo ainda carecem de investigações. O próprio
instituto reconhece essa necessidade, informando que não possui a
identificação da autoria das fotografias, apenas o nome dos chefes
que assinavam as expedições produtoras dessa documentação. Sendo
assim, só foi possível descobrir o contexto da elaboração das imagens
presentes nos álbuns intitulados pelo IICT como da “Comissão de
Delimitação de Fronteira de Lourenço Marques 1890­‑91” a partir
do seu título, dos autores atribuídos as imagens e do cotejamento
das mesmas com as descrições elaboradas nos relatórios de Freire
de Andrade e Matheus Serrano. Essa pode ser uma justificativa para
que as legendas das imagens descrevam essas fotografias como
“Batuque em Malashe”, apesar de no relatório nunca terem sido
nomeadas dessa maneira.
O descompasso entre o termo usado na legenda e aquele que
aparece no relatório que contextualiza a produção da imagem abre
pistas para uma reflexão sobre a utilização do termo batuque como
definidor das danças, mas, principalmente, das músicas apresenta‑
das por aquelas pessoas delimitadas como indígenas no contexto
colonial português do final do século XIX e início do século XX.
O processo de nomeação daquilo que era visto produziu linhas dis‑
tintas. Por um lado, unificou tudo que era visto e ouvido advindo
dos corpos, das cordas vocais e dos instrumentos musicais no gené‑
rico desígnio de batuque. A generalização das músicas e das danças
fez parte da generalização promovida pelo processo de racialização
das relações sociais agenciado pelo colonialismo. Ao mesmo tempo,
definiram essa forma de agir dançante e musical como algo depre‑
ciativo que representava e perpassava a natureza daqueles indiví‑
duos. Por outro lado, a curiosidade dos círculos metropolitanos por
aquilo que se considerava exótico nas colônias, somada à necessi‑

153
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

dade de estabelecer um processo colonial racionalizado que aperfei‑


çoasse as formas de dominação, produziu descrições pretensamente
aguçadas, que buscaram destrinchar as práticas locais sumariamente
incorporadas as categorias de nomeação colonial portuguesa pelo
emprego da palavra batuque.
É nesse vai e vem de homogeneização racializante das práticas
culturais locais, mesclada a um processo de incorporação e diferen‑
ciação das mesmas ao projeto colonial português em Moçambique,
que os estudos etnográficos portugueses classificaram a música como
“o divertimento que mais impressiona o Negro”, sendo que um
“batuque domina e excita todos os indígenas”.118 O autor dessas
palavras continua sua descrição depreciando os praticantes dessas
formas de bailar e cantar. Para ele, seria corriqueiro que “homens e
mulheres de qualquer idade, e até crianças” abandonassem tudo e
fossem para “o mato fora em direção ao lugar” onde estariam ocor‑
rendo os batuques. As “danças estranhas” seriam “quase sempre [...]
acompanhadas de cantares pornográficos”. Os “batuques” acaba‑
riam, “em regra geral, numa embriaguez coletiva”.119
Unificando uma diversificada gama de sons e de danças, inde‑
pendente das regiões na qual estivessem, dos grupos populacionais
com os quais tiveram contato e das práticas musicais e dançantes
das pessoas que buscaram descrever, o emprego do termo batuque
foi disseminado pelos portugueses. O termo era também associado
com uma suposta essência africana e a predileção dos mesmos por
“dizeres e [...] trejeitos obscenos”.120 A adjetivação empregada por
aqueles que se dedicaram a analisar as formas de expressão locais
tendeu em distanciá­‑las do perímetro urbano, lendo­‑as por meio de
um prisma da erotização dos passos de dança e, geralmente, numa
depreciação das habilidades musicais dos praticantes.
Essa forma de enxergar aquelas práticas circulou não apenas
em meios intelectuais e acadêmicos metropolitanos. As visões

118 Fernando de Castro Pires Lima, Contribuição para o Estudo do Folclore de Moçambique
(Porto: Separata da revista de etnografia n.º 14. Museu de Etnografia e História, 1934): 9.
119 Lima, Contribuição para o Estudo do Folclore de Moçambique, 9.
120 Lima, Explorações em Moçambique. (Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1943 [original de
1918]): 52.

154
MATHEUS SERVA PEREIRA

depreciativas sobre o que era convencionalmente chamado de


batuques foram expressas também em livros e jornais publicados
em Lourenço Marques. Como afirma José dos Santos Rufino,
importante figura do meio periódico laurentino do início do século
XX, “o fim do batuque [...] não é como pode parecer – dançar: é
beber”. Sua música, para os ouvidos do português Rufino, era clas‑
sificada como “simples ruídos” e a “letra [...] quase sempre sem
significado”.121 João Albasini, um dos mais importantes represen‑
tantes de uma pequena elite letrada africana, escreveu em jornais
de Lourenço Marques sobre o cotidiano e as políticas coloniais.
Muitos de seus artigos adotaram interpretações semelhantes às de
Rufino. Uma de suas principais reclamações era a da presença de
práticas culturais interpretadas enquanto fora do lugar dentro do
mundo urbano. Em 1914, Albasini afirmou que nas cantinas e
dependências existentes na Munhuana, subúrbios de Lourenço
Marques descrito pelo mesmo como a terra “dos vícios e dos batu‑
ques”,122 bastava o “ligeiro esforço de abrir os olhos” para ver que
“dançava­‑se rebolados batuques salientando o posterior, descon‑
juntando os quadris nuns movimentos eróticos ‘de fazer babar um
morto’”.123

O nome e as coisas: uma palavra para muitas práticas

Efetivamente, o que era chamado de batuque por aqueles que não


praticavam essas formas de expressão poderia ser muitas coisas.
Apesar de designar de forma genérica como “música cafre”, aquilo
que Freire de Andrade presenciou foi uma orquestra chopi. Para
além, parece­‑me que nas noites que esteve acampado nas terras de
Novéle, o engenheiro­‑militar foi agraciado com duas formas dife‑
rentes de apresentação. A primeira delas correspondia a uma repre‑

121 José dos Santos Rufino, ed., Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de Moçambique. Volume
X: Raças, usos e costumes indígenas. Fauna Moçambicana. (Lourenço Marques: J. S. Rufino,
1929): VI.
122 O Africano, 6 de julho de 1918. WNA.
123 O Africano, 13 de maio de 1914. WNA.

155
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

sentação dos feitos de guerra, onde, com suas armas em punhos,


guerreiros demonstravam sua bravura. A segunda correspondia a um
ngodo, que poderia corresponder a uma “dança de guerra” ou não.
A diversidade englobada no termo batuque não era de todo desco‑
nhecida pelos sentidos daqueles de fora dessas práticas. Com olhos
e ouvidos treinados numa perspectiva eurocêntrica, aqueles que se
dedicaram a produzir materiais capazes de traduzir a pluralidade
local para as categorias de nomeação portuguesas provavelmente
foram os primeiros a indicarem sinais das dificuldades encontradas
nesse processo.
Como venho demonstrando, ao racionalizarem o mundo socio‑
cultural africano dentro das estruturas de pensamento europeu, o
processo de modernização na África implementado pela conquista
imperial integrou detalhes em unidades homogeneizadoras da diver‑
sidade. Baseados nessa forma de ver o mundo, linguistas, etnógrafos
e tantos outros, classificaram os africanos em diferentes grupos étni‑
cos, que posicionavam as populações nativas em segmentos popula‑
cionais mais ou menos estanques no espaço, tempo e modos de ser.124
Percebendo as etnias como realidades móveis contextuais, autores
como Jean­‑Loup Amselle e M’Bokolo, defendem a necessidade de
abandonar perspectivas essencialistas e ahistóricas sobre o fenômeno
da etnicidade. Uma vasta bibliografia sobre o tema, por um lado,
pretendeu desconstruir o objeto étnico promovido pelo exercício do
poder colonial, que, desconhecendo e negando a história, apressados
em classificar, nomear e hierarquizar para estabelecer a distinção e
a justificativa da dominação, construíram, promoveram e engessaram
as etiquetas étnicas, posteriormente reapropriadas pelas populações
africanas. Por outro lado, buscaram contrapor­‑se a apropriação dos
clichês da etnologia colonial capturados pelos Estados independen‑
tes africanos para justificar novas formas de dominação no período
pós­‑colonial. Essa guinada para uma historicidade da noção de etnia
na África não possui, necessariamente, o intuito de jogar fora a etnia
ou os etnomios para estudar a maneira pela qual os sujeitos sociais
africanos se organizavam antes da colonização. O questionamento

124 Harries, “The Roots of Ethnicity”.

156
MATHEUS SERVA PEREIRA

decorre, sobretudo, da defesa de uma ruptura de pensar a África


como engessada no tempo ou isolada no espaço. Falar de etnia,
portanto, é compreender as sociedades africanas como contextual‑
mente históricas, inter­‑relacionais, marcadas por cruzamentos e
sobreposições políticas, econômicas, sociais e culturais.125
Das tentativas de ampliação e acúmulo de informações referen‑
tes a aspectos socioculturais das sociedades africanas sul­
‑moçambicanas, agentes da colonização esforçaram­‑se em conseguir
aproximar­‑se de descrições que fossem capazes de auxiliar o futuro
da empreitada colonizadora. A produção bibliográfica realizada por
esses homens do cotidiano da dominação é, recorrentemente, jus‑
tificada como uma necessidade para uma maior eficiência do Estado
colonial. Nesse sentido, existiria, pelo menos enquanto objetivo
enunciado, uma função prática nesse acúmulo de conhecimento
sobre músicas e danças que buscassem fornecer interpretações que
auxiliassem no exercício cotidiano administrativo. No entanto, a
ciência ocidental como um todo e, mais especificamente, os parâ‑
metros científicos predominantes em Portugal no início do século
XX, forneceram ferramentas que unificavam em desígnios iguais
aspectos diferentes, revelando um largo desconhecimento do que
existia e uma quase incapacidade em abarcar a diversidade. Ao
mesmo tempo, revela uma soberba que anuviava a porosidade em
que se assentou a empresa colonial portuguesa na região.
O administrador colonial António Augusto Pereira Cabral, o
mesmo que já foi citado nesse capítulo, ao compilar um livro sobre
as “raças, usos e costumes dos indígenas da província de Moçambi‑
que”, salientou a hipótese de que a palavra batuque seria “derivada
do português batucar, martelar, dar pancadas repetidas”, sendo esse
o motivo para o seu emprego feito pelos “europeus [a] qualquer
dança a que os indígenas se entregam para se divertirem”. Porém,
como o objetivo do seu livro era o de aperfeiçoar as ferramentas
utilizadas pelos futuros funcionários coloniais no trato com as popu‑
lações locais, o autor advertiu que o emprego do termo era “pouco

125 Jean­‑Loup Amselle e Elikia M’bokolo, org., No centro da etnia: Etnias, tribalismo e Estado
na África. (Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2017).

157
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

correto [...] por ser vocábulo inteiramente estranho” as línguas nati‑


vas. Além disso, o autor não deixou de destacar que cada dança e/
ou música possuíam seus próprios nomes, variando entre os grupos
populacionais, e nem todas constituíam em “divertimento”, podendo
ser “um preceito ritualista”.126
A dificuldade de nomear aquilo que era visto e ouvido coadunava­
‑se com o contexto de efetivação da dominação portuguesa no Sul
de Moçambique. A partir do último quartel do século XIX, pulula‑
ram exercícios de traduções que buscaram familiarizar diferentes
aspectos das línguas locais aos ouvidos e as escritas das gramáticas
europeias. O pioneirismo desse aprendizado promovido por homens
que estiveram naquele terreno, como o missionário e etnógrafo
Henri Junod,127 esteve acompanhado pela formação de instâncias
capazes de incentivar os instrumentos intelectuais garantidores da
presença portuguesa no ultramar, como o desempenhado pela Socie‑
dade de Geografia de Lisboa, fundada em 1875.128 Em 1895, por
exemplo, com o objetivo de auxiliar as “tropas expedicionárias a
Lourenço Marques” que guerreariam contra o reino de Gaza, foi
publicado pela Sociedade de Geografia de Lisboa, em parceria com
o Ministério da Guerra, um “guia de conversação em português,
inglês e landim”, com algumas “noções de gramática landim”.129
Ao longo de toda a primeira metade do século XX foi possível
localizar outros exemplos desse tipo de publicação, muitas delas vol‑
tadas para setores específicos que se relacionavam com as populações
nativas. O enfermeiro do Corpo de Saúde de Moçambique, Gui‑
dione de Vasconcelos Matsinhe, publicou um livro com frases rela‑
cionadas ao ambiente das consultas e tratamentos médicos ocidentais.
Seu objetivo era o de auxiliar os profissionais de saúde que trabalha‑

126 António Augusto Pereira Cabral, Raças, Usos e Costumes dos Indígenas da Província de
Moçambique (Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1925), 40.
127 Henri Junod dedicou boa parte de sua vida acadêmica na construção de livros capazes de
traduzir a oralidade nativa dos grupos ao qual estudou em elementos gramaticais, ver: Ch.
W. Chatelain e Henri A. Junod, A Pocket Dictionary, Thonga (Shangaan) – English; English­
‑Thonga (Shangaan), Proceeded By Na Elementary Grammar (Lausanne: G. Bridel, 1909).
128 Ângela Guimarães, Uma Corrente do Colonialismo Português (Lisboa: Livros Horizonte,
1984).
129 Alberto Carlos de Paiva Raposo, Noções de Gramática Landina. Breve Guia de Conversação
em Português, Inglês E Landim (Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa, 1895).

158
MATHEUS SERVA PEREIRA

vam com as populações do sul de Moçambique falantes das línguas


ronga, shangana e xitsua.130 Outro que fez algo próximo disso foi o
padre António Lourenço Farinha, missionário português que publi‑
cou o livro Elementos de Gramática Landim (shironga). Dialeto indí‑
gena de Lourenço Marques. O autor, na parte final do livro, dedicou
espaço a uma série de pequenas frases exemplificadoras de diálogos
possíveis entre falantes da língua portuguesa e nativas. Ironicamente,
esses diálogos imaginados não voltaram muita atenção para o exer‑
cício da conversão das almas africanas ao catolicismo. As frases, na
sua maioria imperativos voltados para tarefas domésticas, estavam
relacionadas ao dia­‑a­‑dia da exploração da mão de obra local.131
Os dicionários também foram importantes ferramentas do pro‑
cesso de colonização e exploração da mão de obra local.132 Incapaz
de definir com a mesma precisão apresentada pelas formas locais de
nomeação daquilo que se praticava, aqueles que se dedicaram a tra‑
duzir a multiplicidade das danças e músicas nativas para o ambiente
familiar de nomeação do colonizador português terminaram por
condensar a complexidade daquelas práticas em poucos termos do
léxico da língua portuguesa. No Dicionário português­‑cafre­‑tetense,
produzido pelo padre Victor José Courtois, de 1900, o mesmo bus‑
cou traduzir para a forma escrita a oralidade de povos da região do
vale do rio Zambeze, no centro de Moçambique. Nele, as palavras
dança, música e batuque aparecem correlacionadas com uma grande
variedade de termos empregados para designar aquelas formas. A pala‑
vra batuque, em português, por exemplo, poderia ser traduzida
como “t’unga; – de dançar, ng’oma; mbondo; chiwere; nkuwiri;
tsengua; chinkufu; murumbi; kuendje; – de guerra, mbiriwiri; chin‑

130 Guidione de Vasconcelos Matsinhe, O Auxiliar do Médico e do Enfermeiro. Vocabulário das


Línguas Ronga, Shangaan E Xitsua (Lourenço Marques: Minerva Comercial, 1946).
131 Padre António Lourenço Farinha, Elementos de Gramática Landina (Shironga). Dialeto
Indígena de Lourenço Marques. (Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1946).
132 Esse é um processo que ocorre desde a construção das redes de comércio de escravos e
produtos no Mundo Atlântico. Porém, no contexto dos impérios europeus na África, no
século XIX, ganha um novo significado. Sobre a importância da definição de uma língua
escrita que fosse comum a maioria das populações nativas da região geográfica aqui ana‑
lisada e os diferentes processos de colonização, ver: Patrick Harries. Junod e as Sociedades
Africanas.

159
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

dzete; dzache”.133 “Ng’oma” e “t’unga” aparecem não apenas como


traduções de “batuque”. A primeira poderia também ser empregada
como os verbos “dançar” ou “batucar”. A segunda, de acordo com o
dicionário, poderia ter o significado de “dança” ou “música”, num
sentido mais abrangente.134
As semelhanças, encontradas aqui ou acolá, inclusive no que diz
respeito a palavras usadas por práticas culturais de matrizes africanas
no Brasil, podem ser explicadas pela disseminação do tronco linguís‑
tico bantu por praticamente toda a região que hoje corresponde ao
Estado moçambicano. No entanto, isso não quer dizer que sejam
exatamente a mesma coisa. Em contextos específicos, essas palavras
e os fenômenos que elas descrevem ganhavam significados distintos.
Para as regiões dos distritos do sul de Moçambique (Gaza,
Lourenço Marques e Inhambane), a obra Dicionários shironga­
‑português e português­‑shironga. Precedidos de uns breves elementos de
gramática do dialeto Shironga, falado pelos indígenas de Lourenço Mar‑
ques, coordenado por E. Torre do Vale, é uma das mais completas
para as primeiras décadas do século XX. Publicado em 1906, o autor
dedicou sua obra à “necessidade de se produzir um dicionário onde
os portugueses pudessem aprender o dialeto indígena, e outro onde
os indígenas pudessem aprender a nossa língua”.135 Diferentemente
de António Augusto Pereira Cabral, que pressupõe que o termo
batuque havia sido empregado pelos europeus quase que pela ausên‑
cia de um termo específico nas línguas nativas para o ato de bater
em algo, o dicionário de E. Torre do Vale apresenta a existência do
verbo gongondya, que significaria “bater à porta; bater num tambor;
bater repetidas vezes”. Segundo o seu dicionário, a palavra portu‑
guesa batuque poderia ser traduzida como “nkino” ou “nthlango”,
sendo a primeira referente a “dança; batuque” e a segunda à “dança;

133 Victor José Courtois. Dicionário Português­‑Cafre­‑Tetense Ou Idioma Falado No Distrito De


Tete E Na Vasta Região Do Zambeze Inferior (Coimbra: Imprensa da Universidade, 1900),
71.
134 Courtois. Dicionário Português­‑Cafre­‑Tetense Ou Idioma Falado No Distrito De Tete E Na
Vasta Região Do Zambeze Inferior, 132 e 324.
135 E. Torre Valle, Dicionários Shironga­‑Português e Português­‑Shironga. Precedidos de uns Breves
Elementos de Gramática do Dialeto Shironga, falado pelos Indígenas de Lourenço Marques.
(Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1906).

160
MATHEUS SERVA PEREIRA

brinquedo; divertimento; espetáculo; jogo”. Ambas as palavras


(nkino e nthlango), mais a palavra “ngoma”, também foram empre‑
gadas pelo autor como sinônimos de dança. Ngoma, por sua vez,
seria algo maior do que dança, pois poderia ser considerado como
termo referente a “tambor” ou “ritual da circuncisão”. Ao leitor,
junto dessas palavras do universo dos chamados batuques, era indi‑
cado que deveria procurar os significados das palavras “Bunanga;
Mutimba; Shindekandeka; Shiwombelo; Mutshongolo; Gila;
Sabela; Nhlawo”. Essas, por sua vez, ampliavam o mundo que insis‑
tentemente o léxico português demarcava de maneira restrita por
meio da expressão batuque. Afinal, Bunanga seria uma dança espe‑
cífica referenciada como uma “fanfarra de cornos”. Shindekandeka
seria uma dança praticada apenas por mulheres. Mutshongolo é
apresentada como uma “dança indígena, importada do norte”,
enquanto que Gila e Sabela formariam importantes práticas refe‑
rentes às lógicas de poder nativas, sendo a primeira apresentada
para descrever “proezas guerreiras” e a segunda “quando se coroa
um régulo”.136
A dificuldade em transcrever essas realidades múltiplas, acres‑
cida de características específicas da dominação colonial, muitas
vezes promoveu um processo de folclorização das práticas sociocul‑
turais nativas. Fernando de Castro Pires de Lima esforçou­‑se em
aglutinar a pluralidade existente numa categoria genérica denomi‑
nada como “folclore moçambicano”. Para isso usou como base os
relatos de funcionários da Companhia de Moçambique, localizada
na Zambézia, centro de Moçambique, e observações que pode fazer
por conta dos “indígenas” trazidos pela Companhia para a Exposi‑
ção Colonial Portuguesa, ocorrida no Porto, em 1934. Segundo
Lima, era “preciso estudar muito a sério os hábitos e os costumes
do Negro para que o Branco o possa melhor compreender”.137
Nunca tendo pisado em solo moçambicano, produziu uma descrição
dos instrumentos mais comuns naquele território:

136 Valle, Dicionários Shironga­‑Português e Português­‑Shironga, 59, 68, 110, 115, 117, 120, 125,
141, 149, 196 e 215.
137 Lima, Contribuição para o Estudo do Folclore de Moçambique,.6.

161
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

Um instrumento musical muito usado é Mbira, que é uma espécie


de caixa aberta dum lado, tendo fixas num tampo umas varinhas de
ferro de vários tamanhos e seguras por arames. Também usam o
Chindongane, que é formado por uma varinha de bambu encurvada
por meio de um fio de latão, ligado às extremidades; a Nhanga,
construída por pequenos segmentos de cana de vários tamanhos,
que são soprados alternadamente; a Maranja, que é uma flauta de
cana; o Dindua, que é formado por um arco maior que o Chindogare,
retesado também por um fio de latão em que está presa uma cabaça
e que serve de caixa de ressonância. Ainda possuem a Mpuita, que
é um instrumento composto de um cilindro de folha ou ferro, e o
Ntuco que é feito de um corno, no qual fazem um orifício perto da
ponta. No entanto, o grande instrumento é a Marimba.138

Formas semelhantes desses instrumentos foram descritas por


outros autores. Porém, foram usados diferentes nomes para designá­
‑los. Parece­‑me plausível supor que esses eram instrumentos disse‑
minados por toda a região do atual Moçambique, assim como por
alguns de seus territórios vizinhos, e que ganhavam nomes distintos
para cada grupo populacional que os utilizava. O que Fernando de
Lima descreveu pelo nome de ntuco, por exemplo, é muito parecido
com o que Henri Junod designou como xipalapala, que seria “a
trompa oficial das convocações [...] com que se reúnem os súditos
na capital”.139 Semelhantemente, Eduardo do Couto Lupi, militar
que atuou na repressão aos sultanatos resistentes à presença portu‑
guesa no norte de Moçambique, afirmou que os macuas possuíam
algo análogo, chamado de “palapata, corno de antílope, com um
furo lateral que serve de corneta”.140
Para o caso das danças, também eram empregados nomes varia‑
dos, apesar de possuírem características, tanto performáticas como em
seus significados, bastante parecidas. As designadas pelos portugueses

138 Lima, Contribuição para o Estudo do Folclore de Moçambique,10.


139 Junod, Usos e Costumes dos Bantu, 334.
140 Eduardo do Couto Lupi, Breve Memória sobre uma das Capitanias­‑Mores do Distrito de
Moçambique. Capitão­‑Mor d’Angoche desde 4 de Julho de 1903 a 5 de Dezembro de 1905.
(Lisboa: Tipografia do Anuário Comercial, 1907), 108.

162
MATHEUS SERVA PEREIRA

de maneira genérica e, ao mesmo tempo, homogeneizante, como


“danças de guerra” foram as que mais mexeram com os sentidos colo‑
niais. Talvez pelo caráter intimidador que as mesmas provocavam,
sendo apresentadas em contextos específicos, aqueles contemporâneos
do processo de colonização que dedicaram suas narrativas ou estudos
para as danças nativas voltaram sua atenção com frequência para elas.
Novamente, Henri Junod pode servir como exemplo. O mesmo des‑
creveu a kugila ou kugiya, que seria corriqueiramente feita pelos povos
localizados ao sul do rio Save, como um “simulacro de atos de valentia
praticados pelos soldados que mataram inimigos nos campos de bata‑
lha”.141 Outros, como António Cabral, afirmam que essas seriam
designadas como msongola ou gila e originárias dos zulus sul­‑africanos.
Sendo consideradas danças importantes para demonstrar o poderio
dos chefes locais, “os indígenas vestem­‑se a capricho” e se apresenta‑
vam para “qualquer chefe indígena ou de alguma autoridade”, onde
os homens interpretavam os combates usando suas armas em punhos
e as mulheres participavam cantando as façanhas encenadas.142
Todas essas formas supostamente típicas daquelas populações
que eram conhecidas na época como os barongas não são muito
distintas das feitas pelos carregadores das caravanas bôeres durante
a expedição portuguesa de 1891 ou pela “gente do régulo Novéle”,
pertencentes ao grupo chopi. Conforme afirma António Cabral, as
danças chopi recebiam o nome de lifolo. Acompanhadas pela tim‑
bila, os praticantes enfeitavam­‑se da mesma maneira que na mson‑
gola, cantando e dançando “batendo os escudos no chão” e realizando
“uma série de saltos e gestos simulando combater um inimigo”.143
Seria possível realizar vastas análises para cada uma dessas
expressões musicais e dançantes, praticadas pelos variados grupos
populacionais existentes naquele período de consolidação da pre‑

141 Junod, Usos e Costumes dos Bantu, 364.


142 António Augusto Pereira Cabral, Raças, Usos e Costumes dos Indígenas da Província de
Moçambique (Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1925), 40. O autor também descreve
essa dança em António Augusto Pereira Cabral, Raças, usos e costumes dos indígenas do
Distrito de Inhambane (Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1910), 28­‑36.
143 Cabral, Raças, Usos e Costumes dos Indígenas da Província de Moçambique, 41. O autor ainda
afirma ter presenciado a shivunvuri, na região de Tete, centro de Moçambique. Segundo
ele, essa seria “uma imitação do chigombela”.

163
CONSTRUINDO CATEGORIAS, HOMOGENEIZANDO DIFERENÇAS

sença colonial portuguesa no sul de Moçambique, incluindo sua


complexidade e importância quando presentes em distintas cerimô‑
nias, como em guerras, casamentos, nascimentos, falecimentos.
Investigar os diferentes tipos de danças e de instrumentos musicais
empregados nessas práticas, como os variadíssimos tambores exis‑
tentes ao longo de todo o território moçambicano, os diversificados
tamanhos das timbila tocados pelos chopi e tantos outros instru‑
mentos, não é o cerne da questão desse capítulo.
No contexto de dominação colonial do sul de Moçambique,
entre 1890 e 1940, uma audiência composta majoritariamente por
europeus/brancos, mas também pela pequena elite letrada africana,
buscou classificar e descrever de uma determinada maneira – ou seja,
a partir das classificações formuladas a partir de seus ouvidos e olhos
treinados dentro de um corpo sensorial específico de apreciação per‑
formática –, as danças e músicas de grupos como os chopi ou os
shangana. Essa maneira específica de esmiuçar os corpos e sons das
populações africanas do sul de Moçambique, promovida pelos sen‑
tidos eurocentrados daqueles que esforçaram em descrever suas prá‑
ticas dançantes e musicais, interpretaram de forma pejorativa e
racista essas formas de expressão e comunicação. Os intérpretes
portugueses, ainda que percebessem a diversidade e complexidade
local, insistiram em caracterizar de forma depreciativa os sons e
movimentos corpóreos africanos. De forma semelhante ao que foi
feito a respeito da multiplicidade de identidades, experiências e for‑
mas organizacionais político­‑sociais dos africanos dentro de taxações
jurídicas aglutinadoras da heterogeneidade nos desígnios reducio‑
nistas de assimilados ou indígenas, ou de padronizações étnicas
estanques, existiu um esforço português de homogeneização de
variadas práticas musicais e dançantes do sul de Moçambique que
convergiu para denominações específicas. No exercício da empresa
colonial, a pluralidade dessas práticas passou por um processo de
tentativa de apagamento que pode ser percebido pelo emprego
homogeneizante e genérico do termo batuque para as descrever e do
peso depreciativo que o léxico trazia consigo naquele contexto.

164
CAPÍTULO 3

Cosmopolitismo enevoado
e a criação de uma civilização
das necessidades

COSMOPOLITISMO ENEVOADO

No terceiro volume dos Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de


Moçambique foi dedicada atenção especial ao que seus produtores
entendiam por ser uma característica ímpar de Lourenço Marques:
o seu cosmopolitismo. Com o desejo de descrever os diferentes
aspectos da cidade, dando uma fisionomia a mesma, o militar tenente
Mário Costa, autor dos textos introdutórios dos álbuns, enfocou a
existência de “26 nacionalidades” dentro dos “seus nove mil habi‑
tantes europeus”. Isso não seria um motivo de preocupação em rela‑
ção a uma possível perda de controle português na região. Afinal, a
população de origem lusitana seria “três vezes o número total dos
habitantes europeus das outras nacionalidades”. Em conjunto a esse,
aparentemente, elevado número de semblantes do velho continente,
somavam­‑se um “notável [...] número de indivíduos asiáticos, pró‑
ximo de 3.000, e, naturalmente, maior que todos, o número de indí‑
genas”. O cosmopolitismo evocado renegava essa heterogeneidade.
Naquele ano de 1929, a cidade era apresentada como “moderna,
cidade de África que procura não sentir a África”.1
Como apresentado nos capítulos anteriores, houve uma insistên‑
cia daqueles que tentaram retratar o mundo urbano laurentino, com
seus espaços e, sobretudo, habitantes, enquanto um “canto da Europa

1 José dos Santos Rufino, ed., Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique.
Volume III: Lourenço Marques – Aspectos da Cidade, Vida Comercial, Praia da Polana, Etc.
(Lourenço Marques: J. S. Rufino, 1929), III.

165
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

na África”, excluindo a maioria dos seus moradores de uma possibi‑


lidade de existir naquele local.2 Esse ofuscamento de complexos e
conflitantes contatos de pessoas com diferentes formas de lidar e
conhecer o mundo no espaço urbano de Lourenço Marques esteve
relacionado com a noção de que o cosmopolitismo daquele ambiente
ocorria somente por causa de uma presença plural de habitantes de
distintas nações europeias. A produção imaginária da fisionomia da
cidade enquanto um local ímpar no continente africano e, consequen‑
temente, cosmopolita da maneira que buscava­‑se valorizar, excluía o
espaço urbano ocupado por “asiáticos” e, sobretudo, por aqueles clas‑
sificados pela categorização colonial portuguesa como indígenas.
Diferentes estudos têm demonstrado como, principalmente após
a década de 1910, a implementação de sucessivos regulamentos cer‑
cearam a mobilidade africana ao produzir uma concepção desses
como indígenas e que moravam ou estavam em Lourenço Marques
fundamentalmente enquanto mão de obra a ser explorada. Por isso,
seus espaços de intervenção naquela realidade seriam espaços bas‑
tante delimitados de atuação e interação dentro do perímetro urba‑
no.3 No entanto, as constantes renovações das condições jurídicas
das questões coloniais, sobretudo quando relacionadas às políticas
que visavam estabelecer um controle cada vez mais rígido sobre as

2 José dos Santos Rufino, ed., Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de Moçambique. Volume
I: Lourenço Marques, panoramas da cidade (Lourenço Marques: J. S. Rufino, 1929), V.
3 Jeanne Marie Penvenne, “‘Here everyone walked with fear’: the Mozambique labor system
and the workers of Lourenço Marques, 1945­‑1962”, in Struggle for the city: migrant labor,
capital, and the state in urban Africa, org., Frederick Cooper, 131­‑166 (Berkeley: Sage,
1983); Jeanne Marie Penvenne, Trabalhadores de Lourenço Marques (1870­‑1974) (Maputo:
Arquivo Histórico de Moçambique, 1993); Jeanne Marie Penvenne, African workers and
colonial racism. Mozambican strategies and struggles in Lourenço Marques, 1877­‑1962 (Por‑
tsmouth: Heinemann, 1995); Valdemir Zamparoni, De escravo a cozinheiro: colonialismo
& racismo em Moçambique. (Salvador: EDUFBA: CEAO, 2007); Nuno Domingos, Futebol
e colonialismo: corpo e cultura popular em Moçambique (Lisboa: Imprensa de Ciências So‑
ciais, 2012); Carlos Serra, dir., História de Moçambique – Volume I. Parte I – Primeiras
sociedades sedentárias e impacto dos mercadores, 200/300­‑1885. Parte II – Agressão imperia‑
lista, 1886­‑1930 (Maputo: Livraria Universitária, Universidade Eduardo Mondlane,
2000). Também é possível perceber semelhanças nesse processo em outros espaços urba‑
nos existentes na África dominada pelo colonialismo português. Como exemplo, ver:
Andrea Marzano, “Nem todas as batalhas eram de flores: cotidiano, lazer e conflitos
sociais em Luanda”. in Esporte e lazer na África: novos olhares, org., Augusto Nascimento,
Marcelo Bittencourt, Nuno Domingos, Victor Andrade de Melo, 13­‑36 (Rio de Janeiro:
7Letras, 2013).

166
MATHEUS SERVA PEREIRA

populações nativas, demonstram como um enfoque de análise no


esforço legislativo colonial não necessariamente nos ajuda a com‑
preender as experiências cotidianas de homens e mulheres que batu‑
caram nas cantinas e quintais de Lourenço Marques ou de outros
que se sentiram incomodados com aqueles sons. Exemplo da difi‑
culdade de se acompanhar todos os decretos e portarias que foram
implementados em Moçambique, ao longo das primeiras décadas do
século XX, vinculando­‑os as transformações que teriam ou não afe‑
tado as ordens das interações de sociabilidade, pode ser percebido
através das páginas d’O Africano e do seu sucessor O Brado Africano.
A campanha maciça promovida por ambos os jornais contra as por‑
tarias que estipulavam a categoria de assimilado, primeiramente
publicada em 1917 e com diversas emendas nos anos subsequentes,
teve um movimento pendular de crítica ferrenha ao Estado e felici‑
tação por supostos cancelamentos de sua aplicação.4
Como insistem Frederick Cooper e Ann L. Stoler, existiu uma
tensão global permanente “entre o que o colonialismo era e o que
regimes coloniais fizeram, entre o fato de legislar, e suas consequên‑
cias econômicas e sociais”.5 Os projetos coloniais não foram sempre
bem­‑sucedidos ou já nasceram prontos, em conjunto com as próprias
ações coloniais. A colonização como um processo de dominação
procede na dinâmica do estabelecimento de complexos contatos
entre pessoas de origens distintas marcado por um tom de conflitua‑
lidade entre a exigência de costumes entendidos como civilizados e
a adoção de diferentes modos comportamentais de ocupação dos
espaços, sobretudo em espaços urbanos como Lourenço Marques.

4 Como alguns exemplos dessas idas e vindas, ver as edições d’O Africano de 24 de janeiro
de 1917, 27 de janeiro de 1917, 14 de abril de 1917, 19 de setembro de 1917, 20 de julho
de 1918; e d’O Brado Africano de 04 de janeiro de 1919, 24 de abril de 1920, 28 de agosto
de 1920, 26 de fevereiro de 1921, 07 de maio de 1921 e 03 de setembro de 1921. WNA.
Ver, também: AHM, GG, Cx. 108.
5 Frederick Cooper e Ann L. Stoler, “Introduction. Tensions Of Empire: Colonial Control
And Visions Of Rule”, American Ethnologist, v. 16, n.º 4 (Nov., 1989): 609­‑621. No original:
“the overarching tension was between what colonialism was and what colonial regimes
did, between the fact of rule and its economic and social consequences”, 616. Nessa pers‑
pectiva, ver também o esforço de análise existente no “Capítulo III: Projetos em disputa
num projeto de Estado” de Fernanda Thomaz, “Os ‘Filhos da Terra’: Discurso e Resistência
nas Relações Coloniais no Sul de Moçambique (1890­‑1930)” (Dissertação de Mestrado
em História, Universidade Federal Fluminense, 2008).

167
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

Defender uma cidade cosmopolita enquanto local de encontro de


muitos tipos europeus seria posicionar­‑se em prol de uma realidade
citadina por ser construída enquanto europeia, moderna e, princi‑
palmente, civilizada. A emersão de novos gostos e aspirações de
consumo, visível no anunciar das diferentes novidades em destaque
dos classificados dos jornais, assim como os novos hábitos que eram
apregoados através da participação nos eventos culturais de entrete‑
nimento que pululavam os ritmos de lazer da cidade, serão analisados
aqui como um processo histórico de intervenção urbana com o obje‑
tivo de construir Lourenço Marques como exemplo propagador do
projeto civilizacional colonial português na região.
A construção dos aparatos legais e administrativos de exploração
da mão de obra africana como um todo foram produzidas na medida
em que o próprio poder colonial consolidou­‑se no sul moçambicano.
A virada para a África ocorrida no século XIX correspondeu a uma
rápida percepção da necessidade de criação de mecanismos de coerção
ao trabalho para o sucesso do império português, sendo a exploração
da mão de obra local entendida como “fundamental necessidade” e
“instrumento principal” da formação imperial lusitana. A noção de
obrigatoriedade do trabalho nativo como aspecto fulcral da questão
do trabalho forçado no interior do império colonial português indica
a associação inseparável entre retórica civilizadora, a produção legis‑
lativa sobre o trabalho africano e a formulação das políticas do indi‑
genato. Como apontam Miguel Bandeira Jerónimo e José Pedro
Monteiro, a “legalização do trabalho forçado foi continuadamente
legitimada por via do argumentário da ‘missão civilizadora’”. Outro
ponto fundamental apresentado pelos autores para a atuação da lega‑
lização do trabalho forçado e sua legitimação por meio de uma retó‑
rica civilizadora foi o processo de racialização do mundo colonial,
colocado em prática pelas “linguagens e [...] mecanismos institucio‑
nais de diferenciação, classificação e administração das populações
coloniais, e de engenharia social da diferença nos espaços coloniais”.6

6 Miguel Bandeira Jerónimo e José Pedro Monteiro, “Das ‘dificuldades de levar os Indígenas
a trabalhar’: o ‘sistema’ de trabalho nativo no Império Colonial Português”, in O Império
Colonial em Questão (sécs. XIX­‑XX): Poderes, Saberes e Instituições, org. Miguel Bandeira
Jerónimo, 159­‑196 (Lisboa: Edições 70, 2012), 191.

168
MATHEUS SERVA PEREIRA

Nesse sentido, os esforços das autoridades coloniais portugueses com


o fim do sistema escravista de exploração da mão de obra africana
combinaram formar coercitivas diretas e indiretas de empurrar os
africanos para o mercado de trabalho.7 Criação de impostos, como
o imposto da palhota, ou o manejamento de recursos agrícolas e do
acesso a terras produtivas talvez sejam as formas coercitivas indiretas
mais estudadas pela bibliografia.8 Nesse capítulo, pretendo analisar
formas mais silenciosas de coerção que estabeleceram relações entre
a racialização do espaço colonial, variadas noções sobre lazer e incen‑
tivos aos bens de consumo como formas de promover a exploração
da mão de obra africana.
No mundo urbano colonial laurentino, os espaços de sociabili‑
dade e lazer surgiram na medida em que a cidade foi se consoli‑
dando como centro do poder colonial português no sul de
Moçambique. Como uma bruma que apenas torna visível esses
processos quando chegamos perto dos objetos, um olhar analítico
reduzido de escala de análise poderá dispersar a névoa que buscou
encobrir a não linearidade existente na construção de uma cidade
que, para os anseios coloniais portugueses e de grupos sociais defen‑
sores do mesmo, desejava não estar localizada no continente afri‑
cano. Foi com o contributo de uma pluralidade promovida pelas
negociações entre diferentes, marcada por repressões e formas de
exploração da mão de obra africana, especialmente aquela classifi‑
cada como indígena, que se construiu uma urbanidade caleidoscó‑
pica conflitiva com as categorizações homogeneizadora e reducionista
que reforçavam, ao mesmo tempo em que justificavam, os esforços
em expulsar os “batuques” de Lourenço Marques.

7 Frederick Cooper, “Trabalhadores Africanos e Projetos Imperiais”, in Histórias de África.


Capitalismo, Modernidade e Globalização, 263­‑306 (Lisboa: Edições 70, 2016).
8 Cito alguns exemplos como parâmetro de avaliação da amplitude da abordagem biblio‑
grafia sobre esses temas: Valdemir Zamparoni, “Da Escravatura ao Trabalho Forçado:
Teorias e Práticas”, Africana Studia, n.º 7, (2004): 299­‑325; Maciel Santos, “Trabalho
forçado na época colonial – um padrão a partir do caso português?”, Hendu, 4(1), (2014):
9­‑21; Philip Havik, “Estradas sem fim: o trabalho forçado e a ‘política indígena’ na Guiné
(1915­‑1945)”, in Trabalho forçado africano – experiências coloniais comparadas, coord. Centro
de Estudos Africanos da Universidade do Porto, 229­‑247 (Porto: Campo das Letras, 2006);
Augusto Nascimento, “Escravatura, trabalho forçado e contrato em S. Tomé e Príncipe nos
séculos XIX e XX: sujeição e ética laboral”, Africana Studia, n.º 7 (2004): 183­‑217.

169
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

ESPAÇOS DE LAZER E A CRIAÇÃO DE UMA


CIVILIZAÇÃO DAS NECESSIDADES

O aproveitamento do tempo do não­‑trabalho para o lazer dos habi‑


tantes de Lourenço Marques, por meio da construção de espaços
destinados exclusivamente para essa finalidade, era um tema recor‑
rentemente abordado pela imprensa da cidade. Ao longo das pri‑
meiras décadas do século XX, a construção de uma cidade segregada
sócio­‑racialmente a partir da consolidação do projeto de uma “cidade
de cimento”, destinada majoritariamente a população branca de ori‑
gem europeia, e de uma “cidade de caniço”, ocupada pela população
de origem africana marginalizada pelo colonialismo português, pôde
ser sentida na elaboração de espaços destinados exclusivamente as
práticas de lazer.9 O desejo por uma separação explícita destes
locais com destinações específicas para o divertimento que simbo‑
lizavam o progresso civilizacional europeu e uma disputa sobre qual
maneira de se divertir deveria ser permitida dentro daquele espaço
citadino colonial, contrastam significativamente com o imbrica‑
mento entre espaços de trabalho, moradia e lazer construídos na
medida em que o colonialismo português processava medidas de
segregações sociorraciais na cidade.
Brito Camacho, Alto Comissário da República em Moçambi‑
que entre 1921 e 1923, importante figura na concepção da ação
colonial portuguesa na África, afirmou ser a preguiça “nos brancos
uma qualidade do indivíduo, e nos pretos [...] um predicado da
raça”.10 Seguindo uma linha racista de raciocínio, o político militar
português entendia que as necessidades humanas se tornavam “mais
complexas e variadas quanto mais alto [fosse] o nível mental” dos
grupos raciais. Portanto, para Camacho, as “necessidades dos
negros” seriam ínfimas, pois com qualquer “trapo lhes serve para
cobrirem as vergonhas naturais [...]. Não usam chapéu nem usam

9 Zamparoni, “Entre ‘Narros” e ‘Mulungos’”; Rocha, Associativismo e nativismo em Moçam‑


bique; Domingos, Futebol e colonialismo.
10 Brito Camacho, “A Preguiça Indígena. Do Livro ‘Moçambique – Problemas Coloniais’ –
1926”, Antologia colonial portuguesa. Volume I: Política e administração (Lisboa: Agência
Geral das Colónias, 1946), 191.

170
MATHEUS SERVA PEREIRA

(sic) calçado”. Continuando com sua postura racista, Camacho


entendia que a diversão “dos negros” se resumiria aos “batuques, que
são espetáculos públicos e gratuitos, remunerados com a alimenta‑
ção os que se fazem em honra dum branco”. No entanto, o mesmo
entendia como incorreto o atributo da preguiça como uma “relu‑
tância ou incapacidade de trabalhar”.11 A ideia de uma ausência de
“necessidades dos negros” estaria no cerne da falta de um suposto
desejo em trabalhar, ou, melhor dizendo, de vender a sua força de
trabalho no mercado capitalista assalariado especificamente inten‑
tado pelo colonialismo português. Sendo assim, civilizar nada mais
seria do que “criar necessidades, propiciando ao mesmo tempo os
meios de as satisfazer”. Criando “ao preto [...] hábitos”, principal‑
mente o de “comer e beber do melhor” e sendo servido em “pratos
ou em garrafas”, estar­‑se­‑ia produzindo a obrigação do mesmo de
“trabalhar mais do que trabalha, preferindo ao gozo de não fazer
nada o gozo maior de satisfazer suas necessidades e apetites”.12 Ou
seja, segundo o pensamento propagado por Brito Camacho, o
tempo do não­‑trabalho e, principalmente, o do lazer, não existiria
para a maioria esmagadora da população de Lourenço Marques. No
pensamento racista propalado esse seria o seu tempo natural. A cria‑
ção de necessidades, que deveriam ser satisfeitas através da entrada
numa lógica de consumo monetário obtido por meio da venda da
força de trabalho propiciado pela ação civilizadora colonial, cunharia
as possibilidades de ruptura do suposto estado de inércia intrínseco
as pessoas colonizadas.
De maneira semelhante, alguns anos antes de Brito Camacho,
um editorial publicado pelo O Africano atribuía a “satisfação das
necessidades adquiridas o principal motivo que leva o homem a
trabalhar”, sendo “o desenvolvimento de necessidades na vida do
indígena [...] o meio mais de harmonia com a nossa missão civili‑
zadora e mais decisivo para o obrigar ao trabalho”. Mesmo enten‑
dendo que as cantinas seriam um desserviço nesse processo, pois só
estariam interessadas na “exploração do preto embriagado”, a ativa

11 Brito Camacho, “A Preguiça Indígena”, 192.


12 Brito Camacho, “A Preguiça Indígena”, 193­‑194.

171
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

ação do comércio com uma “propaganda para a introdução no con‑


sumo do indígena de melhores e novos artigos úteis” estaria tendo,
na interpretação do autor do artigo, resultados positivos.13 Exem‑
plos de anúncios e classificados publicados pelo O Africano durante
a sua existência (1908­‑1919) e pelo jornal O Brado Africano, entre
1918 e 1940, revelam formas complexas de apropriações do projeto
intervencionista colonial português enquanto capaz de mimosear a
civilização aos rincões africanos, especialmente por uma parcela da
população nativa que atuou incisivamente como crítica das reais
capacidades de concretização desse projeto. Ao mesmo tempo, esses
anúncios são representativos de como o processo de criação de
necessidades, sobretudo materiais, interferiram na transformação
de hábitos e costumes do dia a dia citadino de maneira transversal
na totalidade dos diferentes habitantes de Lourenço Marques.
A atribuição de adjetivos que vinculavam a compra ou a utili‑
zação de serviços e produtos ofertados a uma vida moderna e urbana
representou um aspecto importante para o projeto civilizacional
colonial europeu. Como explica Anne McClintock, a partir da
segunda metade do século XIX, “a mercadoria tinha assumido seu
lugar privilegiado não só como forma fundamental da nova econo‑
mia industrial, mas também como forma fundamental de um novo
sistema cultural de representação do valor social”. Em sua análise,
a autora demonstra a importância do marketing para a propagação
do ideário do racismo científico para além dos diminutos grupos
letrados que o produziam ou consumiam. É na propaganda dos
serviços oferecidos em uma urbe moderna ou dos produtos indus‑
trializados que passaram a ocupar lugar de destaque nas vidas coti‑
dianas no princípio do século XX, que “o eixo da posse se desloca
para o eixo do espetáculo. A principal contribuição da propaganda
para a cultura da modernidade foi a descoberta de que, manipulando
o espaço semiótico em torno da mercadoria, o inconsciente de um
espaço público também podia ser manipulado”.14

13 O Africano, 27 de setembro de 1913. WNA.


14 Anne Mcclintock, Couro Imperial: Raça, Gênero E Sexualidade No Embate Colonial. (Cam‑
pinas, SP: Editora da Unicamp, 2010), 308 e 315.

172
MATHEUS SERVA PEREIRA

A “empresa de panificação Arthur & Pinho, C.”, por exemplo,


foi uma das muitas que buscou convencer seus clientes a frequentar
e adquirir seus produtos através das páginas d’O Africano. Localizada
na Avenida da República, importante via central da cidade, a pani‑
ficação convocou os laurentinos, em 1912, a comer seus pães de
“primeira qualidade”, que só atingiam esses elevados níveis por ser
aquela uma das “únicas padarias montadas segundo os preceitos
modernos”.15 Noutras ocasiões, foi mais explícito o estabelecimento
de uma relação entre a Europa, enquanto símbolo de avanço civili‑
zacional, e a África, como símbolo de atraso que deveria ser comba‑
tido. Aparentemente com pressa para conseguir se inserir no mercado
de trabalho local, uma senhora, em agosto de 1917, dizia­‑se não se
importar em ir para nenhum dos distritos da província e, para cor‑
roborar a qualidade de seus serviços, usou como referência sua pro‑
cedência europeia.16 Provavelmente, essa postura de deixar explícita
sua origem foi uma resposta a anúncios como o de abril de 1917.
Sob o título de “criada branca”, o anunciante dizia precisar “com
urgência, [de] uma criada que conheça dos arranjos de casa de famí‑
lia e sirva em especial para fazer companhia a uma senhora”.17
A ampla circulação dos periódicos O Africano e O Brado Afri‑
cano, e a sua longevidade, são um demonstrativo de sua populari‑
dade. Uma empreitada como essa teve seus custos econômicos.
Segundo Ilídio Rocha, o financiamento inicial e a sustentação
durante os anos de publicação d’O Africano teriam sido realizados
por uma comissão da maçonaria local. Em relação ao Brado Africano,
o autor não realiza nenhuma afirmação desse tipo.18 Apesar de terem
surgido como empreendimentos que buscavam dar visibilidade as
ideias de um grupo social específico, mas também deliberadamente

15 O Africano, 31 de outubro de 1912. WNA.


16 O Africano, 8 de agosto de 1917. WNA.
17 O Africano, 28 de abril de 1917. WNA. Em 1921, outro anunciante procurava uma “criada
branca” para “todo o serviço e de homem só já de idade”, in O Brado Africano, 03 de se‑
tembro de 1921. WNA. Para uma análise detalhada a respeito dos empregados domésticos
em Lourenço Marques, ver: Valdemir Zamparoni. “Gênero e Trabalho Doméstico numa
Sociedade Colonial: Lourenço Marques, Moçambique, c. 1900­‑1940”, Afro­‑Ásia, n.º 23,
(1999): 147­‑174.
18 Ilídio Rocha, A imprensa de Moçambique. Sobre O Africano, ver: 91­‑93 e 236. Sobre O Brado
Africano, ver: 120­‑123 e 268­‑269.

173
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

atuar enquanto agente de transformações políticas e socioculturais,


ambos os jornais tiveram características que remetiam as empresas
de comunicação daquele contexto específico em que foram
produzidos.
A capacidade de vender seus espaços para a publicação de anún‑
cios, o que estava diretamente relacionada à capacidade de circulação
desses jornais e a quantidade de assinaturas de que dispunham, parece
ter sido fundamental para o sucesso dessas empreitadas jornalísticas.19
A busca pela venda para um número regular de fregueses era consi‑
derada fundamental para suas sobrevivências. Isso fica evidente
quando, em 1911, Santos Rufino, o mesmo que idealizou os Álbuns
fotográficos e descritivos da colônia de Moçambique, dirigiu­‑se ao gover‑
nador do distrito de Lourenço Marques solicitando que “o jornal
[O Africano] seja ajudado com algumas assinaturas que V. Exa. ou o
Governo se digne tomar” e, mais importante ainda, que lhes “fossem
fornecidos os anúncios e editais da Repartição de Agrimensura e
outros estabelecimentos do Estado”. Suas solicitações seriam mais do
que justas, pois o periódico lutava contra “uma falta de ajudas” devido
ao seu posicionamento de tratar “exclusivamente de orientar o indí‑
gena e de pedir para ele os benefícios que lhe devem ser dados”.20
De uma maneira geral, por um lado, os anúncios refletiram e
corroboraram características do projeto colonial português e sua
tendência de racialização das relações sociais. Por outro lado, fun‑
cionaram como uma cartilha pedagógica e como meio de divulgação
de novos padrões comportamentais para aqueles indivíduos de ori‑
gem africana que desejassem inserir­‑se num meio urbano que bus‑
cava se construir enquanto local de exemplo civilizatório. Os
anúncios pululavam ao longo de pequenas notas em todas as páginas
dos jornais, mas, geralmente, as propagandas de maior peso eram
publicadas com destaque no começo ou no final das edições.
Algo importante de ser mencionado está relacionado a estrutura

19 Em outro momento pude analisar de maneira mais pormenorizada esses fatores, sobretudo
relacionado ao O Africano. Ver: Pereira, “Anúncios e comunicados”.
20 AHM. Fundo do Governo Geral (doravante, GG). Caixa n.º 34. Carta para Ernesto de
Vilhena, Governador do Distrito de Lourenço Marques, do representante do jornal “O
Africano”, Santos Rufino, 12 de agosto de 1911.

174
MATHEUS SERVA PEREIRA

de publicação das páginas d’O Africano e O Brado Africano. Ambos


mantiveram, por praticamente todo o período analisado, o número
de quatro páginas. Desse total de páginas, existiu, durante as três
primeiras décadas do século XX, em sua quase totalidade, uma página
inteiramente dedicada aos classificados e outras divididas entre
anúncios e textos. A par dessa característica, fica evidente a impor‑
tância desses anúncios para a sobrevivência financeira dos periódi‑
cos. As páginas dedicadas aos anúncios mantinham a diagramação
semelhante à que era utilizada para as notícias, ou seja, os agrupa‑
vam em fileiras, cujo número variou ao longo dos anos, e expunham
os produtos e serviços oferecidos um sobre os outros. Era dentro
dessa organização espacial dos periódicos que os engenhosos comer‑
ciantes laurentinos tentaram atrair seus fregueses em potencial.21
A construção, de maneira progressiva, de uma malha urbana
que dotou a cidade de equipamentos definidores da existência de
uma condição de vida citadina pode ser constatada pela diversifica‑
ção das propagandas. Eram variados os símbolos desse processo.
A “Empresa União Automobilista de Lourenço Marques” anunciou
a chegada de carros particulares para o usufruto de passageiros, ofe‑
recendo o transporte com seus veículos todos os dias pelas ruas da
cidade, entre as 5 e as 19 horas. A empresa dizia levar os abastados
habitantes da cidade a seus destinos, oferecendo carros especiais
para cerimônias e casamentos, fazendo preços exclusivos para hotéis
“para o transporte de bagagens e passageiros” e “passeios diários à
Praia da Polana”.22 Nos classificados também estão anúncios de
companhias de seguro,23 de importadores e exportadores,24 da
“Empreza Nacional de Navegação” ou dos “Caminhos de Ferro de

21 Ainda está por ser feita uma abordagem sistemática que enfoque sua análise nos anúncios
dos jornais, fossem produzidos por africanos ou europeus, em Moçambique. Para uma
análise sobre a relação entre propaganda e racismo dentro do contexto imperial, ver: Anne
Mcclintock, “O império do sabonete – Racismo mercantil e propaganda imperial”, in Couro
Imperial. Apesar da bela analise da autora, a mesma produz uma interpretação do poder
das representações da propaganda sobre questões de raça e gênero a partir da interferência
que os anúncios de sabão tiveram enquanto circularam dentro da metrópole, não chegando
a arriscar hipóteses de como esses interferiram no mundo das colónias.
22 O Africano, 12 de agosto de 1916. WNA.
23 Dentre muitos exemplares, ver: O Africano, 27 de setembro de 1913. WNA.
24 Dentre muitos exemplares, ver: O Africano, 29 de abril de 1916. WNA.

175
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

Lourenço Marques”, que ofereciam “a mais curta, a mais cômoda e


a melhor viagem” para inúmeros destinos.25

11. In O Africano, de 21 de junho de 1913. WNA. Exemplo de página dedicada exclusivamente


aos anúncios publicada nas décadas iniciais do século XX. A diagramação modificou­‑se ao longo
do século, com o espalhar dessas propagandas ao longo das páginas dos jornais, sem nunca deixar
de existir uma página exclusiva para esse tipo de informação.

25 Dentre muitos exemplares, ver: O Africano, 31 de outubro de 1912. WNA.

176
MATHEUS SERVA PEREIRA

Os hotéis que a “Empreza União Automobilista” buscou atrair


para o uso de seus serviços foram símbolos desse crescimento da
malha urbana de Lourenço Marques. Seus anúncios afloraram em
grande quantidade nos periódicos. Chama atenção a tentativa de
vinculação explícita que alguns desses hotéis tentaram criar entre a
qualidade do serviço prestado e uma predominância de hábitos con‑
siderados de origem europeia em suas instalações. Um dos empreen‑
dimentos hoteleiros que mais investiram em propaganda trazia no
próprio nome essa ideia. O “Hotel­‑Restaurante Paris”, reformado
no início da década de 1910, ficava nas proximidades da estação dos
Caminhos de Ferro de Lourenço Marques, atrativo este que sabia‑
mente foi valorizado em sua propaganda. Vangloriando­‑se por ser
considerado “um dos melhores hotéis da cidade”, o hotel teria atin‑
gido esse posto graças aos “confortáveis quartos” que possuía, as
“instalações feitas segundo os mais recentes processos de higiene” e
ao seu serviço de alimentação “confiado sempre a cozinheiros euro‑
peus”. Por sua vez, o “Club Hotel Avenida Aguiar” fornecia “carros
elétricos a porta” e também afirmava possuir as condições mais
higiênicas possíveis, além de “serviço de cozinha à portuguesa e à
inglesa”. Outras opções mais baratas de hospedagem poderiam ser
encontradas nos classificados, como a “Pensão Lusitana de Lou‑
renço Marques”.26 De forma geral, as propagandas de hotéis
seguiam um modelo em que afirmavam serem as instalações do
estabelecimento as mais higiênicas e vinculavam seus nomes ou dos
trabalhadores e pratos servidos por seus restaurantes à Europa.27
No entanto, não apenas o Hotel­‑Restaurante Paris dedicou
atenção para divulgar nos jornais suas maravilhas. O “Hotel Afri‑
cano” utilizou­‑se do espaço dedicado à “seção landim” d’O Brado
Africano para dirigir­‑se a seus potenciais clientes. Empregando a
língua ronga, o hotel publicou seu primeiro anúncio em novembro
de 1919. Provavelmente por conta de sua localização, no bairro da
Malanga, zona suburbana da cidade majoritariamente ocupada por
africanos, o hotel optou por anunciar­‑se em ronga ao invés de usar

26 O Africano, 28 de março de 1914. WNA.


27 O Africano, 29 de abril de 1916. WNA.

177
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

o português. Seu público alvo era a “nossa gente” ou “nossas pes‑


soas”, o que parece designar a ausência de discriminação por parte
dos proprietários em relação à clientela esperada, remetendo a uma
identidade semelhante daqueles que sabiam escrever e ler aquela
língua. 28
O anúncio também informava que a “boa comida” que poderia
ser encontrada no estabelecimento, ainda que voltado para africa‑
nos, era servida em mesas com “toalhas, guardanapos, copos, etc”.29
Comer no “Hotal Africano” significava muito mais do que apenas
uma determinada maneira asseada de apresentação e usufruto de
um estabelecimento comercial. Enquanto um ato demonstrativo de
um engreço no mundo entendido enquanto civilizado, era esperado
que aqueles que usufruiam de suas instalações fossem distintos dos
africanos classificados como indígenas. Como era previsto no Esta‑
tuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas, de 1929, esses eram
“indivíduos da raça negra ou dela descendentes que, pela ilustração
e costumes, se não distingam do comum daquela raça”.30 Em
Moçambique, para obter a distinção do “comum daquela raça” era
necessário, desde, pelo menos, 1919, uma série de tramites buro‑
cráticos que passavam pela obtenção de atestados produzidos pela

28 O Brado Africano, 1 de novembro de 1919. WNA. Graças à ajuda do professor Ernesto


Dimande, linguista da Universidade Eduardo Mondlane, foi possível obter a tradução do
anúncio do hotel: “Hotel Africano. De [que pertence ao] Herculano da Costa Tomaz e Roque
da Silva. No bairro Malanga. No bairro Malanga abriu­‑se um hotel que recebe nossas pessoas:
homens e mulheres. Quem precisar de boa comida deverá para lá se dirrigir. As mesas pos‑
suem toalhas guardanapos, copos, etc. Há lugar para dormir e para descançar. Ides para ver
o hotel bonito e a comida saborosa”. O texto original é: “Hotel Africano. Dya. Herculano da
Costa Tomaz & Roque da Silva. Ka Nwalanga. Ka Nwalanga, ku pfuliwi hotel dya ku ya‑
mukela bhanu ba kweru, babanuna ni babansati. Lwe a djulaka a psa­‑ku­‑da psa hombe a ye
kone. Amimeza mini “matoalha ni ma guardunapu, ni ma kopo etc etc” ku ni ka ku yetlela
ni ka ku wisa kone. Yanani awi ya bona hotel dya ku shonga ni psa­‑ku­‑da psa ku nandyika”.
Foi possível encontrar outras propagandas de hotéis em ronga, como a do “Hotel Bilene” ou
do “Hotel [na] Avenida Paiva Manso”. In: O Brado Africano, 22 de janeiro de 1921.
29 O Brado Africano, 1 de novembro de 1919. WNA.
30 Estatuto político, civil e criminal dos indígenas, in Diário do Governo, I Série, n.º 30, 6 de
fevereiro de 1929, 387. A integra do estatuto, que possui uma introdução bastante escla‑
recedora dos aspectos formais e legais que geriram o espírito da criação do estatuto, pode
ser encontrado na Base de Dados “Legislação: Trabalhadores e Trabalho em Portugal, Brasil
e África Colonial Portuguesa”, criada pelo Centro de Pesquisa em História Social da
Cultura (CECULT­‑Unicamp). Ver: https://www.ifch.unicamp.br/cecult/lex/web/ajuda/
apresentacao.html. Consultado em 04/01/2019.

178
MATHEUS SERVA PEREIRA

autoridade administrativa da residência do requerente confirmando


o abandono de “costumes” e a capacidade de ler e escrever em por‑
tuguês.31 Esses “costumes” diziam respeito, sobretudo, a adoção da
prática de religiões cristãs e da monogamia. Porém, como lembra
Raúl Bernando Honwana, a fiscalização colonial usou como crité‑
rios de avaliação a adoção de detalhes das vestimentas, mobílias
existentes nas casas e do uso dos talheres a mesa como comprova‑
tivos assimilacionistas. Nas palavras de Honwana, a partir de 1919,
“o africano que se considerasse ‘civilizado’ devia fazer um exame,
respondendo a certas perguntas e deixando que uma comissão fosse
a sua casa ver como é que vivia, se sabia comer como um branco, à
mesa, se se calçava e se tinha uma só mulher”.32
Ao mesmo tempo em que O Africano e, posteriormente,
O Brado Africano, tiveram como fator fundamental de sua distinção
dentro do meio periodista laurentino a origem social de seus idea‑
lizadores e produtores, a “seção landim” representou outra carac‑
terística impar dessa empreitada. Sendo comum existirem jornais
bilíngues na cidade, sobretudo publicados em português e inglês,
a “seção landim” era, normalmente, publicada em língua local, pre‑
ferencialmente o ronga, e nas últimas páginas desses dois jornais.
Trouxe, majoritariamente, versões traduzidas das principais man‑
chetes publicadas em português, alguns textos inéditos e, por vezes,
anúncios comerciais.33 Os elementos do grupo responsável pela
elaboração de ambos os periódicos, ao identificarem­‑se como cida‑
dãos portugueses sem deixarem de ser negros e africanos, buscaram

31 Boletim Oficial, n.º 3 – Portaria Provincial n.º 1041 de 18 de janeiro de 1919. Apud,
Fernanda do Nascimento Thomaz, “Os ‘Filhos da Terra’: Discurso e Resistência nas Rela‑
ções Coloniais no Sul de Moçambique (1890­‑1930)” (Dissertação de Mestrado em His‑
tória, Universidade Federal Fluminense, 2008), 88.
32 Raúl Bernardo Honwana. Memórias (Maputo: Marimbique, 2010), 94.
33 O Africano, desde sua primeira edição em dezembro de 1908, dedicou parte de suas publi‑
cações para serem escritas ou traduzidas para o que chamou de “língua landim”. No entanto,
separar um setor específico do jornal dedicado apenas para os artigos escritos nessa língua
surgiu apenas alguns anos depois, mais especificamente em 31 de julho de 1909. Ver:
O Africano, 31 de julho de 1909. WNA. Para um exemplo de como era prática comum
traduzirem do português para o landim os textos editoriais do jornal, ver: O Africano, 5 de
setembro de 1912. WNA. Outra característica era a de traduzir do português para o “lan‑
dim” questões legislativas coloniais, “afim de tomarem conhecimento [...] os interessados”.
Ver: 24 de setembro de 1913. WNA.

179
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

se posicionar enquanto intermediários das populações nativas com


os poderes coloniais instituídos e vice­‑versa. Como ferramenta de
legitimação desse posicionamento e de disseminação de ideias e
formas de agir, o uso de línguas nativas condizia com as ambiva‑
lências existentes no seio do principal grupo social produtor desses
jornais. Por um lado, constatavam que graças “as muitas missões
espalhadas [...] muito preto sabe ler” e, portanto, entendiam ser
necessário “escrever em landim para ser[em] compreendidos”.34
Por outro lado, no início de século XX, viam essa característica
como negativa, já que eram os “dialetos cafres” um “mal que pre‑
tend[iam] combater”,35 reclamando de como as missões, ao foca‑
rem no ensino do “landim”, estariam “bestializando cada vez mais
o indígena”.36
Os missionários, principalmente os suíços protestantes que tive‑
rem influente atuação no sul de Moçambique a partir da última
quinzena do século XIX, viram na língua um instrumento de moder‑
nização fortemente associado ao cristianismo e ao progresso. O pro‑
cesso de codificação e fixação de uma diversidade de línguas
existentes na região, que as transformou numa escrita específica,
passou por um processo de seleção que elevava uma determinada
forma de se expressar em detrimento de outras.37 Apesar da artifi‑
cialidade existente na codificação da língua ronga realizada pelos
missionários suíços, que marginalizaram outras formas de comuni‑
cação orais locais, sua gramática foi reapropriada de diferentes
maneiras pelos variados grupos nativos.
Dentro desse contexto, o missionário e etnógrafo suíço Henri
Junod, que atuou maciçamente na região durante este período, rela‑
tou uma história ocorrida consigo. Um de seus vizinhos, chamado
Mandriya, solicitou­‑o que lhe desse uma carta para conseguir cobrar
uma dívida. Inquerido o porquê desse desejo, pois Junod não sabia
da natureza da negociação e os devedores não sabiam ler, a resposta
obtida teria sido a seguinte: “Não faz mal [...]. O importante é que

34 O Africano, 25 de dezembro de 1908. WNA.


35 O Africano, 25 de dezembro de 1908. WNA.
36 O Africano, 5 de setembro de 1909. WNA.
37 Ver: Patrick Harries. Junod e as Sociedades Africanas.

180
MATHEUS SERVA PEREIRA

tenha um papel na mão. Terão medo. Pensarão que venho da parte


dos Brancos, e munido da sua autoridade”. O missionário, classifi‑
cando aquele expediente como “pouco decente”, terminou por pas‑
sar uma carta declarando conhecer Mandriya e dirigida ao
“Intendente português da região”. Sem saber ao certo o procedi‑
mento do vizinho durante a cobrança, Junod apenas relatou que o
mesmo conseguiu recuperar alguns dos seus pertences.38 A jocosa
anedota indica uma das muitas possibilidades que o papel e a grafia
ganharam naquele contexto. Dentre as muitas formas possíveis de
apropriação da palavra escrita pelas populações nativas, a utilização
da língua ronga pelos jornais O Africano e O Brado Africano, mesmo
que a inferiorizando em relação ao português, funcionou tanto para
a criação de uma comunidade produtora de elites locais, como um
mecanismo de disseminação de ideias e formas de identificação pró‑
prias que poderiam ir além dos preceitos iniciais da racionalização
imposta sobre aquele mundo.39
O “Hotel Africano” não foi o único comércio a se preocupar em
divulgar seus serviços e produtos para a camada da população não
falante de português e que compunha o maior número dos que
habitavam Lourenço Marques. É possível encontrar outros exem‑
plos semelhantes. Esse foi o caso da referenciada “empresa de pani‑
ficação Arthur & Pinho, C.”. Afirmando que seus pães eram de
primeira qualidade e os mais modernos por não terem “contágio de
cinza”, a mesma fez uso do ronga para ampliar a venda de seus pães,
tentando, assim, atingir um mercado consumidor que ia além
daquele composto pelos colonos de origem europeia.40 A “Empresa
de Panificação Limitada”, para não ficar atrás da concorrente, tam‑

38 Henry Junod, Usos e Costumes dos Bantu. Tomo I – Vida Social (Campinas: Unicamp, Insti‑
tuto de Filosofia e Ciências Humanas, 2009), 279.
39 Como explica Patrick Harries, “The gramar and orthography of a written language pro‑
vided the reader with a stable and enduring cultural marker independente of the chief; the
printed word took on the power of non­‑perishable truth while at the same time providing
people, whose economic and social horizons were rapidly expanding, with a new means of
communication and expression”. In: Patrick Harries, “The Roots of Ethnicity: Discourse
and the Politics of Language Construction in South­‑East Africa”, African Affairs 87, n.º
346 ( Janeiro 1988), 45.
40 Encontrei anúncios da panificação Arthur & Pinho, C. publicados pelo O Africano, prati‑
camente sem nenhuma alteração em seu conteúdo, entre os anos de 1912 e 1917.

181
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

bém afirmou em português e em ronga que seus pães eram os da


“única padaria montada segundo os preceitos modernos” e sem
qualquer “contágio com cinza”.41 Outro que tentou apelar para os
habitantes que liam e falavam português e “landim” foi a “Casa de
Ferro­‑Velho de Mossa & Joosub”. O empreendimento anunciou
que possuía, por “preços muito baratos”, objetos, como: “móveis,
utensílios de cozinha, mesa, artigos de escritório, roupas brancas de
toda a espécie, calçado para homens, senhoras e crianças”.42 Todos
objetos fundamentais para se perceber a produção de uma nova
forma de se viver promovido pelo crescimento da presença colonial
portuguesa na região.
Os anúncios em ronga, mais esporádicos do que os em portu‑
guês, continuaram aparecendo n’O Brado Africano até, pelo menos,
finais dos anos 1940. Mais bem elaborados do que os encontrados
nas décadas de 1910 e 1920, permaneceram especificamente publi‑
cados na “seção landim”, mas com uma maior diversificação dos
produtos e serviços oferecidos. Em 1943, por exemplo, era comum
encontrar naquela seção publicidades de empresas de transporte
terrestre que faziam a ligação entre diferentes regiões de Moçam‑
bique,43 de uma farmácia localizada nos arredores de Lourenço
Marques, ou da empresa “Sabão e Óleo ‘Moçambique Ltda’”, que
propagandeou que todo africano comprava seu sabão “Pioneiro e
Leão” por ser “o melhor de todos, mais barato e resistente”.44
Enquanto a população de Lourenço Marques, composta pelas
“26 nacionalidades europeias”, buscou saciar seus desejos por neces‑
sidades materiais, é relevante constatar como a proliferação desses
hábitos de consumo, que também interferiam nas formas de vivencia
cotidiana, foram estimulados pelos comerciantes através dos classi‑
ficados não apenas para essa camada populacional urbana específica.
Fosse o “Hotel Africano”, as panificações, a “Casa de Ferro­‑Velho

41 O Africano, 28 de abril de 1917. WNA.


42 O Brado Africano, 4 de outubro de 1919. WNA.
43 Desde os anos 1920, pelo menos, uma firma com o nome sugestivo de “Empresa Progresso”
anunciava, em português e em ronga, que fazia transporte de passageiros e cargas. In:
O Brado Africano, 26 de novembro de 1926. WNA.
44 O Brado Africano, 6 de fevereiro de 1943. WNA.

182
MATHEUS SERVA PEREIRA

de Mossa & Joosub” ou a empresa que produzia sabonetes, ao se


preocuparem em publicar seus anúncios na “seção landim” ou serem
bilíngues, demonstram um desejo em atrair um público maior e mais
diversificado, sendo esse um indicativo de como a construção de
necessidades, na prática, levaram a incorporação de novos hábitos.
Como explica Daniel Miller, embora “as pessoas sejam construídas
por seu mundo material, com frequência não são elas os agentes por
trás desse mundo material no qual têm de viver”.45 Contudo, mesmo
que inicialmente impostos de maneira opressiva pelo colonialismo,
esses novos objetos incorporados à cultura material que configurou
a algazarra da vida cotidiana daqueles que se comunicavam majori‑
tariamente em ronga foi responsável pela elaboração de novas e, na
maioria das vezes, inesperadas formas de interação.
A língua e o uso de imagens ilustrativas dos produtos ofertados
foram atrativos importantes que demonstram uma relação entre
novos objetos incorporados ao universo de consumo cotidiano das
camadas classificadas como indígenas de Lourenço Marques, a
transformação acelerada de hábitos pelas quais essa população pas‑
sou e a relação desse processo com a exploração colonial. As inú‑
meras casas que vendiam roupas ou peças de tecido foram aquelas
que mais investiram em chamar a atenção do público falante de
ronga. A “Casa Tombler”, por exemplo, afirmou prover fazendas
para a confecção dos mais belos vestidos, chapéus e sapatos. A mesma
realizou uma promoção, divulgada em português e em ronga, onde
o primeiro cliente vitorioso em um sorteio receberia 25 mil réis em
fazendas à escolha e o segundo, 15 mil réis em dinheiro.46 O “Salão
Chic” vangloriou­‑se por possuir um “colossal sortimento de
modas”47 e as “últimas novidades de Paris e Londres”.48 Enquanto
a “Casa Leão” avisava seus fregueses sobre uma liquidação, com

45 Daniel Miller, Trecos, Troços e Coisas: Estudos Antropológicos Sobre a Cultura Material (Rio
de Janeiro: Zahar, 2013), 127.
46 O Africano, 27 de setembro de 1913. WNA.
47 O Brado Africano, 26 de julho de 1919. WNA.
48 O Brado Africano, 14 de agosto de 1920. WNA. Importante salientar que, aparentemente,
nos anos analisados d’O Brado Africano existiu uma maior proliferação de anúncios em
ronga, em relação aqueles existentes n’O Africano. Nessa edição do jornal, pude encontrar
anúncios de comércios variados naquela língua.

183
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

“preços excepcionais” de “Rendas, Bordados e Étamines” e louças.49


O “Salão de Moda Fabião e Silva”, em 1915, dedicou propaganda
exclusiva em ronga.50 Ambos os salões de moda perduraram por
longos anos como estabelecimentos comerciais de referência em
Lourenço Marques, tendo sido retratados no terceiro volume dos
Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique. Ao
segundo foi dedicada uma foto exclusiva da fachada da loja e do seu
interior, sendo descrito como o local de “encanto das Damas de
Lourenço Marques”.51

12. In José dos Santos Rufino, ed., Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de Moçambique.
Volume III: Lourenço Marques – Aspectos da cidade, Vida Comercial, Praia da Polana, etc. (Lourenço
Marques: J. S. Rufino, 1929), 19. Legenda: “O encanto das Damas de Lourenço Marques: O Sa‑
lão Chic Ltda. Especialidade: chapéus­‑modelo”. O álbum louvou a qualidade do Salão Chic
Ltda, dedicando duas páginas de seu terceiro volume ao estabelecimento comercial.

49 O Brado Africano, 1 de fevereiro de 1919. WNA.


50 O Africano, 3 de julho de 1915. WNA.
51 José dos Santos Rufino, ed., Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de Moçambique. Volume
III: Lourenço Marques – Aspectos da cidade, Vida Comercial, Praia da Polana, etc. (Lourenço
Marques: J. S. Rufino, 1929), 19, 23 e 24.

184
MATHEUS SERVA PEREIRA

13. Ibidem, 23. Legenda: “Interiores do Salão Chic Ltda. – Modas e Confecções”.

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COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

14. Ibidem, 24. O Salão de Moda Fabião e Silva não mereceu o mesmo destaque. Dividiu a
fotografia de sua fachada com outro “estabelecimento de moda”. É interessante perceber que
nas fotografias do Salão Chic Ltda não aparecem pessoas. Enquanto na imagem dos “Dois
Estabelecimentos de Modas”, como é referenciado na legenda das imagens, temos pessoas que
compõem uma paisagem de cotidiano urbano, posicionadas em frente das vitrines ou caminhan‑
do pela rua. As roupas de uma mulher – aparentemente branca – com duas crianças, atravessando
a rua, assemelham­‑se com as retratadas pelo anúncio do Salão de Moda Fabião e Silva que será
analisado posteriormente.

186
MATHEUS SERVA PEREIRA

Tendo repetido anúncios em ronga, alguns ganhando destaque


significativo nas páginas da imprensa ao longo dos anos, o “Salão de
Moda Fabião e Silva”, após a mudança de dono d’O Africano, migrou
seus anúncios para O Brado Africano.52 Em 1918, o salão de moda
dizia vender diversas peças de vestimenta. Tendo adquirido os mais
modernos tecidos europeus para suprir a população laurentina
durante a “estação de inverno”, ilustrou seu anúncio com o desenho
de uma mulher com traços físicos que podem ser considerados tipi‑
camente brancos­‑europeus. Trajando uma roupa que seguia “abso‑
lutamente o rigor da moda”, com seu chapéu na cabeça, segurando
suas luvas, portando um vestido esvoaçando ao vento e calçando
sapatos de salto alto, a imagem ganhava destaque nas páginas impres‑
sas do jornal. Eram oferecidos aos clientes uma “variada coleção dos
mais lindos chapéus de inverno”, “tecidos para vestido” e “casacos de
lã para senhoras e crianças”. Os homens poderiam encontrar “cortes
de fato [terno], chapéus de feltro, cachecóis. (...) luvas etc.”.53

15. In O Africano, 8 de junho de 1918. WNA. As novidades da moda europeia estamparam as


páginas da imprensa de Lourneço Marques. Exemplo de como o comércio buscou atrair uma
gama variada de potenciais clientes.

52 O Brado Africano, 4 de setembro de 1920. WNA.


53 O Africano, 8 de junho de 1918. WNA.

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COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

O Salão de Moda Fabião e Silva foi uma das empresas que mais
utilizou as páginas dos jornais O Africano e O Brado Africano para
fazer suas propagandas. Incorporando a escrita ronga nos seus anún‑
cios, por um lado, buscou chamar a atenção dos potenciais clientes
não leitores e não falantes da língua portuguesa, demonstrando a
importância desses como clientes na cidade de Lourenço Marques.
Por outro lado, pode­‑se supor que a questão indumentária tornou­
‑se, rapidamente, um local de disputa, com a promoção de diferen‑
tes formas de apropriação. Para os adeptos da ação colonial
civilizadora, a indumentária foi um indice medidor do grau de
sucesso desse projeto. Para aqueles a que eram direcionados esses
anúncios, incorporar essas roupas e tecidos na suas vidas foi uma
nova forma de participar, de acordo com seus intentos, daquele
mundo que os oprimia e que tentou tutelar suas ações.

16. In O Brado Africano, 4 de setembro de 1920. WNA. Nesse anúncio, publicado na “seção
landim”, o salão de moda Fabião & Silva fazia uma grande promoção dos seus estoques.54

54 A tradução do texto é a seguinte: “Barato! Barato! Grande promoção em todo o mês de se‑
tembro na loja Fabião & Silva! Nesta loja, a mulher, o homem e a criança entram esfarrapados
e saem aprumados e lindos a preços baixíssimos. Tudo à metade do preço! Na loja “Fabião &
Silva” pode­‑se comprar: casacos para frio, casacos desportivos de lã e de algodão suíço. Rendas,

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MATHEUS SERVA PEREIRA

17. O Africano, 1 de agosto de 1911 e O Brado Africano, 30 de julho de 1921. WNA. Outros
exemplos do uso de imagens nos classificados dos jornais. Esses anúncios poderiam vir acompa‑
nhados com um engrandecimento das qualidades dos produtos ofertados e os preços módicos
oferecidos por meio do português, como nos dois primeiros casos, ou do ronga, como no terceiro
caso. As invenções tecnológicas, símbolos do progresso, ganharam destaque nas páginas periódi‑
cas. O uso de ilustração facilitava a popularização desses bens materiais.

sheeta, lã, seda, blusas de algodão e crepom suíço! Rendas, várias sheetas, algodão, seda riscada
e bonita que pode confeccionar vários tipos de roupa como capulana e quimao lindo. Na
Fabião & Silva tudo está a baixo preço: Lençóis de enormes dimensões 18/6. Mantas de 22/6.
Vide a promoção na Fabião & Silva: vestidos das meninas vendem à 3/9, 5/6, 7/3 e 15/6!
Chapéus e bonés para senhoras e crianças a 2/6. 30 peças de étamine Suíço de várias cores a
3/9 cada metro. Cerca de 10.000 pares de meias de todas as cores. A Fabião e Silva tem,
inclusive, vergonha de conferir o dinheiro no ato da compra por ser tão baixo. Na Fabião &
Silva poderás adquirir mais e mais produtos a preços baixíssimos! A Fabião & Silva inicia a
promoção na segunda­‑feira! A Fabião & Silva dispõe de um novo stock de lenços de cabeça
a preços baixíssimos para o cliente! Vá agora a Fabião & Silva e aproveite os preços de liqui‑
dação!”. [Agradeço o auxílio prestado por Patrício Martins na tradução]

189
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

Como pode ser percebido nos exemplos citados, as propagandas


foram plurais com relação aos produtos e aos serviços oferecidos à
população de Lourenço Marques. Junto com as boutiques de roupas,
as novidades tecnológicas apareceram em destaque. Por meio da
utilização de imagens, atraíram os olhares para máquinas de escre‑
ver, máquinas fotográficas, relógios, óculos, automóveis, gramofo‑
nes e discos. Buscaram vangloriar seus produtos anunciados
vinculando­‑os a um significado amplo relacionado à Europa, às
ideias de progresso e de avanço civilizacional. Evidenciam como a
construção do que era entendido pelo colonialismo português como
progresso civilizacional ocorreu, pelo menos no raio de alcance das
interações sociais promovidas em Lourenço Marques, através de
uma popularização de serviços e bens que simbolizavam uma suposta
superioridade legitimadora da ação colonial, ao mesmo tempo em
que corroboravam o processo de coerção de exploração dos traba‑
lhadores nativos e a necessidade da adoção de formas de vida dis‑
tintas daquelas existentes até então. Por um lado, elas foram
pensadas, em sua maioria, exclusivamente para atingir o público
composto pelo cosmopolitismo enevoado descrito no início desse
capítulo. Porém, por outro lado, não se restringiram a ele. Corro‑
borando um trânsito existente, principalmente nas três primeiras
décadas do século XX, mesmo que cheio de perigos cotidianos, entre
os diversos mundos viventes dentro da capital colonial, esses anún‑
cios revelam um imbricado jogo de influências e transformações
pelas quais os trabalhadores urbanos indígenas passaram naquele
momento.

Para além da “conversa burguesa”

Não apenas as grandes novidades em produtos e serviços ganharam


destaque nas páginas da imprensa de Lourenço Marques. Todo um
conjunto de consumos e práticas culturais, relacionadas aos locais e
momentos de divertimento existentes na cidade, foram propagan‑
deadas pela imprensa laurentina do início do século XX. No primeiro
capítulo demonstrei como os batuques realizados em diferentes
espaços urbanos da cidade possuíam características diversas, inclu‑

190
MATHEUS SERVA PEREIRA

sive como momento de confraternização voltado para o diverti‑


mento. Posteriormente, a partir do exemplo do pensamento de Brito
Camacho, uma parcela dos homens que pensavam o colonialismo
português entendia o tempo do não­‑trabalho como o natural daque‑
les que se encontravam sob o seu domínio na África. Se, por um
lado, os periódicos analisados defenderam a repressão e eliminação
do que chamavam de batuques do espaço da cidade, por outro lado,
indicaram formas que compreendiam como aquelas mais corretas
de se estar nos espaços de lazer em Lourenço Marques. Essas visões
ajudarão a reconstruir esses lugares como locais de conflito, de apro‑
priação do tempo e do espaço urbano colonial.
Em artigo de opinião, publicado em 1907 pelo jornal A Tri‑
buna, seu autor, assinando com o pseudônimo de Fulano de Tal,
afirmou que os bares de Lourenço Marques cumpriam uma função
pública de utilidade social. Caracterizados em outros meios perio‑
distas da cidade como “perigosos focos de desmoralização”, onde
“se entremeiam beijos sifilizados com champanha”, aqueles estabe‑
lecimentos seriam, segundo o polemista, “uma válvula de segurança
da moralidade doméstica”. Para Fulano de Tal, em primeiro lugar,
existindo “tantas mulheres europeias casadas”, a busca por “reuniões
com exemplares da raça indígena”, evitava, ao menos, a cobiça da
mulher do outro. Em segundo lugar, a utilidade dos bares estaria
na sua interpretação sobre as opções de divertimento na cidade, já
que entendia que Lourenço Marques “não oferec[ia] diversões.
Além de música gratuita 3 vezes por semana”. Nada mais existindo,
os bares seriam o único suprimento de entretenimento da comuni‑
dade masculina, principalmente de origem europeia. Sua conclusão
era: “Abrir um teatro será, talvez, fechar os bares”.55

55 A Tribuna, 2 de maio de 1907. BNP. A discrepância entre o número de homens e mulheres


em Lourenço Marques era um problema para o colonialismo português, especialmente
por conta do baixo número de mulheres brancas. Segundo um mapa estatístico de 1897,
a cidade possuiria 4.902 habitantes, desse total, a população maior de idade era de 1643
homens para 281 “europeus e americanos”, 655 homens para 187 mulheres “africanas” e
692 homens para 18 mulheres “asiáticas”. In: AHU, DGU, 3.ª Repartição, Caixa 2764,
1885­‑1898, Estatísticas. No próximo capítulo problematizarei de maneira detalhada a
questão da presença de mulheres indígenas no espaço urbano laurentino do início do
século XX.

191
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

O texto assinado por Fulano de Tal expressa uma maneira de


divulgação das formas de entretenimento possíveis de serem encon‑
trados naquele período. Ao mesmo tempo, revela como diferentes
agentes sociais usaram­‑se do meio periodista para expressar suas
posições a respeito do tempo do lazer e, com isso, exerceram pres‑
sões para que suas opiniões se materializassem nos espaços dedica‑
dos ao usufruto do tempo. O artigo, polêmico, foi prontamente
respondido dias depois. O arguidor concordou com a premissa
exposta a respeito da ausência de distrações em Lourenço Marques,
especialmente aquelas promovidas pelos espetáculos de teatro.
Porém, isso não queria dizer que não existisse um local, considerado
típico da cidade, onde era possível se divertir. Segundo o arguidor,
os teatros e bares poderiam existir, mas seu apelo era para que aque‑
las “inovações” não escangalhassem “o arranjinho do quiosque do
Valentinni”.56
A importância dos quiosques como local de sociabilidade,
sobretudo para uma camada da população composta por proprie‑
tários, colonos, funcionários públicos, mas também pelos traba‑
lhadores domésticos que transitavam pelas casas desses membros
da alta sociedade local, pode ser percebida pela criação de uma
coluna no jornal O Português, em março de 1901. Intitulada “Pelos
Quiosques”, a ideia da rubrica era de trazer pequenos textos com
os boatos supostamente mais comentados e ouvidos pelos quios‑
ques de Lourenço Marques. A maioria das notas publicadas foram
sobre acontecimentos relacionados aos membros dessa camada
populacional, como casos de cunho político, acusações de corrup‑
ção, descrição das pessoas localmente famosas, enlaçamentos amo‑
rosos, etc.57

56 A Tribuna, 5 de maio de 1907. BNP.


57 Ver: O Português, 13 de março de 1901. BNP.

192
MATHEUS SERVA PEREIRA

18. In J. & M. Lazarus. A Souvenir of Lourenço Marques. An album of views of the town (Lourenço
Marques: Tabler & Co., 1901), 28. Legenda: “Kiosks, Praça Mousinho d’Albuquerque”.

A insistência de ambos os textos em enfatizar a ausência de


divertimentos corroborava um coro presente na imprensa de Lou‑
renço Marques, nas primeiras décadas do século XX, a respeito das
opções de entretenimento na cidade. A Tribuna, por exemplo, afir‑
mou serem os quiosques e os bares, mesmo que de maneira ambígua
por serem locais entendidos como propícios às imoralidades provo‑
cadas pelo excesso no consumo de bebidas alcoólicas, as principais
opções de lazer para os habitantes da cidade. Porém, a categoria
genérica de habitantes da cidade não é de todo homogênea. Afinal,
o jornal insistia que “Lourenço Marques [...] apenas vive de dia. De
noite apenas o quiosque e os bares dão sinal da vida da população”.
A construção do “elegante teatro do Sport Club Português” seria
uma tentativa para amenizar a inexistência de espaços de lazer pre‑
dominantemente branco­‑europeu da urbe, que estariam “limitadas

193
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

19. In José dos Santos Rufino, ed., Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de Moçambique.
Volume III, 64­‑65. Legenda: “A Praça 7 de Março – no centro da cidade – com os seus quiosques
da... ‘má língua’...”. Importantes locais de sociabilidade, especialmente entre os homens brancos,
mas também entre os trabalhadores negros, fossem classificados como indígenas ou assimilados,
os quiosques foram fotografados com frequência pelas lentes daqueles que registraram Lourenço
Marques nas primeiras décadas do século XX. A praça Mouzinho de Albuquerque e a Praça
7 de Março ganharam destaque com seus quiosques. Ambas possuíam opções onde essas pessoas
poderiam beber, comer e arranjar algum divertimento. Vale a pena ressaltar a existência dos
cartazes de peças ou filmes que seriam exibidos no Teatro Varietá e buscavam atrair o público.

194
MATHEUS SERVA PEREIRA

nesta cidade africana a conversa burguesa do quiosque”.58 Bares,


quiosques, o “elegante teatro” a ser construído, todos esses estariam
ligados diretamente ao intuito de europeização burguesa daquela
paragem africana. Os diferentes meios periodistas que circulavam
por Lourenço Marques nessa época produziram uma imagem a res‑
peito da cidade que corroborava o seu posicionamento em defesa de
uma ordenação da mesma com o intuito de transformá­‑la em um
símbolo do sucesso da empreitada civilizacional portuguesa. Insis‑
tiram na necessidade de construção de espaços de lazer que corro‑
borassem esse posicionamento, como os teatros ou o cinematógrafo,
o mais moderno entretenimento desenvolvido na época.
Aqueles escandalizados com a visão de “beijos sifilizados” rega‑
dos a champanha, reivindicaram formas de entretenimento que não
chocassem a moral dos defensores da “conversa burguesa”. Suas
críticas, que insistiram na inexistência de locais onde pudessem
papear calmamente, parecem estar mais relacionadas a uma ausência
do que entendiam ser o ideal de diversão a ser oferecido em Lou‑
renço Marques, do que a inexistência de locais que ofertavam varia‑
das formas de entretenimento. Afinal, em 1900, o Grêmio Vasco
da Gama organizou apresentações regulares de recitais com orques‑
tra e espetáculos em seu “elegante teatro”.59
Em diferentes jornais que circularam nas primeiras décadas do
século XX pude encontrar exemplos de touradas, apresentações de
recitais, peças ou exibição de filmes. A Tribuna, que havia reclamado
das escassas oportunidades de divertimento burguês, anunciou, em
julho de 1907, a ocorrência da apresentação de algumas fitas no
salão cinematógrafo da Sociedade 1.º de Janeiro.60 Alguns meses
depois, o mesmo jornal informou que o proprietário do cinemató‑
grafo funcionando “junto ao antigo edifício da Alfândega” havia
encomendado, direto de Paris, “34 fitas coloridas de grandes efeitos
cênicos”. As novidades não se esgotavam aí, pois estaria em nego‑
ciações a chegada mensal “das fitas que mais conquistaram o agrado

58 A Tribuna, 30 de setembro de 1907. BNP.


59 O Português, 26 de outubro de 1900. BNP.
60 A Tribuna, 22 de julho de 1907. BNP.

195
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

e o aplauso do público” parisiense. Adotando um discurso de pro‑


gresso e modernidade, as apresentações dessas fitas seriam motivo
de orgulho para a cidade. As instalações do cinematógrafo acom‑
panharam o discurso ao mostrar que aquela “limitada cidade afri‑
cana” poderia adaptar suas instalações para atrair clientes com a
colocação de “quatro ventoinhas elétricas, que manti[nham] a sala
numa temperatura agradabilíssima”.61 Alguns meses depois, em
dezembro de 1907, foi anunciada a abertura de mais um cinemató‑
grafo. Este possuía uma “sala confortável, provida de ventoinhas
elétricas” com uma vasta coleção de fitas que deveriam “despertar
grande interesse”, prometendo receber mensalmente fitas novas de
Lisboa, Paris e Berlim.62
Com exceção das cantinas, os exemplos citados nos dão a enten‑
der que os empreendimentos do ramo do entretenimento buscavam
atrair um público composto majoritariamente por homens e, em
menor escala, mulheres, de origem europeia ou os representantes
africanos considerados como assimilados. No entanto, um olhar
mais atento permite perceber como o processo de desenvolvimento
desses espaços urbanos nos anos iniciais do século XX trouxe consigo
questões relacionadas à convivência de grupos dispares que se esbar‑
ravam, mesmo que de maneira hierarquizada sócio e racialmente,
pelos quiosques, bares, teatros, cinemas, touradas, exatamente por
conta da natureza múltipla que Lourenço Marques adquiriu quando
de sua consolidação enquanto capital de Moçambique colonial.
As restrições a esses encontros cotidianos de convivência
demonstram o caminhar da formação de uma cidade segregada, que
se refletia nos espaços que foram sendo construídos também nos
locais de entretenimento. As touradas, apesar de serem praticadas
por amadores e sofrerem com as queixas da imprensa por conta da
baixa qualidade dos espetáculos,63 possuíam locais específicos na

61 A Tribuna, 26 de novembro de 1907. BNP.


62 A Tribuna, 1 de dezembro de 1907. BNP. Segundo Guido Convents, é exatamente a partir
de 1907 que aparecem os primeiros registros de exibições de filmes importados da Europa,
realizadas no salão Edison e no café Paris. Guido Convents, Os moçambicanos perante o
cinema e o audiovisual (Maputo: Conteúdos e Publicações, 2011), 48­‑50.
63 Eram frequentes as reclamações da imprensa, na primeira década do século XX, em relação
as touradas. O Distrito, por exemplo, afirmou uma vez que “não merece a tourada as honras

196
MATHEUS SERVA PEREIRA

plateia para aqueles nomeados como indígenas. O Grupo de Ama‑


dores Tauromáquico anunciou, em março de 1901, um evento para
comemorar seu primeiro ano de existência. Os piores lugares, aque‑
les separados dos demais e expostos ao sol, foram designados para
o público “indígena”.64 Alguns anos depois, num evento com o
intuito de celebrar a inauguração da Praça D. Carlos, localizada em
uma importante região da cidade, organizou­‑se um espetáculo de
banda e corrida de touros. Deixando explícita a existência de uma
segregação quanto ao local que o público poderia ocupar a partir da
utilização das distinções jurídicas de cunho racial apresentadas no
capítulo anterior, a tabela de preços do evento indicou que aos “indí‑
genas” caberia um local pior do que a “bancada de sol”. A tabela de
preços publicada foi dividida da seguinte maneira: “Camarotes (4
entradas) 10$000, barreiras de sombra 2$000, sombra estofada
1$800, bancada de sombra 1$500, bancada de sol 1$000 e indígenas
500”.65
O lazer não era concebido, por uma ala do pensamento colonial,
como um direito da população africana negra. Nesse sentido, boa
parte dos ambientes voltados para o entretenimento dos moradores
de Lourenço Marques foi projetada tendo em vista cumprir as
demandas da população branca e, por vezes, dos filhos da terra,
oficialmente classificados como assimilados. Todavia, mesmo que
os cinematógrafos se vangloriassem de suas instalações, seguidoras
dos preceitos mais modernos, oferecendo os mais recentes filmes
europeus, seu público não era de todo composto apenas por essas
duas camadas da população.
No dia 19 de dezembro de 1907, A Tribuna felicitou o citado
cinematógrafo localizado ao lado da Alfândega, pelas “esplêndidas
[...] fitas”, na sua maioria coloridas, com atores exibindo um “guarda­
‑roupa riquíssimo [...], de um requintado luxo fora do comum” e
que de “tão extraordinariamente caiu no agrado do público”. Nesse
mesmo dia, o periódico informou a ocorrência de “desordens no

de uma resenha”. In: O Distrito, 12 de janeiro de 1905. BNP.


64 O Português, 13 de março de 1901. BNP.
65 O Distrito, 28 de setembro de 1904. BNP.

197
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

cinematógrafo”, que foram aparadas pelo guarda ali em serviço,


entre Joaquim Marques e o “indígena Gustare”.66 Não foi infor‑
mado se o ocorrido foi exatamente naquele cinematógrafo, porém
ainda não existiam muitas opções na cidade. O motivo do desen‑
tendimento também não foi apresentado. O que destaco é a infor‑
mação de que era possível encontrar indivíduos classificados como
indígenas frequentando os cinematógrafos, importantes locais de
disseminação de imagens que influenciavam hábitos em acelerada
transformação e, sobretudo, de dispêndio do tempo do não­‑trabalho.
Pelo caso ter ocorrido em 1907, é importante também perceber que,
mesmo não tendo a informação precisa, sabemos que o “indígena
Gustare” estava em um cinematógrafo que não era voltado exclusi‑
vamente para as “classes menos abastada”,67 como era o caso do
Cinema Popular, localizado na Avenida Central, que, a partir de
1914, passou a proporcionar para esses indivíduos “espetáculos de
variedades”.68
Segundo Nuno Domingos, após a fundação do “cinema Popu‑
lar, em 1914, surgiram o Cinema­‑Lusitano, em 1931, o Império,
em 1951, o Olímpia, em 1970”, todos voltados para a população
dita indígena e que foram criados como consequência do regime de
separação racial elaborado pelo colonialismo português. A questão
comercial, da possibilidade de obtenção de lucros com o público
indígena como consumidor, através da exploração desse tipo de
entretenimento, teria sido o motivo primordial para o surgimento
desses empreendimentos.69 A construção de cinemas voltados espe‑
cificamente para o público indígena pode ter sido também uma
reivindicação dessa população, que buscava um entretenimento a
partir de gostos distintos, mas, sobretudo, uma forma de se proteger
de possíveis atos de violência contra a sua presença no espaço urbano.
A criação dessa segregação não chegou a inibir casos de conflitos
raciais que pululavam pela cidade e indicam a complexidade das
relações sociais que estavam sendo engendradas naquele momento.

66 A Tribuna, 19 de dezembro de 1907. BNP.


67 O Africano, 30 de maio de 1914. BNP.
68 O Africano, 30 de maio de 1914. BNP.
69 Domingos, “Cultura popular urbana e configurações imperiais”, 411.

198
MATHEUS SERVA PEREIRA

No “Cinema Africano”, em 1917, que, em comparação com os


demais cinematógrafos mencionados até aqui, era bastante simples,
uns “rapazes [...] clarinhos”, levianamente acusados como sendo
“muçulmanos” pelo O Brado Africano, haviam se comportado como
“malcriados”. Importunando os expectadores “pela parede de
caniço”, fizeram “trouça aos filmes projetados”.70
O trajeto até esses estabelecimentos era um momento gerador
de tensões relacionadas a essas transformações. O que poderia ser
um simples passeio para um cinematógrafo, por exemplo,
transformou­‑se num emblemático caso para analisar os perigos do
trânsito existente nos locais de contato entre mundos que o colo‑
nialismo insistia em demarcar. O Brado Africano, em 08 de maio de
1920, publicou o relato da testemunha de um conflito ocorrido
“num carro elétrico”, na noite de sábado, numa movimentada rua
de Lourenço Marques. A altercação “entre um cavalheiro que se
fazia acompanhar por uma dama e o condutor do carro” só não
ganhou proporções maiores graças a “intervenção de alguns passa‑
geiros”. Segundo o relato, o “tal cavalheiro, fez sinal para que o carro
parasse”. O condutor o parou assim que o ponto de paragem mais
próximo foi alcançado. Por não ter sido prontamente atendido, o
“ressentido passageiro [...] increpou­‑se autoritariamente contra o
condutor, inquirindo­‑lhe qual o motivo porque lhe não obedecera

70 No original: “Hi siku dya 14­‑4­‑917 (sábado), a “Cinema Africano”, há boniba yisanyana
ba malcriados, a m abito yabu ba nga ba: – Madisa, Wambasi ni banwanyana ba kompanyia
yabu hi nga ba tibikiki a m abito yabu – Laba ba yisanyana hati lepsi afaka be neapsú, lepsi
ba nga ba surumana ba nga nwikiki a colonial. Loko a nha bali ba kristão afa hitaku ba
popyi hi colonial etc. Lepsi ba nga yentsha psone a “Cinema Africano”, psa hi babisile psi
ba psi hi khomisa tingana, hikusa a butyongwanini byabu a ba kpkpbisiwanga tindlebe ni
ku biwa a ba biwanga, na [oloko] ba biwile a ba khatiwanga. Ke a ba malcriados laba, ba
psi kotile a kuya a “Cinema Africano” ba ya yentsha a nsela ku nwinyi wa “Cinema Afri‑
cano”, ba tshikeli ba yima a handle, kati loko ku sungula a ku humesa a hlamba yabu, ba
sungula a ku kendla a tihlanga ta nkintari a na ba yentsha pongwe dyi kulu ba sandya a
ma fita ba ku: a hi ya hombe hikusa laba ba shabiki a mathikiti be luza mali, boné b ama
boni khale a ku biha ka wone. A policia afa dyi huma dyi ba hlongolisa, a na loko dyi
nhingena a ndyeni ba tlhela ba hahlula a tinhlanga. Mbuyangwana nwinyi a kumi min‑
dyingo, a ba a hlamala a nsela ya ku yentsha hi ba “patrício”, nangweso laba ba nga ba re‑
ligião dyinwe, knmbe a na a yeantsha hi ba kristão, a na a psi kota a ku hlaya epsaku, ba
mu yeyisa hi lepsi [yen] a nga wa religião dya shi surumana. Ngopfu lepsi psi nga mu
hlamalisa hi Madisa a mukonwana wakwe, nangweso Madisa loko a djula a ku nhingena
a psi bona a nga hakelisiwi mali, hati lepsi a nsela a yentshelaka psone! Ta­‑ha­‑ta. K.B”.
O Africano, 28 de abril de 1917. WNA.

199
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

ao sinal que havia feito”. A óbvia resposta dada, que teria vindo com
cordura, parece ter mexido com os brios da dama, pois a mesma
“voltando­‑se para o cavalheiro que a acompanhava, e, referindo­‑se
ao condutor, disse­‑lhe: deixa lá esse negro, esse selvagem”. Por sua
vez, essas palavras “ocasionaram a que o condutor lhe retorquisse: a
senhora não seja malcriada”. Com isso a confusão foi instaurada.
O cavalheiro em questão passou a tentar “agredir, a soco, o condu‑
tor, o que lhe foi obstado por alguns passageiros”. Logo em seguida,
um alferes da Guarda Republicana que se encontrava nas proximi‑
dades, interviu, solicitando prudência. O que foi prontamente repe‑
lido pelo cavalheiro afirmando não ter que dar satisfações, “pois que
era um capitão de artilharia”. No final, o autor do relato afirmou
que as “inúmeras pessoas” que presenciaram o ocorrido, firacam
“favoráveis ao condutor, pela forma acertada e correta como
procedera”.71
Embates como esse nem sempre acabaram de maneira relativa‑
mente pacífica. Vide, por exemplo, um caso ocorrido em novembro
de 1920, onde o Secretário dos Negócios Indígenas reclamou com
o Comissário de Polícia sobre a postura de um motorista de “carro
elétrico” e, principalmente, de dois policiais que nada fizeram para
impedir, o espancamento de “um indígena” pelo condutor, por esse
não ter se sentado no “lugar que lhes está destinado”.72 Apesar
disso, esses ocorridos, assim como tantos outros possíveis de serem
encontrados nas fontes, não devem ser entendidos enquanto a mate‑
rialização de mundos dicotômicos que não se interferiam mutua‑
mente, mas antes como demonstrativos dos embates, mesmo que
dentro de lógicas desiguais de poder, entre campos mutuamente
dependentes.
Noutro momento, um contribuinte ativo do jornal O Africano,
que usava o pseudônimo de Nyeleti, atacou, ao mesmo tempo, a
companhia de bondes de Lourenço Marques e os “baneanes”, afir‑
mando ser um absurdo “se cobrar a mesma importância aos indíge‑
nas que são obrigados a ir de pé na plataforma traseira do carro”.

71 O Brado Africano, 8 de maio de 1920. WNA.


72 In: AHM, DSNI, Caixa n.º 1605.

200
MATHEUS SERVA PEREIRA

O problema era visto como mais agravante quando mulheres “decen‑


temente vestidas com capulanas asseadíssimas” se dirigiam nas “noi‑
tes de cinematógrafo, transitarem de pé, na plataforma, fazendo um
contraste vergonhoso com imundos baneanes que têm a liberdade
de se sentarem dentro dos carros”. Utilizando de adjetivos pejorati‑
vos para descrever aquele Outro como “asquerosos, porcos, seben‑
tos” e “muito menos dignos que os africanos”, toda aquela cena era
vista dentro de uma lógica de racialização hierarquizante das dife‑
renças sociais que justificavam a atitude em descreditar aqueles indi‑
víduos de origem indiana em relação aos africanos.73
Independente das dificuldades opressoras encontradas no dia a
dia de uma cidade colonial que se esforçava em produzir diferenças
raciais, a incorporação do cinema no cotidiano da população cita‑
dina como um todo parece ter ocorrido de maneira rápida. Até a
inauguração das primeiras salas em 1907, o principal atrativo de
espetáculos encontrava­‑se nas apresentações teatrais e era preciso
estar a par das publicações dos periódicos para se informar das notí‑
cias internacionais. Após essa data, os cinematógrafos rapidamente
ganharam seu espaço como locais de informação e lazer.74 Películas
com informações a respeito das ações governamentais compunham

73 O Africano, 30 de setembro de 1911. WNA. O termo baneane era (e ainda é) usado em


Moçambique para designar os indivíduos de origem indiana e que, majoritariamente,
dedicam­‑se ao comércio. O monhé, assim como a designação baneane, é um termo pejo‑
rativo para designar aqueles indivíduos de origem árabe e/ou praticantes do islamismo.
Para maiores informações a respeito da presença dessas comunidades em Moçambique,
ver: Luis Frederico Dias Antunes, “O Bazar e a Fortaleza em Moçambique: A Comunidade
Baneanes do Guzereta e a Transformação do Comércio Afro­‑Asiático (1686­‑1810)” (Tese
de Doutoramento, NOVA FCSH, 2001). Mais especificamente para a sua presença em
Lourenço Marques, ver: Valdemir Zamparoni, “Monhés, Baneanes, Chinas e Afro­
‑maometanos. Colonialismo e racismo em Lourenço Marques, 1890­‑1940”, Lusotopie
(2000): 191­‑222. Segundo Zamparoni, Nyeliti teria o significado de estrela, em ronga, e
seria um “operário branco, ativista político nos Portos e Caminhos de Ferro de Lourenço
Marques, residente na cidade antes já de 1897”. Suas atividades em Lourenço Marques
cessam após sua participação na greve ferro­‑portuária de 1917, quando é preso e deportado
para a Ilha de Moçambique. In: Valdemir Zamparoni, “A imprensa negra em Moçambique:
a trajetória de ‘O Africano’ – 1908­‑1920”, África: Revista do Centro de Estudos Africanos.
USP, v. 11, n.º 1 (1988): 83.
74 Não apenas o cinema rapidamente ganhou projeção pela cidade. Como afirma Nuno
Domingos: “O desporto, e o cinema, foram usados enquanto instrumentos de congregação
e sociabilidade, de regulação de tempos livres e de transmissão de hábitos”. Domingos,
“Cultura popular urbana e configurações imperiais”, 403.

201
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

a grade de reprodução e produção. Mesmo aparecendo de forma


escassa ao longo dos jornais consultados, ficamos sabendo que, por
exemplo, “foram tiradas algumas fitas cinematográficas aos batuques
organizados pela Companhia” dos Carros Elétricos, quando da
visita do governador de Moçambique e de “outras entidades de L.
Marques”, em Marracuene.75
Não à toa os teatros passaram a congregar em suas grades de
espetáculos algumas apresentações de “película cinematográfica”,
como fez o teatro Varietá.76 Nesse, em setembro de 1914, foram
apresentadas as “primeiras fitas cinematográficas com os aconteci‑
mentos da guerra” que haviam começado na Europa.77 Também
foram exibidas a continuação das “proezas de bandido célebre” cha‑
mado “Zigomar”, cujas fitas já haviam levado ao “Varietá milhares
de pessoas”, com a promessa de novas aventuras a serem apresenta‑
das por preços módicos.78 O teatro Gil Vicente igualmente se ren‑
deu aos filmes.79 O que, invariavelmente, provocou comparações
sobre a qualidade das películas entre os locais e de suas instalações.
Em 1921, ambos faziam muito sucesso, porém o teatro Gil Vicente
exibia com maior frequência filmes portugueses e, apesar da quali‑
dade pior da tela, o teatro Varietá continuava com suas galerias
cheias.80
O conteúdo das exibições variou bastante ao longo dos anos.
Segundo Nuno Domingos, seria possível perceber a imposição de
uma “cultura popular internacional”, com o adentrar do século XX,
em Lourenço Marques, especialmente para o caso dos cinemas.81
Efetivamente, grandes artistas desse período podiam ser vistos nas
salas de espetáculos da cidade. O “incomparável cômico Charlie
Chaplin”, para o deleite local, teve algumas fitas apresentadas em
janeiro de 1917.82 No entanto, a produção desse conteúdo não era

75 O Africano, 7 de agosto de 1912. WNA.


76 O Africano, 24 de maio de 1913. WNA.
77 O Africano, 24 de setembro de 1914. WNA.
78 O Africano, 7 de março de 1914. WNA.
79 O Africano, 18 de março de 1914. WNA.
80 O Brado Africano, 25 de junho de 1921. WNA.
81 Domingos, “Cultura popular urbana e configurações imperiais”, 403.
82 O Africano, 10 de janeiro de 1917. WNA.

202
MATHEUS SERVA PEREIRA

verticalizada apenas entre o eixo Europa­‑Moçambique.83 Ainda


naquele ano de 1917, o teatro Varietá anunciou que, conjuntamente
a apresentação da gazeta “Mirror”, produzida na África do Sul e
“onde se mostram as cenas e os acontecimentos mais importantes
de cada semana”, adicionaria “vistas panorâmicas de vários pontos”
de Portugal, tendo uma parte dedicada especificamente “a Província
de Moçambique”.84 Além disso, apresentaria uma produção da
empresa sul­‑africana African Films Production, intitulada “Os pio‑
neiros da África do Sul”. No filme, contava­‑se a história dos “voor‑
trekkers” – pioneiros – e seu movimento migratório da Cidade do
Cabo para o interior do continente. O destaque especial foi dado a
encenação da “batalha de Blood River”, onde os colonizadores euro‑
peus massacraram os zulus. Anunciou­‑se que o público deveria
esperar nada mais do que “a história viva e exata da conquista da
África do Sul”.85
Condizente com o público que mais se buscou atrair para sua
sala, a encenação dos acontecimentos ocorridos na década de 1830
na África do Sul, do filme transmitido pelo Varietá, possuíam a
tendência de engrandecer a empreitada branca europeia sobre as
populações nativas africanas, especialmente ao dar ênfase aos suces‑
sos militares durante o embate armado. Segundo o jornal, durante
as filmagens da batalha de Blood River, “os indígenas excitados
pelos sucessivos ataques e pelos tiros chegaram a tomar a batalha
como coisa a ‘valer’, lutando com energia e causando muitos feri‑
mentos, sendo depois necessário empregar a força para os conter”.86
Mesmo podendo imaginar que esse tenha sido um recurso usado
para legitimar a qualidade da produção do filme e, assim, atrair o
público, não deixa de ser espirituoso a possibilidade de que, quase

83 Nuno Domingos aponta essa tendência ao analisar o futebol em Moçambique e a relação


íntima que ele estabeleceu com Portugal, mas, ao mesmo tempo, com a África do Sul. Ver:
Nuno Domingos, “Desporto moderno e situações coloniais: o caso do futebol em Lourenço
Marques”, in Mais do que Um Jogo: O Esporte e o Continente Africano, org. Vitor Andrade
de Melo, Marcelo Bittencourt e Augusto Nascimento (Rio de Janeiro: Apicuri, 2010),
211­‑242.
84 O Africano, 21 de julho de 1917. WNA.
85 O Africano, 16 de junho de 1917. WNA.
86 O Africano, 16 de junho de 1917. WNA.

203
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

cem anos depois, um filme que buscou exaltar a conquista europeia


sobre o continente africano tenha demonstrado o quanto esse con‑
trole constantemente exaltado poderia se encontrar em uma situação
porosa tão rapidamente.
A percepção a respeito da maneira como essas películas eram
recebidas pelo conjunto das populações africanas é uma questão de
difícil percepção nas fontes existentes, mas que merece escrutínio.
A obra literária de Henry Rider Haggard já era de longa data célebre
quando se dá a explosão do fenômeno dos cinematógrafos em Lou‑
renço Marques.87 Aproveitando do seu sucesso, a African Film
Production investiu na elaboração de películas baseadas nos textos
do famoso romancista.88 Em novembro de 1919, O Africano, nessa
época não mais sob o comando dos irmãos Albasini, convidou o
público para assistir à apresentação, no teatro Varietá, da “sensacio‑
nal fita intitulada Allan Quartermain”. Tendo como personagem
central o herói de As minas do rei Salomão, o filme descreveria “as
aventuras de três arrojados exploradores que se atreveram a uma
jornada longa e perigosa para o interior d’África por regiões ainda
inexploradas”. O objetivo final desses era o de “descobrir uma raça
branca que lendas diziam existir no mais remoto ponto da África
Central”. Existem aqui diferentes elementos do discurso colonial
europeu, como o avanço exploratório, aventureiro e arriscado do
homem branco ao interior do continente africano, o que justificava
uma incisiva atuação de ocupação desses territórios pelas metrópoles
europeias. Havia ainda a ideia de regiões remotas não ocupadas pela
presença humana e/ou esquecidas no tempo, entendidas como uma
possibilidade de se retornar aos passados mais remotos da espécie
humana e estuda­‑las in loco. Muito por esperar espectadores adep‑
tos desse discurso, imaginava­‑se que os episódios narrados trariam
“interesse e entusiasmo do público”.89

87 Para uma análise da obra de Henry Rider Haggard, sua relação com o império britânico e
a cultura vitoriana do século XIX, ver: Anne Mcclintock, “A família branca do homem.
O discurso colonial e a reinvenção do patriarcado”, in Couro Imperial.
88 Para uma análise, mesmo que breve, das versões cinematográficas das obras do autor, ver:
Ella Shohat, “Gender and the Culture of Empire: Toward a Feminist Ethnography of the
Cinema”, Quartely Review of Film and Video, v. 13, n.º 1­‑3 (1991): 45­‑84.
89 O Africano, 26 de novembro de 1919. WNA.

204
MATHEUS SERVA PEREIRA

No ano seguinte, novamente foram anunciadas exibições no


teatro Varietá de “uma fita extraordinária” inspirada em As minas do
rei Salomão. Dessa vez era O Brado Africano que se mostrava ani‑
mado com o filme, esperando o teatro ter “uma casa cheia, pois
[haveria] ali muito que ver e admirar”.90 Porém, as expectativas de
se encontrar uma boa representação do romance não foram concre‑
tizadas. Um “horror tudo aquilo” foram as palavras usadas pelo jor‑
nal para classificar o que viu. O primeiro contratempo, causador de
“dolorosa impressão”, foi o fato de que, para aqueles que haviam
lido o livro, nada do que havia sido visto estava no romance. As
atuações dos atores masculinos também seriam sofríveis. E, por
último, irritaram­‑se profundamente com o fato das duas persona‑
gens femininas africanas retratadas no filme serem “uma branca
pintada” e “outra branca”.91 A ausência de representação de popu‑
lações originariamente negras na película, além de ser ressaltada
pelos produtores do jornal, representantes de um grupo letrado de
origem africana, como uma imprecisão racial, também revelam um
incomodo por parte dessa camada populacional, que insistiu em
participar da “conversa burguesa”, dentro de um cenário de perda
paulatina do seu espaço nesse mercado cultural predominantemente
urbano.
A imprecisão racial na escalação das atrizes, que tanto afligiu
O Brado Africano, não foi a única preocupação a respeito do con‑
teúdo transmitido nos cinematógrafos. Conjuntamente a essa recla‑
mação, encontramos outra relacionada com a influência que as
desventuras e peripécias do célebre bandido “Zigomar” poderiam
estar causando nos indígenas. Por um lado, com relação as adapta‑
ções cinematográficas das obras de Henry Rider Haggard, O Afri‑
cano e O Brado Africano não parecem compartilhar da mesma
opinião. Por outro lado, ambos defendiam uma atenção especial ao
“clamor público contra a péssima escola que constituem as ‘fitas’
cinematográficas”.92 Essa campanha teve, como primeira resposta,

90 O Brado Africano, 29 de maio de 1920. WNA.


91 O Brado Africano, 12 de junho de 1920. WNA.
92 O Africano, 6 de agosto de 1918. WNA.

205
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

a ação da Companhia de Moçambique dentro do território que a


mesma controlava.93 O Africano louvou a medida adotada em maio
de 1919, que proibiu aos indígenas, dentro da jurisdição da empresa,
de “assistir a espetáculos cinematográficos onde se exibam fitas de
crimes, roubos, homicídios, fogo posto”. Por último, criticou, de
maneira jocosa, as autoridades de Lourenço Marques que, mesmo
sendo “a cabeça (sem miolos) da Província”, permitiam que aquele
espaço de sociabilidade do tempo livre e de transmissão de hábitos,
supostamente transformassem os “pretos, pela frequência dos cine‑
matógrafos, uns criminosos, uns ladrões, uns viciosos”.94 A campa‑
nha tardou cerca de um ano para encontrar reverberação oficial. Em
junho de 1920, o Conselho do Governo aprovou um projeto “proi‑
bindo a entrada aos indígenas, quando nos cinematógrafos, se exi‑
bam fitas que metam roubos, assassinatos”. O Brado Africano
defendeu a extensão dessa ideia para as “crianças de todas as cores
cuja mentalidade está também na fase de insipiência e de
sujestionabilidade”.95
Empreendimentos comerciais, como o do Cinema Popular,
acabaram por sofrer financeiramente com intervenções coloniais.
Em 1921, reaberto após alguns meses fechado e sob a vigência da
legislação que restringia os filmes que eram considerados má
influência para os indígenas, o proprietário acabou por ser obrigado
a insistir na exibição de “fitas de lição moral, cômicas, históricos,
panorâmicas, onde poderão entrar todas as noites as crianças e os
indígenas”.96 O Brado Africano fez coro favorável à apresentação
desse tipo de fitas, que, segundo o jornal, seriam mais propícias
“para ser vistas por indígenas e crianças sem prejuízo”.97 Porém, em
menos de um mês após a reinauguração, o cinema enfrentava pro‑

93 A companhia de Moçambique, na época, controlava as regiões que hoje correspondem as


províncias de Manica e Sofala. Sobre as companhias majestáticas que controlaram parte
significativa do atual território moçambicano durante os anos finais do século XIX e as três
primeiras décadas do século XX, ver: Zamparoni, “Entre ‘Narros’ e ‘Mulungos’”, 25­‑26. Ou
Maria Inês Nogueira da Costa, “No centenário da Companhia de Moçambique, 1888­
‑1988”, Arquivo, Maputo, n.o 6 (Outubro de 1989): 65­‑76.
94 O Africano, 17 de maio de 1919. WNA.
95 O Brado Africano, 12 de junho de 1920. WNA.
96 O Brado Africano, 23 de abril de 1921. WNA.
97 O Brado Africano, 30 de abril de 1921. WNA.

206
MATHEUS SERVA PEREIRA

blemas financeiros que pareciam estar relacionados com os temas


preponderantes dos filmes.98
Apesar de adotarem um posicionamento em defesa da popula‑
ção classificada como indígena, o distanciamento identitário entre
os responsáveis pelo jornal e os indivíduos classificados como tais,
assim como o seu posicionamento enquanto guias tutelares das
populações africanas para a civilização, levou figuras como as dos
irmãos Albasini para a adoção de discursos propalados pelo colo‑
nialismo que detratavam as populações negras africanas, sem realizar
distinções, como o ideário que as associava a um estágio ainda infan‑
til da evolução humana. Oliveira Martins, um importante teórico
da ação colonial portuguesa na África e construtor de um arcabouço
imaginário racista sobre as populações africanas, afirmou que sem‑
pre “o preto produziu em todos esta impressão: é uma criança adulta.
A precocidade, a mobilidade, a agudeza própria das crianças não lhe
faltam; mas essas qualidades infantis não se transformam em facul‑
dades intelectuais superiores”.99
Ainda em junho de 1920, O Brado Africano reclamou a respeito
da ausência de uma resolução a respeito da aplicabilidade da portaria
que proibia “a entrada aos indígenas nos cinematógrafos, quando
sejam exibidas fitas com assassinatos, roubos, incêndios”. O jornal
defendia a necessidade da existência de um censor que visse ante‑
riormente os filmes e os classificasse como impróprios, ou não, para
essa camada populacional. A postura era defendida em oposição ao
que vinha acontecendo. Classificando como a “tolice que ela dá
lugar”, continuavam a ser vendidas “entradas a toda gente, pretos,
brancos, amarelos e pardos”, ficando um “agente da autoridade”
dentro da sala de espetáculo. Quando a fita começava e, após alguns
instantes, percebendo­‑se que a sessão seria imprópria aos indígenas,
o agente começava a agir, causando tumultos na sua tentativa de
expulsar os respectivos indígenas que se encontrassem na sala de

98 O Brado Africano, 7 de maio de 1921 e 14 de maio de 1921. WNA.


99 J. P. de Martins Oliveira, O Brasil e as Colónias Portuguesas (Lisboa: Guimarães, 1978), 262.
Para uma visão ampla sobre as representações fabricadas a respeito dos africanos no ima‑
ginário português, ver: Anderson Ribeiro Oliva, “De Indígena a Imigrante: O Lugar da
África e dos Africanos no Universo Imaginário Português dos Séculos XIX ao XXI”.

207
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

projeção. Para além da confusão que aquilo tudo causava ao anda‑


mento do filme, o jornal reclamou sobre uma suposta imprecisão do
agente repressor colonial na decisão de quem se encaixaria na clas‑
sificação de indígena. A imprecisão na decisão dos indivíduos que
verdadeiramente sofreriam as consequências de uma má influência
do cinema e, portanto, poderia ser classificado enquanto seres infe‑
riores, foi visto como um ultraje pelo jornal. Afinal, se pretendia
aplicar uma homogeneização dos diferentes grupos africanos sub‑
metidos ao regime colonial português, não reconhecendo distinções
que O Brado Africano insistia em afirmar a existência. Nesse sentido,
protestaram veementemente contra deixar nas mãos de agentes não
treinados o ato de separar dentro dos chamados indígenas aqueles
com “cérebros cultos e equilibrados que se não deixam arrastar por
uma exibição animatográfica de qualquer crime”.100
Valdemir Zamparoni, ao analisar o processo de construção
das estruturas excludentes do espaço urbano laurentino nos lugares
de lazer, enfatiza como as restrições da presença indígena nos
cinemas estava diretamente vinculada ao receio do “poder sedutor
das imagens cinematográficas” para influenciar os “colonizados
que [...] os brancos não eram invencíveis”.101 Efetivamente, a preo‑
cupação com relação a influência cinematográfica sobre o com‑
portamento dos indígenas dentro da cidade perdurou ao longo de,
praticamente, todo o período colonial. Ao tentar explicar a delin‑
quência juvenil nos subúrbios de Lourenço Marques, António
Rita­‑Ferreira, por exemplo, colocou a pobreza que assolava aque‑
les bairros como atributo secundário para esse fenômeno. Segundo
o antropólogo e administrador colonial português, a chave para
solucionar essa inquietação estaria na percepção de que existiria
uma autêntica vida social indígena, no qual a presença cada vez
maior desses indivíduos no meio urbano, sobretudo a partir dos
anos 1950, teria provocado o fenômeno da destribalização. Por
sua vez, esse fenômeno seria consequência de uma instabilidade
inseparável aos indígenas dentro das cidades no que diz respeito

100 O Brado Africano, 26 de junho de 1920. WNA.


101 Zamparoni, “Entre ‘Narros’ e ‘Mulungos’”, 260.

208
MATHEUS SERVA PEREIRA

ao que era entendido como “família tradicional indígena” e a má


influência dos “filmes policiais, de espionagem, de ‘cowboys’ e
outros versando temas de violência”.102
O que nos importa ater nesse momento é o fato de que, tendo
desenvolvido sua pesquisa no início dos anos 1960, Rita­‑Ferreira
encontrou nos subúrbios de Lourenço Marques uma presença mar‑
cante do cinema na vida dos habitantes dessa região da cidade.
Independente de assistirem a esses filmes considerados desvirtuan‑
tes, provavelmente apenas nos estabelecimentos voltados exclusiva‑
mente para atenderem a esse público, fica evidente que a proibição
imposta pelo Conselho do Governo, nos anos 1920, não foi de todo
eficiente. O intervalo temporal de quarenta anos pode ser um expli‑
cativo para o afrouxamento das políticas repressivas impostas ainda
no contexto de consolidação das formas de dominação portuguesa
na região do início do século XX. Porém, dentro do cenário de alter‑
cação ao colonialismo português e a tomada de uma série de políti‑
cas restritivas de cunho cultural, que buscavam minar o cenário
contestatório dos anos 1960, é de se imaginar que não se fizessem
concessões a capacidade comunicativa dos filmes junto as camadas
indígenas urbanas de Lourenço Marques.103
Não precisamos ir tão longe no tempo para perceber a insistên‑
cia em burlar (mesmo correndo o risco de sofrer na pele as conse‑
quências dessa obstinação) as políticas que tentavam impor restrições
de acesso as novas formas de lazer que surgiam na cidade. Por um
lado, ao enfocar na ação direta contra os indígenas que insistiam em
assistir filmes com cenas que lhes eram proibidas, Zamparoni abor‑
dou com eficácia a brutalidade dos agentes e a construção das inter‑
dições das liberdades criadas pelo colonialismo. Por outro lado, ao

102 Rita­‑Ferreira, “Os Africanos de Lourenço Marques”, 259­‑260. Conjuntamente ao cinema,


as cantinas eram apontadas pelo autor como o segundo local que mais desviavam os ado‑
lescentes, homens e mulheres, para o caminho da delinquência.
103 Sobre o contexto dos anos 1960 e a adoção de políticas de repressão voltadas para a área
cultural dentro do colonialismo português na África, ver, como exemplo de análise possível,
o artigo de Marcelo Bittencourt, “Moral e política: a vigilância colonial sobre o esporte
angolano”, in Esporte e lazer na África: novos olhares, org. Augusto Nascimento, Marcelo
Bittencourt, Nuno Domingos, Victor Andrade de Melo, 155­‑178 (Rio de Janeiro: 7Letras,
2013).

209
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

relatar um caso ocorrido em abril de 1927, onde um indígena é


expulso a base da pancada de uma sala de projeção, percebe­‑se o
quanto o cotidiano da aplicação de políticas restritivas ao acesso dos
chamados indígenas aos espaços de lazer provocou tensões que
demonstram inúmeros percalços diretamente relacionados a obsti‑
nação dessas pessoas em assistir os filmes que mais lhes agradavam,
independente das restrições impostas.104
As tensões relacionadas ao desfrute do tempo livre, especial‑
mente dentro de um espaço marcadamente urbano, acarretaram
conflitos que fugiram aos preceitos iniciais da separação fixa e racia‑
lizante dos lugares urbanos destinados intencionalmente para cada
segmento sociorracial do mundo colonial de Lourenço Marques.
No entanto, na medida em que a vadiagem significava o não­
‑trabalho, a repressão que insidia sobre o tempo do não­‑trabalho
dos indígenas – ou seja, durante seus poucos momentos de lazer –
classificando aquela segundo um código que os penalizava com a
privação da liberdade ou com barreiras que dificultavam sobrema‑
neira o aproveitamento desse tempo, as ações repressoras e/ou regu‑
lamentadoras sobre essas populações interferiram diretamente nas
maneiras como puderam usufruir do seu tempo de acordo com seus
próprios desejos.
Como apontado nos capítulos anteriores, existiu um enquadra‑
mento da população classificada como indígena como incivilizável
por meio de sua caracterização constante como composta por vadios,
bêbados, prostitutas ou simples bandidos. Por vezes, eram publica‑
das nos periódicos listagens extensas, sem grande alarde, quase que
para completar um possível buraco entre as colunas que traziam as
demais notícias, com nomes de pessoas e o porquê de elas terem
sido presas. O título dessas seções variou de jornal para jornal, não
foram publicadas com periodicidade definida e nem sempre traziam
junto ao nome alguma pista que indicasse uma filiação da naciona‑
lidade ou da identidade do indivíduo preso. O Distrito, por exemplo,
publicava a coluna “Ocorrências policiais”, que, em setembro de
1904, trazia as seguintes informações:

104 O Brado Africano, 9 de abril de 1927. Apud Zamparoni, “Entre ‘Narros’ e ‘Mulungos’”, 260.

210
MATHEUS SERVA PEREIRA

Foram presos: Os guardas da noite da estância de madeiras da


casa De Waal, Digue, Bancome e Gimo, por suspeita de terem
roubado 3 atados de zinco. O indígena Gallo, por agredir um
outro indígena, que se achava prostrado por embriagues numa
das ruas da cidade. O indígena Jeque por andar fazendo venda,
na Malanga, dum caixote com livros, que lhe foi apreendido,
declarando que o havia roubado de bordo do vapor Portugal,
averiguando­‑se pertencer a Prudêncio Marques a quem foi entre‑
gue. Na rua D. Luiz os súditos ingleses Sozente e Anderson, por
estarem embriagados e se envolverem em desordem. Os indíge‑
nas Manoel, Luiz e Antônio, por embriagues. O súdito ameri‑
cano Scott, pelo mesmo motivo. O indígena Abacar, acusado de
furtar umas galinhas e coelhos a Militante Jorge. O indígena
Guinhamane, por tentar roubar a gaveta de uma cantina na
Malanga, pertencente a Arthur Ferreira de Mattos.105

Era grande a diversidade de pessoas presas que se encontravam


nas ruas de Lourenço Marques e a imprensa não dava total exclu‑
sividade nessas notas à detenção de um determinado grupo popu‑
lacional. Em alguns casos apenas aparece o nome da pessoa e porque
ela foi presa. Noutros, somos informados somente do primeiro
nome do indivíduo, o que sugere tratar­‑se de um indígena, que
podia realmente não possuir um sobrenome ou nome de família, ou
indicar uma postura dos jornais que não entendiam como sendo
importante especificar a identidade de alguns sujeitos. Podiam tam‑
bém ser estrangeiros, como os “súditos ingleses” ou o “súdito ame‑
ricano”, que haviam se envolvido em bebedeiras e desordens. Sendo
assim, é interessante perceber como, independente do fato de
encontramos notícias constantes sobre a prisão de europeus bêbados
pelas ruas de Lourenço Marques, o pensamento científico da época
produziu uma leitura da inferioridade racial negra, vinculando­‑a a
uma interpretação da representação dos ditos indígenas enquanto
os verdadeiros indivíduos propícios para o vício da beberagem e,
consequentemente, da vadiagem, acabando por serem considerados

105 O Distrito, 5 de setembro de 1904. BNP.

211
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

mais facilmente influenciáveis pelos males da civilização. Ou seja,


fato e representação não necessariamente andaram juntos no que
diz respeito à maneira como aqueles classificados como indígenas
eram vistos pelos periódicos e, num sentido mais amplo, pelo pen‑
samento colonial português.106
Os espaços citadinos onde esses indivíduos podiam desfrutar
do tempo livre que encontravam em suas vidas e reforçar laços de
sociabilidade através de práticas cotidianas de lazer foram entendi‑
dos como locais necessários de vigilância e, por vezes, locais a serem
combatidos. Defendeu­‑se que seriam neles onde os indígenas
desenvolveriam – ou responderiam a algo natural de sua “raça” – os
vícios que os levariam para uma vida longe da civilização propalada
pelo colonialismo. Ao mesmo tempo, por conta da leitura que os
inferiorizava como indivíduos localizados num momento temporal
primitivo da evolução humana, entendeu­‑se que os mesmos eram
incapazes de possuírem um filtro para distinguir o que era benéfico
da civilização, do que não era. Nesse sentido, a defesa por um con‑
trole e por um ordenamento desses espaços, com o objetivo de pro‑
duzir uma tutela que os guiasse para um caminho entendido como
correto, sobretudo através da repressão policial, foi constante, tendo
todos os órgãos de imprensa existentes em Lourenço Marques nesse
período exercido um papel fundamental na vigilância cotidiana das
ações coloniais em prol desse objetivo.
Normalmente, quando os periódicos escreveram sobre a pre‑
sença dos indígenas dentro do espaço urbano nos seus momentos
de lazer, incidiram suas abordagens no sentido de pressionarem o
Estado colonial na direção de uma repressão aos efusivos diverti‑
mentos daquelas populações. Por vezes, as pressões dos órgãos de
imprensa para que a repressão policial atuasse sobre essa população
obteve respostas. As notícias sobre a ocorrência de rusgas policiais

106 Noutro momento realizei uma abordagem da relação entre representação, repressão e lazer
encontrado na imprensa laurentina do início do século XX. Ver: Matheus Serva Pereira.
“‘Beiços a mais, miolos a menos...’: representação, repressão e lazer dos grupos africanos
subalternos nas páginas da imprensa de Lourenço Marques (1890­‑1910)”, in Esporte e lazer
na África: novos olhares, org., Augusto Nascimento, Marcelo Bittencourt, Nuno Domingos,
Victor Andrade de Melo, 37­‑61 (Rio de Janeiro: 7Letras, 2013).

212
MATHEUS SERVA PEREIRA

pela cidade revelam uma atuação dessa repressão direcionada para


determinados espaços, especialmente aqueles marcados por uma
sociabilidade entre diferentes pessoas, mas, sobretudo, aqueles uti‑
lizados nos seus tempos livres.
Na noite de 22 de novembro de 1907, por exemplo, foi “feita
uma rusga, tendo sido presos grande número de indígenas que se
entregavam a vadiagem”.107 Uma outra rusga ocorrida em janeiro de
1905, em represália à agressão sofrida por um policial “por cerca de
15 pretos”, foi noticiada com entusiasmo pelo O Distrito. Dando
coro positivo a ação da polícia, o periódico defendeu a continuação
das rusgas “de forma a acabar de vez com essa sucia de vadios que
de noite não fazem outra coisa senão roubar, para de dia se embe‑
bedarem e dormirem”. No entanto, nem todos passavam o dia
inteiro na esbórnia, tal como o jornal insistiu em reforçar como
natural. Afinal, alguns dos presos na abordagem policial possuíam
“ocupações honestas”, ou seja, trabalhavam em diferentes locais da
cidade e não poderiam ser acusados de vadios. Estando no local da
rusga muito provavelmente com o intuito de gastar o seu tempo
livre, terminaram por serem colocados em liberdade. O resultado
final teria sido a prisão de indivíduos classificados enquanto possui‑
dores de uma diversidade de identidades sociais muito mais plural
do que aquela apresentada pelo cosmopolitismo enevoado apresen‑
tado no início do capítulo. Foram para cadeia, ao todo, “81 Zanzi‑
baristas, macuas e alguns mouros cantineiros que tentaram dar fuga
aos pretos que a polícia pretendia prender”. Além disso, “25 pretos
que jogavam as cartas” e que o “fazem continuamente desde pela
manhã até a noite” foram levados para a prisão. Conjuntamente a
apreensão dessas pessoas, teriam sido “encontrados vários objetos
de vestimenta de senhoras, facas, gazuas e muitos outros instrumen‑
tos a que se tornaram suspeitos”.108
A menção a presença de roupas encontradas entre os pertences
dos presos é relevante. Apresentei anteriormente, através dos clas‑
sificados, como a valorização de produtos (por exemplo, as vesti‑

107 A Tribuna, 23 de novembro de 1907. BNP.


108 O Distrito, 12 de janeiro de 1905. BNP.

213
COSMOPOLITISMO ENEVOADO E A CRIAÇÃO DE UMA CIVILIZAÇÃO

mentas) estava relacionada com a construção da cidade de Lourenço


Marques como um local exemplarmente civilizado e, por isso
mesmo, um “canto da Europa na África”. Os eventos de gatunagem
noticiados pelos jornais com frequência acusavam os indígenas de
serem os responsáveis por tais façanhas. Existiu, nas descrições dos
produtos surrupiados, uma atenção especial às diversas roupas que
eram levadas de seus donos. Em junho de 1902, por exemplo, “uns
gatunos” invadiram a casa de um membro da redação d’O Progresso
e roubaram “várias peças de roupa e calçado”.109 A atração exercida
pelos cinematógrafos, pelas roupas e calçados podia fascinar aqueles
que presenciavam as novidades que eram expostas e encontradas nos
anúncios dos jornais ou nas vitrines das lojas. No entanto, foram
apropriadas e resignificadas na medida em que as bricolagens coti‑
dianas ocorriam com o desenrolar da incapacidade colonial de ditar
na totalidade os ritmos das transformações, ainda que muitas vezes
impostas pelas demandas e atuações repressivas daqueles que insis‑
tiram em reforçar o cosmopolitismo enevoado de Lourenço
Marques.

109 O Progresso, 2 de junho de 1902. BNP.

214
CAPÍTULO 4

Forçando as frestas do poder colonial

ENTRE A “ESCOLA DE VÍCIO” E O “MUNDO


TEMPERADO DE RITMO E POESIA”

As possibilidades de Lourenço Marques e, principalmente, de seus


subúrbios, tidos como espaços de emergência de novos parâmetros
culturais e reivindicação de direitos, ampliaram os atrativos da cidade
para uma camada populacional que não necessariamente era bem
quista de existir no mundo urbano que estava sendo instaurado pelo
poder colonial. As dificuldades de se proceder com “a identificação dos
indígenas em Lourenço Marques” era uma preocupação do Adminis‑
trador da Circunscrição do Maputo, uma das cinco circunscrições do
distrito de Lourenço Marques. Em novembro de 1913, o Intendente
dos Negócios Indígenas, funcionário da Direção dos Serviços e Negó‑
cios Indígenas, órgão administrativo colonial responsável pelo trato
das questões envolvendo os chamados indígenas, informou que a
ausência de “passes ou documentos das autoridades donde os indígenas
são naturais” possibilitava que os mesmos dessem “nomes trocados”
quando interpelados pelas autoridades. Essa estratégia de escapar do
controle colonial sobre suas liberdades de ir e vir possibilitava­‑os
“evadirem­‑se ao cumprimento das suas obrigações”. Por fim, concluiu
que era melhor mudar esse estado de coisas, pois “como escola de vício,
Lourenço Marques não é inferior a Roma Antiga”.1

1 AHM, DSNI, Caixa 225, Carta do Administrador da Circunscrição do Maputo para o


Senhor Intendente dos Negócios Indígenas e Emigração, em 14 de novembro de 1913.

215
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

Décadas depois, José Craveirinha, considerado um dos mais


importantes escritores moçambicanos, viveu ativamente as transfor‑
mações pelas quais Moçambique passou ao longo do século XX. Nas‑
cido em Lourenço Marques, em maio de 1922, criado entre dois
mundos, o português de seu pai e o ronga de sua mãe, desde cedo
experimentou contatos entre universos que se olhavam com descon‑
fiança, mas que no espaço urbano inevitavelmente se tocavam.2 Foi
criado nos bairros fronteiriços entre esses dois mundos, muito prova‑
velmente próximo dos locais onde a “maior parte da população preta”
vivia e aprendia os supostos “vícios” que amedrontavam os adminis‑
tradores coloniais portugueses. Numa época onde rebuliços pelos sons
de tambores ocorriam nos subúrbios laurentinos, trazendo algum con‑
forto para uma vida sofrida por conta da exploração colonial, o poeta
percebeu que ali existia um “mundo temperado de ritmo e poesia”.3
Desde a ascensão de Lourenço Marques como centro do poder
colonial português em suas possessões na costa da África oriental,
no final do século XIX, existiu um embate entre a imagem que se
construía sobre a cidade e a efetivação daquele espaço como ambiente
vivido, especialmente quando direcionamos o olhar para o mundo
daqueles que ocupavam a maioria dos postos de trabalho. Por um
lado, independente das interpretações múltiplas sobre a ação colo‑
nizadora portuguesa em Moçambique, diferentes agentes sociais
agiram em prol da edificação de uma “cidade de África que procura
não sentir a África”.4 Nesse sentido, como demonstrei anterior‑
mente, existiu um esforço para silenciar aquilo que era considerado
como representativamente africano existente dentro do perímetro
urbano. Por outro lado, as entrelinhas da documentação colonial
revelam cenas de um processo não linear. As insistentes burlas coti‑
dianas das populações classificadas pelo linguajar colonial português
como indígenas interferiram diretamente no esforço de tornar Lou‑

2 Entrevista de José Craveirinha publicada em: Patrick Chabal, Vozes moçambicanas: literatura
e nacionalidade. (Lisboa: Editora Vega, 1994), 85­‑103.
3 José Craveirinha, O folclore moçambicano e as suas tendências (Maputo: Alcance Editores,
2009), 15.
4 José dos Santos Rufino, ed., Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique.
Volume III (Lourenço Marques: J. S. Rufino, 1929), III.

216
MATHEUS SERVA PEREIRA

renço Marques um centro propagador e exemplar do projeto civili‑


zatório. Ao longo desse capítulo, analisarei os fragmentos das
histórias de homens e mulheres “indígenas” que buscaram, sobre‑
tudo por meio da venda de sua força de trabalho ou na ocupação de
postos de serviços nas ruas e cantinas de Lourenço Marques nas
primeiras décadas do século XX, viver suas vidas compartilhando
experiências que mostram novas e singulares recriações/ressignifi‑
cações elaboradas na medida em que se viram forçados a interagir
com os variados modelos de dominação e, ao mesmo tempo, com
as recém­‑criadas instituições coloniais reguladoras da vida social.
Ao resistirem, não necessariamente ao colonialismo, mas como for‑
mas cotidianas de lidar com as transformações engendradas pelo
colonialismo, que afetavam suas formas de vida anteriormente exis‑
tentes, as experiências “indígenas” no mundo urbano foram cons‑
truídas na medida em que tentaram recriar seus batuques num
ambiente que insistentemente esforçou em segregá­‑los.
A expansão da presença branca/europeia na cidade, ocupando
cargos no crescente posto burocrático do Estado colonial, relacionado
à crescente demanda por mão de obra necessária para atender os
anseios desse corpo burocrático, conjuntamente com a construção de
uma infraestrutura capaz de responder as demandas existentes pela
expansão da cidade e, por fim, das pressões exercidas pelos desmandos
de agentes coloniais e particulares presentes nas zonas rurais, trans‑
formou o cenário populacional de Lourenço Marques.5 Nesse con‑
texto de ampliação das instituições coloniais, por um lado, a cidade
tornou­‑se um local atrativo para conseguir distanciar­‑se dos riscos de
ser recrutado como trabalhador forçado e/ou atender interesses pró‑
prios de obtenção de uma nova forma de vida afastada das restritas
possibilidades existentes no mundo rural. Por outro lado, juntamente
com essa ocupação da cidade pela população de origem africana de
caráter permanente, o elevado número de trabalhadores homens
migrantes rumo a regiões mineradoras da África do Sul proporcionou

5 Como afirma Valdemir Zamparoni, “a população branca [de Lourenço Marques, em 1912]
tinha crescido, desde 1894, nove vezes e meia e a população total cerca de vinte e cinco
vezes; o mercado de trabalho urbano também se ampliara e diversificara”. Zamparoni, De
Escravo a Cozinheiro, 231.

217
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

um grande transito num movimento marcado por vindas, idas e retor‑


nos, entre Johanesburgo, Lourenço Marques e zonas rurais, promo‑
vendo, igualmente, um transito de bens, ideias e formas de agir que
imprimiram características específicas nas formas de ocupação da
cidade direcionadas para e construídas por essa população.6
Majoritariamente mal controlada devido a ineficácia do poder
colonial português, pela necessidade da manutenção de uma reserva
de mão de obra africana aglomerada nos subúrbios e pelo meneio
daqueles que ocupavam esses espaços de maneira diferente daquela
propagada enquanto apropriada, a expansão da vida urbana em
Lourenço Marques promoveu alternativas para a inversão de papéis
nos quais o regime colonial desejava enquadrar as pessoas.7 Como
aponta Omar Ribeiro Thomaz, “se o colonizador pretendeu disci‑
plinar, hierarquizar, classificar e dominar os povos que se encontra‑
vam no interior das fronteiras [...] em fóruns e peritagens europeias,
estes mesmos povos interpretaram e reagiram de formas distintas
às propostas e ações dos colonizadores”.8 A tendência em negli‑
genciar qualquer possibilidade aos africanos de encontrarem­‑se em
trânsitos interacionais constantes e não num mundo estanque onde

6 Ver: Jeanne Marie Penvenne, “‘Here everyone walked with fear’: the Mozambique labor
system and the workers of Lourenço Marques, 1945­‑1962”, in Struggle for the city: migrant
labor, capital, and the state in urban Africa, org. Frederick Cooper, 131­‑166 (Berkeley: Sage,
1983); Jeanne Marie Penvenne, African workers and colonial racism. Mozambican strategies and
struggles in Lourenço Marques, 1877­‑1962 (Portsmouth: Heinemann, 1995); Patrick Harries,
Work, Culture, and Identity: Migrant Laborers in Mozambique and South Africa, c. 1860­‑1910
( Jonesburgo: Witwatersrand University Press, 1994); Luís António Covane, O trabalho mi‑
gratório e a agricultura no sul de Moçambique (1920­‑1992) (Maputo: Promédia, 2001). Como
demonstra o estudo realizado pelo Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo
Mondlane, desde o início do século XX foi consolidado um sistema migratório e de forneci‑
mento de trabalhadores moçambicanos para as minas sul­‑africanas. Em 1904, por exemplo,
os mineiros de origem moçambicana correspondiam a 60,2% da mão de obra das minas e,
em 1906, 65,4%. Centro de Estudos Africanos, Universidade Eduardo Mondlane. O mineiro
moçambicano: um estudo sobre a exportação de mão de obra em Inhambane (Maputo: Centro de
Estudos Africanos, Universidade Eduardo Mondlane, 1998 [1.ª ed. 1977]), 35.
7 Nuno Domingos, “Cultura popular urbana e configurações imperiais”, in O Império Colonial
em Questão (sécs. XIX­‑XX): Poderes, Saberes e Instituições, org. Miguel Bandeira Jerónimo,
389­‑422 (Lisboa: Edições 70, 2012); Jeanne Marie Penvenne, “Labor struggles at the port
of Lourenço Marques, 1900­‑1933”, Review (Fernand Braudel Center), v. 8, n.º 2 (Outono,
1984): 249­‑285.
8 Omar Ribeiro Thomaz, Ecos do Atlântico Sul: representações sobre o terceiro império português
(Rio de Janeiro: Editora UFRJ/FAPESP, 2002), 19.

218
MATHEUS SERVA PEREIRA

cada indivíduo ou grupo deveria comportar­‑se de acordo com as


categorias pelas quais as formas do pensar científico vigente deter‑
minava existir, promoveu um engessamento das interpretações sobre
as experiências de encontros e desencontros, ainda que de maneira
desigual em suas relações de poder, que vinham ocorrendo.
Como explica Frederick Cooper, a “justaposição de uma pre‑
sença colonizadora destruidora e concentrada e de um amplo e irre‑
gular controle ‘velado’, teve consequências paradoxais”. Dentre
muitas consequências,

expandiu uma economia urbana mal controlada que oferecia


oportunidade para trabalhadores informais, vendedores de rua
itinerantes, empresários criminosos e prestadores de serviços aos
migrantes, representando amplamente a classe trabalhadora afri‑
cana de maioria masculina e, dessa maneira, criando alternativas
(para homens e mulheres) para os papéis nos quais os regimes
coloniais desejavam enquadrar as pessoas.9

Os anseios coloniais e de grupos sociais que defendiam os modos


de vida insistentemente propalados pelo colonialismo de controle
tutelar das outras formas de estar no mundo existentes nas realidades
africanas estiveram sempre em conflito com outros anseios, como o
dos usos distintos que os indígenas deram ao espaço urbano. Como
expus no segundo capítulo, existiram esforços na construção de
características específicas de ser e agir daqueles indivíduos que se
encontravam sob o domínio colonial português em Moçambique.
Apresentando­‑os como um grupo composto por muitos outros, mas
que se unificava em algumas características, essa construção imagi‑
nada da figura do indígena insistiu em afastá­‑lo do espaço urbano.
Colocando­‑o como habitando naturalmente áreas rurais ou, simples‑
mente, o “mato”, o aparelhamento das instituições coloniais regula‑
doras da vida social tendeu a silenciar a presença desses indivíduos
em Lourenço Marques. Porém, o processo de expansão da malha
urbana da cidade, e o consequente crescimento da população de

9 Frederick Cooper, “Conflito e Conexão: Repensando a História Colonial da África,” Anos


90, v. 15, n.º 27 (2008): 37­‑38.

219
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

origem africana proveniente de áreas rurais, independente dos dese‑


jos reguladores de cunho segregacionista, trouxeram consigo uma
série de questões relacionadas às práticas socioculturais dessas popu‑
lações migrantes num novo espaço ocupado por uma multiplicidade
de indivíduos de diferentes origens. Por conseguinte, a idealização
da cidade como ferramenta de mudança de costumes considerados
atrasados, assim como a atribuição da missão de propagadora da
civilização, encontrou barreiras na vivência cotidiana de seus habi‑
tantes.10 Quando expectativas não se concretizavam e momentos de
tensão afloraram, perceptíveis na insistência em se usar capulanas,
panos, ou qualquer outro tipo de vestimenta, de burlar as rusgas
policiais ou a fiscalização do trabalho, as instituições de matrimônio
e de relacionamentos conjugais, ou da própria presença feminina
indígena no mundo urbano, é possível perceber os ritmos, as tensões
e as negociações que ocorriam a partir das experiências daqueles
excluídos socialmente e racialmente enquanto detentores de algum
poder nas sociedades coloniais ou africanas existentes até então.
Homens e mulheres negro­‑africanos classificados como indí‑
genas, com variadas origens, deslocaram­‑se para Lourenço Marques
no início do século XX, anos fundamentais de implementação do
colonialismo português na região. Encontrando­‑se num novo
mundo que se desenhava na medida em que os movimentos de
dominação colonial eram consolidados, as permutas de experiências,
facilitadas pelos contatos múltiplos que a urbanidade proporcionava,
permitiu a ascensão de reformulações, baseadas muitas vezes na
ressignificação e reapropriação de mecanismos de controle. Identi‑
ficados despoticamente como indígenas, aventuraram­‑se por Lou‑
renço Marques e seus subúrbios, tendo alguns de seus percalços
registrados na letra fria do papel e da tinta. Longe de terem sido
vítimas passivas de um destino que os agentes coloniais buscaram
delimitar, agiram dentro de suas possibilidades ao dialogar com as
esferas cotidianas da atuação administrativa colonial.11

10 Para uma análise da cidade de Lourenço Marques como modelo de propagação da civili‑
zação, ver: Silva, “Fotografando o Mundo Colonial Africano. Moçambique, 1929”.
11 A bibliografia sobre agenciabilidade africana em contextos coloniais, a partir de uma pers‑
pectiva da História Social, possui uma série de reflexões que não cabem nesse livro. Para

220
MATHEUS SERVA PEREIRA

UM “MEMBRUDO NEGRALHÃO”

No dia 22 de dezembro de 1911, o jornal O Africano reclamou de


uma “cena estúpida” ocorrida no porto de Lourenço Marques. Apa‑
rentemente de maneira proposital, um “membrudo negralhão”
ostentou­‑se nu para as passageiras recém desembarcadas de um barco.
A reação foi de exclamação: “oh! Shocking”; o que, aparentemente,
mais lhe estimulou. A exibição só terminou quando o personagem
foi enxotado a bengaladas. O jornal concluiu que a culpa pelo evento
não foi do “negralhão”, mas da autoridade administrativa colonial,
que não intervinha no combate aos “usos e costumes” das populações
indígenas, especialmente aquelas que viviam na cidade.12
No capítulo anterior, apresentei a importância, para diferentes
segmentos da sociedade laurentina, das lojas de moda e do que era
anunciado como o mais moderno no quesito das vestimentas. Os
esforços legislativos com o objetivo de ordenar hábitos culturais e,
sobretudo, as transformações de costumes pelas quais Lourenço Mar‑
ques passava no início do século XX, podem ser percebidas através da
ação, tanto da administração colonial, como de diferentes segmentos
urbanos, em prol de uma padronização nos tipos de vestimentas a
serem utilizadas dentro dos espaços citadinos. O exemplo da obriga‑
toriedade do uso de calças é significativo para o contexto.13
A imposição de um determinado tipo de roupa a ser utilizada
na cidade encontrou evidentes fracassos até meados da década de

balanços sobre essa questão, ver: Isaacman e Isaacman, “Resistance and Collaboration in
Southern and Central Africa, c. 1850­‑1920”; Ibhawoh e Whitfield, “Problems, Perspecti‑
ves, and Paradigms: Colonial Africanist Historiography and the Question of Audience”;
Cooper, “Conflito e conexão: repensando a História Colonial da África”.
12 O Africano, 22 de dezembro de 1911. WNA.
13 Esse é um processo amplo e recorrente nos contextos das ações coloniais europeias na
África. Ele pode ser apreendido em diferentes posturas dos órgãos coloniais que agiram
de forma repressiva sob práticas socioculturais de forma a suprimi­‑las. O Diretor dos
Serviços dos Negócios Indígenas, em circular confidencial enviada para os administradores
das circunscrições de Lourenço Marques, Inhambane, Quelimane, Tete e Moçambique,
instruiu “no sentido de fazer cessar tão rapidamente quanto possível, o uso de tatuagens e
mutilações, a que se entregam os indígenas”. Previa­‑se não causar grandes estardalhaços
com essa medida. Para isso, a “ação repressora” deveria “cair somente sobre os indígenas
que mediante remunerações diversas, se entregam a essas práticas, sob pena de serem se‑
veramente castigados”. Circular confidencial do Diretor dos Negócios Indígenas solicitando a
repressão das práticas de tatuagem, 25 de fevereiro de 1928. AHM. DSNI. Caixa n.º 37.

221
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

1920. A necessidade constante de reformulações do quadro legisla‑


tivo regulamentador desses hábitos, demonstram, por um lado, as
dificuldades em se conseguir efetivamente implementar uma lógica
de ordenação em Lourenço Marques sobre as roupas de seus habi‑
tantes, especialmente devido à insistência dos mesmos em vestirem­
‑se da maneira que bem quisessem. Por outro lado, demonstram
um processo de aprendizagem da colonização que afetou formas de
agir dentro daquele mundo urbano colonial.
Estudar esses embates é dar visibilidade a um processo confli‑
tuoso de construção dos espaços urbanos laurentinos onde decorreu
a interação entre os diversos habitantes da cidade. Esse processo veio
agregado com a produção de diferentes interpretações, na sua maio‑
ria marcadamente inferiorizantes das populações nativas classifica‑
das como indígenas, a partir de um prisma de que existiria uma
forma correta e única de se vestir e portar no mundo urbano. Essa
lógica entendida como um método civilizacional de boutique, ou
seja, de envernizar­‑se com objetos para parecer algo que não se era
e uma forma barata de imitação de hábitos europeus, revela, ao
mesmo tempo, as múltiplas apropriações e formas de se usar um
tecido para cobrir o corpo por parte dessas populações que transi‑
tavam pela cidade independente dos desejos concebidos inicial‑
mente por aqueles representantes da civilização. Assim como,
interesses do “número de indivíduos [...], naturalmente, maior que
todos, o número de indígenas” que sonorizavam aquela Lourenço
Marques do início do século XX.14
A notícia que abre esse tópico não foi a única que pude encon‑
trar a respeito da necessidade de um maior rigor nos tipos de vesti‑
mentas – ou na ausência delas – nas páginas d’O Africano. Entre
1909 e 1919 observei uma série de textos ou pequenas notas que
reclamavam da ausência de pudor da população indígena com rela‑
ção aos panos que cobriam os seus corpos. Em sua maioria, esses
textos buscavam culpabilizar o poder colonial pela sua incapacidade
de pôr em prática as inúmeras legislações que obrigavam a uma vida
cotidiana urbana pautada por normas “civilizadas”. A leitura de

14 Rufino, ed., Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de Moçambique. Volume III, III.

222
MATHEUS SERVA PEREIRA

homens como a do recorrentemente citado João Albasini, em junho


de 1921, era de que o “atraso e a desorganização” existiam por conta
da continuidade do “respeitar os usos e costumes” e de “fugir siste‑
maticamente de fazer” pressões na medida de obrigar a “saudação
em português”, a “proibição de pinturas, cabeleiras e tatuagens” e o
“uso das calças”.15 Marcados por uma ambiguidade que perpassaria
todo o período colonial contemporâneo português, as queixas pro‑
duzidas pela pequena camada de africanos letrados produtora de
jornais vão, por um lado, criticar abertamente o colonialismo.
Porém, como explica César Braga­‑Pinto, as críticas a obra coloni‑
zadora portuguesa realizadas por João Albasini não se dirigiam ao
“colonialismo em si, mas a incapacidade dos Portugueses de civilizar
conforme os preceitos da Razão iluminista”.16 Portanto, essa crítica
era voltada majoritariamente para a incapacidade desse sistema em
reprimir os hábitos nativos e, consequentemente, da não incorpo‑
ração de toda a população negra de Moçambique no mundo do
progresso e da civilização. Ou seja, no mundo que usava calças.
Em abril de 1909, por exemplo, O Africano, em concomitância
com a veemente campanha de combate a venda do “vinho colonial”
ou “vinho para preto” em Moçambique, afirmou a necessidade de
se beber “menos do ‘colonial’” e, com o dinheiro economizado, apro‑
veitar para comprar algumas calças. Segundo o articulista, a partir
de finais de 1880 e, posteriormente, em subsequentes editais admi‑
nistrativos, passou a ser obrigatório para todos os habitantes de
Lourenço Marques “trazer os corpos cobertos de tecidos”. Porém,
o que se via pelas ruas da cidade seria uma verdadeira “exibição do
nu”. O pior cenário seria aquele encontrado na cidade baixa, região
central da capital colonial. Era lá que, supostamente, mais se viam

15 O Brado Africano, 19 de junho de 1921. WNA.


16 César Braga­‑Pinto e Fátima Mendonça, João Albasini e as luzes de Nwandzengele. Jornalismo
e política em Moçambique, 1908­‑1922 (Maputo: Alcance Editores, 2014), 60. Para um ba‑
lanço sobre o associativismo africano nos territórios coloniais portugueses durante as pri‑
meiras décadas do século XX e a ambiguidade do posicionamento de seus membros, ver:
Augusto Nascimento, “Em torno do associativismo africano na era republicana: da afir‑
mação da raça negra à defesa dos africanos na colônia”, in Moçambique: relações históricas
regionais e com países da CPLP, org. Augusto Nascimento, Aurélio Rocha, Eugénia Rodri‑
gues, 155­‑182 (Maputo: Alcance Editores, 2011).

223
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

os “pretos com uma saca a roda da cintura, ou uma simples tanga,


mal cobrindo a nudez”. Aquilo tudo soava “indecoroso” e “obsceno”
aos olhos do autor da denúncia. O motivo para tamanha “indecên‑
cia” estaria na “brandura dos nossos costumes”. Nesse sentido, o
artigo atribuiu a culpa do estado das coisas ao poder administrativo
colonial português, que precisava, novamente, proibir o transito de
“sujeitos em tal estado de nudez pelas ruas da baixa”, ao invés de
priorizar o comércio de seu principal produto agrícola, o vinho, e
fazer como os “ingleses [que] nas suas colônias não permitem tais
ofensas ao pudor público”.17
Efetivamente, desde finais do século XIX, principalmente após
a conquista militar portuguesa do sul de Moçambique e a elevação
de Lourenço Marques a capital, uma série de medidas foram toma‑
das com o objetivo de disciplinar o espaço urbano e, sobretudo,
controlar a população classificada como indígena que habitava, tra‑
balhava ou simplesmente estava de passagem pela cidade. Sua
expansão urbana acelerada produziu uma demanda exponencial por
mão de obra. Essa demanda foi eficazmente suplantada pelos pró‑
prios mecanismos elaborados para criá­‑la. Nesse sentido, para a
“administração colonial, era forçoso ampliar e atualizar os mecanis‑
mos de controle sobre esta crescente presença”.18
Durante a década de 1900, são inúmeros os exemplos de codi‑
ficações do uso do espaço urbano, como a promulgação do Regula‑
mento do Mercado Público de Lourenço Marques e a reformulação
do Regulamento para o Serviço dos Rickshaws de Praça e Particu‑
lares, ambos de 1903.19 A produção de um código que estabelecesse
as regras para serviços oferecidos na cidade não era apenas uma
imposição do governo colonial, mas também uma demanda de
determinados setores desde, pelo menos, 1901. O jornal O Portu‑

17 O Africano, 24 de abril de 1909. WNA.


18 Valdemir Zamparoni, “Entre ‘Narros” e ‘Mulungos’: Colonialismo e Paisagem Social em
Lourenço Marques, c.1890­‑ c.1940” (Tese de Doutorado em História Social, Universidade
de São Paulo, 1998), 297.
19 Regulamento do Mercado Público da Cidade de Lourenço Marques (Lourenço Marques: Im‑
prensa Nacional, 1903); Regulamento para o serviço dos Rickshaws de praça e particulares.
Aprovado pelo acordão do conselho administrativo do distrito, n.º 6, de 1903 (Lourenço Mar‑
ques: Imprensa Nacional, 1903). Vide, também, AHM. DSNI. Caixa n.º 196.

224
MATHEUS SERVA PEREIRA

guês, por exemplo, por entender que alguns dos proprietários de


rickshaws estavam sendo prejudicados graças a “ignorância dos pre‑
tos”, solicitou à Câmara Municipal que criasse uma tabela de preços
fixos para as corridas.20 Naquele mesmo ano, o jornal publicou o que
seria o primeiro regulamento para os rickshaws da cidade.21 Porém,
no ano seguinte, as reclamações retornaram. O descumprimento das
regras estabelecidas estava sendo feito por “alguns europeus” que,
por um lado, exercendo o poder que possuíam, recusavam pagar “o
que pela tabela aprovada lhes é devido”. Por outro lado, buscando
aumentar seus parcos ganhos “muitas vezes os indígenas” exigiriam
“preços além da referida tabela”.22
Os rickshaws cumpriam importante função no deslocamento
pela cidade e era um serviço largamente utilizado. A ordenação do
serviço prestado seguiu com as linhas de segregação que buscavam
ser construídas. O regulamento publicado em 1901 pelo O Português
foi reformulado e aprovado em 1903, prevendo a solicitação de
licenças para os rickshaws existentes, sendo divididas entre aqueles
que poderiam transportar europeus e outros que poderiam trans‑
portar indígenas. Era disso que tratava o terceiro artigo do Regula‑
mento. Era previsto que “o proprietário de qualquer rickshaw de
praça” que declarar que o mesmo se destina ao “transporte de indí‑
genas”, teria a licença concedida desde que um “dístico com as pala‑
vras ‘para indígenas’ das dimensões, forma e disposição que forem
indicadas pela repartição técnica da câmara” fosse afixado. O mesmo
não poderia transportar europeus.23 Como esse termo classificador
da população nativa ainda não havia sido codificado legalmente,
viu­‑se a necessidade de defini­‑lo. Segundo o texto, seria empregado
um “sentido restrito” ao termo, sendo apenas considerados como
indígenas “os indivíduos de cor de ambos os sexos, que pelo modo
de trajar, [...] ou serviços em que se ocupam vulgarmente se costu‑

20 O Português, 24 de abril de 1901. BNP.


21 O Português, 12 de junho de 1901. BNP.
22 O Progresso, 30 de janeiro de 1902. BNP.
23 Regulamento para o serviço dos Rickshaws de praça e particulares. Aprovado pelo acordão do
conselho administrativo do distrito, n.º 6, de 1903 (Lourenço Marques: Imprensa Nacional,
1903), 1­‑2.

225
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

mam designar por aquele termo ou ainda pelos de patchis, colis,


cafres, macuas, etc”.24 Ou seja, o trabalho em que se empregavam,
mas também a vestimenta, eram entendidos como sinais importan‑
tes nas distinções e definições identitárias apregoadas pelos legisla‑
dores coloniais.
Apesar de preverem rickshaws específicos para os indígenas,
onde se poderia transportá­‑los usando seu “modo de trajar”, também
era estabelecido para o condutor do veículo, sempre encarado como
um indígena, um vestuário obrigatório “composto por blusa com‑
prida apertando com um cinto e calção”. Para cobrir a cabeça, lhes
seria permitida uma maior liberdade, podendo ser usado um “cofió”
ou qualquer outra coisa “mais ou menos caprichosa”.25 No entanto,
segundo o regulamento, esses trabalhadores urbanos não poderiam
usufruir dos artigos que o Salão Chic ou o Salão de Moda Fabião e
Silva ofertavam, pois lhes era “proibido o uso de chapéu europeu de
qualquer feitio ou tecido”.26
A existência desse tipo de transporte entendido enquanto carac‑
terístico de Lourenço Marques durante as primeiras décadas do
século XX, momento em que a cidade era convertida em capital
colonial, não poderia ser exercido por indivíduos que não se vestis‑
sem de um modo considerado minimamente europeu. Ao mesmo
tempo, não poderiam se assemelhar tanto a esses a ponto de não se
distinguirem dos seus pares. Após o estabelecimento do Regula‑
mento de 1903 pude encontrar referências na imprensa a alguns
proprietários de rickshaws que foram autuados por descumprirem o
artigo relacionado ao asseio do veículo e/ou de seus funcionários.
O empresário João Ata, por exemplo, recebeu uma multa por um
dos seus condutores estar “trajando capulanas”.27

24 Regulamento para o serviço dos Rickshaws..., 1.


25 Cofió é um tipo de chapéu muçulmano e também um barrete vermelho usado pelas tropas
compostas por nativos.
26 Regulamento para o serviço dos Rickshaws..., 2.
27 O Distrito, 26 de janeiro de 1905. BNP. Com relação a não aplicação do regulamento, es‑
pecialmente no que diz respeito ao emprego de indígenas que não estariam aptos fisica‑
mente para conduzir um rickshaw, foram feitas algumas denúncias pelo O Brado Africano.
Ver as edições de 24 de janeiro de 1920; 14 de fevereiro de 1920; 10 de julho de 1920. WNA.

226
MATHEUS SERVA PEREIRA

20. Na primeira fotografia estão condutores de rickshaw nos trajes obrigatórios estabelecidos pelo
regulamento. A segunda fotografia foi posicionada pelo produtor do documento estrategicamente
para contrastar com a primeira. Nessa, dois passageiros – aparentemente brancos – sobem num
autocarro. A legenda tentava reforçar um processo de modernização civilizacional que ocorria em
Lourenço Marques, afirmando que o rickshaw seria um “característico meio de condução de que
o público já pouco se serve”.28 A afirmação condiz mais com um desejo daquele produtor da fonte,
do que a uma realidade concreta de inibição de formas de transporte que não estariam condizentes
com o que era entendido enquanto uma cidade moderna. Versões modernas de rickshaw, os
chamados “tuc­‑tuc”, permanecem como importantes formas de transporte pela cidade.

28 José Santos Rufino, Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de Moçambique. Volume III, 62.

227
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

Poder, pudor e agenciabilidade africana nos espaços públicos


de Lourenço Marques

Os inúmeros esforços para a regulamentação da vida dos indígenas


na cidade demonstram como o processo de aplicação desses meca‑
nismos de controle encontrou percalços. Em 1904, foi promulgado
o Regulamento de Serviçais e Trabalhadores Indígenas no Distrito
de Lourenço Marques.29 Até então o mais sistemático instrumento
legal de controle da circulação e permanência dos indígenas na
cidade, ele não conseguiu sobreviver por mais de dez anos sem pre‑
cisar ser reformulado. Ao que tudo indica, o regulamento não atingiu
plenamente os seus objetivos.
A ineficácia do poder colonial de implementar um ordenamento
da vestimenta a ser utilizada no espaço urbano laurentino e, conse‑
quentemente, de subjugação dos corpos dominados pelo seu poder,
abre questões importantes sobre a relação entre a construção de
mecanismos de dominação colonial e as experiências de resistência
e negociação as formas de exploração que eram engendradas. A difi‑
culdade colonial em atingir seus objetivos de dominação totalizantes
pode ser interpretada como resultado da falta de um real aparelha‑
mento das instituições administrativas para realizar o seu trabalho
e resultado de conflitos internos por parte dos diferentes interesses
envolvidos na dinâmica colonial. Porém, essa questão é aqui com‑
preendida por meio de uma valorização da agenciabilidade africana
no trato cotidiano com as instâncias do poder colonial criadas para
gerir o mundo que buscava ser controlado e explorado. A insistência
de uma camada de origem africana em utilizar as vestimentas de
formas singulares em detrimento daquelas propaladas pelo comércio
local ou pelo poder colonial como as mais adequadas à civilização
que se buscava impor, ou mesmo misturando roupas e apetrechos
da vida moderna, as novas formas de se viver que emergiam desses
contatos, indicam uma postura ativa nesse processo.

29 Regulamento de Serviçais e Trabalhadores Indígenas no Distrito de Lourenço Marques (Lou‑


renço Marques, Imprensa Nacional, 1904), posto em vigor pelo Dec. 09/09/1904, publicado
no Boletim Oficial no 45/1904, 4:6.

228
MATHEUS SERVA PEREIRA

A suspensão, em fevereiro de 1911, do regulamento aprovado


em 1904, até que novas resoluções fossem definidas, gerou dúvidas
entre os diferentes agentes do poder colonial. O administrador do
Conselho de Lourenço Marques precisou lembrar ao comissário de
polícia civil que, apesar da revogação, continuou sendo obrigatório
aos “indígenas que permanecessem [em Lourenço Marques] a usar
vestuário que lhes cobrisse o tronco e pernas até o joelho pelo
menos”.30 A troca de correspondências entre diferentes membros
e de instituições distintas da administração colonial portuguesa
demonstram como, apesar dos conflitos internos referentes aos (des)
caminhos da colonização, algumas questões que permeavam a ação
civilizacional foram unificadoras. A obrigatoriedade do uso de calças
pelos “indígenas que permanecessem” na cidade parece ser uma
delas. A ideia da construção de novas necessidades como um meca‑
nismo colonial capaz de empurrar as populações nativas ao mercado
de trabalho assalariado, fundamental para o sucesso da empreitada
colonial portuguesa na região, encontrou sua correspondência prá‑
tica e cotidiana na comercialização dos panos e roupas em padrões
europeus anunciados pelos jornais.
A ambiguidade dos posicionamentos dentro daqueles que
poderiam ser caracterizados como colonizados fica evidente quando
O Africano iniciou, naquele ano de 1911, uma campanha em prol da
real aplicação do Regulamento de Serviçais e Trabalhadores Indí‑
genas no Distrito de Lourenço Marques. A preocupação inicial do
periódico não recaiu sobre possíveis abusos por parte do patronato
ou da ineficácia do regulamento, mas sobre a obrigatoriedade, que
não vinha sendo cumprida, do “preto a trazer calças e tronco coberto”
e da “preta a vestir ‘quimáu’”.31 A indignação d’O Africano estava no
descumprimento do artigo n.º 2 do regulamento de 1904, que obri‑
gava o indígena na cidade a cobrir “o tronco e pernas até o joelho
pelo menos, não sendo permitido aos do sexo masculino o uso de

30 AHM. Fundo da Administração do Conselho de Lourenço Marques (FACLM). Caixa


n.º 2010. Carta do Administrador do Concelho de Lourenço Marques para o Comissário
de Polícia, 15 de março de 1911.
31 O Africano, 19 de julho de 1911. WNA.

229
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

panos que simplesmente os envolvam”.32 Alguns meses depois, o


jornal afirmou estar “um tanto ou quanto envergonhados de falar
tantas vezes na mesma coisa”. A vergonha era maior exatamente
porque “em plena cidade se veem pretos quase nus, com uma sim‑
ples tanga em roda da cinta”. O jornal terminou por implorar a
intervenção do administrador do Conselho Municipal para que
fosse ordenado “mais uma vez, mas a valer, o uso obrigatório das
calças aos homens e o uso do quimáu (blusa ou coisa que o valha as
mulheres indígenas)”.33
Apesar do seu texto possuir sérios problemas analíticos, sobre‑
tudo por não levar em consideração a presença colonial portuguesa
para entender as transformações no vestuário moçambicano, a pes‑
quisadora Benigna Zimba apresenta uma análise sobre o uso de
tecidos localmente produzidos e a como esses passaram a ser prete‑
ridos em prol dos tecidos importados. Nesse processo, datado do
início do século XX, teria se tornado notório, por uma parcela das
mulheres africana da cidade, o uso de “blusas com mangas compri‑
das e justas aos braços”, chamado quimáu.34
Como um importante olhar para as transformações sucedidas
na época, mesmo que enviesado, Henri Junod novamente pode aju‑
dar na problematização de alguns dos significados das transforma‑
ções pelas quais ocorreram as apropriações africanas no âmbito das
vestimentas. Ao descrever determinados ritos de passagem, o mis‑
sionário etnógrafo apresentou como as transformações no estágio
da vida de alguns habitantes do sul de Moçambique eram represen‑
tados pela alteração no vestuário que deveria ser usado. A entrada
na puberdade era marcada pelo início do uso do “mbayi, pequeno
objeto cilíndrico ou cônico feito de folhas de palmeira”, que seria o
“vestuário nacional dos Tsonga”, ou do xifado, supostamente de

32 Regulamento de Serviçais e Trabalhadores Indígenas no Distrito de Lourenço Marques (Lou‑


renço Marques: Imprensa Nacional, 1904), posto em vigor pelo Dec. 09/09/1904, publi‑
cado no Boletim Oficial no 45/1904, 4:6.
33 O Africano, 16 de setembro de 1911. WNA. Grifos meus.
34 Benigna Zimba, “O papel da mulher no consumo de tecido importado no norte e no sul
de Moçambique, entre os finais do século XVIII e os meados do século XX”, in Moçambique:
relações históricas regionais e com países da CPLP, org. Augusto Nascimento, Aurélio Rocha,
Eugénia Rodrigues (Maputo: Alcance Editores, 2011), 25.

230
MATHEUS SERVA PEREIRA

origem Zulu.35 As modificações nos costumes das vestimentas das


populações locais foram vistas por Junod como uma afronta ao que
entendia como formas autênticas de portar­‑se no mundo. Criti‑
cando a postura dos “indígenas civilizados”, o autor não percebe a
incongruência desse termo. Censurando a adoção da indumentária
que os africanos bem entendessem como mais apropriada para si,
afirmava que a postura de usarem cada vez menos “o cinto de peles,
[...] para enfiar umas calças, sonhando todos sempre com um fato
de sarja ou de cáqui” não seria nada além de uma simples cópia que
levava ao desaparecimento das formas tradicionais que o missionário
insistia em congelar em tempos imemoriais.36
A defesa da obrigatoriedade do uso de calças por homens e do
quimáu pelas mulheres estava diretamente relacionada a uma impo‑
sição de uma maneira de se portar na cidade que impedisse qualquer
olhar civilizado desavisado de encontrar­‑se com um “membrudo
negralhão” ou com os seios de uma mulher. Aqueles que viam as
ações colonialistas como formas capazes de promover a transforma‑
ção de costumes existentes nas populações africanas indignavam­‑se
com a incapacidade de impor suas vontades. Esse inconformismo
surgia, por um lado, como consequência da inaptidão do poder
colonial em fixar desejos compartilhados de maneira comum pelos
diferentes segmentos sociais que compunham a sociedade colonial
defensora das formas de poder e controle portugueses. Por outro
lado, as barreiras para a plena consolidação de uma maneira de estar
no espaço urbano ocorreu graças as formas singulares que as popu‑
lações nativas encontraram para usarem e abusarem das imposições
que foram sendo implementadas na medida em que o colonialismo
se consolidava na região.37

35 Junod, Usos e Costumes dos Bantu. Tomo I – Vida Social, 111.


36 Junod, Usos e Costumes dos Bantu. Tomo I – Vida Social, 428.
37 É importante salientar que a obrigatoriedade da produção de algodão implementada pelo
colonialismo português em diversas regiões na África e os interesses da incipiente indústria
têxtil portuguesa foram fatores importantes, mas que fogem o âmbito da atual pesquisa,
no consumo de panos europeus em detrimento de uma produção local, sob controle dos
africanos, ou mesmo de um comércio de tecidos controlado pelos indianos por rotas co‑
merciais do oceâno Índico, numa dimensão econômica da imposição do uso de vestimentas
ocidentalizadas. Nesse sentido, ver: Carlos Fortuna, O fio da meada. O algodão de Moçam‑
bique, Portugal e a economia­‑mundo (1860­‑1960) (Porto: Afrontamento, 1993); Maciel

231
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

Após um ano inteiro de pressões, as demandas d’O Africano


parecem ter, finalmente, surtido algum efeito. Afinal, foi “com o
máximo prazer” que informou aos seus leitores que, por edital da
Administração do Concelho de 15 de fevereiro de 1912, passaria a
ser proibido, a partir de 17 de março daquele ano, “o trânsito de
indígenas que não vestirem decentemente não sendo por isso per‑
mitido, aos de sexo masculino, o uso de panos que simplesmente o
enrolem”.38 Novamente ficava especificada a proibição de um deter‑
minado tipo de indumentária dos homens indígenas. Não era per‑
mitido apenas cobrir o tronco e as pernas até o joelho com alguns
panos. A campanha do periódico esteve voltada não em prol do uso
de qualquer tipo de roupa por parte das populações classificadas
como indígena na cidade. Não bastava cobrir a nudez para adentrar
no mundo moderno civilizado. Era necessário usar algo simbólico
daquele mundo. Era fundamental obrigar a se “usar calças”. Por isso
mesmo, apesar de felicitar a atitude do Governador Geral, o jornal
não deixou de criticar outras camadas da população urbana de Lou‑
renço Marques que não adotavam as calças como vestimenta padrão.
Para O Africano, os baneanes, importante grupo de origem indiana
que se destacava por sua atuação como comerciantes, também deve‑
riam ser obrigadas ao seu uso.39
Não só O Africano possuía essa opinião. Outros grupos que
pressionavam o Governo Geral de Moçambique para a efetivação
da obrigatoriedade do uso de calças na capital também se manifes‑
taram em apoio ao edital de 15 de fevereiro. O Centro Republicano
Couceiro da Costa, composto por colonos portugueses, em carta
dirigida ao Governador Geral, parabenizou­‑o pela “iniciativa de
proibir que os indígenas transitem pela cidade, vestidos com capu‑
lanas, seminus”. Ao mesmo tempo, aproveitou a ocasião para defen‑
der a extensão da medida aos “baneanes e monhés de todas as raças”.

Santos, “Imposto e algodão: o caso de Moçambique (1926­‑1945)”, in Trabalho forçado


africano – articulação com o poder político, coord. Centro de Estudos Africanos da Univer‑
sidade do Porto, 191­‑225 (Porto: Campo das letras, 2007); Allen Isaacman, Cotton is the
mother of poverty: peasants, work, and rural struggle in colonial Mozambique, 1938­‑1961
(Portsmouth: Heinemann, 1996).
38 O Africano, 01 de março de 1912. WNA.
39 O Africano, 01 de março de 1912. WNA.

232
MATHEUS SERVA PEREIRA

Porém, em especial para os baneanes, que, segundo o centro, “se


apresentam em público com trajes indecentes e contrários ao decoro
que em todos os centros de população civilizada é indispensável
fazer observar”.40
Acabou sendo com alívio que O Africano exclamou: “Calças,
calças!”. A preocupação do Centro Republicano e dos editores do
jornal em corroborar a vocação que pretendiam atribuir a Lourenço
Marques como um antro civilizacional através da implementação
do uso de calças por todos aqueles que lá se encontravam, foi, tem‑
porariamente, encerrada. A publicação oficial do Edital da Admi‑
nistração do Concelho acatou suas demandas. Não só o indígena
ficava proibido de usar capulanas, mas também o baneane, “sendo
obrigatório o uso de Calças e Calções”.41
Aparentemente, foi demandado um esforço inicial na aplicação
desse novo edital. As duas principais empregadoras da mão de obra
indígena na cidade solicitaram esclarecimentos à diferentes instân‑
cias do Estado colonial. A direção do porto e dos caminhos de ferro
dirigiu­‑se a polícia, em caráter de urgência, em 18 de março de
1912, um dia após o início da data de vigência do regulamento.
A preocupação das instâncias superiores era de evitar qualquer tipo
de punição aos seus trabalhadores, já que “algumas centenas de pre‑
tos” ainda não possuíam “os fatos (calça e blouse)” obrigatórios.42
A Witwatersrand Native Labour Association (WNLA), principal
empresa engajadora de trabalhadores para as minas da África do
Sul, também entrou em contato com instâncias da administração
colonial. Desta vez o escolhido foi o intendente dos Negócios Indí‑
genas. Perguntado se passaria então a ser necessário registrar naquela
repartição os indígenas em transito, que estacionavam por alguns
dias em Lourenço Marques, a resposta foi negativa. Para o caso das
calças, o intendente foi mais rigoroso. Apesar dos indígenas não

40 AHM. FACLM. Caixa n.º 2010. Carta do Centro Republicano “Couceiro da Costa” ao
Governador Geral da Província de Moçambique. Lourenço Marques, 27 de fevereiro de
1912.
41 O Africano, 15 de março de 1912. WNA.
42 AHM. FACLM. Caixa n.º 2010. Carta do Diretor do Porto e dos Caminhos de Ferro de
Lourenço Marques para o Administrador do Concelho de Lourenço Marques, 18 de março
de 1912.

233
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

precisarem ser registrados, não lhes era “consentido que transitem


pela cidade sem que estejam decentemente vestidos”.43
Porém, esse rigor não durou muito tempo. Em novembro
daquele ano, O Africano reclamou de que já era possível perceber
como “o edital sobre as calças” estava “entrando nos domínios das
coisas mortas”. O maior exemplo disso poderia ser visto durante a
chegada dos trabalhadores retornados das minas sul­‑africanas – os
chamados magaíças. O jornal mostrou indignação com o transito
desses trabalhadores “sem calças” pelo centro da cidade. Ao mesmo
tempo, não conseguia compreender como que podiam voltar carre‑
gados “com 60 quilos de bugigangas” e continuarem vestidos com
suas capulanas.44 Portanto, não seria por falta de recursos financei‑
ros que esses trabalhadores deixavam de usar calças. Era uma inter‑
venção, uma leitura que faziam a respeito dos novos utensílios que
lhes eram apresentados e uma escolha daqueles que mais lhe apete‑
ciam serem comprados e usados. Por um lado, as sucessivas refor‑
mulações dos regulamentos que buscaram delimitar as liberdades
da população nativa citadina demonstram um aspecto cotidiano do
processo de aprendizagem da colonização. Ao longo das duas pri‑
meiras décadas do século XX, esse processo proporcionou os meios
para a consolidação de uma série de mecanismos de controle, que,
a partir das décadas de 1930 e 1940, foram sendo implementados e
terminaram por produzir a chamada política do indigenato.45 Por

43 AHM, DSNI, Caixa n.º 225. Carta dos agentes da WNLA ao Intendente dos Negócios
Indígenas e de Emigração, 11 de março de 1912; e resposta do Intendente dos Negócios
Indígenas e de Emigração aos agentes da WNLA, 14 de março de 1912.
44 O Africano, 14 de novembro de 1912. WNA.
45 A política do indigenato foi um termo cunhado para designar as políticas portuguesas
direcionadas especificamente para as populações africanas que se encontravam sob o do‑
mínio colonial português. De maneira geral, estava relacionada as formas de exploração da
mão de obra local dentro de lógicas racialistas e racistas promulgadas pelos colonialismos
europeus na África. Ao mesmo tempo, estabeleceram, ao longo do século XX e por meio
de diferentes corpos legislativos, as distinções classificatórias jurídicas de acesso as formas
hierarquizantes de cidadania portuguesa, relacionando direitos políticos as práticas sociais
e culturais. Nesse sentido, estipulou as categorias de “indígena” e “assimilado” como forma
de determinar a incorporação das populações africanas ao projeto civilizacional colonial.
Sobre o processo de conversão de “usos e costumes” em políticas de segregação racial co‑
lonial, ver: Lorenzo Macagno, “O discurso colonial e a fabricação dos usos e costumes:
António Enes e a geração de 1895”, in Moçambique e ensaios, org. Peter Fry, 61­‑90. (Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2001). Para uma problematização sobre as continuidades e o legado

234
MATHEUS SERVA PEREIRA

outro lado, demonstra uma insistência no uso de tecidos vulgar‑


mente denominados como capulanas que pouco se importava com
as proibições que foram criadas pelos poderes coloniais.
Os percalços para a implementação dos regulamentos demons‑
tram as diferentes camadas existentes no poder colonial português
em Moçambique, como as ações das diversas instâncias administra‑
tivas, que jogavam com os interesses múltiplos existentes, como o
dos grupos sociais que pressionavam o poder colonial apresentando
suas demandas e questionando a capacidade desse poder em
suplantá­‑las. Também dão pistas sobre as expressões dos indígenas
em relação ao processo de desarticulação de suas formas culturais
autônomas e a (re)criação de novas formas de se viver.
No Relatório do chefe da polícia civil de Lourenço Marques para o
Governo Geral, entregue em dezembro de 1914, foi contabilizado,
entre o período de abril a novembro daquele ano, um total de 609
transgressões as portarias municipais. Entendendo como oposição
a uma forma de se “andar descentemente vestido”, a ação policial
concentrou­‑se, desse total, em 159 indivíduos que foram presos pelo
“uso de capulanas”.46 Na época, a capulana era uma palavra utilizada
para descrever qualquer tipo de tecido usado pelas populações nati‑
vas enrolado ao redor da cintura e que formava uma espécie de
saia.47 Esses números representam uma atuação maciça da polícia
para coibir um determinado padrão de vestimenta que não havia
sido vista até então. Ao mesmo tempo, apresentam a ação, por parte
daqueles que desejavam usar capulanas, que pouco se importava com
a relação entre decência, vestuário específico e regulamentação do
espaço urbano, acabando por afrontar as tentativas de imposição de
uma determinada forma de ser dentro de Lourenço Marques.

do indigenato mesmo após a sua extinção, em 1961, ver: Bridget O’Laughlin, “Class and
the customary: the ambiguous legacy of the indigenato in Mozambique”, African Affairs,
n.º 99, (2000), 5­‑42. Para uma análise comparativa entre as formas de exploração do tra‑
balhador nativo nas coloniais inglesas e francesas e sua relação com formas de trabalho
forçado, ver: Alexander Keese, “Slow abolition within the colonial mind: British and french
debates about ‘vagrancy’, ‘african laziness’, and forced labour in West central and South
central Africa, 1945­‑1965”, IRSH, n.º 59 (2014): 377­‑407.
46 AHM, GG, Caixa n.º 102.
47 Zimba, “O papel da mulher no consumo de tecido importado no norte e no sul de Mo‑
çambique...”, 27.

235
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

O andar­‑se com as indumentárias europeias anunciadas com


esplendor em português e em ronga nas páginas da imprensa pro‑
duzida pelos irmãos Albasini, vistas no capítulo anterior, era com‑
preendida por esses como um sinal de evolução, um símbolo capaz
de demonstrar a capacidade do indígena de atingir estágios elevados
de civilização e, consequentemente, promover uma valorização do
mesmo em detrimento das leituras racializantes que entendiam a
totalidade dos negros como incivilizados.48 Era nesse sentido que
O Brado Africano, após festas realizadas na Munhuana, pela Missão
de S. José de Nhlanguene, solicitou ao padre para que lhes poupas‑
sem “tal espetáculo que é uma vergonha” dos músicos da banda da
missão andarem descalços. Diziam que com o recebimento das apre‑
sentações “os músicos podiam andar decentemente vestidos e calça‑
dos”. Para afugentar críticas de que estaria sendo demasiado rigoroso,
o jornal defendeu sua posição argumentando que essa insistência
estava no fato de que o “andar­‑se calçado é uma das principais carac‑
terísticas do estado evolutivo de um povo, de uma raça”.49
No entanto, para alguns administradores coloniais, nem sempre
o uso de qualquer tipo de vestimenta foi entendido como sinal de
ascensão. Numa circunscrição do interior da província de Lourenço
Marques, o administrador reclamou com o Secretário dos Negócios
Indígenas de que os agentes responsáveis por aliciar indígenas para
migrarem rumo às minas de Johanesburgo estavam fornecendo aos
“régulos” “fardamentos e outros fatos de boa fazenda, luxuosas”, não
sendo raro encontrar “fardamentos de exército inglês em corpos de
indígenas”, tendo sido trazidas “em geral [...] de Johanesburgo”.
O funcionário português dizia­‑se preocupado com a influência des‑
ses agentes e solicitava o fornecimento de “um fato ou fardamento

48 É possível encontrar ideias semelhantes no pensamento colonial português na maioria dos


intelectuais que refletiram e agiram na colonização portuguesa no ultramar, especialmente
quando da ocorrência de mudanças na ação colonizadora de finais do século XIX e início
do XX. Como exemplo desses autores atores contemporâneos ao colonialismo, ver: Oliveira
Martins, O Brasil e as Colónias Portuguesas; Idem, Antologia colonial portuguesa. Volume I:
Política e administração (Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1946); Lopo Vaz de Sampayo
e Mello, Política Indígena. (Porto: Magalhães e Moniz Editores, 1910); António Enes,
Moçambique (Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa, 1913).
49 O Brado Africano, 01 de agosto de 1919. WNA.

236
MATHEUS SERVA PEREIRA

qualquer” para ser distribuído aos chefes locais e menos luxuoso, já


que deveriam também obrigá­‑los “a comparecer perante as autori‑
dades sempre vestidos com ele”.50

21. In José dos Santos Rufino, ed., Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de Moçambique.
Volume X, 55. As bandas organizadas por missões religiosas era um fenômeno comum em todo
o território de Moçambique. “A Banda da Missão de Angoche”, do Distrito de Moçambique,
no norte, foi retratada em 1929. Os jovens que compunham a banda aparecem descalços na
imagem.

A relação entre processos migratórios que direcionaram um


elevado número de homens, sobretudo para as regiões mineradoras
da África do Sul ou para o perímetro urbano de Lourenço Marques,
promovendo um recrudescimento dos contatos e também da pos‑
sibilidade de compra de produtos industrializados, implicou na
abertura de um acesso a bens de consumo típicos da modernidade
ocidental. As visões elaboradas a respeito desse processo, apesar de

50 AHM. DSNI. Caixa n.º 29. Carta da Administração da 6.ª Circunscrição de Lourenço
Marques, Macia, 3 de outubro de 1909, para o Secretário dos Negócios Indígenas.

237
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

acentuarem a incapacidade desses em relação a incorporação das


novidades advindas com a presença colonial nas suas práticas coti‑
dianas, demonstram uma apropriação marcada por valores distintos
daqueles apregoados pelos que se auto incumbiam como detentores
do progresso e da civilização. Em diferentes momentos, por conta
de ocasiões diversas, como a morte durante o trabalho nas minas
de Johanesburgo ou pelo esquecimento de uma bagagem numa
estação de trem, tem­‑se acesso aos bens que esses trabalhadores
carregavam consigo no seu retorno para casa ou em transito por
Lourenço Marques. Um dos diretores da alfândega da cidade, em
resposta ao Intendente da Emigração, informou que os “objetos
que, com mais frequência, os indígenas” traziam em suas bagagens
“quando regressam do Transval”, em 1909, era: “Algodão branco
e tintos em peça, tecidos em obra, cobertores, mantas, colchas,
calçados, velas para iluminação, chapéus de sol, bengalas, poma‑
das”.51 No mesmo ano, o fiscal de emigração em Ressano Garcia,
cidade fronteiriça com a África do Sul, informou o intendente da
emigração em Lourenço Marques, num comentário preconcei‑
tuoso, que um indígena havia deixado, “por esquecimento ou por
embriaguez”, uma trouxa com objetos íntimos. Com o objetivo de
encontrar o seu proprietário, informou o conteúdo deixado para
trás, composto de:

Camisas, quatro; Camisolas, duas; Capulanas, seis; Lenços, três;


Xales, um; Manta, duas; Velas de stearina, vinte e sete; Sacos
pequenos de linhagem, dois; Redes de arame, uma; Machadinhos
de mão, um; Atados de cabelo, um; Colheres grandes, quatro;
Colheres pequenas, duas; Tesouras, duas; Canivetes, quatro;
Navalhas de barba, uma; Pinces de barba, um; Escovas para den‑
tes, uma.52

51 AHM. DSNI. Caixa n.º 29. Carta do Diretor do Círculo Aduaneiro para o Intendente da
Emigração, 19 de junho de 1909.
52 AHM. DSNI. Caixa n.º 29. Carta do Fiscal de Emigração em Ressano Garcia para o
Intendente da Emigração em Lourenço Marques, 12 de janeiro de 1909.

238
MATHEUS SERVA PEREIRA

De maneira semelhante, Freire de Andrade, Governador Geral


de Moçambique entre 1906 e 1910 e importante homem no pro‑
cesso de consolidação da presença portuguesa em Moçambique,53
após analisar as “diferentes mercadorias, importadas como bagagem
por dez indígenas vindos do Transvaal”, recolheu as seguintes infor‑
mações (ver tabela na página seguinte).
Freire de Andrade elencou como elemento de destaque dentre
os objetos encontrados a existência de quatro bíblias, fazendo disso
um exemplo do sucesso do trabalho missionário cristão no Trans‑
vaal. Porém, o maior sucesso parece ter sido a massificação do
consumo e do uso de tecidos, em diferentes formatos, dentre aque‑
les que migravam como trabalhadores das minas da África do Sul.
Na listagem estão retalhos de chita, panos, lenços, cobertores,
colchas, xales, coletes, camisolas, gravatas, cintos, chapéus, cami‑
sas e agulhas e linha para costura. Como o próprio governador
reconheceu, “são sobretudo aqueles gêneros (tecidos)” que no ter‑
ritório de Moçambique seriam “mais fortemente sobrecarregados
com direitos”.54 Migrar das zonas rurais para trabalhar na mine‑
ração ou para a cidade de Lourenço Marques, independente dos
riscos envolvidos nesse processo, abriram possibilidades de se ter
contato e acesso as novidades advindas com os bens da moderni‑
dade que enxurravam as prateleiras das cantinas frequentadas por
esses trabalhadores.55

53 A respeito dos homens que participaram militarmente na derrocada dos reinos do sul de
Moçambique e, posteriormente, ocuparam cargos como administradores e governadores
na incipiente máquina colonial, ver: Macagno, “O discurso colonial e a fabricação dos usos
e costumes”.
54 A. Freire D’andrade, Relatórios sobre Moçambique por Freire D’Andrade (Lourenço Marques:
Imprensa Nacional, 1907), 232.
55 A partir de inquéritos realizados nos anos 1970, com agregados familiares que há muitas
gerações participavam desses processos migratórios, o Centro de Estudos Africanos da
Universidade Eduardo Mondlane afirma categoricamente “a importância dos proventos
do trabalho nas minas para a compra de bens”. In: Centro de Estudos Africanos, Univer‑
sidade Eduardo Mondlane, O mineiro moçambicano, 141.

239
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

1.º Mala 2.ª Mala 3.ª Mala 4.ª Mala 5 .ª Mala

2 Cobertores 2 Cobertores de lã 3 Casacos 2 Cobertores de lã 1 Cobertor de lã

2 Barras de sabão 4 Xales 2 Coletes 22 ½ Panos 2 Pentes

21 Panos de algodão
2 Carros de linha 2 Colchas 3 Xales de lã Manilhas
branco

6 Bonés 2 Pentes 2 Toalhas 6 Camisolas 1 Capa de borracha

2 Pac. alf. Dama 2 Tesouras 1 Cobertor de lã 3 Coletes 5 Coletes

2 Pentes 7 Canivetes 2 ½ Panos 3 Casacos 3 Casacos

1 Chapéu de palha 2 Machados 1 Espelho 1 Chapéu de feltro 4 Camisas

1 Cinto 2 Bíblias 1 Barra de sabão 2 Cofiós 2 Toalhas

6 Panos de algodão 2 Talhadeiras 2 Chapéus 2 Pares de meia de lã 2 Lenços de seda

28 Retalhos de chita 1 Pacote de agulhas 2 Bíblias 4 Facas de mato 1 Xale de lã

8 Peças e meia de
18 panos de algodão 1 Cinto 1 Maço de envelopes 1 Escova
pano

7 Frascos de
1 Cobertor de lã 2 Pares de polainas 6 Sabonetes 1 Xale de algodão
perfumes

1 Pano de algodão
6 Carros de linha 2 Chávenas 2 Cachimbos 3 Panos de mesa
branco

4 Coletes 1 Pac. de missanga 3 Cintos 1 Tesoura 1 Mala

2 Camisolas 4 Apitos 1 Ardósia 2 Canivetes

2 Apitos Crina 1 Serrote Crina

Crina 1 Mala 2 Xales 1 Mala

2 Tesouras Lápis e canetas

3 Colheres 2 Camisas

1 Mala 1 Mala

240
MATHEUS SERVA PEREIRA

6 .ª Mala 7.ª Mala 8.ª Mala 9.ª Mala 10.ª Mala

2 Facas de mato 1 Boné 1 Par de polainas 28 ½ Panos 6 ½ Panos

4 Cintos 8 Camisas 2 Espelhos 4 Coletes 4 Xales de algodão

4 Peças de chita 3 Coletes 12 Colheres 2 Xales de lã 1 Xale de lã

40 ½ Panos 10 ½ Panos 6 Sabonetes 1 Cobertor de lã 2 Camisas

1 Lençol 1 Xale de lã 1 Escova 3 Camisas 1 Colete

2 Grossas de
7 Camisolas 2 Facas de mato 4 Canivetes 2 Quilos de sabão
ferrador

2 Coletes 1 Casaco 2 Chapéus 1 Espelho 2 Barras de sabão

1 Machado 2 Toalhas 36 Manilhas 1 Tesoura 1 Frasco de perfume

1 Cobertor de lã 3 Gravatas de seda 25 ½ Panos 1 Navalha de barba 2 Navalhas de barba

1 Mala 1 Navalha 1 Manta de lã 4 Pentes 1 Tesoura

2 Tesouras 1 Colcha de algodão 6 Canivetes 1 Pincel de barba

1 Chapéu 2 Toalhas 1 Mala 2 Cintos

1 Mala 3 Camisas 1 Pente

2 Xales 1 Cobertor (leão)

6 Facas de mesa 1 Cobertor de lã

2 Limas 1 Espelho grande

2 Camisolas de lã 1 Colcha

1 Mala 1 Caixa de sabonetes

1 Mala

Adaptado do “Mapa indicativo das diferentes mercadorias, importadas como bagagem


por dez indígenas vindos do Transvaal”.56

56 A. Freire D’andrade, Relatórios sobre Moçambique por Freire D’Andrade. (Lourenço Marques:
Imprensa Nacional, 1907), 229­‑232.

241
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

Como afirma Valdemir Zamaparoni, os produtos trazidos nas


bagagens “formavam não só um conjunto de elementos de prestígio
individual”, podendo também “ser tomados como indicativo seguro
de mudança de hábitos de consumo e higiene”.57 O elevado número
de indivíduos que circulavam por todo o sul de Moçambique, por
vezes se estabelecendo em Lourenço Marques, enchiam suas vidas
e de seus próximos com itens que transformavam os modos de se
expor para o mundo e, consequentemente, as maneiras de ver a si
mesmos. O proprietário da primeira mala, por exemplo, carregava
consigo duas barras de sabão e dois pentes. Contando com os itens
listados como sendo de propriedade da décima mala, encontramos
um magaíça que possuía uma grande preocupação com a sua estética
ou de seus próximos. Afinal, trouxe consigo duas barras de sabão,
uma caixa de sabonete, pente, perfume, duas navalhas de barba, um
pincel de barba e, provavelmente para conseguir fazer a barba e
enxergar a si após se afeitar, um espelho grande. Muitos traziam
consigo talheres e chávenas. Utilizar­‑se de garfos, facas, ou colheres,
assim como sentar­‑se à mesa durante as refeições, foram pensados
pela legislação colonial como importantes sinais distintivos dentro

57 Zamparoni, De escravo a cozinheiro, 208.

242
MATHEUS SERVA PEREIRA

das populações africanas. Dentre os inúmeros itens a serem preen‑


chidos para um africano ser considerado assimilado, fazer uso desses
utensílios era um deles. Portanto, tê­‑los era fundamentalmente uma
estratégia de possibilidade de ascensão social na racialmente hierar‑
quizada sociedade colonial.
O exemplo dos magaíças e dos objetos que traziam consigo para
serem usufruídos, tanto ao longo da viagem, como em suas terras
natais, é significativo. Apesar de continuamente apresentar as popu‑
lações indígenas como transeuntes que andavam nuas pelas ruas de
Lourenço Marques, uma leitura atenta dos textos d’O Africano,
demonstram que o que mais incomodou não foi exatamente a
ausência de vestimentas. A função que os produtores do jornal atri‑
buíam para si era de guias desses indivíduos rumo ao que entendiam
como verdadeira civilização. Por isso mesmo, ficavam indignados e
absortos, sem compreender como os magaíças podiam se preocupar
em comprar “valiosas bicicletas, gramofones, chapéus de chuva, inú‑
meros pares de bota, cadeiras de encosto etc.”. Concluiam que tudo
tinham, “menos calças!”.58 Ou seja, o desconforto apresentado por
aqueles que se consideravam verdadeiros representantes da civiliza‑
ção junto as populações indígenas era o do não uso de um tipo
específico de peça de roupa. Era a calça que simbolizava uma adesão
concreta ao mundo moderno e o abandono do mundo entendido
como tradicional e, consequentemente, atrasado.
A importância de pensar a ação desses agentes sociais do mundo
colonial através da pressão pela construção de necessidades relacio‑
nando­‑a à insistência pela obrigatoriedade do uso das calças ganham
importância significativa quando as roupas, de qualquer tipo que seja,
podiam representar itens bastante individuais. Sendo o principal
intermediário entre a percepção que se tem do próprio corpo e a
percepção que se tem do mundo exterior, “as roupas [ou qualquer
outro objeto com função semelhante] não chegam a representar pes‑
soas, mas constituí­‑las”.59 Nesse sentido, a interpretação das refor‑
mulações das experiências e identidades existentes dentro do espaço

58 O Africano, 29 de agosto de 1912. WNA.


59 Miller, Trecos, Troços e Coisas, 37.

243
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

urbano de Lourenço Marques por parte das populações africanas, que


para lá migraram no início do século XX, ganha novos significados.
As interpretações racistas ou racializantes promovidas no
âmbito dos defensores das posturas coloniais insistiram em adjetivar
de maneira pejorativa aqueles chamados como indígenas que usa‑
vam roupas europeias, símbolos de uma modernidade civilizacional,
como “besuntados de civilização”.60 Criticaram e agiram para coibir
a utilização de qualquer tipo de vestimenta que não se enquadrasse
nesse modelo. Os ditos indígenas encontraram soluções para os
impasses causados pela ação colonial com as (re)significações que
fizeram desses objetos dentro de seu mundo cotidiano. Ao interpre‑
tarem o fato de adquirirem e usufruírem desses bens não como uma
contextualização do seu ser na superficialidade, mas como consti‑
tutivos de suas próprias noções de ser, promoveram novas experiên‑
cias que emergiram no cenário urbano colonial de Lourenço
Marques a partir de uma insistência na possibilidade caleidoscópica
de se usar seus panos, tangas, ou capulanas, ao redor da cintura, sem
que isso entrasse em conflito com a apropriação de objetos indus‑
trializados ou com novos modos de interação com o mundo que os
circundava.

EXPERIÊNCIAS DA “MAIOR PARTE DA


POPULAÇÃO”

Aproximar­‑se das experiências cotidianas de indivíduos como o


“membrudo negralhão”, dos condutores de rickshaw, dos trabalha‑
dores migrantes que estacionavam, temporária ou permanente‑
mente, em Lourenço Marques, passa por um exercício de minúcia
dos documentos elaborados em um contexto colonial que se esfor‑
çou em excluir, de diferentes maneiras, esses indivíduos. Ainda que
pouco falassem sobre as vivências das populações africanas coloni‑
zadas, os registros dos quais me deparei nos arquivos consultados,
na sua maioria, não escaparam da utilização das categorias unifica‑

60 Rufino, ed., Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de Moçambique. Volume X, IV.

244
MATHEUS SERVA PEREIRA

doras de indígena e assimilado. A dificuldade em se encontrar a


diversificada voz da população negra/africana, especialmente aquela
classificada como indígena, em Lourenço Marques, pode ser com‑
preendida quando atentamos para a produção da documentação que
auxiliaria nesse desbravamento. A desconstrução da cidade enquanto
local propício para aqueles, ocorrida ao longo das primeiras décadas
do século XX, aconteceu também através de uma sistematização da
exclusão do direito desses indivíduos de serem ouvidos em instâncias
da administração colonial. Nesse período, marcado pela elaboração
dos mapas étnicos que pautariam diferentes visões e divisões no
continente africano, as autoridades coloniais no seu trato cotidiano
dentro da cidade de Lourenço Marques preocuparam­‑se mais com
a grande figura do “indígena” e em delimitar suas regiões de origem,
do que suas possíveis características e experiências singulares.
Em portaria promulgada pelo Governador Geral, em julho de
1913, foi apresentado um plano de reformulação das funções da
polícia em Lourenço Marques. A argumentação usada para as
mudanças era de que a cidade e seus subúrbios possuíam, naquela
data, um número de “16.426 indígenas que não se distinguem pela
instrução e costumes, do comum de sua raça”. Esse grande número
estaria fazendo com que os casos de “indígenas julgados pelo tribu‑
nal” crescesse de maneira vertiginosa. Com a justificativa de evitar
que “indígenas” fossem julgados pelo tribunal da cidade de maneira
indevida em relação aos seus “costumes” e para diminuir o número
de casos no tribunal, a portaria unificou na figura do Comissário de
Polícia Civil as obrigações de fiscalizar e reprender os crimes come‑
tidos nas ruas laurentinas, o de “julgar [...] delitos e transgressões
cometidas por indígenas”, como vadiagem, embriaguez, ofensas
corporais entre indígenas, ultraje público ao pudor, ultraje a moral
pública, furto e transgressão de posturais municipais. Seguindo o
modelo implementado pelo colonialismo de buscar angariar mão de
obra barata para as obras públicas, estipulava como pena prevista de
ser aplicada aos “desviantes”, o “trabalho correcional”.61

61 AHM, DSNI, Caixa n.º 7, Portaria de N.º 1.075, de 26 de julho de 1913. A mesma foi
publicada no Boletim Oficial de Moçambique, n.º 31 / 1913.

245
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

A portaria também regulava os “julgamentos feitos pelo comis‑


sário de polícia” como “sumários, sem recurso, sem depoimentos
escritos”, tendo apenas que registrar no “verso do auto policial ou
administrativo [...] a sentença da qual só deve constar a pena que
aplicou e a disposição da lei em que se fundou”. Para evitar possíveis
abusos policiais, exigia­‑se o envio de um mapa diário dos condena‑
dos pelo comissário de polícia ao procurador da república do juízo
criminal, com o nome dos réus, disposições de leis em que foram
julgados incursos e penas aplicadas.
Infelizmente, não encontrei nenhum desses mapas no Arquivo
Histórico de Moçambique. É provável que nunca tenham existido.
Antes mesmo da publicação da portaria, o jornal O Africano questionou
os riscos existentes com a concentração de poderes nas mãos da insti‑
tuição policial. Como João Albasini, autor do editorial, concluiu: “Fora
do Tribunal julgar? É perigoso”.62 Ironicamente, a portaria retirava
praticamente por completo o direito à defesa do indígena no momento
de seu julgamento. Porém, pressupunha que aquele que entendesse ou
conhecesse “que o comissário de polícia exorbitou das atribuições que
lhe são conferidas” poderia requerer um novo julgamento.63
Dada a exploração da mão de obra como importante meca‑
nismo de enriquecimento dos cofres coloniais, rapidamente ganha‑
ram forma diferentes tentativas de elaboração de barreiras que
impossibilitassem a livre circulação dos potenciais trabalhadores
africanos. Segundo o Regulamento de Serviçais e Trabalhadores

62 O Africano, 16 de julho de 1913. WNA. Valdemir Zamparoni aborda a promulgação dessa


portaria a partir da sua relação entre a formação de instituições coloniais portuguesas em
Moçambique com a lógica do trabalho forçado enquanto mecanismo de dominação e de
exploração para a obtenção de lucros. Zamparoni, “Da escravatura ao trabalho forçado:
teorias e práticas”.
63 O Africano, 16 de julho de 1913. WNA. Órgão fundamental para promover o ordenamento
da cidade segundo os preceitos que vinham sendo produzidos para a ocupação e manutenção
portuguesa em solo moçambicano, a construção de um corpo de polícia civil como aparelho
da administração colonial aparece como preocupação recorrente na documentação. Vide:
AHM, GG, Processos, 1908­‑1914, Caixa 19, Carta de A. Freire de Andrade ao Ministro
do Ultramar solicitando a reformulação da polícia ao sul do Save, 28 de agosto de 1909.
Na mesma caixa encontra­‑se uma resposta do Comissário de Polícia Civil de Lourenço
Marques aos questionamentos realizados por Freire de Andrade sobre a ineficácia desse
corpo existente. Instituição fundamental para a administração estatal, a estruturação do
corpo policial civil em Lourenço Marques carece de pesquisas mais aprofundadas.

246
MATHEUS SERVA PEREIRA

Indígenas no Distrito de Lourenço Marques, de 1904, todo indí‑


gena que habitasse na cidade deveria estar empregado e devida‑
mente registrado na administração municipal. Todavia, o responsável
pela Secretaria dos Negócios Indígenas, pelo menos entre os anos
de 1910 e 1911, emitiu uma série de guias para que os indígenas
pudessem prestar queixas contra seus patrões na Administração do
Conselho de Lourenço Marques, sendo todos os casos referentes ao
não pagamento de salários. Em resposta, o secretário geral do con‑
celho replicou asperamente o secretário dos Negócios Indígenas.
Afirmou que, antes mesmo desses indivíduos poderem prestar quei‑
xas, era necessário que pagassem a taxa para seus registros como
habitantes da cidade. Já que nenhum dos queixosos possuía esse
registro, o secretário geral do concelho afirmou que não mais acei‑
taria as queixas e o procedimento que vinha se repetindo há alguns
anos.64 Ou seja, as autoridades coloniais, em diferentes instâncias,
reconheceram a sua incapacidade na aplicação das regulamentações
que criaram. Por vezes, a responsabilidade por essa inaptidão pro‑
duziu conflitos, Os agentes da colonização esforçarem­‑se em evitar
reconhecer as fragilidades existentes. No entanto, terminaram por
revelar a força da ação cotidiana em pressionar as codificações legais
sob as formas de viver dos dominados, que lutaram em prol de for‑
mas de se viver dentro de um espaço urbano colonial mais indepen‑
dente do que era projetado pelo poder colonial.
Segundo o secretário dos Negócios Indígenas e de Emigração,
em 6 de maio de 1912, estavam registrados 3.621 indígenas para
trabalhar na cidade, sendo que desse total, 997 haviam se registrado
para o corrente ano.65 Os dados estatísticos existentes para o número
de habitantes de Lourenço Marques, ainda que cabíveis de serem

64 AHM. FACLM. Caixa n.º 2010. Foram diversas as necessidades de alterações ou reforços
de ordens que haviam sido criadas, mas nunca postas em vigor. Outro exemplo, para além
daquele que obrigava o uso de calças, era o do emprego de “mulheres indígenas” nas can‑
tinas. Primeiramente, em 1903, permitiram, mas com a condição de que todas fossem
registradas na administração municipal. Depois, em 1904, proibiram. No entanto, elas
continuaram existindo. Em 1911 e em 1913, foram, através de nova legislação, proibidas
novamente. Apesar disso, em anos subsequentes continua sendo possível encontrar refe‑
rência a existência de trabalhadoras indígenas das cantinas. Ver, como exemplo de docu‑
mentação produzida ao longo desse processo: AHM. FACLM. Caixa n.º 3245.
65 AHM. FACLM. Caixa n.º 2010.

247
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

questionados, indicam a existência de um mundo urbano colonial


ocupado pelos indígenas que escapava quase que por completo do
controle tutelar e explorador da colonização portuguesa. Em 1897,
existiam 1.747 “africanos”66 e, em 1912, somadas as áreas urbanas e
suburbanas o total de “pretos” era de 17.244.67 Fica evidente como o
poder colonial foi incapaz, ou, dependendo do setor, não possuía inte‑
resse, em registrar todos os indígenas aptos para o trabalho existentes
na cidade, especialmente quando o seu desejo era explorar ao máximo
essa mão de obra local. Porém, parecia ser também interesse dos pró‑
prios indígenas evitar ficarem presos aos controles regulatórios criados
pelo colonialismo, recorrendo apenas em última instância as institui‑
ções da administração colonial quando do surgimento de algum con‑
flito que eram incapazes de solucionar por meio de outras vias.
Nesse contexto, o corpo de polícia civil de Lourenço Marques
ganhou significativo destaque. Esse foi o órgão administrativo­
‑repressivo ao qual, muitas vezes, os patrões recorreram quando da
quebra de contratos por parte dos seus empregados. Em março de
1920, por exemplo, o “cidadão Secundino Perdigão” prestou queixas
no Corpo de Polícia Civil de Lourenço Marques contra seu funcio‑
nário, o “indígena de nome Albino”, pois o mesmo teria se ausen‑
tado “do serviço do patrão sem ter completado o tempo do seu
contrato”. O contrato estaria devidamente registrado e foi enviado
para o Comissário de Polícia com o intuito de comprovar a validade
da queixa do acusador. A suspeita era de que Albino tivesse encon‑
trado uma melhor colocação no quartel da Guarda Republicana, o
que o levou a abandonar seu antigo emprego.68
Recorrendo ao subúrbio da cidade, Albino acionou uma rede
que o permitiu esconder­‑se dos braços administrativos coloniais e
fugir da perseguição de seu patrão. Após alguns dias de averigua‑
ções, o Comissário informou que, mesmo tendo um guarda se des‑

66 AHU, DGU, 3.ª Repartição, Caixa 2764, 1885­‑1898, Estatísticas.


67 Zamparoni, “Entre “Narros” e “Mulungos”...”, 295.
68 AHM, DSNI, Tribunais indígenas, Carta do Intendente interino servindo de Secretário
dos Negócios Indígenas para o Comissário de Polícia, 09 de março de 1920, caixa 1605.
O referido contrato não estava junto dos documentos localizados no arquivo, apenas a carta
que indicava o seu envio.

248
MATHEUS SERVA PEREIRA

locado até os “quintais da Guarda Republicana” e “percorrido toda


a Cidade e seus subúrbios”, a “captura do indígena de nome Albino”
não havia sido possível. Apesar das limitações impostas pela legis‑
lação colonial e das tentativas de seus diferentes órgãos de contro‑
larem a vida dos trabalhadores urbanos classificados como indígenas,
o exemplo de Albino demonstra como esses indivíduos lidaram com
essas formas de coerção de maneira habilidosa, esquivando­‑se delas
e agindo em proveito próprio.
As tentativas de encontrá­‑lo trazem consigo uma série de infor‑
mações preciosas sobre amplos processos de construção de espaços
autônomos de vivência cotidiana dos trabalhadores africanos de
Lourenço Marques. As investigações haviam revelado que Albino
era “natural de Quelimane”. Como o guarda não o havia encontrado
nos quintais da Guarda Republicana, passou a procurá­‑lo em outros
lugares. Munido da informação de sua naturalidade, deslocou­‑se
para a Matola, município localizado ao sul de Lourenço Marques,
ao lado do bairro suburbano da Machava. Segundo as averiguações
policiais, seria “muito natural” que Albino se encontrasse naquela
paragem, pois lá trabalhariam “alguns indígenas da mesma locali‑
dade”. Porém, novamente não o encontraram. Na Matola, infor‑
maram que “alguns indígenas tinham regressado a terra de sua
naturalidade e outros que foram serviçais nesta cidade embarcaram
para o Transvaal para os trabalhos nas minas”. A conclusão final foi
“de que o Albino [fazia] parte desse número”.
É possível supor a existência de uma solidariedade entre con‑
terrâneos que inibisse a confirmação de um presumível paradeiro de
Albino. Como o documento policial afirmou, “geralmente todos se
conhecem”, porém ninguém foi capaz de reconhecer “indígenas
alguns de Quelimane com aquele nome”.69 Provavelmente, cansado
das condições degradantes que seu patrão poderia estar lhe infli‑
gindo, em busca de auxílio para encontrar uma melhor posição para
si, Albino recorreu a uma rede de migrantes originários de Queli‑
mane. Caso semelhante de solidariedade baseado num local de ori‑

69 AHM, DSNI, Caixa n.º 1605, Carta do Comissário de Polícia Civil de Lourenço Marques
ao Secretário dos Negócios Indígenas, 23 de março de 1920.

249
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

gem comum foi observado por Jeanne Penvenne. Segundo a autora,


no início do século XX, “as pessoas Chopi, da circunscrição de
Zavala, tornaram­‑se os trabalhadores preferenciais no saneamento”
de Lourenço Marques. Manipulando a seu favor a exploração colo‑
nial, aproveitando o fato de terem sido associados a esse tipo de
trabalho específico, buscaram construir estratégias para melhorarem
suas condições de vida na cidade.70
As novas instituições de ordenamento das formas de organiza‑
ções sociais que passaram a reger as vidas daqueles que se encontra‑
vam sob a égide colonial portuguesa em Moçambique não
encontraram um terreno sociocultural de fácil acesso. As dificulda‑
des financeiras eram muitas, assim como os ruídos na comunicação
entre a capital do império, em Lisboa, e os poderes coloniais locais.
Por entender que seu trabalho era demasiado extenuante, o Gover‑
nador Geral interino, em março de 1911, por exemplo, enviou ao
Ministro da Marinha e Colónias a solicitação de uma gratificação
aos “dois indivíduos [...] que está confiada a direção da polícia” em
Lourenço Marques. Como justificativa, apelava para o fato da área
do município ser demasiado extensa, devido às “contínuas passagens
de estrangeiros que é necessário vigiar” e, principalmente, por causa
dos inúmeros “milandos que são levados a polícia”.71
Como explica Fernanda Thomaz, “milandos significavam que‑
relas ocorridas entre os ‘africanos’, gerenciadas em reuniões por
chefes locais ou agentes coloniais, funcionando como uma espécie
de tribunal popular de litígio e conflitos individuais”.72 Os esforços
dos agentes coloniais em codificar o que chamavam de usos e cos‑
tumes locais esteve diretamente vinculado com o exercício da justiça
sobre as populações nativas, que era desempenhado, no período em
análise, por autoridades administrativas e/ou militares.73 Apesar de

70 No original: “the Chopi people of Zavala circumscription became the preferred workers
for sanitation”. In: Penvenne, African workers and colonial racism, 52­‑53.
71 Carta do Governador Geral Interino para o Ministro da Marinha e Colônias, 11 de março de
1911. AHM, Governo Geral (doravante GG), Processos, 1908­‑1914, Caixa 19.
72 Fernanda Thomaz, “Casaco que se Despe pelas Costas: A Formação da Justiça Colonial e
a (Re)ação dos Africanos no Norte de Moçambique, 1894­‑c.1940” (Tese de Doutorado
em História Social, Universidade Federal Fluminense, 2012), 59.
73 Ver: Cristina Nogueira da Silva, “‘Missão civilizacional’ e codificação de usos na doutrina

250
MATHEUS SERVA PEREIRA

poderem significar qualquer caso ocorrido entre as populações afri‑


canas, os agentes coloniais consuetudinariamente vincularam o
termo as querelas relativas as vidas particulares dessas pessoas.74
A partir da segunda metade do século XIX, diferentes projetos legis‑
lativos buscaram formular códigos específicos que gerissem os
milandos, incluindo­‑os dentro de um sistema judicial que não ferisse
o regime judiciário português vigente. Somente com o processo de
centralização e fortalecimento do Estado português advindo com a
ditadura salazarista, uma reestruturação do sistema jurídico colonial
conseguiu concentrar esforços para que a preocupação com essa
codificação se materializasse na criação do Tribunal Privativo dos
Indígenas, ocorrido em 1929.75
Devido ao racismo intrínseco ao colonialismo, o completo des‑
mazelo dos setores repressores coloniais em Lourenço Marques de
registarem suas ações e as dificuldades em codificar práticas jurídicas
locais, foi recorrente o jogo de empurra entre as diferentes instituições
administrativas coloniais quando os casos de conflitos e de reclames
envolviam partes designadas como indígenas. A sobreposição de atua‑
ções jurídicas­‑policiais ocorridas graças a inexistência de instituições
judiciais específicas para o trato com os indígenas, entre os anos de
1890 e 1930, levaram a um constante direcionamento das querelas
para serem solucionadas pela Secretaria dos Negócios Indígenas,

colonial portuguesa (século XIX­­‑XX)”, Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuri‑
dico Moderno, n.º 33­‑34, (2004­‑2005): 899­‑921.
74 Segundo Fernanda Thomaz, durante o regime colonial do século XX, os milandos sofreram
uma adaptação, passando a incidir “somente nos assuntos ligados às questões civis das
sociedades ‘africanas’. Pequenos furtos, ou danos, contratos diversos, adultério ou rapto,
divórcios, entre outras, eram objetos de milandos. Homicídio, envenenamento e as demais
ações consideradas como crime pelos portugueses não estavam incluídos nesse termo. Deste
modo, o termo milando foi sendo atribuído às querelas existentes entre os ‘africanos’ que
estavam ligadas ao direito civil”. Thomaz, “Casaco que se Despe pelas Costas”, 62.
75 Ver: “Estatuto Político, Civil, Criminal dos Indígenas. Decreto n.º 16.473, de 6 de fevereiro de
1929”. In: Ministério das Colónias. Lisboa: Imprensa Nacional, 1929. Para exemplos de pesquisas
recentes que tem demonstrado a riqueza do uso da documentação judicial para se estudar o
passado colonial europeu em África, ver: Carol Dickerman, “The Use of Court Records as
Sources for African History: Some Examples from Bujumbura, Burundi”, African Studies
Association, vol. 11 (1984): 69­‑81; Carol Dickerman, “African Courts Under the Colonial Re‑
gime: Usumbura, Ruanda­‑Urundi, 1938­‑62”, Canadian Journal of African Studies, vol. 26, n.º 1
(1992): 55­‑69; Richard Roberts, “Text and Testimony in the Tribunal de Première Instance,
Dakar, during the Early Twentieth Century”, The Journal of African History, vol. 31, n.º 3 (1990).

251
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

órgão criado justamente para lidar comuma variada gama de questões


relacionadas a essa camada da população. Ao mesmo tempo, por vezes
foram os próprios indígenas, interessados na resolução dos seus casos,
que enxergaram esse órgão como destino favorável para prestarem
suas queixas e encontrarem alguma solução para suas querelas.
Criada em 1903, com o nome de Intendência dos Negócios
Indígenas e Emigração, passando a denominar­‑se, a partir de 1907,
como Secretaria dos Negócios Indígenas, o órgão possuiu diferentes
nomes ao longo de sua existência. Bastante complexo, carece de pes‑
quisas pormenorizadas que aprofundem suas contradições internas,
assim como suas transformações ao longo do tempo. Por um lado, a
secretaria atuou como um braço do Estado colonial através da regu‑
lação e disciplinarização das populações classificadas como indígenas,
principalmente nas relações cotidianas de exploração dessa mão de
obra. A Secretaria dos Negócios Indígenas foi basilar, nos anos 1920,
por exemplo, na supressão de formas coletivas de pressão que tenta‑
ram ser organizadas pela mão de obra majoritariamente indígena
empregada no porto de Lourenço Marques, que possuíam objetivos
específicos, como o da equiparação de seus salários com o dos brancos
e melhores condições de trabalho.76 Por outro lado, mesmo tendo
suas ações limitadas por uma agenda de interesses próprios, a Secre‑
taria atuou também em defesa da aplicação daquilo que entendia
como justo em relação à mão de obra indígena, especialmente quando
buscou impor limites aos abusos patronais. Foi exatamente através
das pressões exercidas pelos próprios indígenas que se tornou possível
a abertura das portas do órgão colonial para a sua participação. Ter‑
minaram por produzir, a despeito das intenções originais dos regu‑
ladores e administradores coloniais, um local de amparo – ou pelo
menos de escuta – para algumas de suas reivindicações.77

76 Penvenne, “Labor struggles at the port of Lourenço Marques, 1900­‑1933”.


77 Diferentes camadas sociais dos classificados como indígenas buscaram acionar a Secretaria
dos Negócios Indígenas como instituição capaz de responder suas demandas. Os chefes
locais da Circunscrição de Maputo, por exemplo, aproveitaram da visita do diretor daquela
secretaria a sede administrativa localizada ao sul de Lourenço Marques, em 1909, para
apontarem suas principais queixas a respeito da política e das autoridades portuguesas na
região. Mostrando possuírem um “certo sentimento de independência”, incomodaram o
secretário. Acabaram utilizando daquele funcionário colonial para mostrar como possuíam

252
MATHEUS SERVA PEREIRA

Foi no imbricado jogo entre instituições coloniais existentes em


Lourenço Marques e as inovações proporcionadas com as transfor‑
mações ocasionadas pelas vivências no meio urbano colonial, que a
“indígena de nome Maria ou [Bisse], moradora no Chamanculo”,
subúrbio da cidade, acabou por buscar ajuda para a resolução de uma
querela em que esteve envolvida. Em setembro de 1929, juntamente
com “seu filho de nome Alfredo Vilhena, morador com a queixosa”,
dirigiram­‑se para uma das seções da polícia civil da cidade. O fato
parecia ser grave. Maria ou [Bisse] afirmou que sua “filha de nome
Rosa” havia sido “raptada por um indígena de nome Fernando Lidoi”,
morador em um terreno de propriedade alheia localizado também
em Chamanculo. Apesar de terem interpelado o acusado a respeito
do paradeiro de Rosa, Fernando Lidoi afirmou ignorá­‑lo.78
Após averiguações iniciais, foi solicitada a presença de Fernando
Lidoi para interrogatório. O mesmo afirmou não ser verdade “ter
raptado a indígena Rosa [...], mas sim tela (sic) convidado a ir para
a sua companhia para viver maritalmente”, tendo aceitado de maneira
voluntariosa. Rosa havia mudado para sua casa oito dias antes das
queixas. Fernando Lidoi terminou seu depoimento afirmando “que
já há cerca de três meses” estaria tendo relações sexuais com Rosa.
Em posse dessas informações, o guarda responsável pelas investiga‑
ções dirigiu­‑se a casa do interrogado. Encontrou a suposta raptada e
conduziu­‑a até a polícia, onde Rosa confirmou “as respostas do
arguido indígena”. Dando por fim suas diligências, o guarda asseve‑
rou que “em virtude da indígena Rosa ter ido voluntariamente para
a casa do arguido e ainda porque aparenta ter 22 anos de idade” aquele
era um caso que deveria ser resolvido “perante as autoridades cafreais
ou na Direção dos Serviços dos Negócios Indígenas”.79 O relatório
da investigação criminal, juntamente com as pessoas constantes dos
autos, foram remetidos para o diretor da Secretaria dos Negócios

em “alto grau a consciência dos seus direitos e dos seus deveres”, expondo “sem rebuço, e
com o maior desassombro as suas necessidades”, chegando a fazerem queixas contra o
administrador da circunscrição. In: AHM, DSNI, Diversos, caixa 91.
78 AHM, DSNI, Tribunais indígenas, Caixa 1609, Auto de notícia n.º 1238: testemunho da
Indígena de nome Maria ou [Bisse], 18 de setembro de 1929.
79 AHM, DSNI, Tribunais indígenas, Caixa 1609, Relatório de averiguações referente ao
auto de notícia n.º 1238, 18 de setembro de 1929.

253
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

Indígenas de Lourenço Marques, que terminou responsável pela


decisão final sobre o ocorrido. Esse decidiu que para que as partes
ficassem satisfeitas, Fernando Lidoi iria ter que “pagar o lobolo na
importância de £25” para a família de sua companheira.80
Como o caso não apresentou nenhum sinal de ação criminosa
ou de descumprimento de regulamentos do município, o responsável
policial pelas investigações entendeu como natural que a responsa‑
bilidade da resolução do conflito recaísse sobre as “autoridades
cafreais” ou sobre a Secretaria dos Negócios Indígenas. Essa resolu‑
ção seguia o que estava previsto no Regulamento das Circunscrições
Civis dos Distritos de Lourenço Marques e Inhambane, aprovado
em 1908. Buscando normatizar as funções dos diferentes postos
administrativos criados para gerir e ordenar a vida social nesses ter‑
ritórios, o documento previa que as “autoridades cafreais”, através
da figura do “régulo”, deveriam julgar “todas as questões civis (milan‑
dos) entre indígenas do seu regulado”.81 Porém, os artigos nada
diziam a respeito de casos como o apresentado por Maria ou [Bisse].
Quando os ditos indígenas não estivessem atrelados a uma povoação
específica e, consequentemente, a um “regulado”, coisa comumente
ocorrida no meio urbano, a Secretaria do Negócios Indígenas ficou
com a responsabilidade na resolução desse tipo de peleja.
Independentemente de suas possíveis origens, Maria ou [Bisse],
seus filhos, Alfredo Vilhena e Rosa, assim como Fernando Lidoi,
foram registrados na documentação sempre acompanhados da alcunha
“indígenas”. Não chegou a ser preocupação das autoridades coloniais
referenciarem a naturalidade dos envolvidos no caso. É plausível supor
que Maria ou [Bisse] não era natural de Lourenço Marques e que teria
se deslocado para a cidade anos antes do imbróglio que se viu envol‑
vida. Infelizmente, a documentação se encontra em estado deterio‑
rado. Ao longo da fonte, a grafia do nome Bisse aparece constantemente

80 AHM, DSNI, Tribunais indígenas, Caixa 1609, Relatório de averiguações referente ao


auto de notícia n.º 1238, 18 de setembro de 1929. O termo lobolo corresponde a grafia
oficial portuguesa do respectivo fenômeno. Sua forma em shangana seria lovolo. Optei por
utilizar das duas grafias, variando de acordo com a maneira como ela apareceu na fonte.
81 Regulamento das Circunscrições Civis dos Distritos de Lourenço Marques. Aprovado por portaria
n.º 671­‑A, de 12 de setembro de 1908 (Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1908), 17.

254
MATHEUS SERVA PEREIRA

borrada ou mal grafada. Porém, talvez essa não seja uma simples carac‑
terística referente as deficiências de armazenamento do documento.
O produtor daqueles registros pode ter tido dificuldades em transpor
para o papel um nome não­‑europeu e que remetia para uma origem
de Maria ou [Bisse] afastado do mundo urbano.82 Diferentemente,
seus filhos parecem ser originários da cidade ou, ao menos, moradores
nela havia algum tempo. Essa hipótese é admissível por conta de
Alfredo Vilhena e Rosa, assim como Fernando Lidoi, serem sempre
nomeados com alcunhas europeizadas, enquanto que Maria aparece,
ao longo de todo o processo, referenciada com dois nomes. Tal carac‑
terística remete a mãe para uma presença passada em alguma locali‑
dade que não aquela urbanizada de Lourenço Marques.
O acionamento dessas diferentes instituições para a resolução
de conflitos apresentou uma preocupação daqueles que as acionava
que foi além da necessidade de se manterem fieis a determinadas
estruturas que pudessem gerir modelarmente suas ações. O ocorrido
demonstra como relações locais estabelecidas consuetudinaria‑
mente se imbricaram com instituições coloniais de maneiras múl‑
tiplas e complexas. Ao buscarem todos os meios possíveis para
resolverem seus infortúnios, o que era facilitado quando se estava
em Lourenço Marques, os envolvidos apresentaram um imbricado
acionamento de expectativas e experiências produzidas pelas inter‑
seções que uma vivência cotidiana na cidade possibilitou. Não con‑
segui saber se Maria e seu filho foram primeiramente procurar
qualquer “autoridade cafreal” No Arquivo Histórico de Moçambi‑
que pude encontrar alguns casos ocorridos em regiões rurais onde
as “autoridades cafreais” foram as primeiras a ouvirem os reclames
e a buscarem solucionar as queixas, ao invés da polícia ou da Secre‑
taria dos Negócios Indígenas. Muitas vezes esses casos só foram
registrados porque aqueles que foram julgados pelas “autoridades
cafreais” se sentiram prejudicados, indo procurar outros mecanis‑
mos de resolução de conflitos, como aqueles criados pela ação colo‑
nial portuguesa. Em outros momentos, foi a administração colonial

82 O uso de mais de um nome como mecanismo de resistência ao controle colonial sob as vidas
indígenas, sobretudo no ambiente urbano, será explorado no próximo tópico do capítulo.

255
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

que interveio no andamento da ação da “autoridade cafreal” com o


intuito de enquadrá­‑la nos parâmetros legais portugueses.83
Como apontado anteriormente, é imaginável conjecturar que
os envolvidos no caso estivessem com laços afrouxados com os varia‑
dos tipos de “autoridades cafreais”, o que explica o fato de procura‑
rem as autoridades coloniais. De qualquer maneira, o que se sabe é
que Maria ou [Bisse] e seu filho foram até a polícia, ironicamente
instituição marcada pela ação repressora dentro do espaço urbano
sobre as populações indígenas.84 A mesma, ao desvendar toda a
situação, constatou que nenhum crime, dentro das legislações por‑
tuguesas vigentes, havia sido cometido. Afinal, Rosa tinha se des‑
locado de livre escolha para a casa de Fernando Lidoi.
Nesse sentido, as queixas de Maria ou [Bisse] e de Alfredo
Vilhena não podiam ser resolvidas pela delegacia ou pelo sistema
judiciário português. O procedimento adotado foi o de remete­‑las
para o diretor da Secretaria dos Negócios Indígenas. O mesmo
entendeu que o pagamento do lobolo seria a melhor maneira de pôr
fim aos desentendimentos. Tema bastante extenso dentro da biblio‑
grafia africanista, visto por algumas perspectivas como o “preço da
noiva” e por outras como garantia da descendência patrilinear, o
pagamento do lobolo enquanto medida a ser adotada para resolver o
caso só foi mencionado quando da intervenção do diretor da Secre‑
taria.85 O que havia sido verbalizado por Maria ou simplesmente
traduzido pelo interprete da delegacia de polícia enquanto rapto,
poderia ser um caso de kutlhuva. Pesquisas etnográficas recentes
têm insistido em afirmar que a pauperização das condições de vida
influencia no aumento de casos de kutlhuva, enfraquecendo formas

83 Para exemplos desses casos, ver: AHM, DSNI, Transgressões – Prisões, caixa 83 ou AHM,
DSNI, Tribunais Indígenas, caixa 1630.
84 Uma leitura dos jornais de Lourenço Marques do início do século XX mostra como a polícia,
dentro do espaço urbano, não agia apenas na repressão dos chamados indígenas. A grande
presença desses na cidade e as incertezas ocorridas com as transformações coloniais fizeram
com que a polícia assumisse predicados atribuídos anteriormente as “autoridades cafreais”.
Como exemplo, ver: O Imparcial, 16 de novembro de 1922. BNP.
85 Para alguns exemplos de bibliografia sobre o lobolo no sul de Moçambique e o debate em torno
de sua definição, ver: Paulo Granjo, Lobolo em Maputo: um velho idioma para novas vivências
conjugais (Porto: Edições Afrontamento, 2006). Ver, também: Brigitte Bagnol, “Lovolo e es‑
píritos no Sul de Moçambique”, Análise Social, vol. XLIII (2.º), (2008): 251­‑272.

256
MATHEUS SERVA PEREIRA

de casamento entendidas enquanto judicialmente consolidadas, seja


através da cerimônia do lobolo, do casamento civil ou religioso.86
Descrito no início do século XX por Henri Junod e traduzido por
ele como “casamento por rapto”, a união entre amantes sem o con‑
sentimento da família da mulher e, principalmente, sem o paga‑
mento do lobolo, trazia uma situação de ruptura em relação as
maneiras consideradas adequadas pelas populações do sul de
Moçambique para o estabelecimento de um matrimonio.87
A fonte é silenciosa a respeito da família de Fernando Lidoi ou
em que se empregava, aspectos fundamentais para o estabelecimento
das formas possíveis de pagamento do lobolo. Além disso, em momento
algum foi referenciado o pai de Rosa e/ou o marido de Maria. É pos‑
sível que ele tenha simplesmente se deslocado para a região das minas
sul­‑africanas, como era bastante comum entre os homens no sul de
Moçambique. Maria também poderia ser mãe solteira ou viúva. Fer‑
nando Lidoi e Rosa não pareciam estar dispostos a manter uma estru‑
tura de relações matrimoniais que perdia seus pontos fulcrais dentro
daquela sociedade em transformação. No entanto, para Maria e,
sobretudo, para seu filho, Alfredo Vilhena, resolver aquela situação de
união sem o estabelecimento do lobolo foi algo de suma importância.
Alfredo Vilhena via suas chances de conseguir uma boa quantia para
o lobolo de uma mulher diminuírem drasticamente sem os bens ou o
dinheiro advindo do estabelecimento da relação marital de sua irmã.
Esse caso apresenta questões que apontam para uma nova confi‑
guração social, desenvolvida com as transformações iniciadas pelo colo‑
nialismo e pela presença desses indivíduos no caleidoscópico espaço
urbano. Antigas situações sociais, que estabeleciam formas culturais de
lidar com momentos de ruptura, passaram a ser encaradas através de
novas reconfigurações das instituições que deveriam solucionar o sur‑
gimento de mal­‑entendidos. Ao não se encontrarem sob os auspícios
de uma “autoridade cafreal”, indivíduos envolvidos nesses casos de lití‑
gio, como Maria ou [Bisse], Alfredo Vilhena, Rosa e Fernando Lidoi,

86 Guilherme Afonso Mussane, “A Kuna n’Kinga: Lobolo como Foco das Representações
Locais de Mudança Social” (Dissertação de mestrado, Programa de Pós­‑Graduação em
Sociologia e Antropologia IFCS­‑UFRJ, 2009).
87 Junod, Usos e Costumes dos Bantu, 126 e apêndices VIII e IX.

257
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

encontraram apoio para suas reivindicações nas autoridades coloniais,


que terminaram por reforçar sistemas previamente estabelecidos como
forma de estabelecimento do matrimonio, como o lobolo.88
A grande variedade de episódios ocorridos em Lourenço Marques
na qual a Secretaria dos Negócios Indígenas foi procurada para a con‑
ciliação de conflitos indica como, neste início do século XX, o órgão foi
considerado como apto para resolução de questões classificadas como
milandos. O aparato administrativo colonial da Secretaria parece ter se
tornado mais um mecanismo, dentre vários outros possíveis, para a
resolução de conflitos onde, pelo menos, uma das partes envolvidas
poderia ser considerada indígena. Ao direcionarem suas demandas
para aquela instituição, os ditos indígenas acabaram por questionar as
hierarquias locais na qual estavam inseridos e, ao mesmo tempo, con‑
solidaram características específicas da relação que o mundo colonial
estabeleceu com essas hierarquias. Ao mesmo tempo em que ocorre‑
ram apropriações das instituições coloniais pelos indígenas, em busca
de resolução para conflitos a partir das construções socioculturais que
conheciam previamente, os agentes administrativos coloniais, que coti‑
dianamente lidaram com as queixas dos indígenas, também tiveram
que lidar com as contradições geradas pelo paradoxo colonial de pro‑
teção dos “usos e costumes” e do incentivo para a assimilação.
Os ruídos internos provocados por essas movimentações abriram
brechas para a atuação das populações africanas “indígenas”. O Admi‑
nistrador do Conselho de Lourenço Marques, por exemplo, reclamou
com a Secretaria dos Negócios Indígenas, em 1911, que não mais
receberia os “indígenas [...] com guias passadas [pela secretaria] em
virtude de queixas por eles formuladas contra seus patrões, sem que
esses indígenas se achem registrados como serviçais” nos tramites dos
regulamentos existentes. Apontando para a fragilidade da instituição
criada para mediar as questões relacionadas aos indígenas, a resposta
da secretaria foi de insistir na necessidade de continuarem a permi‑

88 As dificuldades no trato das disputas entre populações indígenas e a necessidade que o


colonialismo português via na codificação dos milandos, relacionado com a ideia de proteção
dos chamados “usos e costumes”, causou inúmeros desencontros na atuação desses admi‑
nistradores. Os casos de herança foram significativamente imbricados. Ver: AHM, DSNI,
Tribunais indígenas, caixa 1603.

258
MATHEUS SERVA PEREIRA

tirem que aquele fosse um espaço onde poderiam ser apresentadas


reclamações “contra os patrões por falta de pagamento de salários,
maus tratos, etc.”. O receio estava na possibilidade de uma piora das
condições de trabalho e no enraizamento “no ânimo do indígena” da
“noção de que o pedir justiça às autoridades é antes criar um pretexto
para novos castigos do que a solução dos seus males”.89
As diferentes autoridades administrativas coloniais insistiram na
necessidade de evitarem possíveis embaraços produzidos pelos ruídos
internos da lógica de dominação e exploração da mão de obra local.
No ano de 1907, em Magude, nas proximidades de Lourenço Mar‑
ques, o administrador colonial responsável pela área chamou a atenção
do Secretário dos Negócios Indígenas. Sua preocupação era a respeito
dos “muitos [...] indígenas que apresenta[vam] queixa [...] por falta
de pagamento dos patrões a que servem”. Segundo o administrador,
a incapacidade das instituições coloniais em obrigar os patrões a cum‑
prirem com suas partes acabava por tirar “por completo o prestígio a
autoridade”, potencializando os “indígenas [...] de usar dos meios
enérgicos que um serviçal europeu usaria em tais condições”.90
Esgueirando­‑se nessas brechas entre funções diferentes atribuí‑
das as instituições coloniais, as queixas apresentadas pelos indígenas
recaíram, com frequência, sobre abusos cometidos por aqueles res‑
ponsáveis pelas ações de repressão ao ordenamento cotidiano dos
espaços de Lourenço Marques. Em 1918, por exemplo, “40 indígenas
dos dois sexos residentes nos subúrbios da cidade” exigiram, ao admi‑
nistrador de Marracuene e ao secretário dos Negócios Indígenas,
providências “contra as arbitrariedades praticadas pelos guardas” res‑
ponsáveis pela fiscalização do fabrico das bebidas alcoólicas na cida‑
de.91 Quem também reclamou junto à Secretaria dos Negócios
Indígenas foi Chonguelassaba, doméstica e proprietária de um ter‑
reno no subúrbio de Lourenço Marques. Em carta escrita por uma
terceira pessoa, a seu rogo, nenhum dos envolvidos no caso são apre‑

89 AHM, DSNI, Tribunais indígenas, caixa 1602.


90 Carta do Administrador de Magude ao Exm.º Snr. Secretário dos Negócios Indígenas, 25 de
novembro de 1907. AHM, DSNI, Tribunais indígenas, caixa 1601.
91 Carta do administrador de Marracuene ao Secretário dos Negócios Indígenas, 21 de novembro
de 1918. AHM, DSNI, Requerimentos, petições, reclamações e queixas, caixa 149.

259
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

sentados com a alcunha de indígena. Estando referenciados apenas


por seus nomes, o termo em si era uma ferramenta de classificação
colonial que pouco nos fala a respeito das experiências dos que assim
foram nomeados. No mais, a reclamante, ao não ser atendida pelo
Comissário de Polícia quando tentou prestar queixas pelo roubo de
cinco galinhas, dirigiu sua reivindicação para a Secretária dos Negó‑
cios Indígenas. Seu objetivo era “ser indenizada” e de ver “um castigo
severo” aos larápios. Para além de sua indignação com os roubos, não
poupou críticas a ação policial. Afirmou que a mesma “liga pouca
importância, quando são queixas de preto, quando nós pagamos todas
contribuições que o Governo nos pede”. Chonguelassaba terminou
por receber da secretaria uma indenização no valor de três libras.92
As ambiguidades e fragilidades do poder dessas instituições para
efetivarem, no cotidiano, o discurso justificador da presença colonial
portuguesa permitiu aos indivíduos classificados como indígenas
pressionarem as mesmas a seu favor e, principalmente, de as utilizar
como ferramenta de proteção contra práticas de abusos patronais.
Nos relatórios de Freire de Andrade, Governador Geral de Moçam‑
bique, publicados em 1907, o mesmo reconheceu que uma das maio‑
res dificuldades para angariar mão de obra para suprir as demandas
públicas e privadas portuguesas assentava­‑se nos abusos patronais.
Preferindo escapar dessas formas de exploração, migrando para zonas
mineradoras fronteiriças, as experiências exploratórias do contrato
compulsório estariam produzindo uma escassez de mão de obra pre‑
judicial aos interesses econômicos portugueses em Moçambique.93

92 Carta de Chonguelassaba, escrita por Palmeira da Conceição, para o Secretário dos Negócios
Indígenas, de 17 de junho de 1915. AHM, DSNI, Tribunais indígenas, caixa 1603.
93 A descrição realizada por Freire de Andrade sobre o funcionamento do processo de angaria‑
mento da mão de obra local é bastante semelhante a formas de utilização dos escravos de
ganho das cidades brasileiras do século XIX. Como afirmou, “o chibalo era a regra geralmente
seguida em Lourenço Marques; explicando em que consistia, direi que qualquer indivíduo que
desejava obter pretos para o trabalho, se dirigia ao Governo, que ordenava a um dos chefes de
circunscrição para os fornecer, pelo período de seis meses e ao preço, em regra, de 300 réis por
dia de trabalho; esse indivíduo, ou empregava ele mesmo os indígenas, ou os negociava, isto é,
alugava­‑os a um certo preço por dia, além de um prêmio por cabeça; e o pagamento era lhe
feito a ele, que pagava aos indígenas no fim do seu período de trabalho”. A. Freire D’Andrade,
Relatórios sobre Moçambique por Freire D’Andrade. Vol. II (Lourenço Marques: Imprensa Na‑
cional, 1907), 10. Sobre os escravos de ganho no Brasil, ver: João José Reis, “De olho no canto:
trabalho de rua na Bahia na véspera da Abolição,” Afro­‑Ásia, n.º 24 (2000): 199­‑242.

260
MATHEUS SERVA PEREIRA

Para corroborar sua interpretação, especialmente no que tange


as violações patronais, Freire de Andrade optou por relatar um “caso
típico”. Originalmente, “200 pretos” teriam sido contratados, em
Chai­‑Chai, norte da cidade de Lourenço Marques, para trabalharem
por 120 dias, para um sujeito de nome A. da Silveira. O mesmo os
enviou para outra pessoa, que, em seguida, “os alug[ou] a Monteiro”,
em Gaza, fronteira com a África do Sul. O esquema de pirâmide
permitia a realização de diversas burlas nos contratos firmados que
prejudicavam os trabalhadores contratados, como a falsificação dos
papéis para ampliar os dias totais obrigatórios de trabalho e a marca‑
ção de faltas inexistentes nos “bilhetes de presença (tickets)”. Findo
o tempo da prestação dos serviços, os “pretos” exigiram o seu paga‑
mento. Sem sucesso, nos meses seguintes, continuando trabalhando
naquele esquema graças as falsificações realizadas, os “pretos come‑
çaram [...] a fugir a pouco e pouco sem serem pagos”. No final de sete
meses do início desse caso, daqueles “200 pretos”, restavam, apenas,
80, que buscaram justiça em “Lourenço Marques, onde se dirigiram
a todas as autoridades, pedindo o seu pagamento”. Cansados de tanto
esperar e, possivelmente, percebendo que suas reivindicações dificil‑
mente seriam atendidas, “foram embora sem pagamento”.94
Rasgar ou adulterar os bilhetes/tickets que comprovavam os
períodos de trabalho foi uma prática corriqueira. Por um lado, essa
tática foi usada por patrões para não realizarem os pagamentos devi‑
dos. Ao incapacitarem o documento comprovatório da prestação dos
serviços, tentaram ficar isentos de realizarem as liquidações devidas.95
Por outro lado, os trabalhadores também usaram esse documento de
diferentes maneiras, tentando burlar ou resistir às imposições abusi‑
vas patronais ou administrativas coloniais. Os trabalhadores regres‑
sados para Moçambique das minas da África do Sul, após passarem

94 D’Andrade, Relatórios sobre Moçambique, 10­‑11.


95 Outra tática recorrentemente utilizada pelos empregadores, particulares ou públicos, para
controlarem a mão de obra africana, sobretudo a designada como indígena, foi a do paga‑
mento em etapas dos salários. Nesse caso, os vencimentos nunca eram entregues na sua
totalidade. Uma parte seria entregue apenas no final do contrato. Essa prática foi justificada,
por vezes, com a adoção de um discurso racista que entendia o negro/africano como na‑
turalmente propenso a vadiagem e ao vício pela bebida alcóolica, desenhando­‑o como um
irresponsável que deveria ser tutelado. Ver: AHM, DSNI, Diversos, caixa n.º 30.

261
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

pela fronteira e pagarem suas taxas, frequentemente rasgaram seus


bilhetes de identificação laboral. Numa postura de enfrentamento, a
inutilização desses cartões era acompanhada de “gesto de frases ofen‑
sivas ao [...] prestígio e a soberania portuguesa”.96
Noutros momentos, entendendo a importância daquele docu‑
mento comprovatório do tempo de trabalho para além de possibilitar
o recebimento de seu devido salário, os trabalhadores tentaram con‑
trolar seu próprio tempo e escapar das repressões que insistiam em
empurrá­‑los para um mercado de trabalho exploratório. Durante as
rusgas policiais nas cantinas e subúrbios de Lourenço Marques, com
o objetivo de reprimir o que era entendido como vadiagem e, ao
mesmo tempo, angariar mão de obra para ser empregada em trabalhos
forçados nas obras públicas ou em serviços particulares, especialmente
para os caminhos de ferro e para o porto, seria comum encontrar com
os indígenas que viviam nos subúrbios bilhetes/tickets “em branco, ou
apenas com um quarto de dia marcado”. A tática, vulgarmente conhe‑
cida, consistia de irem “as segundas­‑feiras pedir etiquetas as diversas
agências, não se apresentando, porém, nunca mais para trabalho, ou
[...] trabalhando apenas uma parte da manhã daquele dia, guardando
depois cuidadosamente as etiquetas para as apresentarem a polícia
quando ela os prende para serem compelidos ao trabalho”.97
As rusgas, muitas vezes usadas para angariar trabalhadores com‑
pelidos, constantemente forneceram mão de obra para as agências
de carga e descarga que atuavam no porto de Lourenço Marques.
A The Delagoa Bay Agency era uma dessas empresas. Em 1926,
remeteram dois de seus “indígenas compelidos” para a Secretaria dos
Negócios Indígenas. Ambos estariam cometendo irregularidades. No
caso específico do trabalhador de nome Mainganhane, a punição teve
como justificativa o seu desaparecimento “depois de se lhe marcar a
tiqueta” e só retornar à noite. As averiguações da Secretaria acabaram
desacreditando as alegações iniciais, não aplicando nenhuma punição
aos trabalhadores e criticando a postura caluniosa do empregador.98

96 Carta do Fiscal de Emigração em Ressano Garcia para o Secretário dos Negócios Indígenas, em
7 de dezembro de 1920. In: AHM, DSNI, Tribunais indígenas, caixa n.º 1605.
97 AHM, GG, Polícia – 1908­‑1914, caixa n.º 19.
98 AHM, DSNI, Tribunais Indígenas, caixa n.º 1634.

262
MATHEUS SERVA PEREIRA

22. In AHM, GG, Polícia – 1908­‑1914, caixa n.º 19. Variadas foram as formas empregadas para
a adulteração dos bilhetes/tickets com o objetivo de escapar da obrigatoriedade do trabalho. Esse
bilhete encontra­‑se anexado ao processo referente a reclamação de cantineiros, feita ao Gover‑
nador Geral, contra as rusgas policiais. Em resposta, o comissário de polícia apresentou seus
pontos que corroborariam a importância desse procedimento, juntando essa “etiqueta [...], na
qual se vem raspadas e emendadas as datas em que principiou e acabou a semana, já marcada até
sábado”. Na lateral da etiqueta, provavelmente anotado pelo comissário de polícia, encontra­‑se
escrito: “A data foi emendada, como se vê. Este ticket era para a semana de 14 a 21; e foi emen‑
dada para a data de 19 a 27. A rusga foi feita em 26 (6.ª feira) e o ticket estava em posse do
portador [ilegível]”. Estranhamente, atrás do documento, encontra­‑se um carimbo dos Caminhos
de Ferro de Lourenço Marques com a data de 19 de novembro de 1909. Sendo assim, por um
lado, é possível supor que Antônio, o empregado dono daquela etiqueta, não tenha necessaria‑
mente a adulterado, apenas reutilizando o mesmo documento para a semana seguinte do seu
primeiro período de contrato. Por outro lado, talvez o nível de adulteração para escapar das garras
policiais, ávidas em responder as demandas pelo fornecimento de mão de obra barata, tenha
atingido níveis mais elevados de refinamento, chegando a falsificação também de carimbos.

263
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

Casos como o envolvendo o serralheiro das oficinas do Cami‑


nho de Ferro de Lourenço Marques, Abílio Pereira, indicam o posi‑
cionamento paradoxal da Secretaria dos Negócios Indígenas.
Buscando proteger o que entendia como interesse dos indígenas, ao
mesmo tempo em que deveria garantir a sua exploração enquanto
mão de obra barata, sua relação com os empregadores de Lourenço
Marques foi constantemente motivo de atritos. A Secretaria inti‑
mou Abílio Pereira a “pagar a um indígena seu serviçal o saldo dos
salários de 2 meses”. O nome do serviçal era Fafetine e esse havia
trabalhado como doméstico para o intimado por, aproximadamente,
quatro meses. Indignado com a cobrança, o serralheiro escreveu uma
carta para a secretaria dizendo ser ele a vítima, já que Fafetine have‑
ria “feito desaparecer 14 lenços de assoar e 2 lenções”. Sua conclusão
era de que os “malandros” usavam daquela instituição por essa dar
“demasiado crédito as [...] queixas que são apresentadas” e que des‑
conhecia que “qualquer branco de quem o respectivo moleque se
queixa a essa Intendência, saia ileso pois que, sempre os moleques
são quem levam a melhor”.99
Uma das reclamações mais recorrentes daqueles a quem a secre‑
taria estava incumbida de proteger era a do não pagamento dos seus
salários. É plausível dizer que os baixos vencimentos e os recorren‑
tes mecanismos para evitar seu pagamento, levou a ocorrência de
pequenos furtos feitos pelos trabalhadores com o objetivo de
aumentarem suas rendas. Quando do término do contrato, o
empregador insistia em não pagar o que devia ao seu empregado,
geralmente justificando essa medida como uma forma de compen‑
sação dos seus prejuízos causados pelos supostos roubos ou por
outras faltas.100 O que me interessa aqui é perceber como ao res‑
ponderem as queixas apresentadas pelos indígenas contra seus
patrões, tentando controlar as relações entre trabalhadores e con‑
tratados e os abusos existentes, a Secretaria dos Negócios Indígenas
tornou porosa uma chave fundamental do regime colonial portu‑

99 Carta de Abílio Pereira para o Intendente dos Negócios Indígenas, 18 de dezembro de


1916. In: AHM, DSNI, Requerimentos, petições, reclamações e queixas, caixa n.º 148.
100 Carta do Secretário dos Negócios Indígenas ao Comissário de Polícia, 3 de setembro de 1916. In:
AHM, Requerimentos, petições, reclamações e queixas, caixa n.º 148.

264
MATHEUS SERVA PEREIRA

guês em Moçambique: a possibilidade de exploração da mão de


obra local com baixíssimo custo.
Em zonas rurais do sul de Moçambique, como Magude ou
Gaza, pesquisas puderam analisar algumas das características das
ações de resistência, ou os “meios enérgicos”, empregados pelas
populações nativas, coletivamente ou individualmente, contra os
abusos patronais e o poderio colonial durante o início do século
XX.101 No meio urbano de Lourenço Marques durante o período
investigado, mesmo contando com uma grande presença dessas
populações, não encontro registros de grandes turbulências levadas
a cabo pelos indígenas questionando abertamente as formas de
exploração colonial/europeia.102 A complexidade do engajamento e
da autonomia dos diferentes segmentos africanos às instituições
importadas produziram incontáveis e inesperadas reinterpretações.
Ao pensarmos a ação dos variados grupos populacionais enquadra‑
dos genericamente na categoria indígena de uma maneira poliva‑
lente e matizada, torna­‑se possível perceber como os mesmos
atuaram dentro das oportunidades que lhes foram facultadas através
de pressões que exerceram nas tensões existentes nos discursos e nas
práticas coloniais, estatais ou particulares, cotidianas de
dominação.

101 Ver: Allen F Isaacman, The tradition of resistance in Mozambique: anticolonial activity in the
Zambezi Valley, 1850­‑1921 (Berkeley: Heinemann Educational Publishers, 1976); Fred‑
erick Cooper, Allen Isaacman, Florencia Mallon, William Roseberry, Steve J. Stern, ed.,
Confronting Historical Paradigms: peasants, labor, and capitalist world system in Africa and
Latin America (Madison: University of Wisconsin Press, 1993).
102 A exceção são os ataques que a cidade sofreu em 1894 e a tentativa de greve dos trabalha‑
dores do porto e dos caminhos de ferro classificados como indígenas. O primeiro evento
ocorreu antes da consolidação da presença portuguesa na região e pode ser considerada
como mais um dos catalizadores para o esforço militar português contrário ao Reino de
Gaza e sua liderança, Gungunhana. O segundo caso, mencionado anteriormente e pesqui‑
sado por Jeanne Penvenne, foi rapidamente suprimido pela polícia e pela Secretaria dos
Negócios Indígenas. Sobre o primeiro caso, ver: Gabriela Aparecida dos Santos, Reino de
Gaza: o desafio português na ocupação do sul de Moçambique (1821­‑1897) (São Paulo: Ala‑
meda, 2010).

265
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

Batuques e experiências de mulheres trabalhadoras “indígenas”


em Lourenço Marques

Para o caso das mulheres classificadas como indígenas, as experiên‑


cias dentro do cenário urbano parecem ter permitido uma certa
liberdade para agirem, demonstrando uma agenciabilidade ativa na
construção de seus novos papéis dentro dessa sociedade que se
modificava rapidamente. Mulheres como as que foram registradas
como “serviçais indígenas em cantinas” ou que prestaram suas quei‑
xas na Secretaria dos Negócios Indígenas, se expuseram aos grandes
riscos de saírem do seu local de origem, ocuparam posições visíveis
no mercado de trabalho informal e formal assalariado urbano e esta‑
beleceram relações com pessoas muito diferentes daquelas como si.
Esse parece ter sido o caso da “indígena Victoria Antónia Rodrigues
moradora na Estrada Anguane”, subúrbios de Lourenço Marques.
Originária da Zambézia, no dia 17 de setembro de 1915 dirigiu­‑se
para a delegacia de polícia civil localizada na Avenida Central. Seu
objetivo era o de denunciar uma agressão que teria sofrido de “Fausto
Pereira, empregado nos Caminhos de Ferro desta Cidade e morador
próximo a igreja da Munhuana”, após repreendê­‑lo contra os galan‑
teios que o mesmo dirigia para sua filha. Victoria Rodrigues ainda
acrescentou à acusação uma dívida de dois meses adquirida por
conta dos trabalhos que havia prestado como cozinheira do acusado,
não tendo recebido a remuneração acordada. Como testemunhas
apresentou “o indígena Filomeno, morador na estrada da Mafalala
próximo a cantina do Manoel”.103
A acusação realizada por Victoria Rodrigues no corpo de polícia
civil foi remetida para a Secretaria dos Negócios Indígenas e preci‑
sou esperar mais de um mês para que alguma solução fosse tomada,
o que remonta as funções distintas entre esses dois órgãos criados
pelo colonialismo português. Ao primeiro cabia a repressão aos indí‑
genas. Ao segundo, o trato com os reclames dessa camada popula‑
cional. Durante a resolução do caso, o acusado Fausto Pereira
compareceu a Secretaria para responder às incriminações que sofreu.

103 AHM, DSNI, Diversos, caixa 103. Carta do Comissário de Polícia de Lourenço Marques

266
MATHEUS SERVA PEREIRA

Afirmou não possuir nenhuma dívida relacionada à prestação de


serviços com sua denunciadora. Com relação ao ferimento de Vic‑
toria, confirmou que havia sido infligido por ele, exatamente no dia
17, mas não por tê­‑la socado após a mesma reprimir seus galanteios
a sua filha. Toda essa cena de conflito doméstico ocorreu na casa de
Fausto Pereira, na Munhuana, que cedeu o espaço para a realização,
“por iniciativa da queixosa”, de “um batuque cafreal festejando o
batizado de uma criança indígena” de quem Fausto era padrinho.
Aquele era um “dia de festa”, mas que rapidamente enveredou­‑se
para outro rumo, pois, segundo o réu, Victória tinha o “vício inve‑
terado da bebida”, não tardando a se “embebedar e promover con‑
flitos”. Suas zaragatas estavam “a criar a desordem entre aquele que
tocava e dançava o batuque”, pois “estava a espancar uma mulher,
que diz­‑se ser sua filha”. A iniciativa do réu foi de encerrar aquela
cena expulsando Victória de sua casa “aos empurrões”. Para corro‑
borar sua versão, apresentou dois de seus serviçais domésticos indí‑
genas e mais “toda a gente que se divertia com o batuque” e dos
quais ignorava o nome.104
No final, o Secretário dos Negócios Indígenas não conseguiu
decidir quem estava com a razão no caso, pois as “testemunhas
apresentadas”, por ambas as partes, “não puderam fazer fé por serem
interessadas” por parte da queixosa como parentes “e do arguido por
mostrarem parcialidade natural de quem está nas condições, mais
ou menos, dependentes dos patrões”. A decisão final, por causa da
declaração de uma das testemunhas que alegava ter Victória Rodri‑
gues “feito comida em casa” de Fausto Pereira, foi a de obrigar o
pagamento da quantia de uma semana de trabalho para a
queixosa.105
Infelizmente, as informações sobre os batuques em si, quais
instrumentos foram usados, quantos participavam e quem eram os

para Secretário dos Negócios Indígenas, 21 de setembro de 1915.


104 AHM, DSNI, Diversos, caixa 103. Declaração de Fausto Pereira, 3.º Oficial dos Caminhos
de Ferro de Lourenço Marques (CFLM), direcionada ao Excelentíssimo Senhor Secretário
dos Negócios Indígenas, para esclarecimento do conteúdo das queixas de Victoria Antónia
Rodrigues, 26 de outubro de 1915.
105 AHM, DSNI, Diversos, caixa 103. Resolução da queixa contra Fausto da Sousa Pereira,
feita pelo Secretário dos Negócios Indígenas, 26 de outubro de 1915.

267
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

intérpretes musicais que celebravam um batizado num quintal da


Munhuana, numa mistura entre práticas culturais locais, diversão
regada ao álcool e catolicismo, não foram arroladas na documenta‑
ção. Talvez nem tenha sido propriamente um “batizado”, como é
referenciado na fonte. Aquilo chamado como tal pode ter sido uma
tradução daquele que registrou o caso quando de sua denúncia na
polícia. O “batizado” poderia ser alguma outra prática cultural de
apresentação do recém­‑nascido para a sociedade na qual o mesmo
pertencia. Conjecturas a parte, o ambiente circunvizinho do batuque
ocorrido na residência de Fausto Pereira corrobora aspectos apre‑
sentados no primeiro capítulo, qual seja, a confluência entre local
de moradia da população chamada indígena no espaço urbano de
Lourenço Marques no início do século XX, fosse na Estrada de
Anguane ou na Munhuana, e aqueles onde se realizavam os batu‑
ques na cidade. Trabalhadores e trabalhadoras indígenas e funcio‑
nários brancos de órgãos privados importantes da exploração
colonial, tudo isso encontrava­‑se em intenso contato quando da
realização de práticas socioculturais denominadas genericamente
como batuques dentro do espaço suburbano laurentino.
Outro ponto relevante é que, mesmo mantendo um aspecto
importante de diversão que poderia varar noite adentro, o batuque,
nesse caso, vai além de sua característica performática de entreteni‑
mento. Serve como ambiente propício para festejar a iniciação de
um novo indivíduo numa religião ou de celebração do seu nasci‑
mento. Com a mesma importância, possui a função de confirmação
de laços entre indivíduos com percursos distintos que, durante o
processo de expansão e diversificação da população citadina, desen‑
volveram novas experiências marcadas por intensos e desiguais con‑
tatos relacionais. Afinal, Victória Rodrigues foi classificada na fonte
como indígena, mais especificamente, como natural da Zambézia,
região central de Moçambique, não nos sendo informado quando
de sua migração para Lourenço Marques.106 Quanto à naturalidade

106 AHM, DSNI, Diversos, caixa 103. Petição de Victória Antónia Rodrigues Gil dirigida ao
Secretário dos Negócios Indígenas, 23 de outubro de 1915. Apesar de suas conclusões
tenderem para uma naturalização das relações socioculturais e que, marcadamente, excluem
relações de conflito, a obra de Capela continua pioneira e fundamental para compreender

268
MATHEUS SERVA PEREIRA

de Fausto Pereira, ela não é informada. No entanto, a documenta‑


ção deixa algumas pistas. Primeiramente, a própria ausência de clas‑
sificação parece significativa, na medida em que aqueles que trataram
com Fausto na Secretaria dos Negócios Indígenas puderam entendê­
‑lo como alguém igual a eles e, portanto, não viram a necessidade
de rotulá­‑lo. Segundo, o mesmo sabia ler e escrever, o que o afasta
da classificação como indígena. De acordo com o Censo de 1912, a
população total dos subúrbios de Lourenço Marques era de 12.726
indivíduos, sendo que apenas 1.012 eram alfabetizados. Desse mon‑
tante, os de “raça parda” e “pretos” totalizavam 12.421 pessoas,
sendo que dentro dessas categorias apenas 804 sabiam “ler e escre‑
ver”.107 Terceiro, apesar de trabalhar nos Caminhos de Ferro de
Lourenço Marques, um dos principais empregadores da camada
populacional indígena na cidade, Fausto Pereira possuía um cargo
especifico, relativamente elevado, de “3.º oficial”. Ou seja, ele até
poderia ser um sujeito capaz de caber no rótulo colonial de assimi‑
lado, caso fosse negro, o que não me parece ser o caso, sendo, pro‑
vavelmente, um homem europeu/branco.
Nesse sentido, existiriam sujeitos sociais bastante diferentes
participando dos batuques realizados dentro de Lourenço Marques,
fossem como público ou como atuantes na facilitação da organiza‑
ção desses eventos. Num quintal, encontramos uma miríade de per‑
sonagens, como Victoria Rodrigues, imigrante, natural da Zambézia,
antiga cozinheira de Fausto Pereira; sua filha, do qual nada sabemos,
assim como nada sabemos a respeito dos pais da criança que havia
sido batizada; a “indígena Rosa e o [...] moleque Domingos” empre‑

a Zambézia e a sua importância enquanto local de formação de uma cultura híbrida entre
práticas africanas e portuguesas, elemento que pode justificar a própria existência de um
batuque durante um batizado. Ver: José Capela, Moçambique pela sua história (Porto: Humus /
/ Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, 2010).
107 Guilherme de Azevedo, “Relatório sobre os trabalhos do recenseamento da população de
Lourenço Marques e Subúrbios, referido ao dia 01 de dezembro de 1912”, Boletim Oficial,
suplemento, 177­‑193. Segundo Zamparoni, que produziu um levantamento detalhado das
instituições de ensino existentes em Lourenço Marques e seus arredores, assim como a
respeito das legislações que regularam o ensino em Moçambique durante as quatro primei‑
ras décadas do século XX, apesar da existência, em 1907, de um número elevado de alunos
negros, “o ensino ministrado era extremamente incipiente” e o “domínio do saber letrado
[...] era inversamente proporcional à cor da pele e à importância numérica do segmento
racial na sociedade”. In: Zamparoni, “Entre “Narros” e “Mulungos”...”, 423 e 461.

269
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

gados domésticos de Fausto Pereira apresentados pelo mesmo como


testemunhas no momento de sua defesa; e o próprio acusado da
agressão e do calote, funcionário dos Caminhos de Ferro de Lou‑
renço Marques, proprietário e, provavelmente, branco. Além desses
personagens centrais, estaria “tanta gente” naquele quintal que era
impossível informar o nome de todos que se encontravam durante
a celebração.
Cerca de dez anos antes, o enxame de pessoas que se encontra‑
vam nas cantinas localizadas em Maxaquene e arredores, por conta
de batuques que vinham sendo realizados ali, reforçam uma popu‑
laridade dessas festas entre “pretas, pretos e soldados”.108 Grupos de
indivíduos aparentemente rivais, com formas de interação muito
diversas com a cidade e, consequentemente, com o poderio colonial,
alguns intimamente vinculados ao seu sucesso no início do século
XX, o incomodo não estava apenas nos sons, mas também no inter‑
cambio de diferentes sujeitos sociais que ocorria durante os batu‑
ques. Aquele ambiente de cantoria e dança era entendido como
propício para o estabelecimento e o reforçar de laços de solidarie‑
dade importantes num ambiente urbano hostil, onde a população
branca/europeia, apesar de poder ser facilmente esmagada por uma
maioria negra/indígena, teimou em excluí­‑las.
O processo de exclusão e despersonificação das camadas popu‑
lacionais denominadas indígenas consolidou­‑se com a utilização
dessa categoria construída e implementada pelo colonialismo através
de um processo que as tornava amórficas. Houve uma insistência
em silenciar suas vozes e excluí­‑las sistematicamente por meio de
um procedimento que inibia distinções individuais, caracterizando­
‑as como distantes de supostos inibidores sociais naturais de sua
existência e, consequentemente, propensas a atos vistos como vicia‑
dos, sobretudo quando essas encontravam­‑se afastadas de formas
de vida compreendidas como moduladoras naturais de suas formas
de ser e agir. Em setembro de 1928, por exemplo, a “Excelentíssima
Senhora D. Ana Salbany Simões Duarte” dirigiu­‑se até a sede da
Direção dos Serviços e Negócios Indígenas, localizada em Lourenço

108 O Distrito, 29 de dezembro de 1904. BNP

270
MATHEUS SERVA PEREIRA

Marques. Suas acusações recaiam sobre uma mulher “indígena de


nome Otasse ou Cotasse”. A “referida indígena” supostamente se
dedicaria “a prática de feitiçaria indígena”, tendo feito com que “seu
filho de dezoito anos”, Duarte Salbany, se encontrasse “absoluta‑
mente perdido”. Como consequência, havia deixado de “frequentar
o Liceu” e abandonado “a casa dos pais”. A solução exigida para o
caso era a deportação da acusada “para um distrito que não seja
próximo” de Lourenço Marques. Como testemunhas de acusação,
foram apresentadas “pessoas idôneas a serem ouvidas”, como “o
senhor Dr. Francisco Maldonado, Diretor da Investigação Crimi‑
nal, e o senhor Diretor da Agricultura engenheiro Guardado”.109
No mesmo dia da acusação, as testemunhas arroladas foram
prontamente ouvidas. O engenheiro Guardado foi sucinto em suas
declarações. Disse residir na cidade de Lourenço Marques e corro‑
borou as acusações iniciais. Segundo ele, “a indígena arguida se
dedica a prática de atos menos honestos”, e “parecendo­‑lhe por esse
motivo, ser de boa política desviar, embora temporariamente esta
indígena do Distrito”.110 Acusada primeiramente de feitiçaria e de
causadora de distúrbios em um lar de origem europeia, agora surgia
a insinuação de praticar “atos menos honesto”. As declarações pres‑
tadas pela segunda testemunha, Francisco Maldonado, corrobora‑
vam as acusações, ao afirmar que Duarte Salbany vivia em estado
de “certa mancebia com a arguida”, sendo de sua “convicção de que
a arguida se entregava a prostituição”. Sua proposta para a solução
do caso estava em conformidade com a dos dois outros depoentes.
Por causa do estilo de vida que levava e porque teria perturbado a
vida dum menor e, com isso, a da respectiva família de origem por‑
tuguesa, julgava­‑a “prejudicial no meio em que tem vivido e conve‑
niente qualquer medida que a afaste desse meio pelo menos
temporariamente”.111

109 AHM, DSNI, Caixa n.º 1634, Auto de notícia prestado pela Senhora D. Ana Salbany
Simões Duarte, em 26 de setembro de 1928.
110 AHM, DSNI, Caixa n.º 1634, Auto de Declaração prestado por Raul Augusto da Silva
Guardado no dia 26 de setembro de 1928.
111 AHM, DSNI, Caixa n.º 1634, Auto de Declaração prestado por Francisco António Vargas
Maldonado no dia 26 de setembro de 1928.

271
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

Após o arrolamento das denúncias, enviou­‑se um telegrama para


o fiscal de transportes de Xinavane, região distante cerca de 140
quilômetros da cidade de Lourenço Marques e onde estava a acusada,
perguntando o quão prejudicial seria a sua permanência na região.
A resposta foi rápida. No dia seguinte, informavam que a “indígena
Cotasse” dedicava­‑se a “prostituição e consta embriagar­‑se frequente
vezes achando conveniente sua saída”.112 Um policial foi enviado para
detê­‑la e a sentença final afirmou ser “prejudicial a presença neste
Distrito da indígena de nome Otasse ou Cotasse por se entregar a
vadiagem e prostituição”, estipulando a sua deportação, por três anos,
para o Distrito de Quelimane, no centro de Moçambique.113
Ao longo das averiguações, em nenhum momento é levantada
a necessidade de escutar aquela que era denunciada no caso. Sua
deportação sumária, que seguia um procedimento recorrente das
autoridades portuguesas na resolução de potenciais problemas com
as populações africanas,114 parece ter posto um fim ao drama fami‑
liar. Porém, para aquela acusada de feitiçaria, vadiagem, beberagem,
prostituição e desvirtuação de menor, não foi permitida a palavra,
nem mesmo identificar­‑se da maneira que desejasse. Na documen‑
tação indicam apenas sua possível região de origem, Xinavane,
tendo a grafia do seu nome variado entre Otasse, Cotasse ou Kotasse.
Como era de se esperar naquele contexto, o elo mais fraco dessa
equação foi quem pagou o preço mais elevado pela audácia do seu
envolvimento amoroso. No entanto, as entrelinhas revelam algo
além da opressão típica desse sistema. Os riscos que o contato entre
polos opostos da equação engendrada pelo colonialismo produziu
eram iminentes, assim como a existência, mesmo que perigosa, de
relações de contato e troca entre esses grupos ao longo do século XX,

112 AHM, DSNI, Caixa n.º 1634, Telegrama do Fiscal de Transporte de Xinavane para a
Direção dos Serviços e Negócios Indígenas no dia 27 de setembro de 1928.
113 AHM, DSNI, Caixa n.º 1634, “Assunto: Deportação de Indígenas”, de 28 de setembro de
1928.
114 A deportação como forma de controle da insubordinação das populações nativas foi uma
política recorrente da administração colonial portuguesa. É possível encontrar diversos
casos que tiveram essa mesma resolução. Ver: AHM, DSNI, Curadoria e Negócios Indí‑
genas, caixas n.º 573 e 602; AHM, DSNI, Tribunais indígenas, caixa n.º 1632; AHM,
DSNI, Transgressões e prisões, caixa n.º 83.

272
MATHEUS SERVA PEREIRA

especialmente por conta das relações sociais que o processo de cons‑


trução de Lourenço Marques e de sua malha urbana produziram.
Apesar das sistemáticas tentativas de apagamento das indivi‑
dualidades e das possibilidades de fala daqueles que se encontravam
sob o domínio colonial português, a necessidade de organizar uma
administração capaz de gerir a dominação proporcionou momentos
em que camadas excluídas puderam emitir algum som que reverbe‑
rou até os nossos dias. Exatamente em razão da regulamentação e
da vigilância que o Estado colonial português buscou manter sobre
os ambientes de vivência e convivência daqueles percebidos como
indígenas no meio urbano, são as entrelinhas dessa documentação
que indicam a existência de diferentes combinações de experiências
que produziram transformações pelas quais aqueles indivíduos pre‑
cisaram passar para conseguirem encontrar formas consideradas
minimamente dignas de sobrevivência. Foneticamente, Otasse,
Cotasse e Kotasse não são significativamente diferentes entre si.
Essas variações demonstram as dificuldades, ou uma falta de inte‑
resse, em grafar corretamente um nome não­‑português. As diferen‑
tes maneiras de escrita do nome abrem portas para pensarmos a
relação entre os processos de segregação e silenciamento colonial
sobre o qual viveram as populações ditas indígenas que se encontra‑
vam em Lourenço Marques e uma tática empregada para evadir­‑se
das abordagens repressoras coloniais. Em 1908, o Secretário dos
Negócios Indígenas, em seu relatório sobre a regulamentação do
“trabalho indígena”, insistiu na necessidade da criação de uma maior
vigilância sobre o transito desses indivíduos, pois era “sabido [...]
que, em regra, o preto dá sempre nomes trocados, quer o seu, quer
o dos pais, indunas, régulos, etc”.115 Da relação que “o preto” esta‑
belecia com seus nomes, para a utilização disso como mecanismo
de burla das restrições impostas pelo colonialismo, trocar de nome
ao longo da vida não era, necessariamente, algo tão inusitado. Varia‑
dos grupos étnicos do sul de Moçambique possuíam uma relação

115 Francisco Xavier Ferrão de Castello Branco, “Relatório precedendo a proposta de regula‑
mentação do trabalho indígena, apresentada ao conselho do Governo”, in Província de
Moçambique. Relatórios e Informações. Anexos ao Boletim Oficial. 1908­‑09 (Lourenço Mar‑
ques: Imprensa Nacional, 1909).

273
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

com o seu nome bastante distinta daquela predominante no mundo


europeu/ocidental. Como inúmeros relatos de cunho etnográfico
existentes para a região apontam, era comum que após diferentes
cerimônias, principalmente as de puberdade, o nome de nascimento
mudasse para outro de sua escolha pessoal.116
Otasse, Cotasse ou Kotasse, assim como Maria ou [Bisse] que,
diferentemente, buscou defender seus interesses dirigindo­‑se para a
Secretaria dos Negócios Indígenas, foram algumas dentre tantas
outras mulheres responsáveis pela criação do mundo “temperado” que
o escritor José Craveirinha encontrou nos subúrbios de Lourenço
Marques. Como lembra Jeanne Penvenne, as críticas sobre uma escrita
androcêntrica da História lançaram luz na historiografia africanista
para a importância de pensar as mulheres africanas, especialmente para
aquelas que se encontravam num contexto urbano. Historicamente
tornadas invisíveis ou simplesmente silenciadas, foram mencionadas
pelas vozes dominantes constantemente em termos negativos. Sempre
que não se enquadravam no modelo da ideologia patriarcal “sobre a
apropriada autoridade social masculina, [...] articulada pelo poder dos
homens mais velhos e pelo direito nativo parcialmente codificado pelo
colonialismo” foram classificadas como desviantes.117
Nesse sentido, a suspeita que rondava o “indígena Fanana Pen‑
dane, [...] do régulo Capezulo” apresenta alguns aspectos da imbri‑

116 Ayres d’Ornellas, Raças e línguas indígenas em Moçambique. Memória apresentada ao Con‑
gresso Colonial Nacional (Lisboa: A Liberal – Oficina Tipográfica, 1901), 48; Fernando de
Castro Pires Lima, Contribuição para o Estudo do Folclore de Moçambique (Porto: Separata
da revista de etnografia n.º 14. Museu de Etnografia e História, 1934), 14; J. R. dos Santos
Júnior, A alma do indígena através da etnografia de Moçambique (Lisboa: Instituto de An‑
tropologia da Universidade do Porto, 1950), 15; António Augusto Pereira Cabral, Raças,
usos e costumes dos indígenas da Província de Moçambique (Lourenço Marques: Imprensa
Nacional, 1925), 36; Henry Junod, Usos e costumes dos Bantu. Tomo I – Vida social (Campinas:
Unicamp, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2009), 73 e 109.
117 Jeanne Marie Penvenne, “Seeking the factory for women: Mozambican urbanization in
the late colonial era”, in Journal of Urban History, vol. 23, n.º 3, (1997), 343. No original:
“only local womem of peri­‑urban lineages, who farmed under the authority of a socially
appropriate male, could fit the idealized patriarcal social model articulated by senior males
and partially codified in colonial ‘native’ law” [tradução livre]. Para um balanço sobre
questões de gênero nos estudos africanistas, ver: Catherine M Cole, Takyiwaa Manuh,
Stephan F. Miescher, Africa after gender? (Bloomington and Indianapolis: Indiana Univer‑
sity Press, 2007). Ou, Kathleen Sheldon, “Writing about women: approaches to a gendered
perspective in African History”, Writing African History, ed. John Edward Phlips, 465­‑490
(Rochester, NY: University of Rochester Press, 2005).

274
MATHEUS SERVA PEREIRA

cada relação construída entre dominação masculina, formas de


dominação política colonial e a apropriação das novas instituições
coloniais por parte daquelas que se encontravam subjugados por
elas. Dirigindo­‑se para a sede administrativa de Bela Vista, locali‑
zada próximo a região da Catembe, ao sul da cidade de Lourenço
Marques, Fanana reclamou com o administrador, em outubro de
1929, de que “sua mulher, de nome Mitimbane ou Micuiche Alarge”
havia fugido “de madrugada, em direção [àquela] cidade”. Afir‑
mando ser “um aleijado” que mal podia se deslocar em muletas,
solicitou a intervenção do diretor dos Serviços e Negócios Indígenas
para mandar sua mulher “regressar as terras para [...] tomar conta
da criança” de dois anos que havia, supostamente, abandonado.
Fanana e o administrador de Bela Vista suspeitavam que Mitimbane
ou Micuiche Alarge deslocara­‑se para Lourenço Marques com o
intuito “certamente [de] entregar­‑se a prostituição”.118
A visão de autoridades administrativas coloniais sobre o afluxo
de mulheres africanas, de autoridades locais chefiadas pelos chefes
locais, de homens “indígenas” trabalhadores, todas figuras mascu‑
linas, parece convergir na leitura de que a presença feminina em
Lourenço Marques, principalmente daquelas mulheres que não
mantinham laços fixos com formas de dominação masculina que
regiam as relações de parentesco ou alianças matrimoniais no sul de
Moçambique, representou uma ameaça às consolidadas maneiras
de controle e dominação existentes, quaisquer elas que fossem.
A construção de formas de pensar e, consequentemente, de ações
administrativas coloniais, inseriram essas mulheres dentro dos pro‑
cessos de reconfigurações sociais que ocorreram com o crescimento
acelerado da cidade relacionando­‑o com a diminuição maciça da
presença masculina nas zonas rurais. Especialmente no que diz res‑
peito às autoridades administrativas, essas temeram o afastamento
das mulheres das tarefas agrícolas como fator que “poderia pôr em
risco a manutenção do sistema de usufruto de uma força de trabalho
masculina sazonal e barata, quer para as minas quer para os serviços

118 AHM, DSNI, Caixa 1609. Carta do Administrador de Bela Vista para o Senhor Diretor
dos Serviços e Negócios Indígenas, 19 de outubro de 1929.

275
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

internos à colônia e, ao mesmo tempo, abalar os mecanismos de


reprodução biológica e social das comunidades”.119

Demonstrando a crescente presença negra/indígena/africana na


cidade, os dados estatísticos para o período analisado revelam que,
pelo menos para a primeira década do século XX, o número de
homens e mulheres nativos em Lourenço Marques manteve­‑se
equiparado. Em 1897, o mapa estatístico da população da cidade
de Lourenço Marques dividia seus dados em “maiores, até 7 anos
de idade, de 8 a 14 anos e de 15 a 21 anos”. Os números para “afri‑
canos, masculino” maiores e entre 15 e 21 anos era de 1.001 indi‑
víduos, enquanto que para “africanos, feminino” era de apenas
370.120 Para 1904, o Boletim Oficial informou existirem 9.849 habi‑
tantes em Lourenço Marques, dividindo a população em duas cate‑
gorias, europeus e africanos. A primeira possuiria 4.691 pessoas e a
segunda 4.888.121 Oito anos depois, novos dados estatísticos, dis‑
tinguidos por local de moradia, entre “cidade” e “subúrbios”, apon‑

119 Zamparoni, “Entre ‘Narros” e ‘Mulungos’”, 280.


120 Arquivo Histórico Ultramarino (doravante, AHU), Direção Geral do Ultramar (doravante,
DGU), 3.ª Repartição, Caixa 2764, 1885­‑1898, Estatísticas.
121 Boletim Oficial, no 48, 1904, Biblioteca Nacional de Portugal (doravante, BNP).

276
MATHEUS SERVA PEREIRA

taram um total de 11.366 homens e 5.979 mulheres. Em 1928, um


novo levantamento da população habitante de Lourenço Marques
constata que o total da “população africana” era de 23.090, 15.685
homens e 7.405 mulheres.122 Sendo assim, ocorreu um crescimento
em relação a 1897, quando cerca de 26% da população que poderia
ser classificada enquanto africana da cidade era feminina, para 34%,
em 1912, mantendo essa proporção estável em 1928.
As informações estatísticas produzidas pelos agentes coloniais
durante esse período são altamente variáveis.123 Algo que interferia
demasiadamente na fiabilidade desses números era a estrutura de
cobrança de impostos criada pelo colonialismo. Como a população
classificada como indígena deveria pagar o “imposto da palhota”,
considerando­‑se cada mulher casada como uma unidade tributável,
foram criadas táticas que buscaram enganar os recenseadores para
que o imposto a ser pago não fosse demasiado elevado ou para
evadir­‑se completamente da tributação.124 A discrepância existente
entre o número de palhotas e o número de adultos apresentado pelo
Secretário Geral para o Intendente da Emigração, referente as cir‑

122 Rita­‑Ferreira, “Os africanos de Lourenço Marques”.


123 Carlos Santos Reis, A população de Lourenço Marques em 1894 (um censo inédito) (Lisboa:
Publicações do Centro de Estudos Demográficos, 1973).
124 O “imposto da palhota” foi o nome dado em Moçambique ao imposto que deveria ser pago
ao Estado colonial pela população africana classificada como indígena. A palhota era o
termo empregado em português para designar a habitação “indígena”. Ao longo do período
colonial, sua cobrança variou bastante, inicialmente podendo ser pago em espécimes, mas
rapidamente passando a ser obrigatório o seu pagamento em dinheiro. De maneira geral,
ainda que o imposto tenha incidido sobre os africanos considerados indígenas do sexo
masculino, a forma de cobrança foi comumente feita a partir do número de palhotas exis‑
tentes numa determinada região e habitadas por um núcleo familiar composto por homem,
mulher e filhos. É consenso na bibliografia que a criação de um mecanismo tributário por
meio da cobrança do referido imposto em Moçambique correspondeu, conjuntamente com
a expropriação de terras e a implementação do trabalho forçado, um dos elementos essen‑
ciais na construção de uma força de trabalho dentro de parâmetros capitalistas, assim como
a estrutura do Estado colonial dependia diretamente da arrecadação conseguida com essa
tributação, o que explica o esforço hercúleo na sua cobrança. Mesmo que as mulheres ditas
indígenas não tenham sofrido diretamente com a necessidade do pagamento desse imposto,
é recorrente encontrar relatos de abusos cometidos por autoridades coloniais que, na au‑
sência do pagamento do tributo, raptavam mulheres e crianças até que seus respectivos
maridos ou pais pagassem o imposto da palhota. Ver: José Capela, O Imposto de Palhota e
a introdução do modo de produção capitalista nas colónias. (Porto: Afrontamento, 1977); Maciel
Santos, “Trabalho forçado na época colonial – um padrão a partir do caso português?”,
Hendu, vol. 4, n.º 1, (2014): 9­‑21.

277
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

cunscrições do Distrito de Lourenço Marques, revelam como a


estrutura produzida para codificar a realidade existente era influen‑
ciada pela própria estrutura colonial implementada para explorar
aquela realidade. O mapa do “número de palhotas e do número
provável de indivíduos adultos da raça indígena, de ambos os sexos”
para aquela região era de tal maneira discrepante, que, segundo os
dados apresentados, existiriam mais palhotas do que indivíduos
residentes no distrito. Independente da ineficácia da burocracia
colonial em realizar levantamentos estatísticos fidedignos no início
do século XX, a discrepância entre esses números provavelmente está
relacionada aos receios das populações em relação às campanhas de
recrutamento para o trabalho forçado. A fuga de suas regiões de
habitações, abandonando suas palhotas, quando da chegada de
algum administrador colonial, pode ter terminado por produzir esse
número maior de residências em comparação ao dos habitantes.

Gráfico baseado em: AHM, DSNI, Caixa 64, Mapas estatísticos dos Distritos de Loureço
Marques e Gaza enviados pelo Secretário Geral para o Intendente da Emigração, em 16 de
maio de 1907. O total de palhotas contabilizadas foi de 29.062 e o de adultos 28.403.

Esses números demonstram que, de maneira bastante seme‑


lhante a outras cidades coloniais africanas que surgiram e/ou cres‑
ceram durante o início do século XX graças as fortes pressões

278
MATHEUS SERVA PEREIRA

migratórias, a presença de mulheres negras era significativamente


inferior à masculina.125 Porém, era uma presença importante nas
dinâmicas socioculturais que se desenvolviam naquele período. Em
seu trabalho sobre as operárias nas indústrias de transformação da
castanha do caju em Lourenço Marques, durante o colonialismo
tardio (1945­‑1975), Jeanne Penvenne levanta, como pontos funda‑
mentais para o incentivo à migração feminina negra/africana para
a cidade, fatores relacionados aos desastres ecológicos causadores da
pauperização da vida nas zonas agrícolas, econômicos e outros de
ordem pessoal, majoritariamente relacionados a vivência no âmbito
matrimonial.126 Porém, como afirma Valdemir Zamparoni, os
números existentes para o colonialismo prematuro (1890­‑1940)
“apontam que eram as mulheres jovens que estavam na cidade e não
aquelas que, por um motivo ou outro, tinham vivenciado o esgar‑
çamento de seus laços matrimoniais, como as divorciadas e
viúvas”.127
Como aponta Kathleen Sheldon, as experiências de vivência das
mulheres africanas no espaço urbano colonial moçambicano estive‑
ram diretamente relacionadas às oportunidades de trabalho assala‑
riado e às transformações que o meio urbano propiciava às formas
de constituição da família.128 As mulheres classificadas como indí‑
genas exerceram diversas atividades em Lourenço Marques, não
sendo apenas prostitutas ou serviçais. Um exemplo disso são as ven‑
dedoras de carvão, as vendedoras de lenha ou as “vendedeiras de anás
e mangas” que ocupavam tendas no mercado municipal ou transi‑
tavam pelas ruas de Lourenço Marques ofertando seus produtos.

125 Outras cidades africanas passaram por processos semelhantes ao de Lourenço Marques
nesse período, inclusive quando pensamos sobre a própria atividade laboral dessas mulheres
e das dificuldades que enfrentaram. Um desses casos foi analisado em: Luise White, “A
colonial state and an African petty bourgeoisie: prostitution, property, and class struggle
in Nairobi, 1936­‑1940”, in Struggle for the city: migrant labor, capital, and the State in urban
Africa, ed. Frederick Cooper, 167­‑194 (Beverly Hills, California: SAGE Publications,
1983).
126 Jeanne Marie Penvenne, Women, migration & the cashew economy in Southern Mozambique:
1945­‑1975 (Oxford: James Currey, 2015).
127 Zamparoni, “Entre ‘Narros’ e ‘Mulungos’”, 282.
128 Kathleen Sheldon, “Markets and Gardens: placing women in the history of urban Mo‑
zambique”, Canadian Journal of African Studies, vol. 37, n.º 2/3 (2003): 358­‑395.

279
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

23. In Rufino, ed., Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de Moçambique. Volume X, 7. Na le‑
genda: “‘Makalala!’ As pretas que vendem carvão”.

24. In Rufino, ed., Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de Moçambique. Volume X, 9. Na le‑
genda: “Tipos de serviçais ‘Landins’. Ao centro: Vendedeiras de Lenha”. A fotografia do meio
retrata as mulheres que se dedicavam a venda de produtos fundamentais para a vivência cotidiana
naquela Lourenço Marques do início do século XIX. A fotografia da direita, por seu turno, parece
ser um exemplo das mulheres de tenra idade que, como apresentarei adiante, arriscaram­‑se como
“serviçais domésticas”.

280
MATHEUS SERVA PEREIRA

25. In Rufino, ed., Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de Moçambique. Volume X, 11. Na
legenda: “Vendedeiras de Ananázes e Mangas”. Nas fotografias dessas trabalhadoras e traba‑
lhadores é importante notar como seus pés aparecem, sempre que é possível ver, descalços. Como
apresentado nesse capítulo, o vestir­‑se de determinada maneira ou estar­‑se calçado foram im‑
portantes distintores do grau civilizacional da população e, consequentemente, da maneira como
foram inseridos em lógicas de exploração de sua força de trabalho.

281
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

Um tipo de exercício profissional específico não necessaria‑


mente inibiu outras tentativas de maximizar as potencialidades
financeiras que o espaço urbano permitia. Uma “indígena serviçal”,
que havia sido “contratada em Inhambane” como lavadeira, por
exemplo, as “altas horas” da noite de 17 de outubro de 1915 foi presa
por sair da casa dos patrões para “entregar­‑se a prostituição”.129
Prostituir­‑se talvez tenha sido a única forma que a mesma encontrou
para receber algum vencimento. Prática recorrente na contratação
de serviçais domésticas, principalmente aquelas que se encontravam
em situações precárias de redes de proteção, o não pagamento de
salários pelos patrões ocasionou situações como a apresentada pela
“indígena Tamuéla”, em julho de 1916. Recorrendo à Secretaria dos
Negócios Indígenas para poder abandonar o emprego na casa de
um funcionário dos Correios e retornar aos cuidados da “indígena
Rosaria”, quem a trouxe para Lourenço Marques, Tamuéla contou
ter vindo “ainda criança” da Ilha de Moçambique para a capital.
Tendo trabalhado por quinze anos naquela casa, sem nunca ter sido
paga, exigia as “mensalidades em dívida pelos serviços” e a “sua
liberdade”.130 Encontrei caso semelhante em 1916­‑1917, quando o
alferes da Secretaria dos Negócios Indígenas foi acusado de utilizar
nos serviços domésticos em regime semelhante a escravidão a
“menor Suzana, indígena de Quelimane”.131 A utilização do serviço
de mulheres vindas para Lourenço Marques, muitas vezes ainda
crianças, distantes de suas regiões de origem, empregadas nos afa‑
zeres domésticos em residências de funcionários administrativos
coloniais portugueses em esquemas de exploração da mão de obra
muito semelhantes a escravidão foi denunciado por agentes que
encabeçaram o processo de consolidação do colonialismo português
na região. Percebido enquanto uma anomalia desse processo, cau‑
sado por pessoas supostamente mal­‑intencionadas, e não como uma
característica intrínseca do próprio sistema colonial, Freire de
Andrade foi um dos que afirmou que era recorrente “o fornecimento

129 AHM, DSNI, Tribunais Indígenas, caixa n.º 1603. Ver, também: AHM, DSNI, Diversos,
caixa n.º 29.
130 AHM, DSNI, Requerimentos, petições, reclamações e queixas, caixa n.º 148.
131 AHM, DSNI, Requerimentos, petições, reclamações e queixas, caixa n.º 149.

282
MATHEUS SERVA PEREIRA

gratuito de criados a determinados funcionários públicos, dando


resultados bastante lastimáveis”132
Essas mulheres também agiram muitas vezes recorrendo a uma
defesa de seus interesses por meio do acionamento dos órgãos admi‑
nistrativos coloniais. Defendendo sua autonomia enquanto traba‑
lhadoras e possuidoras de posses, a “indígena Inhkuge” apresentou­‑se
na Secretaria dos Negócios Indígenas, em 1918, para prestar queixa
contra o “auxiliar Antonio [...], com quem vivia”. Reclamou que o
mesmo “a abandonou”, levando vários objetos que lhe pertenciam,
como “uma cama, uma mesa, um banco, dois baldes, um ralador,
cinco panelas, um cinto de missangas, um ferro de engomar, um
pilão, cinco pratos, dois copos, uma chaleira, duas canecas, dois
barris, uma lata, um galo e uma galinha”.133 Caso semelhante ocor‑
reu em novembro de 1917. Joana, residente na estrada de Marra‑
cuene, subúrbios de Lourenço Marques, queixou­‑se do “indígena
de nome Cantine”, empregado como condutor de riquichós. Joana
havia abandonado Cantine por conta dos “maus tratos que este lhe
afligia”. Agora, acusava seu ex­‑amante de estar se negando a devol‑
ver “uma quantidade de roupa de uso de sua filha Indavaze”, “29
chapas de zinco” – fundamentais para a construção de residências
nos subúrbios – e “alguma louça”. O objetivo de Catine seria o de
tentar reatar o relacionamento. Porém, Joana afirmava que seu
desejo era apenas o de reaver seus objetos.134
Percebendo a crescente presença feminina “indígena” em Lou‑
renço Marques, a administração colonial buscou regulamentar a
presença dessas mulheres, sobretudo como trabalhadoras nos esta‑
belecimentos comerciais denominados como cantinas. De maneira
geral, a interpretação dos regulamentos coloniais sobre as cantinas
e, principalmente, sobre as mulheres “indígenas” que trabalhavam
nesses locais, recaiu numa leitura das mesmas como prostitutas a

132 D’Andrade, Relatórios sobre Moçambique, 11.


133 AHM, DSNI, Requerimentos, petições, reclamações e queixas, caixa n.º 149. Vale destacar
o grande número de objetos referentes a um mobiliário para casa que indica um status que
poderia ser relevante para a categorização dessas mulheres como “assimiladas” ou, para o
desespero dos enquadramentos rígidos produzidos pelo colonialismo, uma categoria inter‑
mediária entre “assimilada” e “indígena”, que veio a ser a tônica no espaço urbano.
134 AHM, DSNI, Requerimentos, petições, reclamações e queixas, caixa n.º 149.

283
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

serviço dos cantineiros.135 Inúmeras portarias insistiram em coibir


o emprego da mão de obra feminina nesses estabelecimentos por
associá­‑las a focos de desmoralização do meio citadino. Uma das
primeiras medidas ocorreu em fevereiro de 1903, quando o Gover‑
nador Geral solicitou a exigência do registro de “botequins servidos
por mulheres” por estes estarem produzindo “escândalo e
desordem”.136
Ao mesmo tempo, os proprietários das cantinas buscaram, de
diversas maneiras, burlar os regulamentos de moralização e propa‑
gação da sobriedade dentro do mundo urbano laurentino. Por vezes
uniram­‑se, como em 1909, quando tentaram, sem sucesso, restringir
“as rusgas aos indígenas vadios” realizadas pela polícia e que tanto
prejudicava o seu comércio.137 Noutros momentos, foi a Secretaria
dos Negócios Indígenas que, entre 1915 e 1916, enveredou uma
campanha contrária a ocupação de mulheres em cantinas e do seu
emprego na prostituição. Segundo o secretário do órgão, “nos arra‑
baldes da cidade” algumas cantinas estariam empregando “mulheres
indígenas na venda de bebidas, gêneros alimentícios e outras mer‑
cadorias do uso especial dos indígenas”. Os cantineiros estariam
aproveitando­‑se disso para explorar “essas mulheres consentindo
que elas se entreguem a prostituição”.138 As averiguações policiais
afirmavam que, pelo menos, sessenta e nove cantineiros dos subúr‑
bios de Lourenço Marques teriam “mulheres indígenas nas canti‑
nas” e, como forma para evitar repressões das autoridades coloniais
e burlando os regulamentos existentes, afirmavam “viver marital‑
mente” com elas.139 Após convocarem os proprietários dos estabe‑
lecimentos comerciais e “indígenas [...] moradoras da Malanga”
para deporem, escutarem as testemunhas e recolherem as declara‑

135 Valdemir Zamparoni, “Copos e corpos: a disciplinarização do prazer em terras coloniais”,


Travessia, n.º 4/5, (2004): 119­‑137.
136 AHU, DGU, 1.ª Repartição, 1.ª Seção. 1903 – Correspondência. Em resposta ao telegrama
enviado pelo Governador Geral para Lisboa, foi autorizada a publicação da portaria.
137 Carta assinada por 51 proprietários de cantinas ao Governador Geral da Província de Moçam‑
bique, 29 de novembro de 1909. In: AHM, GG, Processos – Polícia (1908­‑1914), caixa n.º19.
138 Carta do Secretário dos Negócios Indígenas para o Comissário de Polícia Civil, 18 de outubro de
1915. In: AHM, DSNI, Transgressões – prisões. Caixa n.º 7.
139 Carta do Comissário de Polícia Civil de Lourenço Marques para o Secretário dos Negócios Indí‑
genas, 31 de março de 1916. In: AHM, DSNI, Transgressões – prisões. Caixa n.º 7.

284
MATHEUS SERVA PEREIRA

ções dos depoentes, o Secretário dos Negócios Indígenas e o Comis‑


sário de Polícia Civil não conseguiram comprovar as acusações
iniciais. Ambos concluíram que, para resolver aquilo que viam como
amoral, seria necessário alterar o regulamento que permitia aos can‑
tineiros manterem “serviçais mulheres indígenas” em suas lojas
desde que existisse a corroboração de que essas eram suas
amantes.140
Como aponta Saheed Aderinto, diferentes pesquisas têm enfo‑
cando a prostituição enquanto forma de trabalho que envolve moni‑
torização das relações sexuais como um fenômeno que surgiu no
continente africano durante o período colonial e, principalmente,
nos centros urbanos que foram fundados e/ou que cresceram durante
esse contexto.141 As interpretações desenvolvidas pelos contempo‑
râneos a respeito dessas mulheres que conseguiram se manter rela‑
tivamente independentes graças aos serviços prestados nas cantinas
ou em outros espaços, esconderam uma vasta e variada gama de
realidades construídas a partir das possibilidades de interações exis‑
tentes no mundo urbano. O ato de prostituir­‑se em Lourenço Mar‑
ques efetivamente foi uma das muitas maneiras que as mulheres
classificadas como indígenas encontraram para angariar recursos,
uma forma de vida relativamente autônoma e, consequentemente,
inserirem­‑se nas transformações produzidas pelo colonialismo e
capitalismo na região. O incômodo causado pela presença feminina
negra/africana dentro do espaço das cantinas, predominantemente
masculino, que possibilitava a interação entre grupos sociais consi‑
derados marcadamente distintos, contrariava cotidianamente o
esforço intelectual e administrativo de segregação. A existência de
“serviçais mulheres indígenas” representou um risco à construção
do mundo colonial marcado por categorias estanques.
Seguindo um edital promulgado em dezembro de 1902, o livro
de registro “das mulheres indígenas serviçais, dos donos de cantinas”

140 Autos de Declaração prestados ao Secretário dos Negócios Indígenas em 30 de maio e em 01 de


junho de 1916. In: AHM, DSNI, Transgressões – prisões. Caixa n.º 7.
141 Saheed Aderinto, “Pleasure for sale: prostitution in colonial Africa, 1880s­‑1960s”, in Pros‑
titution: a companion to mankind, ed. Frank Jacob, 469­‑480 (Frankfurt am Main: Peter Lang,
2016).

285
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

contabilizou 73 entradas, entre 1903 e 1905. Alguns anos depois,


em 1907, os relatórios de Freire D’Andrade apontavam para a exis‑
tência de 669 estabelecimentos comerciais licenciados para a venda
de “vinhos e outras bebidas” em Lourenço Marques. Sua descrição
desses estabelecimentos era bastante depreciativa. Segundo o
Governador Geral, muitas das cantinas seriam estabelecimentos
precários, “onde o cantineiro se instala com dois ou três barris de
vinho, e, sentado a fumar, com a preta ao lado, procura atrair e
explorar por todos os modos o negro”142 O jornal O Progresso, em
março de 1905, dizia que como resultado de uma rusga nas cantinas
da Malanga teriam sido encontradas “23 pretas acusadas de exerce‑
rem a prostituição”.143 O que esses exemplos apontam é para um
número de cantinas muito maior do que as registradas e, apesar
dessas variações numéricas, fica evidente que a presença feminina
negra/indígena nesse tipo de comércio era bastante comum.
Com relação aos registros das mulheres serviçais nas cantinas,
não foi possível saber ao certo quem se dirigiu para o órgão admi‑
nistrativo colonial e forneceu as informações. Ao longo do docu‑
mento, a mudança na caligrafia e pequenas alterações no formato
da anotação dos dados, indicam que não foi sempre o mesmo fun‑
cionário que transcreveu as informações. Foram descritas caracte‑
rísticas físicas capazes de tornar as registradas identificáveis, como
a altura, o formato do rosto, da boca e do nariz, o tipo de cabelo e
a cor dos olhos. A cor da pele aparece como outra característica
importante. Os desígnios usados para defini­‑la foram “preta”,
“parda” ou “bronzeada”. Em nenhuma das entradas existiu a preo‑
cupação em anotar uma suposta “raça”, “sub­‑raça”, “tribo” ou “etnia”
a qual essas mulheres poderiam pertencer. O mais próximo que
chegamos de algum indicativo provável disso são as referências
genéricas de “sinais” físicos distintivos, como orelhas furadas ou
tatuagens. Também pareceu relevante para a administração colonial
saber o local de nascença e a qual “régulo” as respectivas registradas
estavam ligadas. As descrições físicas sugerem que essas mulheres

142 D’Andrade, Relatórios sobre Moçambique, 6.


143 O Progresso, 21 de março de 1905. BNP.

286
MATHEUS SERVA PEREIRA

estiveram presentes no momento do preenchimento do livro. Para


além disso, é possível conjecturar que em determinados momentos
as próprias registradas forneceram algumas das informações, pois é
anotado que uma delas ignorava “o régulo a que pertence”.144
Das 73 registradas, 72 afirmaram serem solteiras e uma viúva.
Todas foram categorizadas como exercendo a profissão de serviçais.
Suas prováveis idades variaram entre 14 e 35 anos, sendo a média
da idade de 24 anos. Dos sinais que apresentavam em seus corpos,
aquelas que possuíam algum indicativo de pertença sociocultural
foram 25. Dessas, 24 tinham tatuagens em diferentes partes do
corpo. Do total das mulheres tatuadas, três também possuíam as
orelhas furadas, uma outra tinha furo nas orelhas, mas não tatua‑
gens. Para além desses símbolos que ostentavam, 63% das “mulheres
indígenas serviçais” apontadas mostravam em seus corpos marcas
das duras vidas que levavam. Uma delas era cega do olho esquerdo,
três possuíam “o rosto com cicatriz de varíola” e 43 traziam cicatrizes
na testa, no rosto, no pescoço, nos braços e nas mãos. Esse era o
caso de Maria e Maria Lougame. Mãe e filha trabalhavam na can‑
tina de José Antunes, localizada na Avenida Central. A primeira,
com 30 anos, tinha “cicatrizes em ambos os braços”, a segunda, com
14 anos, apresentava “uma cicatriz no braço direito e outra na testa”.
O caso mais dramático era o da serviçal na cantina de João Freire
de Oliveira, na Avenida D. Carlos. Fátima, com 25 anos e natural
de Inhambane, foi descrita com “três cicatrizes por queimadura e
falta de uns dentes na arcada dentária superior”, possivelmente pelos
maus tratos infligidos por seu patrão. Fátima havia fugido de seu
serviço, retornando após seis meses de ausência.145
Assim, encontramos nessa documentação registro de mulheres
na casa dos 24 anos, aparentemente sem laços matrimoniais fixos e/
ou restritivos, algumas ostentando marcas de pertença sociocultural,

144 AHM, Administração do Conselho de Lourenço Marques (doravante ACLM), Livros de


Registro, Caixa n.º 3245.
145 AHM, ACLM, Livros de Registro, Caixa n.º 3245. Os agentes coloniais que realizaram
os registros podem ter confundido as “tatuagens”, muitas delas feitas por meio de escari‑
ficação, com o que foi chamado de “cicatrizes”. Na documentação aparecem essas duas
categorias (“tatuagem” e “cicatriz”), sendo que quando aparece o termo “cicatriz” existiu a
preocupação de localizá­‑las no corpo.

287
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

e, majoritariamente, tendo seus corpos marcados pelas duras con‑


dições de vida. Mas, na sua maioria, estiveram dispostas a
deslocarem­‑se de suas regiões de naturalidade rumo a Lourenço
Marques, reforçando a ideia da existência de uma rede de circulação
de mulheres “indígenas” em direção a cidade, desde o início do
século XX, de toda região sul de Moçambique e de alguns países
vizinhos.

26. In J. & M. Lazarus. A Souvenir of Lourenço Marques. An album of views of the town. (Lourenço
Marques: Tabler & Co., 1901), 43. Legenda: “Um grupo de mulheres cafres de Delagoa Bay”
[original: “A group of Delagoa Bay Kafir Women”]. Nessa imagem, possivelmente tirada nos
subúrbios da cidade, é plausível supor que estamos diante de mulheres muito semelhantes
àquelas registradas como serviçais em cantinas entre 1903 e 1905. Muitas delas estão vestidas
com o “quimáu” e com capulanas enroladas ao redor do corpo. Outras usam indumentárias,
como um lenço na cabeça, colares e brincos. Ainda estão sentadas, no canto inferior esquerdo,
duas meninas com vestidos e lenços cobrindo as cabeças, o que pode significar que frequentavam
alguma escola missionária. Perto delas, mais a esquerdo, está um homem negro com a coroa de
cera descrita por Henri Junod como um costume em vias de extinção, tendo, ao seu lado, outro
usando um chapéu coco. Além desses dois, estão posicionados em pé, no meio das mulheres,
dois homens brancos.

288
MATHEUS SERVA PEREIRA

Do número total, 17 mulheres não informaram seus possíveis


chefes locais, designados na documentação como “régulos”. Destas,
apenas duas afirmaram serem naturais de Lourenço Marques. As
outras que não vincularam sua naturalidade com o pertencimento a
uma chefatura aparecem sendo originárias de regiões relativamente
urbanizadas ou com alguma presença branca/europeia, como Gaza,
Inhambane ou Johanesburgo. Também são esses os casos daquelas
originárias de bairros dos subúrbios de Lourenço Marques, como
Chamanculo e Munhuana. É plausível supor que nessas regiões
fosse possível desvincular­‑se mais facilmente dos laços que a ligas‑
sem a uma chefatura e, consequentemente, a uma determinada
forma de vida. Porém, não é presumível afirmar isso categorica‑
mente. Afinal, o registro pode ter sido comprometido, já que não
fica explícito se foram os patrões ou as próprias “mulheres serviçais
indígenas” que passaram essas informações.

O que chama a atenção é o grande número de mulheres advin‑


das de algumas regiões específicas. Inhambane, Matola e, sobre‑
tudo, Catembe correspondem a 53% dos locais de origem registrados.
Ou seja, mais da metade das “mulheres serviçais indígenas” das
cantinas anotadas em Lourenço Marques vinham dessas três regiões.
Inhambane, situada cerca de 500 quilômetros ao norte de Lourenço

289
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

Marques, era uma província e uma vila/cidade com presença con‑


tínua portuguesa desde o século XVIII. Essa longevidade de sua exis‑
tência enquanto cidade pode ser um fator explicativo para a existência
das dez originárias de Inhambane, sendo seis da própria cidade e
quatro de chefaturas distintas. Para locais como a Matola e a
Catembe, que circundavam Lourenço Marques e eram influenciadas
diretamente pelas grandes transformações ocorridas naquele início
de século, manter laços com suas regiões de origem que facilitassem
suas vindas e vidas na cidade parece ter sido a tônica. Das dez
mulheres da Matola, três eram de distintos chefes locais, quatro
disseram pertencer ao “régulo Anhana” e três ao “régulo Achama”.
Para aquelas vindas da Catembe, essa confluência entre chefatura
de origem e o exercício da profissão de serviçais em cantinas é mais
significativa. Do total de dezenove contabilizadas, duas são coloca‑
das apenas como naturais da Catembe, uma do “régulo” Machaca‑
rete, duas do “régulo Guide” e quatorze do “régulo Mavaia”.
As trabalhadoras registradas como “mulheres indígenas servi‑
çais” das cantinas em Lourenço Marques apresentaram uma signi‑
ficativa similitude nas suas localidades de origem. Dificilmente
somos capazes de encontrar fontes sistemáticas para esse início do
século XX, para o sul de Moçambique, capazes de indicar esse tipo
de informação. Tal como os trabalhadores de origem Chopi descri‑
tos por Jeanne Penvenne146 ou Albino, natural de Quelimane que
conseguiu escapar do seu patrão provavelmente por meio de uma
rede de solidariedade de indígenas empregados na cidade provenien‑
tes dessa região, manipulando a seu favor a exploração colonial,
todos esses exemplos indicam a construção de estratégias comuns de
resistências na busca de melhores condições de vida na cidade. Para
os casos analisados nesse capítulo, mulheres, mas também os homens,
consideradas indígenas pelo sistema colonial português parecem ter
construído e se aproveitado de redes de conterrâneas que poderiam
ser acionadas como um dos mecanismos catalizadores da escolha por
Lourenço Marques como destino migratório. Fosse para arranjar
algum emprego que tornasse possível a vida na cidade ou para

146 Penvenne, African workers and colonial racism, 52­‑53.

290
MATHEUS SERVA PEREIRA

apoiarem­‑se em momentos de dificuldade, essa circulação entre os


percalços do espaço urbano laurentino e suas ligações com o mundo
rural existente nos arrabaldes da cidade ou em paragens mais distan‑
tes, indicam a existência de redes migratórias, sobretudo de mulhe‑
res, para além daquelas conhecidas pela bibliografia que se debruçou
sobre o tema para esse período e para essa região moçambicana.
Apesar de termos acesso a suas histórias, sobretudo em
momentos de conflito ou de desestruturação das vidas que vinham
construindo até o registro nas fontes, muitas das experiências des‑
sas mulheres analisadas no último tópico desse capítulo se relacio‑
nam com o movimento de migração para um centro urbano que
se esforçava em afastá­‑las, fixar­‑se numa nova realidade, lidar com
diferentes esquemas de dominação e, em alguns poucos exemplos,
arrecadar bens e prosperar. São exemplos como o de Inhkuge, que
reclamou na Secretaria dos Negócios Indígenas, órgão criado pelo
colonialismo, do seu ex­‑companheiro com quem havia vivido na
cidade. Exigindo seus bens de volta, acabou por nos dar sinais do
seu pertencimento à um mundo urbano que se buscava construir
como semelhante ao europeu, sobretudo por meio da adoção de
utensílios domésticos e de uso pessoal no cotidiano da sua vida.
Somos privados pela documentação da informação a respeito do
meio de obtenção de ganhos monetários de Inhkuge. Não sabemos
como ela conseguiu acumular seus bens. Mas temos pistas sobre
como isso seria possível. As fotografias publicadas, em 1929, por
Santos Rufino, apresentam a importância das mulheres no mer‑
cado informal de venda e abastecimento de produtos de consumo,
como a lenha ou as frutas. Noutros casos de mulheres que aciona‑
ram o poder colonial, como os de Tamuéla ou da menor Suzana,
que haviam migrado de regiões distantes para Lourenço Marques
e foram empregadas no serviço doméstico, fica evidente a fragili‑
dade das condições de trabalho encontradas por essas mulheres.
Ambas buscaram amparo na Secretaria dos Negócios Indígenas
por entenderem que se encontravam em condições abusivas de
trabalho.
Casos como os de Tamuéla ou da Suzana pouco corroboram a
construção imagética de Lourenço Marques como xitleta vasati, ou
seja, como “um lugar onde mesmo as mulheres podem ir e voltar

291
FORÇANDO AS FRESTAS DO PODER COLONIAL

com segurança”.147 Ainda assim, as experiências dentro do cenário


urbano laurentino parecem ter dado a homens e mulheres citadas
ao longo do capítulo uma certa liberdade para atuarem, demons‑
trando uma agenciabilidade ativa na construção de seus novos papéis
dentro dessa sociedade urbana colonial. Aparentemente, Otasse,
Cotasse ou Kotasse arriscou­‑se num relacionamento com um rapaz
branco de uma família portuguesa que havia conhecido exercendo
a prostituição. Seu futuro foi o de tantos outros que, por diversos
motivos, transpassaram as barreiras impostas pelo regime colonial:
o degredo. Outras como Fanana Pendane, supostamente tendo
fugido do marido e da área rural na qual vivia para o mundo urbano
de Lourenço Marques, caíram na leitura da dominação masculina
de que uma mulher só poderia sobreviver por meio da venda do seu
corpo. Foram diversas outras as formas encontradas por homens e
mulheres indígenas de se inserirem no mercado de trabalho lauren‑
tino. Um número particularmente significativo dessas mulheres
encontrou espaço para isso nas cantinas. Sendo lidas recorrente‑
mente como passivas de serem exploradas pelos cantineiros por
meio do seu emprego no ramo da prostituição, agiram como inter‑
mediadoras de um mundo predominantemente masculino mercantil
colonial e do mundo dos trabalhadores homens ditos indígenas em
busca de produtos e mercadorias. Arriscando­‑se fisicamente, evi‑
denciado pelos sinais existentes em seus corpos, essas mulheres não
deixaram de agir em proveito próprio, acionando as ferramentas que
lhes eram capazes dentro daquele cenário excludente.

147 Zamparoni, De escravo a cozinheiro, 212.

292
CAPÍTULO 5

Entre o subsídio e a subversão:


apropriações, negociações e resistências
ao redor dos “batuques” e das
“danças nativas”

APROPRIAÇÕES, NEGOCIAÇÕES E RESISTÊNCIAS

No dia 15 de junho de 1901, o jornal O Português divulgou, com


pompa, a ocorrência da “festa da abertura de uma igreja na Manhi‑
ça”.1 No dia seguinte ao anúncio, a vila de Manhiça, sede do atual
distrito de mesmo nome, localizado ao norte da cidade de Lourenço
Marques, recebeu a presença de representantes da imprensa e de
ilustres figuras da administração colonial. Durante os eventos
buscou­‑se demonstrar algumas qualidades do caráter evangelizador
e missionário civilizacional da empreitada colonial. Num determi‑
nado momento, um dos correspondentes da imprensa descreveu um
“espetáculo curioso”: a presença de “5.000 negros” obedecendo de
maneira ordeira a entrega, para um leilão beneficiente, das sacas de
arroz que plantaram e colheram nas propriedades da igreja.2
Após os demonstrativos potenciais da capacidade de produção
da terra e de exploração da mão de obra local, os convidados foram
levados para assistirem a um “grande batuque”. Organizado para
entreter o público presente, primeiramente dançaram cerca de 30
“mulheres da Manhiça”, que acompanharam o “compasso de um
enorme bombo”. Em seguida, foi a vez das “danças dos m’chopes”.
A apresentação foi dividida em diferentes movimentos. Conjunta‑
mente com a música provinda de “enormes marimbas e ao compasso

1 O Português, 15 de junho de 1901. BNP.


2 O Português, 26 de junho de 1901. BNP.

293
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

marcado pelo conjunto dos sons destas e dos bombos”, duas fileiras
de dançarinos realizaram “uns movimentos cadenciados e com
muita precisão”. Depois, dois outros grupos “executaram [...] dife‑
rentes números de dança”. Seus passos acompanhavam a música,
auxiliando­‑a com “violentas pancadas dadas com a perna direita a
cujos tornozelos traziam presos grandes números de bogathos”. Ape‑
sar de empregar adjetivos valorativos da capacidade dos músicos e
dançarinos, o autor dos relatos buscou explicar que aquelas práticas
não eram, necessariamente, novidades para si ou para seus leitores.
Afinal, mesmo ficando impressionado, o “espetáculo curiosíssimo
[...] [era] para nós já conhecido”.3
O relato do jornal apresenta os “5.000 negros”, as dançarinas
de Manhiça e os membros da orquestra de “dança dos m’chopes”,
como perfeitos representantes das populações nativas cooptadas pela
administração colonial. Ordeiros, trabalhadores, mas permanecendo
“exóticos” e, portanto, dependentes de agentes tutelares, represen‑
tavam o ideal almejado pela administração colonial. A ênfase dos
relatos publicados sobre aquela celebração recaiu na capacidade por‑
tuguesa em promover o controle e o ordenamento dessas populações
superficialmente delineadas na descrição do “grande batuque”. Efe‑
tivamente, a localização de Manhiça promoveu novas experiências
e, consequentemente, transformações em diferentes práticas socio‑
culturais locais. As coações desenvolvidas pela empreitada colonial
portuguesa tentaram empurrar esses grupos para lógicas da venda
de sua força de trabalho dentro de mecanismos exploratórios criados
pelo próprio colonialismo. Como consequência, ocasionaram, prin‑
cipalmente, fortes pressões migratórias para o meio urbano lauren‑
tino e para as minas da África do Sul.4

3 O Português, 26 de junho de 1901. BNP.


4 Ver capítulo anterior. Para uma visão geral sobre o impacto da ação colonial nas relações
de trabalho na região central e sul de Moçambique, ver: Eric Allina, “Para compreender a
‘escravidão moderna’: vozes dos arquivos”, Cadernos de Estudos Africanos [Online], n.º 33,
(jan­‑jun. 2017): 131­‑155. Disponível em https://journals.openedition.org/cea/pdf/2216.
Acesso em 21 de setembro de 2018.

294
MATHEUS SERVA PEREIRA

Mapa 2. “Map of South Eastern Africa”, publicado em Hugh Tracey, Chopi Musicians. Their
Music, Poetry, and Instruments (Londres: Oxford University Press, 1970), sem página. Manhiça
e Zavala, assinaladas no mapa, são regiões que aparecem nas fontes como locais da proliferação
de práticas musicais e dançantes que dialogaram com o poder colonial português. Manhiça, nas
proximidades de Lourenço Marques, era uma região importante por estar localizada na fronteira
entre os grupos denominados como shangana e chopi.

295
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

Ao longo da primeira metade do século XX, o linguajar colonial


português unificou diferentes práticas musicais e dançantes das
populações do sul de Moçambique inserindo­‑as no homogeneizante
termo “batuque”. Por um lado, os processos de transformação dessas
práticas no contexto de colonização portuguesa, promotores de uma
homogeneização e espetacularização das diversidades socioculturais
existentes naquela região, esforçaram­‑se em incorporá­‑las a retórica
da dominação. Por outro lado, acompanhar as entrelinhas das apre‑
sentações dos “batuques” e das “danças nativas” para um público não
praticante revelam traços de uma multifacetada experiência das
populações africanas sul moçambicanas que, por meio de suas ações,
produziram incontáveis e inesperadas reinterpretações e ressignifi‑
cações de suas próprias práticas e experiências.
A partir das celebrações que mimetizavam processos desenvol‑
vidos pela colonização portuguesa no sul de Moçambique, região
atualmente dividida administrativamente de forma semelhante ao
período colonial, correspondendo as províncias de Maputo, Gaza e
Inhambane, é possível evidenciar importantes perspectivas sobre as
lógicas do Império português na sua dinâmica com as práticas socio‑
culturais das populações nativas africanas.
Essa vasta gama de indivíduos interagiram com os agentes da
colonização não apenas como consolidadores das pretensões explo‑
ratórias portuguesas. O processo de espetacularização dessas prá‑
ticas e sua incorporação as manifestações de celebração do império
português, concomitante aos esforços de homogeneização das for‑
mas de dançar e cantar nativos, não foi completamente controlado
pelo poderio colonial. Servindo como momento propício para a
realização de reivindicações ou como um demonstrativo de que esse
controle não era tão efetivo como pretendia ser, os praticantes dos
“batuques” agiram de acordo com as possibilidades que lhes eram
abertas ou forçaram­‑nas para seus proveitos, terminando por pro‑
duzir inúmeras desventuras na construção do fenômeno colonial.
O exercício de apropriação concebido por forças coloniais, inclusive
por meio da consolidação das formas de nomear aquilo que era
visto, não foi capaz de inibir respostas daqueles que cantavam e
dançavam em contraposição aos artifícios racistas de expurgo de
suas práticas.

296
MATHEUS SERVA PEREIRA

Poucos foram os estudos que enveredaram para esse tipo de


análise. Nuno Domingos, ao produzir relevantes interpretações
sobre práticas culturais urbanas em Lourenço Marques e as relacio‑
nando com o que chama de “configurações imperiais”, acaba por
compreender o processo que analiso nesse capítulo como uma
“cooptação” necessária para uma “etapa seguinte de uma inevitável
patrimonialização”.5 Seguindo essa perspectiva, a abordagem defen‑
dida pelo autor tende a ignorar os percalços de colonizados e colo‑
nizadores dentro da construção do fenômeno colonial, principalmente
ao não levar em consideração a não linearidade desse desenvolvi‑
mento marcado por negociações e conflitos que o avançar do pode‑
rio colonial, ao longo do século XX, insistentemente buscou
silenciar.
Em 1933, por exemplo, o jornal Notícias publicou um inflamado
texto questionando a empresa de Caminhos de Ferro de Moçam‑
bique, localizada em Lourenço Marques, por ter organizado um
evento que constava na sua programação um “batuque indígena”.
Segundo António Sopa, o texto tinha sido escrito por um “assimi‑
lado”, que definiu o dançar e cantar daqueles que não haviam ascen‑
dido a tal condição civilizacional como “um dos piores, senão o pior,
dos usos e costumes antiquados dos indígenas”. O artigo publicado
no jornal defendia que a missão civilizacional do colonialismo por‑
tuguês não deveria restringir­‑se ao controle do corpo e do tempo do
trabalho, mas também atuar com o intuito de “ser mortos e enter‑
rados de todo e por todos aqueles que desejam ver a nossa Colónia
a boiar em ondas de progresso e prosperidades”. Como resultado
dessa ação, ocorreria a “elevação moral e material dos povos indíge‑
nas, que se acham ainda imersos na mais crassa ignorância”.6
O autor do protesto parecia desejar seguir um modelo, que
emergiu a partir da segunda metade do século XIX, do estabeleci‑
mento entre missões religiosas e a formação de bandas compostas
por africanos. As missões, sobretudo na costa oriental africana,

5 Domingos, “Cultura popular urbana e configurações imperiais”, 399.


6 Notícias, 3 de julho de 1933, apud. António Sopa, A Alegria é Uma Coisa Rara: Subsídios
para a História da Música Popular Urbana em Lourenço Marques (1920­‑1975) (Maputo:
Marimbique, Conteúdos e Publicações Ltda., 2014), 23­‑24.

297
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

utilizaram­‑se da formação de bandas como mecanismo de transfor‑


mação das práticas socioculturais nativas e, consequentemente, de
sucesso da causa civilizacional europeia. Como aponta Terence O.
Ranger,

missionários na década de 1880 tinham poucas dúvidas do valor


civilizacional e disciplinarizador da música. [...] Para os missio‑
nários europeus, a música representava o mundo da ordem em
contraste com as inexplicáveis monotonias e súbitas paixões dos
tambores africanos; a habilidade musical [acrescento, em parâ‑
metros de mensuração musicais ocidentais] foi tomada como um
sinal, uma promessa de potencial para a civilização.7

Diferentemente dessa perspectiva adotada pelos missionários


em Zanzibar, a festa de abertura da igreja organizada em Manhiça
buscou louvar o controle colonial português sobre as populações
“indígenas” de uma maneira paradoxal. Por um lado, normatizava
a exploração da mão de obra africana criada pela ação colonial lou‑
vando­‑a a partir da capacidade de controle desses trabalhadores e
trabalhadoras em promover uma elevada produção agrícola. Por
outro lado, os reclames de 1933 e a celebração do “espetáculo
curioso” de 1901 indicam uma ausência de consenso e linearidade.
São exemplos dos embates entre opiniões sobre a incorporação das
práticas socioculturais das populações africanas do sul de Moçam‑
bique ao fenômeno de patrimonialização ou folclorização dessas aos
projetos da nação portuguesa que englobavam o território
colonial.
São muitas as pesquisas que abordaram a questão da poesia oral
e de suas performances como importantes mecanismos de comuni‑
cação existentes em diversas formas de expressão da África subsaa‑

7 Terence O. Ranger, Dance and Society in Eastern Africa. 1890­‑1970. The Beni Ngoma (Los
Angeles: University of California Press, 1975), 12­‑13. No original: “Missionaries in the
1880’s had few doubts of the civilizing and disciplining value of music. […] For the mis‑
sionaries European music represented a world of order in contrast to the inexplicable
monotonies and sudden passions of African drumming; musical ability was taken as a sign,
a promise of potential for civilization” [tradução livre].

298
MATHEUS SERVA PEREIRA

riana. As primeiras abordagens antropológicas, sobretudo entre os


anos 1920 e 1940, foram produzidas por investigações etnográficas
que compreendiam essas formas de comunicação a partir da ideia
de “joking relationships” (“relações jocosas”). Nessa perspectiva clás‑
sica da antropologia, Robert H. Lowie, por exemplo, as definiu no
seu trabalho de 1920 como relações possuidoras de “uma função
mais séria. Os gozadores de um homem são também seus censores
morais”.8 Como explica Édison Gastaldo, “Robert Lowie percebeu
nas relações jocosas uma ‘função moral’ bastante importante, a de
controle social dos valores do grupo, cuja transgressão correspon‑
deria o risco da ridicularização do transgressor por seu parceiro de
jocosidade”.9
Especificamente sobre as “danças dos m’chopes” ou orquestras
de ngodo (no plural, migodo) compostas por tambores e marimbas,
essas designadas na língua chopi como mbila (no plural, timbila), o
destaque está nas investigações pioneiras do etnomusicólogo Hugh
Tracey, produzidas nos anos 1940, que buscaram compreendê­‑las
a partir de uma perspectiva que valorizasse a voz africana que ema‑
nava dessas práticas. Suas interpretações demonstram como a liber‑
dade de expressão reinante nessas formas orais de relatar as
experiências sociais e individuais dos chopi puderam ser acionadas
como mecanismos de críticas aos poderes dos chefes locais e as
práticas de controle europeu no continente africano. Seu livro, Chopi
musicians. Their music, poetry, and instruments, aprofunda aspectos
iniciados pelas pesquisas realizadas por Henri Junod no começo do
século XX e dialogam, sem estarem restritas, a uma compreensão do
complexo performático do ngodo como versões modernas de “joking
relationships”. A partir de sete migodo, o autor analisa as várias carac‑
terísticas dessa prática, como suas letras, dança e dançarinos, as
timbila, os tocadores do instrumento, suas formas de produção e
aspectos formais do ritmo tocado. Sua interpretação das orquestras

8 Robert H. Lowie, Primitive society (New York: Boni and Liveright, 1920), 100. No original:
“the relationship has a more serious function. A man’s jokers are also his moral censors”
[tradução livre].
9 Édison Gastaldo, “As relações jocosas futebolísticas. Futebol, sociabilidade e conflito no
Brasil”, in MANA, n.º 16 (2) (2010): 311­‑325.

299
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

e de suas canções não se restringiram a uma constatação dessas


apenas como formas de controle social. O autor identificou nessas
práticas um local “para expressar seus sentimentos ou vozes de pro‑
testos contra as dificuldades” do dia a dia.10
Concomitantemente a obra de Tracey, pesquisas no campo da
antropologia, como as de Max Gluckman, sobre os rituais de rebe‑
lião no sudoeste africano a partir da ncwala suazi, e de J. Clyde
Mitchell, sobre a dança kalela e as relações étnicas em um ambiente
urbano na região mineradora da Zâmbia, trouxeram novas perspec‑
tivas que influenciaram decisivamente os debates posteriores sobre
as experiências africanas em contexto coloniais e os usos políticos
de práticas socioculturais africanas.11 Na historiografia, o trabalho
de Terence O. Ranger, a partir de documentação arquivística,
demonstrou, de maneira semelhante a etnografia de Mitchell, as
complexas interações entre dança, música e processos sociais ocor‑
ridos em diferentes situações coloniais ao longo do período de
dominação europeia sobre a África oriental.12
Buscando posicionar­‑se nesse longo debate, os trabalhos de
Leroy Vail e Landeg White enfocaram suas críticas as obras de
Gluckman, Mitchel e Ranger, sobretudo a partir de uma interpre‑
tação, a meu ver exagerada, dos trabalhos desses autores como inter‑
pretes das “letras [das práticas estudadas] como meras versões
modernas das ‘joking relationships’”.13 As pesquisas de Vail e Landeg,
ao combinarem fontes orais e de arquivos, concluíram que, “apesar
do seu conteúdo irreverente”, a oralidade poética presente em diver‑
sas sociedades da África austral podem ser consideradas “como ‘um

10 Tracey, Chopi Musicians, 3. No original: “to express its feelings or voice its protests against
the rub of the times” [tradução livre].
11 Max Gluckman, Rituals of Rebellion in South East Africa (The Frazer Lecture, 1952) (Man‑
chester: Manchester University Press, 1953); e J. Clyde Mitchell, “A dança kalela: aspectos
das relações sociais entre africanos urbanizados na Rodésia do Norte”, in Antropologia das
sociedades contemporâneas: métodos, org. Bela Feldman­‑Bianco, 237­‑264 (São Paulo: Editora
UNESP, 2010). Texto publicado pela primeira vez em 1956.
12 Ranger, Dance and Society in Eastern Africa.
13 Leroy Vail e Landeg White, “Maps of experience. Songs and Poetry in Southern Africa”,
Power and the Praise Poem. Southern African Voices in History, 40­‑83 (Charlottesville: Uni‑
versity Press of Virginia, 1991), 50. No original: “treating the lyrics as merely modern
versions of ‘joking relationships’” [tradução livre].

300
MATHEUS SERVA PEREIRA

mapa’ da experiência de toda uma população”.14 Ou seja, muito


semelhante as conclusões de Tracey. Suas pesquisas demonstraram
o compartilhamento de características estéticas e como essas
desenvolveram­‑se, ao longo do tempo, a partir de processos histó‑
ricos específicos. A importância da “tradição poética” nessas socie‑
dades e de seu papel de mediação com o poder teria ocasionado, na
perspectiva desses autores, uma série de tentativas de apropriação
do seu papel como veículo de propaganda dos grupos dominantes,
assim como proporcionaram a perpetuação de leituras alternativas
à história oficial.15
Na recém pós­‑independência moçambicana e durante o con‑
texto de conflito armado que assolou o país entre 1977 e 1992, uma
parcela significativa das pesquisas produzidas no país preocupou­‑se
em recolher canções que versavam sobre as experiências dos traba‑
lhadores africanos no período colonial, atentando para a necessidade
de construir uma história do país em oposição às perspectivas colo‑
nialistas portuguesas.16 Como afirma Alpheus Manghezi, as can‑
ções “cantadas no passado como um ato de protesto e desafio contra
o opressor colonial”, que teriam sido usadas “direta e abertamente”
como “uma arma cultural contra o colonialismo”, teriam continuado
a ser cantadas com “grande firmeza” mesmo depois da
independência.17
Trabalhos recentes têm encarado essas práticas a partir da for‑
mação de um campo musical das populações de origem africana nos
subúrbios de Lourenço Marques e seus arredores, e de sua relação
com a construção de perspectivas a respeito das disputas pela con‑

14 Leroy Vail e Landeg White, “Plantation protest. The History of a Mozambican song”, in
Readings in African Popular Culture, ed. Karin Barber, 54­‑62 (London: The International
African Institute School of Oriental & African Studies, 1997), 54 [tradução livre].
15 Vail e White, “Maps of experience. Songs and Poetry in Southern Africa”.
16 Alpheus Manghezi, Massacane: uma cooperativa de mulheres velhas no sul de Moçambique
(Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique, 2003).
17 Alpheus Manghezi, Guijá, Província de Gaza 1895­‑1977: trabalho forçado, cultura obriga‑
tória do algodão, o Colonato do Limpopo e reassentamento pós­‑independência. Entrevistas e
canções recolhidas 1979­‑1981 (Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique, 2003), 4. Al‑
pheus Manghezi também recolheu canções que protestavam contra as políticas implemen‑
tadas no contexto pós­‑colonial. Um exemplo disso seria a canção “Tsutsumani Ngopfu
(Corram, Rápido!)”. Porém, na década de 1980, quando a pesquisa foi realizada, o autor
tendeu a evitar análises das letras dessas canções.

301
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

cepção de uma cultura moçambicana em oposição ao regime colo‑


nial.18 Outros têm enfocado como essas práticas podem ser
classificadas como constituintes de uma cultura popular urbana
laurentina e, sobretudo, como esse conjunto de manifestações esta‑
beleceram relações diversas com o poder colonial, dependendo do
contexto de interação que constituíram.19 Fosse através das tenta‑
tivas de patrimonialização dos chamados batuques nas cerimonias
oficiais do regime colonial ou pelo movimento das associações afri‑
canas existentes em Lourenço Marques na construção de um “fol‑
clore moçambicano” que simbolizasse um pertencimento nacional
a Moçambique em oposição a Portugal,20 esses estudos abordaram
as maneiras como as variadas formas de dançar e cantar das popu‑
lações chamadas de indígenas pelo colonialismo português foram
acionadas politicamente por agentes sociais que as praticavam ou
que as assistiam de acordo com os seus objetivos específicos.
De maneira geral, as apresentações, que genericamente apare‑
cem designadas nas fontes como batuques, passaram por um pro‑
cesso de espetacularização que as tornou, durante a primeira metade
do século XX, num momento propício para expressar desejos e inten‑
ções de maneira pública e coletiva. Cada prática, com suas particu‑
laridades, transformando­‑se na medida em que interagiam entre si
e com as modificações pelas quais eram obrigadas a passar com as
pressões exercidas pelos poderes coloniais, ganharam novos e ines‑
perados significados. Nesse sentido, é importante encarar de maneira
genealógica as apresentações desses ditos batuques realizadas para
um público não praticante. O fenômeno da espetacularização dessas
práticas por meio da orquestração de apresentações para um público
específico, composto majoritariamente por mulheres e homens
brancos/europeus, será aqui investigado por meio da análise de estu‑
dos de casos ocorridos ao longo da primeira metade do século XX.

18 Sopa, A Alegria é Uma Coisa Rara; Rui Laranjeira, A Marrabenta – sua evolução e estilização,
1950 – 2002 (Maputo: Minerva Print, 2014); Eléusio dos Prazeres Viegas Filipe, “A in‑
venção de uma sociedade lusotropical na era da descolonização em África: música e espaços
culturais em Lourenço Marques entre 1960­‑1974”; Eléusio dos Prazeres Viegas Filipe,
“Where Are the Mozambican Musicians?”
19 Domingos, “Cultura popular urbana e configurações imperiais”.
20 Craveirinha, O folclore moçambicano e as suas tendências.

302
MATHEUS SERVA PEREIRA

As frestas abertas pelo paradoxo colonial da diferenciação e assimi‑


lação das populações africanas ficam evidentes nesses exemplos,
onde pretendo perceber as maneiras como essas danças e músicas
foram acionadas em determinados contextos como subsídio dos
projetos coloniais e, em outros, como possibilidades de subversão
da ação colonial levadas a cabo pelos seus praticantes.21

SUBSÍDIOS

Na virada do século XIX para o xx, os “batuques de guerra”, as


“mulheres de Manhiça” com seus chocalhos nos pés e as “danças
dos m’chopes”, ou seja, uma vasta gama de práticas socioculturais que
demarcavam as construções históricas das fronteiras étnicas dos gru‑
pos populacionais do sul de Moçambique e produziam formas dis‑
tintas de construções sociais, haviam entrado em processos de
ressignificação marcados pelas cirandas da dominação colonial.
A inauguração de uma igreja católica, em 1901, exemplifica proces‑
sos de operacionalização dessas formas de cantar e dançar para a
celebração de um marco do domínio colonial português. Foram
apresentadas como uma forma de espetáculo capaz de representar
o exótico e o selvagem das populações nativas africanas, ao mesmo
tempo em que valorizavam a capacidade controladora portuguesa
sob as mesmas.
A tendência dos documentos coloniais portugueses de englobar
uma amplitude de africanos no termo “indígena” não parece ter
inibido a referência feito pelo jornal O Português a um determinado

21 Frederick Cooper considera “o colonialismo [...] um processo instável e incerto, ora ado‑
tando estratégias de incorporação das populações num império, ora privilegiando estraté‑
gias que visavam instituir a diferenciação e a subordinação da população conquistada”. Essa
definição nos permite compreender o poder colonial e, sobretudo, as relações entre esse
poder e as populações africanas, não como um poder totalizante. São nesses processos
cambiantes de incorporação e subordinação que as populações dominadas buscaram en‑
contrar brechas no jogo, hierarquicamente desigual e perigoso, da colonização. In: Frederick
Cooper, “Descolonização e cidadania – a África entre os impérios e um mundo de nações”,
in História de África. Capitalismo, Modernidade e Globalização (Lisboa: Edições 70, 2016),
337. Cooper apresenta um balanço sobre essa questão em Frederick Cooper, Colonialism
in Question: Theory, Knowledge, History (Los Angeles: University of California Press, 2005).

303
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

grupo étnico. Não foi coincidência o autor do texto ter sido capaz
de identificar características específicas ou achar relevante nomear
para o seu público apenas um etnomio dentre aqueles “5.000 negros”.
Esse é um detalhe significativo do processo de colonização na região
e das relações estabelecidas entre a ação portuguesa e esse grupo em
particular. Os “m’chope” ou simplesmente chopi, é um termo que
aparece grafado nas fontes de diferentes maneiras. Integram um
amálgama de grupos étnicos com diminutas fronteiras entre si, com‑
partilhando um universo de intercomunicação linguístico e institu‑
cional com outras etnias do sul de Moçambique. Uma bibliografia
contemporânea preocupada em perceber a historicidade das desig‑
nações étnicas em contextos coloniais africanos questiona a capaci‑
dade desse termo em designar objetivamente essas populações e
emprega termos de auto intitulação, como o de shangana, ronga,
tsua, bitonga e chopi.22 Os chopi estariam localizados majoritaria‑
mente no distrito de Zavala, na província de Inhambane, e vende‑

22 O debate sobre as noções de etnia não cabe, propriamente, neste livro. Vasto e complexo,
é consenso no meio acadêmico historiográfico a importância de compreender a etnia de
maneira processual e historicizada. Esse é um exercício analítico que remete aos trabalhos
iniciados nos anos 1960, por P. Mecier e sua constatação da inaplicabilidade da noção
clássica – e colonial – de etnia no seu estudo dos sumbas no norte do Benim. Trabalhos
posteriores, como os organizados por Leroy Vail, Elikia M’Bokolo e Jean­‑Loup Amselle
interrogam de maneira sistemática a noção de etnia nos estudos africanos. De maneira
geral, suas obras demonstraram a necessidade de as investigações enfatizarem os desígnios
étnicos como categorias históricas construídas de forma relacional e contextual. Sem atri‑
buírem um sentido único a determinados etnômios, essas pesquisas relativizaram os per‑
tencimentos étnicos sem negar aos indivíduos e grupos sociais o direito de reivindicar uma
ou mais identidades. Leroy Vail, ed., The Creation of Tribalism in Southern Africa (Berkeley
e Los Angeles: University of California Press, 1989); Jean­‑Loup Amselle e Elikia M’Boko‑
lo, org., No centro da etnia: etnias, tribalismo e Estado na África (Petrópolis, RJ: Vozes, 2017).
Para o contexto acadêmico brasileiro, dos quais fui influenciado, investigações como as de
Manuela Carneiro da Cunha, em diálogo intenso com a obra de Frederick Barth, aponta‑
ram para uma percepção da etnicidade não como um resquício pré­‑político ou um produto
de uma sobrevivência arcaica de um passado que luta contra as pressões da modernidade.
Antes disso, a autora percebia a etnicidade como um produto da própria modernidade,
entendendo assim a cultura de um determinado grupo étnico em situações de intenso
contato, como na diáspora africana ou nos encontros coloniais em África, como algo que
não se perdia ou se fundia, mas adquiria uma nova função, se tornando uma cultura de
contraste. Nesse sentido, as comunidades étnicas precisariam ser compreendidas como
formas de organização política, percebendo o pertencimento e a identidade étnica como
reinvindicações, possuidoras de uma linguagem própria que estava em constante reinvenção
e ressignificação. Manuela Carneiro da Cunha, “Etnicidade: da cultura residual mas irre‑
dutível”, in Antropologia do Brasil, 235­‑244 (São Paulo: Brasiliense, 1986).

304
MATHEUS SERVA PEREIRA

ram caro sua autonomia quando do processo de expansão e formação


do reino de Gaza, fundado pelos ngunis, originários da atual África
do Sul, no início do século XIX, por meio de movimentos migrató‑
rios que subjugaram outros povos que ocupavam a região sul
moçambicana.23 A resistência ao reino de Gaza pode estar no cerne
de uma aproximação dos chopi aos portugueses ocorrida desde o
final do século XIX. A mbila é uma espécie de xilofone ou, como
normalmente é chamada na documentação em português da época,
“marimba”, muito comum entre os chopi, e que possui diferentes
tamanhos. A mbila foi usada por orquestras financiadas pelos chefes
chopi que funcionavam, principalmente, como um importante
demarcador de pertencimento cultural empregado nas apresenta‑
ções do ngodo (no plural, migodo). Consistia de uma apresentação
de canções, acompanhadas por várias mbila e tambores, previamente
compostas pelo líder da orquestra e com intercalações demarcadas
entre as composições e performances de dançarinos e dançarinas
que, de maneira geral, encenavam momentos de glórias passadas do
grupo, situações do cotidiano, eventos globais, conflitos internos e
externos, exercendo um importante papel de comunicação.
Desde o início da expansão da presença europeia no Sul de
Moçambique, a partir da segunda metade do século XIX, as apre‑
sentações dos grupos chopi atraíram fascínio. Vicent Erskine, o
primeiro europeu a ir da nascente até a foz do rio Limpopo, descre‑
veu com deslumbramento, em 1875, o ngodo que havia presenciado
durante sua viagem. Quando chegou em uma importante localidade,
foi recebido por

Quatro ou cinco pianos nativos [...], e vários tambores, grandes


e pequenos, com chocalhos que contêm as sementes cafres fecha‑
das em capsulas de caniços; também outros chocalhos fixos em
alças, e um tipo peculiar preso acima da panturrilha e do torno‑
zelo da perna direita. O piano começou a melodia, que formavam

23 Ver: Gabriela Aparecida dos Santos, “‘Lança Presa no Chão’: Guerreiros, Redes de Poder
e a Construção de Gaza (Travessias entre a África do Sul, Moçambique, Suazilândia e
Zimbábue, Século XIX)” (Tese de Doutorado defendida no Departamento de História da
Universidade de São Paulo, 2017).

305
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

[sic] uma espécie de acompanhamento para o canto no ar; os


pequenos tambores tiveram sua própria parte e os grandes tam‑
bores a sua; os chocalhos de um tipo e os chocalhos nas pernas
também tiveram partes separadas. Os instrumentos de tipos dife‑
rentes foram tocados em conjunto, cada um na sua vez, e em
intervalos, uma vez que fosse considerado necessário; um
estrondo de todos veio num coro conjunto. O efeito foi bom, e a
música muito regular. No momento em que ela morreu quase em
silêncio, e então gradualmente foi ficando mais alto como se cada
instrumento entrasse em conversação, até que os grandes tam‑
bores, os chocalhos de mão, os chocalhos das pernas, a voz grave
e o coro vieram para o final crescendo, e depois gradualmente
morreram novamente. Eu nunca ouvi novamente música nativa
tão eficaz, em parte porque no nosso regresso, os homens estavam
ausentes em uma expedição guerreira.24

Características semelhantes às descritas por Vincent Erskine,


como a relação desse tipo de prática com funções militares, foram
percebidas no século XIX por militares portugueses que expedicio‑
naram pela região.25 As letras elaboradas previamente por um com‑
positor que as imprimia como um mecanismo de comunicação entre
aqueles que realizavam a performance e aqueles que a assistiam, as

24 Vincent Erskine, “Journey to Umzila’s, South­‑East Africa, in 1871­‑1872”, in The Journal


of the Royal Geographical Society of London, vol. 45 (1875): 56­‑57. No original: “Four or five
native pianos, or rather harmonium, were produced, and several drums, large and small,
with rattles containing the seeds of the Kaffir boom enclosed in reed cases; also other
calabash rattles fixed on handles, and a peculiar kind fastened above the calf and ankle of
the right leg. The piano started the tune, which formed a sort of accompaniment to the
singing or air; the little drums had their own part and the big drums their; the rattlers of
one sort and the leg­‑rattles also took separate parts. Instruments of one kind were played
in conjunction with each other, each in their turns, and at intervals, as it was deemed
necessary; a clash of the whole came in a chorus together. The effect was good, and the
music very regular. At time it died away almost to silence, and then gradually grew louder
as each instrument chimed in, till the big drums, hand­‑rattles, leg­‑rattles, bass voice and
chorus came to the final crescendo, and then as gradually died away again. I never heard
the native music again so effective, partly because on our return the men were absent on a
warlike expedition” [tradução livre].
25 Alfredo Freire de Andrade e José António Matheus Serrano, Explorações Portuguesas em
Lourenço Marques. Relatórios da Comissão de Limitação da Fronteira de Lourenço Marques
(Lisboa: Imprensa Nacional, 1894), 70­‑75.

306
MATHEUS SERVA PEREIRA

ricas coreografias ensaiadas, e, principalmente, suas grandiosas


orquestras de timbila, o instrumento musical que marcava com uma
característica ímpar o ngodo, rapidamente transformaram­‑se em
objeto de deslumbre e de análise dos administradores coloniais
portugueses.
Elencada como ponto focal dessas apresentações, em detri‑
mento dos outros instrumentos e elementos que compunham o
ngodo, as timbila ganharam destaque. O instrumento tornou­‑se o
centro nervoso dessas apresentações e das descrições produzidas
durante o período colonial sobre essa prática sociocultural. Henri
Junod, por exemplo, publicou um artigo, em 1927, dedicado à aná‑
lise do “piano nativo da tribo chopi”. Segundo o missionário e etnó‑
grafo suíço, os xilofones seriam instrumentos que recorrentemente
foram empregados pelos chamados bantu. Porém, os chopi teriam
desenvolvido técnicas tão apuradas na confecção e no tocar desses
instrumentos que justificaria considerá­‑los enquanto uma genuína
produção da genialidade desse grupo. Esse ponto seria corroborado
pelas “tribos bantus que os cercavam [que] não hesitavam em cha‑
mar os chopi de ‘mestres’ da mbila”.26
As timbila e seus tocadores, em variados contextos ao longo do
século XX, foram objeto de fascínio também por aqueles que busca‑
ram, por meio de suas lentes fotográficas, suprir os desejos e deman‑
das dos agentes coloniais na região e do público, sobretudo europeu,
por imagens dos territórios e povos colonizados. Na legenda da
imagem a seguir, publicada em 1929, consta o texto: “Um interes‑
sante grupo de tocadoras de ‘marimbas’, em Mocodoene”. Não nos
é explicitado qualquer pertença étnica dessas mulheres, apenas
sendo enfatizado a singularidade do grupo por meio da expressão
“Um interessante grupo”. O local exato da realização do registro
também não é explicitado. A casa de alvenaria pode indicar que a
fotografia tenha sido realizada na sede administrativa portuguesa ou
em algum outro espaço da colonização, como as estruturas de uma

26 Henry Junod, “The mbila orn ative piano of the Tchopi tribe”, Bantu Studies, vol.3:1 (1927),
275. No original: “The other Bantu tribes surrounding them do not hesitate to call the
Vatchopi the ‘masters’ of the mbila” [tradução livre].

307
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

missão religiosa. A Missão de Santa Maria de Mocodoene foi fun‑


dada em 1936, alguns anos depois da publicação da foto. No entanto,
o fato dessas mulheres estarem com “marimbas”, um instrumento
usado pelos chopi, e pela referência ao Distrito de Inhambane, local
de concentração do grupo étnico, é possível supor que fossem repre‑
sentantes chopi.

27. In Rufino, Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de Moçambique. Volume X, 36. Legenda:
“Um interessante grupo de tocadoras de ‘marimbas’ em Mocodoene”.

O “interessante grupo” não dizia respeito apenas aos instrumen‑


tos em si. O corpo feminino negro/africano esteve, desde o início
da dominação colonial europeia na África, relacionado a um pro‑
cesso de objetificação marcado pelos pressupostos racistas da colo‑
nização.27 As representações imagéticas dos corpos masculinos e
femininos negros africanos, ao virem de regiões distantes da metró‑

27 Para um balanço historiográfico sobre o assunto, ver: Iris Berger, “African Women’s History:
Themes and Perspectives”, Journal of Colonialism and Colonial History, v. 4, n.º 1 (2003).

308
MATHEUS SERVA PEREIRA

pole europeia, passavam por um processo de subalternidade que


reforçavam uma perda de autonomia territorial e corporal. Como
afirma Filipa Vicente, a “posse (ou o desejo de posse) [emanado no
ato de fotografar e expor] implicava [...] o direito de ver. A difusão
das imagens dos corpos de mulheres negras nos contextos portu‑
gueses e coloniais europeus [nos mais diversos formatos] demonstra
que o corpo racializado e de gênero de mulheres (sem nome) era um
tropo da hegemonia colonial”.28
A imagem de 1929, com mulheres, e não homens, como habi‑
lidosas na arte das timbila, indica alterações nas relações sociais
perpetradas pela ação colonial. Como apontam Vail e White o fato
do ngodo ser um gênero musical estabelecido que pressupunha for‑
mas estruturadas para as suas composições e apresentações limita‑
vam o espaço das mulheres a determinados momentos específicos,
como o da dança, sendo, portanto, o ngodo e, mais especificamente,
o manuseio das timbila, dominado pela presença masculina.29 Sendo
assim, o retrato do “grupo de tocadoras de ‘marimbas’” pode ser uma
encenação dos realizadores do registro imagético. A prática do ngodo
em si foi objeto de fascínio pelos olhares e ouvidos europeus que
estiveram no sul de Moçambique no contexto do colonialismo ves‑
pertino. A proximidade dos chopi com os portugueses, e os trânsitos
que isso proporciou, pode ter, em alguns casos concretos, estimu‑
lado transformações nas práticas das orquestras de timbila. Influen‑
ciadas pelo exotismo que essas formas culturais de manifestação
artística provocavam aos sentidos branco­‑europeus, outros grupos
sociais, nesse caso em específico o das mulheres, podem ter conse‑

28 Filipa Lowndes Vicente, “Black Women’s Bodies in the Portuguese Colonial Visual Ar‑
chive (1900­‑1975)”, Portuguese Literary and Cultural Studies, Special Issue: Transnational
Africas: Visual, Material and Sonic Cultures of Lusophone Africa, n.º 30/31 (2017): 17­‑18.
No original: “Those black bodies could be subject to a close­‑up look because they came
from distant geographies of subalternity that somehow “belonged” to the viewers. Posses‑
sion (or the desire for possession) implied, among other things, the right to see. The per‑
vasiveness of images of black women’s bodies in the Portuguese as well as in other European
colonial contexts – in photographic postcards, colonial propaganda leaflets, colonial exhi‑
bition ephemera or as illustrations in newspapers and magazines – demonstrates that the
gendered and racialized body of (unnamed) women was a powerful trope of colonial
hegemony”.
29 Leroy Vail and Landeg White, “The Development of Forms. The Chopi Migodo”, 125.

309
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

guido aproveitar­‑se da brecha aberta pelo domínio colonial, subver‑


tendo o controle masculino sobre as timbila, passando a praticar o
instrumento.
O poder das timbila também impressionou o administrador
colonial António Augusto Pereira Cabral, que as apresentou como
“o mais engenhoso instrumento usado pelos indígenas”.30 Outros,
como Fernando de Castro Pires Lima, que buscou realizar uma
tipificação do “Folclore de Moçambique”, chamou a mbila apenas
pela designação em português de marimba. O médico antropólogo
afirmou ser esse um “grande instrumento” e que

[c]ompõe­‑se a marimba de pequenos pedaços de madeira de


vários tamanhos, ligados entre si por cordas de couro. Por baixo
de cada pedaço de madeira são ligadas pequenas cabaças unidas
com cera. As cabaças são de vários tamanhos, a fim de corres‑
ponderem a uma escala musical. Estas cabaças são furadas e o
orifício coberto por uma película resistente, quase sempre extraída
dos intestinos de qualquer animal, sendo a mais usada a película
da asa do morcego. As cabaças e os pedaços de madeira são colo‑
cados numa armação também de madeira, o que permite facil‑
mente o seu transporte. Para tocar as Marimbas tem duas
baquetas de madeira com cabeças de borracha virgem. A Marimba
mais vulgar tem dez pedaços de madeira, que correspondem a
dez notas e a dez escalas, maiores ou menores. O compasso e o
ritmo são bem marcados e tocam, além de música indígena, músicas
europeias. Os régulos de categoria têm nas suas povoações orques‑
tras de Marimbas compostas de quatro, seis, oito ou dez Marim‑
beiros. Não quer isto dizer que não haja também orquestras de
doze, dezoito ou vinte Marimbas, tendo um chefe, ou, se quiser‑
mos, um regente de orquestra. [Grifos meus] 31

30 António Augusto Pereira Cabral, Raças, usos e costumes dos indígenas da Província de Mo‑
çambique (Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1925), 41.
31 Fernando de Castro Pires Lima, Contribuição para o Estudo do Folclore de Moçambique
(Porto: Separata da revista de etnografia n.º 14. Museu de Etnografia e História, 1934),
10.

310
MATHEUS SERVA PEREIRA

As interpretações de Fernando de Castro Pires Lima, que mes‑


cla a “música indígena” ao compasso e ritmo das “músicas euro‑
peias”, estavam baseadas em levantamentos que o mesmo fez com
funcionários da Companhia de Moçambique, localizada na Zam‑
bézia, e “indígenas” que foram até Portugal como parte do setor da
Companhia na Exposição Colonial Portuguesa, no Porto, realizada
em 1934. Curiosamente, região distante daquela majoritariamente
ocupada pelos chopi. Pesquisas feitas por Leroy Vail e Landeg
White, a partir de canções recolhidas nos anos 1970, junto dos
trabalhadores da Sena Sugar Estates Ltda, fundada nos anos 1920
na região previamente controlada pela Companhia de Moçambique,
apresentam a existência de uma tradição oral coletiva de rejeição ao
sofrimento causado pela empresa e, num sentido maior, do colonia‑
lismo em si. Como demonstram os autores, o emprego de uma
canção jocosa dentro de parâmetros tradicionais locais legitimou e
permitiu a existência dessas críticas, ao mesmo tempo em que foi
na “canção que as pessoas preservaram suas identidades”.32
O que permanece em aberto nessa interpretação é como o alvo
do protesto respondia aos ataques. Segundo Vail e White, as críticas
a exploração colonial­‑capitalista a partir de formas de protestos pre‑
viamente existentes nas sociedades africanas da região da Zambézia
teria permitido que aqueles que cantavam contra a exploração tives‑
sem maior probabilidade de escaparem das punições contra a sub‑
levação colonial, em comparação com outras formas de protesto
“ocidentais”, como greves, rebeliões armadas ou associações. No
entanto, a descrição e o tocar do instrumento chopi feita por Fer‑
nando Lima incorporava­‑o na cosmogonia da presença europeia na
África e, mais especificamente, no poder civilizacional exercido pelo
império português. Fazendo parte de um éthos nacional que ema‑
nava da metrópole englobando as possessões ultramarinas, o som
das timbila conseguiria deixar de ser “a música de Pretos”, tornando­
‑se para o “coração saudoso autênticas melodias da terra natal”. Sua
conclusão era de que mesmo sendo uma “música indígena, bem

32 Leroy Vail and Landeg White, “The Development of Forms. The Chopi Migodo”, 63. No
original: It is in the song that the people’s identity is preserved” [tradução livre].

311
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

tocada, é autêntica música portuguesa”, sendo “frequente ouvirem­


‑se os acordes do Hino Nacional” português.33
Não deixa de ser irônico imaginar que para ouvidos portugueses
aqueles sons tenham sido incorporados a uma perspectiva de repre‑
sentação da ação colonizadora civilizatória enquanto uma “autêntica
música portuguesa”. Afinal, as orquestras eram muito importantes
para as chefias chopi, sendo usadas pelos mesmos para representar
o seu triunfo cultural frente outras comunidades, inclusive a portu‑
guesa. De qualquer forma, foram os músicos e dançarinos de práti‑
cas como os migodo que passaram a ser constantemente selecionados
para representar a engenhosidade dos “indígenas moçambicanos”
em momentos específicos de celebração do Império português.

Espetacularização dos “batuques” e das “danças nativas”


como projeto colonial

As grandes exposições surgiram na segunda metade do século XIX


e ganharam força rapidamente, atingindo seu auge na primeira
metade do século XX. Tornaram­‑se um grande palco ritual no qual
os impérios selecionavam e produziam realidades das suas possessões
ultramarinas.34 Para Portugal, foi por meio delas que buscou­‑se
glorificar a “nação como um espaço pluricontinental”.35 Pesquisas
como as de Omar Ribeiro Thomaz e Patrícia Ferraz de Matos
demonstraram a importância dessas exposições na construção de
uma linha argumentativa que apresentava a colonização como fun‑
damental para a sobrevivência da nação portuguesa.36 No entanto,
ao enfocarem as exposições a partir da metrópole, deixaram de lado
as relações estabelecidas durante seus preparativos no terreno das
colônias e, consequentemente, os significados e as disputas que o

33 Lima, Contribuição para o Estudo do Folclore de Moçambique, 11.


34 Para uma análise sobre o fenômeno das exposições universais e sua relação com o poder
colonial europeu, ver: Raymond Corbey, “‘Ethnographic Showcases’, 1870­‑1930”, Cultural
Anthropology, vol. 8, no. 3 (1993): 338­‑369.
35 Omar Ribeiro Thomaz, Ecos do Atlântico Sul: representações sobre o terceiro império português
(Rio de Janeiro: Editora UERJ/FAPESP, 2002), 193.
36 Thomaz, Ecos do Atlântico Sul e Matos, As “Cores”do Império.

312
MATHEUS SERVA PEREIRA

processo seletivo daquilo que deveria ser enviado para ser exposto
poderia acarretar.
Como tentativa de produzir uma “experiência sensorial da vida
colonial”,37 a exibição de grupos humanos nessas exposições foi um
importante fator atrativo do público. Ao mesmo tempo, serviu como
mecanismo do desígnio pedagógico que permeou as exposições.
A participação viva de africanos da Guiné, Angola e Moçambique,
objetificados em gabinetes de curiosidade, ocorreram em diferentes
cidades e exposições em Portugal.38 Na I Exposição Colonial Por‑
tuguesa, realizada no Porto, em 1934, por exemplo, segundo o jor‑
nal Diário de Lisboa, nas suas habitações temporárias “os pretos
organiza[ra]m batuques e [fizeram] várias exibições”, todas elas
“acompanhadas com interesse espantoso pela multidão”.39 As
diversas exposição em solo português ao longo das três primeiras
décadas do século XX serviram como ensaios para a maior delas, que
veio a ocorrer em 1940. Foi na seção colonial da Exposição do
Mundo Português, realizada naquele ano, em Lisboa, que a parti‑
cipação de indivíduos nativos provindos das diversas possessões
portuguesas africanas foi substancialmente operacionalizada como
chamariz para a atração do público metropolitano e como conferidor
de legitimidade aos projetos coloniais portugueses.
A princípio, o comissário geral da Exposição do Mundo Portu‑
guês havia solicitado “um grupo de indígenas que reúna em tudo uma
forte expressão etnográfica” para serem remetidos para Lisboa. Sua
lista era grande. Instava o Governador Geral de Moçambique que,
por meio da Secretaria dos Negócios Indígenas, deveriam ser enviados
“4 a 6 indígenas da Zambézia”, “30 indígenas do norte da Colônia,
de preferência ‘macondes’, ‘angonis’ ou macuas [...] que ofereçam inte‑
resse para exibições”, “1 casal de mestiços do Ibo”, mais outras duas
famílias “compostas cada uma de 4 membros” da região de Inhambane

37 Leonor Pires Martins, Um império de papel: imagens do colonialismo português na imprensa


periódica ilustrada (1875­‑1940) (Lisboa: Edições 70, 2014), 166.
38 Para uma análise da primeira experiência centrada na presença de nativos nesse tipo de
exposição, ver: António Fernando Gomes Medeiros, “A primeira exposição colonial por‑
tuguesa e a representação etnográfica das províncias”, Dois lados de um rio: nacionalismo e
etnografias na Galiza e em Portugal (Lisboa: ICS, 2006).
39 Apud, Thomaz, Ecos do Atlântico Sul, 234.

313
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

e que pudessem construir “as cubatas típicas das respectivas regiões e


nelas habitarem consoante os seus usos”. Além desses, as festas que
estavam sendo organizadas deveriam contar com a presença de um
destacado grupo de “40 indígenas do Sul da Colônia, landins ou
machopes que possam exibir o celebre batuque dos guerreiros”.40

28. In O Império Português na Primeira Exposição Colonial Portuguesa: álbum­‑catálogo oficial: do‑
cumentário histórico, agrícola, industrial e comercial, paisagens, monumentos e costumes (Porto: Mário
Antunes Leitão: Vitorino Coimbra, 1934), 413. A fotografia da “Orquestra de chopes (marimbas)
de Moçambique” foi publicada em dois momentos. Ilustrou o “Roteiro. Resumo elucidativo do
visitante da Primeira Exposição Colonial Portuguesa”, publicado em um álbum­‑catálogo que
promovia a exposição. Domingos Alvão, autor das imagens oficiais da exposição, não aparece
referenciado, talvez pelo fato da imagem já possuir sua assinatura no canto inferior esquerdo e
por a ter publicado no mesmo ano em seu Álbum fotográfico da I Exposição Colonial Portuguesa.
Porto, 1934. Infelizmente, não encontrei informações sobre os membros da orquestra, nem nas
publicações específicas sobre a exposição de 1934, nem nos arquivos consultados.41

40 Carta do Comissário Geral da Exposição do Mundo Português para o Governador Geral de


Moçambique, de 21 de junho de 1939. In: AHM, DSNI, Diversos, caixa 84. Machope era
uma das muitas grafias do nome do grupo chopi.
41 Sobre a exposição de 1934 e seus registros iconográficos, ver: Maria do Carmo Serém,
A Porta do meio: a Exposição Colonial de 1934: Fotografias da casa Alvão (Porto: Centro
Português de Fotografia, 2001); Filomena Serra, “Visões do Império: a 1.ª Exposição
Colonial Portuguesa de 1934 e alguns dos seus álbuns”, Revista Brasileira de História da
Mídia (RBHM), v.5, n.º 1 (jan./2016 – jun./2016).

314
MATHEUS SERVA PEREIRA

A Secretaria dos Negócios Indígenas mostrou­‑se preocupada


com a solicitação. As correspondências entre administradores colo‑
niais indicam que os gastos para conseguir satisfazer as expectativas
metropolitanas seriam demasiado altos. A solução encontrada foi a
de selecionar com mais agudeza aqueles indivíduos que supostamente
melhor serviriam como atrativos na exposição e que, no conjunto,
seriam representativos do “indígena de Moçambique”. A preocupação
foi de, não conseguindo corresponder às demandas lisboetas, selecio‑
nar um “grupo de indígenas moçambicanos” para figurarem na Expo‑
sição do Mundo Português “formado por duas das mais representativas
sub­‑raças bantus” que povoavam o território.42
Sendo assim, em 27 de abril de 1940, saíram de Lourenço Mar‑
ques, rumo a Lisboa, 46 pessoas. Desse total, seis eram macondes,
três homens e três mulheres, todos com alguma habilidade específica
– escultores em madeira ou fabricantes de cestas e esteiras –, alguns
traziam no corpo tatuado “a marca tribal”. Desse total de indivíduos,
o principal destaque recaiu no grupo chopi formado por 30 homens,
cinco mulheres e cinco crianças. Todos estariam levando “os seus
trajes de batuque”. Os homens faziam parte de “uma orquestra de
timbila (vulgarmente, marimbas), com os seus bailarinos”. A popu‑
laridade e a fama dessa orquestra em específico pareciam ser signi‑
ficativas, o que indicava relação prévia com setores da administração
colonial. Comandada por um chefe local da Circunscrição de Zavala,
distrito localizado na atual província de Inhambane, distante cerca
de 350km de Lourenço Marques, os bailarinos e o “compositor de
melodias africanas que serão executadas pela orquestra” já teriam se
apresentado em outras cerimónias organizadas por órgãos adminis‑
trativos coloniais portugueses, com relativo sucesso, na África do Sul.
É importante destacar o local de procedência desse grupo, originário
especificamente de Zavala, o que pode indicar um capital cultural e
simbólico que tenha sido acionado pelos administradores coloniais
e praticantes das orquestras de timbila. Como aponta o etnomusi‑
cólogo Marílio Wane, o distrito, descrito pelo autor como “a terra

42 Circular do Chefe da repartição técnica de estatística para o Secretário dos Negócios Indígenas,
Lourenço Marques, 27 de abril de 1940. In: AHM, DSNI, Diversos, caixa 84.

315
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

dos chopi por excelência”, é considerado pela bibliografia como o


berço dessas orquestras.43 Um administrador colonial defendeu a
validade da escolha desses bailarinos e músicos apelando para o
conhecimento disseminado de que “as orquestras chopi de timbila”
seriam a “expressão mais apurada da música indígena e os chopi são,
das populações do nosso território, aquele que melhor traduz o gênio
musical dos bantu”.44 Buscava­‑se repetir o sucesso que a “Orquestra
de chopes (marimbas) de Moçambique” havia feito em 1934.45
Na década de 1930 e 1940, as apresentações organizadas por
diferentes setores do poder colonial, com objetivos relacionados a
um processo de espetacularização da vida e das práticas sociocul‑
turais específicas das populações nativas sul moçambicanas, numa
ação de apropriação das mesmas para preceitos dos projetos colô‑
nias, era algo consolidado. As orquestras de timbila foram incor‑
poradas nessas apresentações ignorando aspectos que as inseriam
nas lógicas dos migodo e dentro de nexos de poder dos chopi,
conectando­‑as ao poderio colonial português. As experiências
advindas desse processo foram ferramentas importantes para a
demonstração e para a consolidação do controle colonial. Ao longo
das primeiras décadas do século XX, diferentes agentes do colonia‑
lismo português na região organizaram um “grande batuque” para
a recepção de autoridades e figuras ilustres do cenário político por‑
tuguês ou para membros de famílias reais europeias durante suas
passagens por Moçambique. Esse foi um fenômeno disseminado
tão rapidamente quanto a própria presença da administração colo‑
nial pelo território.
Em 1890, por exemplo, o político português Marianno de Car‑
valho, juntamente com o fotógrafo Manoel Romão Pereira, haviam

43 Marílio Wane, “A Timbila Chopi: Construção de Identidade Étnica e Política da Diver‑


sidade Cultural em Moçambique (1934­‑2005)” (Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa Multidisciplinar de Pós­‑Graduação em Estudos Étnicos e Africanos, Universi‑
dade Federal da Bahia, 2010), 7.
44 Circular do Chefe da repartição técnica de estatística para o Secretário dos Negócios Indígenas,
Lourenço Marques, 27 de abril de 1940. In: AHM, DSNI, Diversos, caixa 84.
45 O Império Português na Primeira Exposição Colonial Portuguesa: álbum­‑catálogo oficial: docu‑
mentário histórico, agrícola, industrial e comercial, paisagens, monumentos e costumes (Porto:
Mario Antunes Leitão e Vitorino Coimbra, 1934), 413.

316
MATHEUS SERVA PEREIRA

viajado para uma missão em Moçambique com o objetivo de inven‑


tariar as possibilidades de exploração de seus recursos econômicos.
Como explica Paulo Jorge Fernandes, não era a primeira experiência
de Manoel Romão Pereira na África. O mesmo havia estado ante‑
riormente, em 1877, em Cabo Verde, em 1881, na Ilha de Moçam‑
bique, e estabeleceu um “Atelier Portuguez de Photographia”, em
Lourenço Marques, no final da década de 1880.46 Na missão de
1890, Manoel Romão Pereira havia sido nomeado para “percorrer
os territórios de Lourenço Marques, Inhambane, Gaza e alto Zam‑
beze, tirando fotografias” de aspectos geográficos da região, das
construções que remetessem as instalações coloniais portuguesas e
“dos tipos das diferentes raças, régulos e indivíduos mais importan‑
tes” das populações nativas.47 Do total de imagens produzidas
durante a expedição, oito delas, que foram descritas no catálogo da
Exposição Insular e Colonial Portuguesa, realizada no Porto, em
1894, e publicado em 1895, merecem destaque. Esse conjunto de
fotografias apresentam a realização de “danças de guerra” por “lan‑
dins” durante um “almoço nas terras da Coroa”, mais especifica‑
mente em Lourenço Marques. Promovido pelo corpo expedicionário
de Marianno de Carvalho, o evento contou com a presença de um
elevado número de “landins”, termo genérico empregado pelo lin‑
guajar colonial português para definir os variados grupos étnicos do
sul de Moçambique. Dessa sequência de imagens, duas delas apre‑
sentam um “landim” empunhando a bandeira da monarquia portu‑
guesa, um pequeno público branco que assistiu à apresentação e
alguns enquadramentos que enfocam aspectos das danças e dos seus
praticantes. Esse parece ser um dos primeiros momentos de uma
prática recorrente da ação colonizadora na região, que tinha como
intuito demonstrar o poder de controle e, consequentemente, o
sucesso da empreitada colonial portuguesa.

46 Paulo Jorge Fernandes, “A fotografia e a edificação do Estado Colonial: a missão de Ma‑


riano de Carvalho à província de Moçambique em 1890”, in O império da visão: fotografia
no contexto colonial português (1860­‑1960), org. Filipa Lowndes Vicente (Lisboa: Edições
70, 2014), 200.
47 Luísa Villarinho Pereira, Moçambique – Manoel Pereira (1815­‑1894). Fotógrafo comissionado
pelo Governo Português (Lisboa: Edição de autor, 2013), 24.

317
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

29. “Lourenço Marques – Manga de Landins”. In https://actd.iict.pt/view/actd:AHUD6421.48

30. “Lourenço Marques – Um almoço nas terras da Corôa”. In https://actd.iict.pt/view/


actd:AHUD6415.

48 As imagens 29­‑34 foram produzidas por Manoel Romão Pereira e constam da coleção “Mis‑
são de Mariano Cyrilo de Carvalho à província de Moçambique: edição geral”, do ACT/DR.

318
MATHEUS SERVA PEREIRA

31. “Lourenço Marques – Landins começando as danças de guerra”. In https://actd.iict.pt/view/


actd:AHUD6412.

32. “Lourenço Marques – Landins”. In https://actd.iict.pt/view/actd:AHUD6422.

319
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

33. “Lourenço Marques – Landins”. In https://actd.iict.pt/view/actd:AHUD6425.

34. “Lourenço Marques – Landins”. In https://actd.iict.pt/view/actd:AHUD6424.

320
MATHEUS SERVA PEREIRA

Na década seguinte, o Governador Geral, em 1905, ao viajar


para o Norte de Moçambique, foi recebido em Quelimane por “um
batuque de três mil negros”.49 No ano subsequente, quem teve o
privilégio de assistir a algo parecido, mas agora em Lourenço Mar‑
ques, foram os duques de Connaught. O jornal O Progresso anun‑
ciou, poucos dias antes da chegada dos membros da família real
britânica, a vinda de “1.200 indígenas para tomar parte do batuque”
organizado para recepcionar a ilustre comitiva. Esses “indígenas”
provinham especificamente da província de Inhambane, onde está
Zavala, e, possivelmente, traziam suas orquestras de timbila com o
intuito de realizarem uma performance em solo laurentino.50 O total
de “indígenas que estiveram presentes no batuque”, segundo o Lou‑
renço Marques Guardian, provindos de diferentes sedes administra‑
tivas coloniais que circundavam a cidade, adicionados alguns outros
de Inhambane, corresponderiam ao inflado número de 15.250.51
A apresentação ocorreu no “centro da cidade”, onde “um exér‑
cito de indígenas, completo em todos os detalhes, incluindo mesmo
armas de ataque e defesa – azagaias, machadas e escudos” teria sido
dirigido por “somente três europeus e um pequeno número da polí‑
cia indígena”. Mesmo com a exorbitante quantidade de “indígenas
[...] no local do batuque” e a reduzida quantidade de autoridades
postas para evitarem qualquer imaginável tumulto, o evento havia,
supostamente, ocorrido de maneira primorosamente ordeira. Com
relação àqueles que haviam sido deslocados para Lourenço Marques
com o intuito de apresentarem­‑se nesse espetáculo, o jornal afirmou
que demonstraram “deleite e interesse”, não tendo ninguém notado
“qualquer sinal de ‘aviltamento’ ou de descontentamento por parte
dos indígenas”.52 O intuito dos eventos, e das descrições subsequen‑
tes, foi o de valorizar a capacidade portuguesa de convocar, reunir
e organizar, sem esforço excessivo e sempre sobre muito controle,
um grande número daqueles que se encontravam sob o seu domínio.
Ao mesmo tempo, ao insistirem na passividade dos ditos indígenas

49 O Progresso, 05 de agosto de 1905. BNP.


50 O Progresso, 22 de fevereiro de 1906. BNP.
51 Lourenço Marques Guardian, 12 de março de 1906. AHM.
52 Lourenço Marques Guardian, 08 de março de 1906. AHM.

321
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

reforçavam uma hipotética demonstração de adesão dessas popula‑


ções às causas colonizadoras portuguesas.
O ocorrido em março de 1906 serviu como ensaio para o que
veio a acontecer em 1907, aquando da passagem do príncipe­
‑herdeiro português D. Luiz Filipe de Bragança pela capital moçam‑
bicana. A viagem, organizada por Ayres d’Ornellas, naquela época
Ministro da Marinha e do Ultramar, sendo Freire d’Andrade o
Governador Geral de Moçambique, ambas figuras importantes na
derrocada de Gungunhana em 1895, tinha uma série de objetivos
que refletiam as diferentes dimensões das tensões imperiais euro‑
peias. Buscava contemporizar os embates políticos entre a monar‑
quia portuguesa e as contextações republicanas. Internacionalmente,
o desgaste português estava relacionado as acusações de conivência
com formas de trabalho escravo, sobretudo nas plantations – roças
– em São Tomé e Príncipe. Como explicam Filipa Lowndes Vicente
e Inês Vieira Gomes, a viagem pelos territórios africanos coloniza‑
dos por Portugal, pela África do Sul e Rodésia foram imaginados
tendo como intuito “reforçar e unificar as colônias sob o domínio
português, ao mesmo tempo em que enviavam uma mensagem aos
países europeus, principalmente à Grã­‑Bretanha, sobre quais terri‑
tórios pertencem a que potência colonial”.53
Segundo Ornellas, em seu livro Viagem do Príncipe Real, a
imprensa metropolitana da época deu pouca atenção aos eventos
que decorreram em Lourenço Marques, reduzindo “um fato de tal
magnitude às proporções de um batuque de pretos bêbedos”. Para
o político­‑militar, os “jornalistas políticos de então” haviam mos‑
trado “ter do sentido nacional uma noção inferior à do último toca‑
dor de marimbas”.54 Diferentemente, a imprensa de Lourenço

53 Filipa Lowndes Vicente e Inês Vieira Gomes, “Tensions of empire and monarchy: the
African tour of the Portuguese crown prince in 1907”, in Royals on tour. Politics, pageantry
and colonialism, ed. Robert Aldrich e Cindy McCreery, 146­‑168 (Manchester: Manchester
University Press, 2018), 148. No original: “Luís Felipe’s sojourn in Africa was meant to
reinforce and unify the colonies under Portuguese rule, while also sending a message to
European countries, mainly Britain, about which territories belong to which colonial
power”.
54 Ayres d’Ornellas, Viagem do Príncipe Real. Julho – Setembro 1907 (Lisboa: Escola Tipográ‑
fica das Oficinas de S. José, 1928): 109.

322
MATHEUS SERVA PEREIRA

Marques esteve em clima de rebuliço com a vinda de “Sua Alteza


Real”.55 Foram longos os preparativos para esse dia, assim como o
das inúmeras recepções.56 A “colônia chinesa”, os “negociantes
mouros”, os “notáveis de Lourenço Marques” e tantos outros grupos
que habitavam a cidade tentaram participar e se mostrar presentes
naqueles festejos.57 A enorme quantidade de correspondências
entre diferentes setores dos poderes coloniais e, principalmente, o
tom adotado nelas, sempre muito zeloso para tornar a visita a mais
agradável possível, sem preocupações em economizar dinheiro para
isso, demonstram a importância que o evento havia ganho para a
administração colonial portuguesa em Moçambique. Aquele era o
momento propício para corroborar a eficácia dos administradores
em efetivar o processo de colonização.58
Dentre esses vários preparativos, coube aos “administradores
das circunscrições” organizarem “os régulos para apresentarem [em
Lourenço Marques] 6.000 a 7.000 indígenas em trajes de gala”.59
Os administradores e os chefes locais conseguiram fazer um traba‑
lho ímpar de angariar representantes capazes de demonstrar suas
habilidades. Impressionando os estrangeiros que se encontravam na
cidade, teriam permanecido nas ruas laurentinas “cerca de vinte mil
indígenas armados em guerra, mantendo­‑se na perfeita ordem sem
o mais ligeiro auxílio de força e apenas pela obediência aos admi‑
nistradores das respectivas circunscrições”.60 Essa capacidade de
reunir tantos “indígenas” para “um espetáculo sem precedente e sem

55 A Tribuna, 29 de julho de 1907. BNP.


56 Carta do Secretário Geral, em Lourenço Marques, para o presidente da Direção do “Instituto
Goano” de Lourenço Marques, de 15 de junho de 1907. In: AHM, Fundo da Direção dos
Serviços de Administração Civil (FDSAC), caixa 2195.
57 O Progresso, 15 de julho de 1907. BNP.
58 Carta do Secretário Geral aos cônsules de Portugal em Pretória, Durban e Cabo, de 17 de junho
de 1907. In: AHM, FDSAC, caixa 2195. Ornellas, em seu livro sobre o tour do príncipe
pela África, esforçou­‑se em apresentar as performances ocorridas em Lourenço Marques
como comprovativos indeléveis da “tamanha demonstração da influência e domínio do
branco sobre o indígena” e, mais especificamente, da capacidade portuguesa de atuar como
força colonizadora na África. Ver: Ayres d’Ornellas, Viagem do Príncipe Real, 106­‑109.
59 Carta do Secretário Geral ao Governador do Distrito de Lourenço Marques, de 17 de junho de
1907. In: AHM, FDSAC, caixa 2195.
60 Telegrama do Ministro da Marinha e do Ultramar para Lisboa, Lourenço Marques, 30 de
julho de 1907. In: AHM, FDSAC, caixa 2195.

323
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

imitação possível em qualquer outra colônia” parece ter impres­


sionado o filho do rei português, que recebeu os chefes locais do
distrito de Lourenço Marques e alguns de Gaza. Em troca, as auto‑
ridades africanas “manifestaram o seu entusiasmo pela presença”
real.61 Efetivamente, o príncipe escreveu para o seu irmão, contando
o que havia sentido durante a recepção em Lourenço Marques. Para
ele “foi das coisas mais lindas que se podem, não digo ver mas
sonhar”. Os “20000 pretos com as suas armas estavam postados dos
2 lados das ruas”, e, com a passagem do membro da família real,
teriam gritado “Bahete InKosso isto é: Salvé Senhor. Foi imponen‑
tíssimo”. O batuque e a saudação, momentos finais da noite, foram
adjetivados como “fantástica”.62
Foi por meio da “concorrência de pretos” que se apresentaram
com uma “orquestra dos Chopi” e com o “batuque de guerra”, rea‑
lizados numa das principais avenidas de Lourenço Marques, que as
celebrações alcançaram um patamar classificado pela imprensa lau‑
rentina como “um dos mais sensacionais espetáculos com que
assombramos o mundo”. Essa era, em menos de um ano, a segunda
vez que a administração colonial conseguia, em parceria com chefes
locais, organizar a apresentação de um número exorbitante de
“negros armados e equipados” para serem vistos performando um
“batuque de guerra [...] no coração da cidade”. O “formigueiro
humano de zagaias”, que traziam consigo “penachos estupendos a
cobrir­‑lhe a cabeça e o rosto”, dando a impressão de “milhões de
Diabos saídos das profundezas do Inferno”, certamente impressio‑
nou os presentes.63

61 Telegrama do Ministro da Marinha e do Ultramar para Lisboa, Lourenço Marques, 02 de


agosto de 1907. In: AHM, FDSAC, caixa 2195.
62 A.N.T.T., Cartório da Extinta Casa Real, Caixa 42­‑A, Maço 775, doc.3. Apud, Apud, Ana
Vicente e António Pedro Vicente. O príncipe real Luiz Felipe de Bragança, 187­‑1908. (Lis‑
boa: Edições Inapa, 1998): 70.
63 O Progresso, 1 de agosto de 1907. BNP.

324
MATHEUS SERVA PEREIRA

35. Rufino, ed., Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de Moçambique. Volume X, 16. Na le‑
genda: “Chefes de um ‘Batuque de guerra’”. O volume 10 dedicado a “Raças, usos e costumes
indígenas” publicou um total de dez imagens referentes a “jazz­‑bands”, “batuques” ou “danças”.
Homens com escudos e trajes de guerra, provavelmente apresentando um “batuque de guerra”,
tiveram destaque nesse conjunto de fotos. Comum entre as populações do sul de Moçambique,
talvez estivessem realizando o xigubu, uma dança na qual usa­‑se uma idumentária guerreira para
cantar e representar aspectos guerreiros do grupo. Um tipo de encenação espetacularizada de
uma prática tradicional de grupos étnicos do sul de Moçambique parece ser o caso da imagem
35 – o enquadramento da foto com os chefes enfileirados apontando as lanças para o fotógrafo
foi incorporada ao imaginário da dominação portuguesa.

A magnitude do espetáculo esteve na capacidade daqueles que


se apresentaram em serem mantidos ordenados em comunhão com
os objetivos que a cerimônia previa, nutrindo uma suposta coope‑
ração e comunicação entre partes distintas.64 O Marquês do Lavra‑
dio, membro da comitiva que acompanhou o príncipe, descreveu,
em suas memórias, o entusiasmo que sentiu ao presenciar o batuque
ocorrido em Lourenço Marques e, sobretudo, em Marracuene. Um
“caso único na história africana”, suas recordações são marcadas por

64 A Tribuna, 30 de julho de 1907. BNP.

325
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

um sentimento de vitória sobre os rebeldes que haviam sitiado a


capital moçambicana em 1894 e das campanhas militares em Mar‑
racuene que terminaram por derrocar Gungunhana, no ano seguinte.
A presença do “induno M’Obeja” durante os cortejos para o prín‑
cipe, que, em 1895, comandava tropas de Gaza contra os portugue‑
ses, seria um comprovativo indiscutível do sucesso da empreitada
colonial. Sua afirmação do batuque como algo “indescritível”, com
o “Hino da carta tocado em marimbas pelos pretos de Inhambane”,
com “vinte e três mil pretos, todos do Sul do Save, todos guerreiros
e orgulhosos, armados, alguns inimigos uns dos outros”, que reve‑
renciavam “a bandeira portuguesa” e estavam sendo controlados por
“apenas cinco brancos”, reforçava a imagem de obediência e reve‑
rência aos símbolos do poder que buscou­‑se produzir durante o
evento.65

36. “Os régulos e indígenas de Marracuene”.

65 José Luiz de Almeida Lavradio, Memórias do Sexto Marquês de Lavradio (Lisboa: Edições
Ática, 1947): 69­‑75.

326
MATHEUS SERVA PEREIRA

37. “Batuque em Marracuene em honra de D. Luiz Filipe”. Apud, Ana Vicente e António Pedro
Vicente, O príncipe real Luiz Felipe de Bragança, 187­‑1908 (Lisboa: Edições Inapa, 1998), 74.

As lentes dos irmãos Joseph e Moses Lazarus, responsáveis pelo


principal estúdio fotográfico de Lourenço Marques na primeira
década do século XX, produziram os registros imagéticos da comitiva
real de Moçambique em 1907. Homens e mulheres que expuseram
suas práticas, formas de ser e agir, vozes e corpos por meio das suas
maneiras de dançar e cantar estavam em Lourenço Marques e em
Marracuene para serem vistos como símbolos do poder. Transmitir
a mensagem pretendida para outras pessoas que não estivessem pre‑
sentes naquele momento foi um exercício que passou pela escrita,
mas também pela tecnologia da fotografia, que já estava significati‑
vamente popularizada naquele momento.

327
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

38.

39.

328
MATHEUS SERVA PEREIRA

40.

41. “S. A. Real o batuque”. Imagens 38­‑41 apud António Sopa, A Alegria é Uma Coisa Rara:
Subsídios para a História da Música Popular Urbana em Lourenço Marques (1920­‑1975) (Maputo:
Marimbique, Conteúdos e Publicações Ltda., 2014), 259­‑260.

329
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

A publicação da imagem 38 no livro Viagem do Príncipe Real, de


Ayres d’Ornellas, em 1928, dialoga com a descrição grandiosa do
evento elaborada pelo responsável da comitiva e autor da obra. Muito
mais do que simplesmente ouvir os cantares ou possíveis demandas,
as imagens posicionam os africanos como personagem anônimos que
serviam para serem vistos e representar, para um público amplo, a
capacidade portuguesa de colonização. As fotografias de 1890, reali‑
zadas para o político Marianno de Carvalho indicam a realização do
“batuque” em um local de menor magnitude, ao compararmos as
construções que estão ao fundo das imagens produzidas durante o
evento. No caso das imagens 29 a 34, apenas aparece uma pequena
construção ao fundo, com algumas cadeiras para que o público por‑
tuguês pudesse apreciar a apresentação, o que contrasta com a cons‑
trução de uma arquibancada ornada por bandeiras que figura nas
imagens de 1907. Outra importante diferença está no olhar empre‑
gado pelas lentes daqueles que produziram essas representações. Por
um lado, apesar dos irmãos Lazarus terem retratado diversos ângulos
dos espetáculos de 1907, inclusive com alguns enquadramentos fecha‑
dos que permitem a percepção de detalhes específicos dos praticantes
dos “batuques”, a utilização de planos que captassem a vastidão de
pessoas que se apresentaram no espetáculo passa uma noção da gran‑
diosidade presente no evento realizado quando da visita do príncipe.
Por outro lado, Manoel Romão Pereira, em 1890, também captura
um grande número de “indígenas” no espetáculo, porém o autor pri‑
vilegia um enquadramento circunscrito indicando outras preocupa‑
ções, como a de apanhar algumas das características performáticas e
estilísticas daqueles que estavam realizando o “batuque”.66
A interpretação oficial foi exatamente de que as festas apresen‑
taram exclusivamente cenas de regozijo e entusiasmo por parte
daqueles que tomaram lugar no “espetáculo”. Ao desfilarem perfor‑
maticamente com seus batuques perante a “sua Alteza”, os homens,
com suas armas em punhos, estariam demonstrando para todos que

66 Para uma interessante análise dos significados simbólicos de duas das fotografias produ‑
zidas pelos irmãos Lazarus, em 1907, ver Vicente e Gomes, “Tensions of empire and
monarchy: the African tour of the Portuguese crown prince in 1907”, 156.

330
MATHEUS SERVA PEREIRA

lá assistiam à “perfeita compreensão” que tinham do domínio por‑


tuguês “sobre os indígenas”. Esse fator era reforçado pelas recorren‑
tes referências a maneira como esses mantiveram­‑se controlados e
obedientes sob “as ordens de 6 ou 7 europeus”. Tudo isso serviria
para demonstrar que, naquelas paragens moçambicanas, estaria
sendo “válido o trabalho português”.67 Ao excluírem o medo que
em outros momentos esses tipos de “movimentos [...] de guerra” e
de cantos poderiam ter causado, tratando­‑os como manifestações
folclóricas de usos e costumes locais, o resultado do processo de
espetacularização do domínio português a partir de práticas socio‑
culturais nativas sul­‑moçambicanas não poderia ser mais satisfatório
para as autoridades coloniais que presidiram o evento.

SUBVERSÕES

O entusiasmo gerado pelas apresentações organizadas em 1907 che‑


gou a ser, por vezes, ameaçado por conta da ocorrência de “uns
pequenos distúrbios”.68 As “três prisões por desordens indígenas”
que aconteceram durante o evento foram minimizadas pelas auto‑
ridades, frente a enorme quantidade de pessoas que permaneceram
em Lourenço Marques por cerca de três dias.69 Para além dessas
prisões, nos meses seguintes ao “batuque em honra de S. A. o Prín‑
cipe Real” apareceram reclamações mais acaloradas por conta das
ações dos indivíduos que se encontravam na cidade para realizarem
as apresentações.70 Queixando­‑se da incapacidade dos administra‑

67 Telegrama do Ministro da Marinha e do Ultramar para Lisboa, Lourenço Marques, 02 de


agosto de 1907. In: AHM, FDSAC, caixa 2195.
68 O Progresso, 5 de agosto de 1907. BNP.
69 Telegrama do Ministro da Marinha e do Ultramar para Lisboa, Lourenço Marques, 30 de
julho de 1907. In: AHM, FDSAC, caixa 2195.
70 Essas ocorrências também foram analisadas por Esmeralda Simões Martinez, em “Uma
pesada indenização”, in Revista África e Africanidades, Ano III, n.º 12 (Fev. 2011). No
entanto, a autora elabora, em seu texto, apenas uma descrição das fontes. Sua interpretação
fica restrita a uma possível burla aos cofres coloniais promovida pelos reclamantes dos
distúrbios e roubos ocorridos em Lourenço Marques durante os “batuques” de 1907 para
o príncipe. Em momento algum a autora salienta uma tentativa de interpretação das en‑
trelinhas da documentação na busca por encontrar vestígios das perspectivas africanas.

331
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

dores coloniais de controlarem seus comandados, o serralheiro João


Gomes Jardim, por exemplo, dirigiu uma solicitação de indenização
pelos arames que teriam sido roubados de sua propriedade durante
os festejos.71
Esse não foi o único caso em que setores da administração colo‑
nial foram acionados para responder as ações daqueles que se encon‑
travam em Lourenço Marques para realizarem os “batuques”,
engrandecer os festejos e a recepção ao príncipe. O jornal O Pro‑
gresso, mostrando­‑se preocupado em saber como haviam sido trata‑
dos os participantes da “parada de guerreiros negros”, afirmou que
viu muitos partirem “levando grossas peças de carne para a viagem”
e que também “se distribuiu vinho”.72 Utilizando­‑se de tom depre‑
ciativo, alguns relatos sobre os “batuques” enfatizaram que esses
poderiam ser apresentados para qualquer plateia, desde que aqueles
que os realizassem recebessem um pagamento em comida ou bebida
pela sua performance. A necessidade de angariar um número exor‑
bitante de “guerreiros negros” para as apresentações de 1907 teve
como resposta possíveis demandas que dificilmente a administração
colonial seria capaz de responder. As peças de carnes nas mãos dos
“guerreiros negros” talvez não tenham sido fornecidas pelos respon‑
sáveis dos preparativos da festa como forma de retribuição. Toma‑
das a força, atenderam exigências daqueles que se apresentaram em
Lourenço Marques.
Contrariando o discurso empregado para engrandecer as qua‑
lidades de subjugação dos nativos ao poder colonial português, os
comerciantes Corrêa & Martins exigiram uma indenização às auto‑
ridades, pois “os pretos que deviam fazer parte do batuque” de 1907
teriam matado quatorze bois, dos 384, que estavam sendo descar‑
regados na cidade durante o evento. Segundo o relato anexado as
demandas, os “suplicantes ou seus serviçais” nada puderam fazer
para deter “uma avalanche de pretos que de azagaia em punho,
atacaram os animais”.73 Ao que parece, as reclamações de Corrêa

71 Processo referente a solicitação de indenização de danos causados em propriedade, 28 de agosto


de 1907 e 04 de setembro de 1907. In: AHM, DSNI, Tribunais Indígenas, Caixa 1630.
72 O Progresso, 5 de agosto de 1907. BNP.
73 Cartas dos comerciantes Corrêa & Martins ao Presidente e Vogais da Grande Comissão promotora

332
MATHEUS SERVA PEREIRA

& Martins não surtiram efeito. A comissão dos festejos se absteve


de qualquer responsabilidade. Não podendo averiguar a veracidade
do relato, respondeu que nada tinha “com os desmandos dos indí‑
genas”.74 O desembarque dos bois ocorreu próximo a um local onde
se “achavam indígenas de todas as circunscrições”. O administrador
de Manhiça, local do relato que abriu esse capítulo, foi o único a
prestar depoimento. Disse ter visto “alguns pretos” da sua circuns‑
crição com uma pequena quantidade de carne e um outro grupo
“com uma perna de boi”. Perguntando a proveniência da carne foi
informado “ser de uns bois que tinham morrido na praia e que um
branco [que] ali estava lhes havia dado”. A Secretaria dos Negócios
Indígenas, que havia ficado de averiguar a procedência das reclama‑
ções, adotou a postura de informar que os requerentes deveriam
procurar os tribunais ordinários para cogitar o recebimento de
indenização.75
As ações desses africanos em reivindicarem para si condições
entendidas como mínimas para a apresentação de seus cantos e
danças indicam uma determinada habilidade no trato cotidiano das
demandas dos colonizados manejável durante a inauguração da
igreja em 1901. O administrador de Manhiça não teve vida fácil no
que diz respeito ao controle dos “indígenas” de sua circunscrição.
O mesmo administrador teve que responder outra averiguação sobre
as ações daqueles que deveriam estar sob sua tutela durante a recep‑
ção ao príncipe. Uma das testemunhas do segundo caso relatou que
quando voltava “de ver o batuque”, presenciou “Luciano Ignácio
Felix [...] a berrar pelos pretos, que, tendo chegado primeiro do
batuque” furtavam uma grande quantidade de lenha que o mesmo
armazenava perto do local onde esses acampavam. O proprietário
teria ali “uns pretos guardando a lenha, mas que, com medo dos
referidos indígenas, deixaram praticar o furto”. Outro depoente viu

de festejos e recepção de S. A. o Príncipe Real, 05 de agosto de 1907 e 23 de agosto de 1907.


In: AHM, DSNI, Tribunais Indígenas, Caixa 1630.
74 Informação prestada pelo presidente da Comissão promotora de festejos e recepção de S. A. o
Príncipe Real, 25 de agosto de 1907. In: AHM, DSNI, Tribunais Indígenas, Caixa 1630.
75 Informação prestada pelo administrador da circunscrição de Manhiça, 26 de agosto de 1907.
In: AHM, DSNI, Tribunais Indígenas, Caixa 1630.

333
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

“passar os pretos que recolhiam do batuque em honra de Sua Alteza


o Príncipe Real, levando uma grande parte deles alguma lenha”.76
Em resposta às acusações, o administrador de Manhiça afirmou
que, antes de ir “com os pretos” para os festejos, havia realizado
todos os preparativos necessários para a sua chegada na cidade.
Tentando salvaguardar a sua competência enquanto funcionário
colonial, que passava diretamente pela capacidade em manter o
controle efetivo sobre aquele largo número de indivíduos que esta‑
vam em Lourenço Marques, disse que não houvera “durante os dias
que ali permaneceram qualquer desordem entre os indígenas, nem
estes se recusaram vez alguma a cumprir ou a desacatar quaisquer
ordens dadas”. Isso não era completamente verdade. Nem todos
respeitaram a autoridade colonial, assim como não foi possível
vigiar todos que se encontravam sobre sua responsabilidade. O admi‑
nistrador colonial admitiu ser possível que “alguns pretos durante
a noite [...] roubassem alguma lenha miúda e que ardesse melhor”,
sem que esse fato fosse de seu conhecimento. No final, concluiu,
em sua defesa, que era praticamente impossível “vigiar 5000 pretos
que se julgam em festa e que segundo o costume natural não se
querem incomodar”. Na conclusão do caso, diferente dos anterio‑
res, a parte que denunciou as ações dos indígenas da circunscrição
de Manhiça e acusou a incapacidade de vigilância da autoridade
colonial, recebeu as 30 toneladas de lenha que havia exigido como
indenização.77
Os números dados pelos proprietários para a perda de seus
patrimônios podem ser considerados exagerados. No entanto, é sin‑
tomático perceber que no momento elencado como representativo
da comunhão entre lados opostos do processo de colonização, os
que participaram enquanto realizadores das apresentações para
olhos e ouvidos branco­‑europeus que projetavam uma forma espe‑

76 Auto de investigação procedido pelo secretário da Administração do Concelho de Lourenço Mar‑


ques, 20 de agosto de 1907 e 26 de agosto de 1907. In: AHM, DSNI, Tribunais Indígenas,
Caixa 1630.
77 Auto de investigação procedido pelo secretário da Administração do Concelho de Lourenço Mar‑
ques, 20 de agosto de 1907 e 26 de agosto de 1907. In: AHM, DSNI, Tribunais Indígenas,
Caixa 1630.

334
MATHEUS SERVA PEREIRA

tacularizada dessas danças e cantos agiram de forma a sobrepujar o


controle exercido pelo poderio colonial sobre suas vidas. Foram
momentos como esses que acabaram por servir de pressão das popu‑
lações nativas para suas reivindicações ou, ao menos, para demons‑
trar que suas exigências perpassavam por uma forma de autonomia
nos seus modos de vida frente as tentativas de transformações
impostas pelas forças coloniais.

“Ouça como a música troveja”: experiências e resistências


nos “batuques” e “danças nativas”

Ao longo de diferentes momentos selecionados especificamente


para demonstrar a força colonial portuguesa, onde a celebração da
capacidade de dominação deveria ocorrer por meio da apresentação
instrumentalizada das práticas vulgarmente designadas como batu‑
ques, percebe­‑se um processo que não foi pacífico na relação entre
intuitos coloniais e práticas culturais musicais e dançantes locais.
Rapidamente, assim como diferentes ações colonizadoras portugue‑
sas buscaram angariar para si um controle que direcionava práticas,
como as do ngodo, para os projetos de dominação colonial, esses
espetáculos organizados dentro das expectativas do colonialismo
tornaram­‑se num momento precioso para expressar a capacidade de
pressão daqueles que tentavam ser cooptados por seus algozes.
A apropriação dessas práticas aos intuitos colonizadores teve que
lidar com a sua incapacidade de controlar todas as forças envolvidas
nesse processo, assim como o gingado que os “indígenas” souberam
dançar quando pressionados para participarem das formas de publi‑
cização da capacidade colonizadora portuguesa.
O elencar de heróis que participaram das batalhas pelo desman‑
telo dos reinos africanos que se encontravam em territórios pleitea‑
dos pelos portugueses, no final do século XIX, e a biografia de alguns
dos personagens que atuaram nesses conflitos, foram valorizadas
dentro das narrativas sobre a conquista da África. Um dos momen‑
tos entendidos pelos contemporâneos desse processo como chave
para a consolidação do poder português no sul de Moçambique
foram as batalhas ocorridas em Marracuene, em 1895. O atual dis‑

335
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

trito de mesmo nome está situado na província de Maputo, fazendo


fronteira, ao sul, com a capital moçambicana e, ao norte, com o
distrito de Manhiça. A região foi descrita por Lourenço Cayolla,
autor de uma série de livros publicados pela Agência Geral das
Colónias, entre 1930 e 1960, que louvavam eventos e figuras ilustres
do colonialismo português, como um “desolado e árido local, a
pouco mais de trinta quilómetros, por caminho de sertão, de Lou‑
renço Marques”.78
As altercações entre forças portuguesas, chefes locais contrários
a Gungunhana e as forças de Gaza foram também marcos impor‑
tantes na vida das populações africanas sul­‑moçambicanas. Raul
Bernardo Honwana, eu seu relato memorialístico produzido nos
anos 1980, no contexto pós­‑colonial, enfatizou a importância das
histórias contadas por sua mãe a respeito de seu avô, de nome
Mutxaquexa. Uma delas versa sobre a participação desse, como
guerreiro “landim”, em investidas contrárias a presença portuguesa
nas regiões de Magul e Marracuene. Os portugueses, por seu turno,
ao suprimirem as investidas desses guerreiros, responderam com
pilhagens nas povoações, “roubaram gado, arrasaram machambas e
mataram pessoas”.79
O pai de Honwana, Xivayi (ou Manuel) Honwana, foi outro
que teve a vida influenciada pelos acontecimentos que rondaram os
confrontos entre o reino de Gaza e forças militares portuguesas.
Xivavi (Manuel) exerceu a função de cozinheiro e intérprete de
oficiais portugueses durante os conflitos da década final do século
XIX.80 Posteriormente, com a derrota de Gungunhana, o colonia‑
lismo português providenciou a reorganização dos chefes locais nos
comandos das povoações que não haviam declarado apoio a Portugal
ou estabelecido parceria com Gaza. O chefe Muxexa (ou Muvexa)
Nhlewana governava, então, uma área situada entre Marracuene e
Manhiça.81 Xivavi (Manuel), nessa ocasião com o cargo de intér‑

78 Lourenço Cayolla, Marracuene (Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1935), 5.


79 Raúl Bernardo Honwana, Memórias (Maputo: Marimbique, 2010), 51.
80 Honwana, Memórias, 52.
81 Honwana, Memórias. O nome do chefe dessas terras está grafado das duas maneiras no
livro. Muxexa aparece na nota 40, da página 182, e Muvexa na página 55.

336
MATHEUS SERVA PEREIRA

prete da administração de Marracuene, teria exercido influência


para a manutenção de Nhlewana em seu posto. Xivavi (Manuel)
terminou por estabelecer relações com duas das filhas dos chefes
locais de Marracuene e Manhiça.82 Como o próprio Raúl Bernardo
Honwana reconhece, é interessante notar como dois de seus fami‑
liares, com posicionamentos distintos no período de implementação
da presença colonial portuguesa na região, “tiveram papéis tão opos‑
tos e inconciliáveis”.83
Os conflitos em Marracuene foram considerados pelos portu‑
gueses como um dos momentos mais importantes para a derrocada
do reino de Gaza e da prisão de Gungunhana.84 Ao longo de toda
a primeira metade do século XX, Marracuene e os combates por lá
travados foram utilizados como símbolo da força e do heroísmo
militar português. No aniversário de cinquenta anos das batalhas, o
jornal O Oriente promoveu uma “romagem cívica”, que consistia de
uma passeata, rumo ao cemitério municipal de Lourenço Marques,
“em homenagem aos heróis [...] de Marracuene”.85 O Lourenço
Marques Guardian valorizou aquela data como a “base de todo [...]
esforço feito para a ocupação definitiva de Moçambique”.86 Ao
mesmo tempo que eventos como esses entraram para a narrativa
colonizadora portuguesa, a proximidade de Marracuene com Lou‑
renço Marques certamente foi um facilitador na construção daquela
paragem como local propício para a realização de celebrações que
louvavam o poder colonizador. Constantemente a imprensa lauren‑

82 Honwana, Memórias, 55 e 56.


83 Honwana, Memórias, 56. Vale destacar como o contexto da colonização portuguesa ao
longo do século XX e o momento em que as memórias de Raul Bernardo Honwana foram
recolhidas, marcadas pelo sucesso das lutas pela independência e dos processos de cons‑
trução da nação, impunham a Honwana a necessidade de revisitar os significados do pas‑
sado familiar, sobretudo as figuras de seu avô materno e de seu pai. Na nota 41, localizada
na página 182, escritas por Allen Isaacman, é revelado que, em entrevista realizada em maio
de 1987, “Raul Honwana mostrava­‑se sinceramente perplexo com os caminhos divergentes
seguidos pelo avô e pelo pai. Orgulhava­‑se da maneira como o avô lutara contra os invasores
portugueses. Mas não sabia explicar, nem tentava escondê­‑lo, o facto de seu pai não só ter
trabalhado para os portugueses como ter genuína admiração por eles”.
84 Cayolla, Marracuene.
85 Lourenço Marques Guardian, 25 e 30 de janeiro de 1945. BNP.
86 Lourenço Marques Guardian, 3 de fevereiro de 1945. BNP.

337
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

tina anunciou a realização de excursões recreativas.87 Um tipo de


evento recorrentemente noticiado foi o da visita de autoridades por‑
tuguesas normalmente acompanhadas por “batuques organizados”
pelos promotores desses passeios.88 Não é de surpreender que
durante o tour do príncipe herdeiro português, em 1907, depois dos
batuques em sua homenagem, a comitiva deslocou­‑se para aquele
sítio. Seu objetivo era o de prestar homenagens no “campo onde se
feriu a batalha que primeiro imortalizou o exército português”.89
Não foi prerrogativa de um regime político específico em vigor
em Portugal o esforço em tentar extrair algum proveito simbólico a
partir de apresentações de “batuques” em Marracuene. O advento
do regime republicano, em 1910, não alterou o estilo dos eventos e
a utilização de uma presença maciça das populações nativas em suas
cerimônias. Também não significou uma alteração do local esco‑
lhido para a sua realização. O jornal O Africano noticiou a ocorrên‑
cia, em 1912, de grandes “festas da República em Marracuene”.
Com a participação do governador geral de Moçambique, chefes
locais receberam “a bandeira do novo regime” e foram realizados
“batuques e mais manifestações de estilo” assistidas por cerca de
“cinco mil indígenas”.90 Para atrair a presença desse grande contin‑
gente de pessoas a solenidade da “entrega [...] das bandeiras aos
régulos” haviam sido preparados vários “bois para o sacrifício”.91
Tomar parte em celebrações organizadas pelas autoridades
coloniais não foi tão linear como a princípio pode parecer. Ou um
movimento que emergia das entranhas do controle colonial e que
se espalhava, sem encontrar resistências, em setores daquela socie‑
dade. Os eventos ocorridos em Marracuene, local que, por um lado,
simbolizava a vitória portuguesa sobre grupos contrários a essa pre‑
sença e, por outro lado, a submissão dos derrotados à constituição

87 Exemplos dos preparativos e da realização dessas excursões podem ser vistos em: O Brado
Africano, 6 de fevereiro de 1943 e 20 de março de 1943. BNP.
88 O Africano, 7 de agosto de 1912. WNA. Nesse mesmo ano teria sido inaugurada uma
estátua em homenagem aos combatentes portugueses mortos durante os eventos de 1895.
Ver: O Africano, 29 de agosto de 1912. WNA.
89 O Progresso, 5 de agosto de 1907. BNP.
90 O Africano, 17 de outubro de 1912. WNA.
91 O Africano, 19 de setembro de 1912. WNA.

338
MATHEUS SERVA PEREIRA

de um novo poder, exigiu mais do que o emprego das forças armadas


europeias. Os bois previamente arranjados para a cerimônia de apre‑
sentação do novo regime em Portugal indicam a maneira pela qual
a ação colonial precisou, e foi empurrada para, estabelecer relações
que não auferissem grandes riscos a seu intuito de dominação.
Como apresentei anteriormente, os participantes das apresentações
espetacularizadas de práticas nativas tomavam determinadas ações
de acordo com o que entendiam ser o justo para estarem naquelas
festas. O aprendizado da colonização promoveu uma pedagogia na
qual mostrava­‑se necessário um diálogo para garantir a realização
de alguns eventos, constituindo, consequentemente, espaços de
barganhas.
Em 1905, dez anos após as batalhas em Marracuene e talvez
com auxílio do intérprete Xivayi (ou Manuel) Honwana, o admi‑
nistrador colonial daquela circunscrição tentou organizar uma
grande festa que deveria durar por todo o final de semana. A con‑
corrência para o evento teria sido grande. Muitos aproveitaram para
visitar “o sítio onde se feriu o combate de [...] 1895”.92 O que havia
realmente chamado a atenção do público foi a promessa da realiza‑
ção de um batuque com a presença de diversos chefes locais e seus
homens. Contudo, os relatos publicados pela imprensa foram muito
negativos. O enviado do jornal O Progresso afirmou já ter “visto
muitos batuques”, o que o gabaritava em afirmar que aquilo que
presenciou não foi “mais que um simulacro de batuque”, nunca
tendo assistido “a um fiasco daquela ordem”.93
Porque, naquele ano, diferente dos demais, esse evento havia
fracassado? Seguindo as entrelinhas das fontes, qual poderia ter sido
o motivo? Os chefes locais haviam trazido uma quantidade signifi‑
cativa de participantes. No começo, parecia que tudo iria dar certo.
O administrador da circunscrição de Marracuene e seu secretário
conseguiram distribuir “os pretos ao longo da margem do rio” para
saudarem a chegada do Governador Geral ao local da cerimônia.
Entretanto, quando foi a vez de principiar, o “batuque, [...] resultou

92 Diário de Notícias, 13 de junho de 1905. BNP.


93 O Progresso, 15 de junho de 1905. BNP.

339
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

muito desanimado e falto de efeito”. Do começo lânguido, para um


final melancólico. “A certa altura do batuque, os pretos foram
debandando e as 9 e meia da noite já não havia um único que
dançasse”.94
O Diário de Notícias apontou para o fato de que fazia frio e de
que muitos passaram “bastantes horas sem comer”.95 Os próprios
chefes locais teriam tido dificuldades em conseguirem “levar ali a
sua gente”. Ainda seria muito cedo para os guerreiros derrotados na
batalha de Marracuene mostrarem­‑se coletivamente controlados
por meio da sua participação em uma celebração simbólica dos vito‑
riosos? É uma hipótese. O que ficou constatado foi a “sagacidade
do preto que, mais uma vez, se não deixou levar pelos lindos olhos
de quem lhe endereçou o amável convite de o fazer rebentar de
fome”.96 A contrapartida esperada por aqueles que participavam
dessas performances apresentando­‑se para um público majoritaria‑
mente branco, ou não inserido nas lógicas socioculturais dessas prá‑
ticas, era de serem compensados com uma expressiva quantidade de
comida. O não cumprimento desse acordo significava a quebra de
um tênue trato velado entre dominantes e dominados, abrindo a
possibilidade de não comparecimento no momento público de con‑
sentimento enquanto membro controlado do corpo da sociedade
colonial e, consequentemente, desmoralizando o poder colonizador
português.
No caso das apresentações realizadas em 1907, para o príncipe
real, os “indígenas” que se encontravam em Lourenço Marques,
talvez insatisfeitos com o que tinha sido prometido previamente,
resolveram essa questão passando por cima das autoridades que
deveriam controlá­‑los e tomando à força o que entendiam ser seu
por direito. É possível argumentar que o único caso registrado
envolveu apenas indivíduos provindos da Manhiça, correspondendo
a um episódio aparentemente isolado, se pensarmos na enorme
quantidade de pessoas que se encontravam na cidade. Dois anos

94 Diário de Notícias, 13 de junho de 1904. BNP.


95 Diário de Notícias, 13 de junho de 1904. BNP.
96 O Progresso, 15 de junho de 1905. BNP.

340
MATHEUS SERVA PEREIRA

antes, em Marracuene, o administrador da circunscrição e todas as


demais figuras de autoridade colonial, por um lado, haviam apren‑
dido que, sem uma contrapartida entendida como satisfatória, exis‑
tiriam debandadas dos “indígenas” responsáveis pelas performances.
Por outro lado, os que se apresentavam nos batuques rapidamente
entenderam a importância dessas cerimônias e as utilizaram para
angariar algum benefício, nem que fosse a oportunidade de comer
carne bovina.
As apresentações performáticas de “batuques” trouxeram diver‑
sos embaraços que precisaram ser sanados pela administração colo‑
nial. Nem todas as 40 pessoas que compunham o grupo chopi que
havia viajado para Lisboa, em 1940, para representar Moçambique
na seção colonial da Exposição do Mundo Português, conseguiram
voltar. O chefe do grupo, nomeado na documentação portuguesa
como Magengo, ficou doente e faleceu. Sepultado em Lisboa, sua
viúva e filho voltaram sozinhos sem o corpo do finado. Quando do
regresso dos “indígenas que foram representar” Moçambique nos
festejos portugueses, Armando Magengo, filho do “régulo
Magengo”, dirigiu­‑se para um órgão administrativo colonial loca‑
lizado em Lourenço Marques para informar que seu pai havia fale‑
cido ainda em solo europeu. O chefe da repartição viu com
preocupação o ocorrido. Sua leitura foi de que “a morte daquele
régulo” deveria ser considerada “como tendo sido aos serviços da
Nação” portuguesa. Para evitar qualquer sentimento de revolta e
para que “entre os indígenas” não ficasse “a mais leve impressão
desagradável do Governo Português”, foi concedida a família do
falecido uma indenização de 3.000 escudos. Além dessa quantia,
previa­‑se que a compensação fosse publicitada o máximo possível
entre as “autoridades gentílicas [...] e os indígenas que fizeram parte
do grupo que foi a Lisboa”. O intuito era de aproveitar o ocorrido
para “elevar ainda mais o prestígio das autoridades entre os
indígenas”.97

97 Carta do chefe da Repartição Central de Lourenço Marques ao Governador Geral, 24 de de‑


zembro de 1940. E, carta do chefe da Repartição Central de Lourenço Marques ao administrador
da Circunscrição de Zavala, 25 de janeiro de 1941. In: AHM, DSNI, Diversos, caixa 84.

341
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

O fato de uma importante liderança nativa ter morrido e sido


enterrada longe de sua terra natal provocou sentimentos angustian‑
tes nos membros que compunham a comitiva, especialmente em
Katini weNyamombe, compositor e músico que passou a ser o res‑
ponsável pela orquestra de timbila anteriormente coordenada por
Magengo. Katini foi um dos principais informantes de Hugh Tra‑
cey durante sua investigação sobre a musicalidade e os músicos
chopi, nos anos 1940. As experiências decorridas daquela viagem
marcaram a vida de Katini. Muitas das composições que foram
apresentadas pelo informante do etnomusicólogo haviam sido feitas
“enquanto est[eve] a bordo do navio entre Lourenço Marques e
Lisboa”. A morte de Magengo, que aparece grafado no livro de
Hught Tracey como Manjengwe, também se tornou inspiração para
uma de suas composições. O ocorrido foi usado como “clímax musi‑
cal do ngodo” de Katini.98 Em um determinado movimento dessa
obra, realizada em fevereiro de 1943, ele cantava:

Fizemos novas músicas para a Timbila no meio do mar


Quando passamos por terras estrangeiras.
Ela veio trinando,
A filha Dewesiyane de Nyabindini,
Para incentivar a Timbila.
Você, Manjengwe, por que foi e morreu?
Agora você está morto, Manjengwe,
Não vamos vê­‑lo novamente.
Se você aparecer nós não devemos acreditar nos nossos olhos.
Pergunte Chinzawane, esposa de Manjengwe,
Sobre a sua morte.99

98 Tracey, Chopi Musicians. As passagens citadas no corpo do parágrafo, no original: “while


on board ship between Lourenço Marques and Lisbon”, “musical climax of the ngodo”,
ambas na página 27.
99 Tracey, Chopi Musicians. As composições de Katini encontram­‑se nas páginas 18, 19, 24,
25, 26, 27. O trecho do mzeno ou a música citada, no original: “We made new tunes for
the Timbila in the midst of the sea / As we passed foreign lands. / She came warbling, /
Dewesiyane daughter of Nyabindini, / To encourage the Timbila. / You, Manjengwe, why
did you go and die? / Now you are dead, Manjengwe, / We shall not see you again. / If you
appeared we should not believe our eyes. / Ask Chinzawane, wife of Manjengwe, / About
his death”, página 25 [tradução livre].

342
MATHEUS SERVA PEREIRA

As composições de Katini não faziam qualquer referência a


indenização concedida pelas autoridades coloniais portuguesas.
O sinal de prestígio que se pretendia inculcar parece ter sido em vão.
Para além dos eventos ocorridos no início da década de 1940, nos
trânsitos dessas pessoas entre Lisboa, Lourenço Marques e suas
terras de origem, as letras de Katini e de outros compositores reco‑
lhidas por Hugh Tracey, versam sobre aspectos da realidade política
e cotidiana do mundo colonial vivenciado pelos “indígenas”.
Convocando todos para ouvirem “como a música troveja”, os
informantes de Tracey apresentaram temas variados ao logo de suas
composições.100 Por um lado, enfocaram a importância dos chefes
locais como patronos para a realização das orquestras de timbila, ao
mesmo tempo em que os criticavam quando não agiam em prol do
bem comum. Utilizaram de suas vozes para se auto vangloriar, valo‑
rizar aspectos da história e da cultura chopi e a existência de rivali‑
dades entre esses e outros grupos locais. Por outro lado, ainda que
seja possível perceber a recorrência de temáticas engrandecedoras
das capacidades chopi, a crítica as políticas coloniais portuguesas
foram temas recorrentes dessas composições. Nesses casos, os enfo‑
ques recaíram sobre os mecanismos de exploração da mão de obra
local, especialmente aqueles referentes as transformações nas formas
de vida existentes anteriormente ao advento do trabalho migratório
rumo as minas sul­‑africanas.101
O contexto predatório da exploração da mão de obra africana,
fundamental para os ganhos econômicos coloniais portugueses no
sul de Moçambique, foram temas recorrentes em diversas canções
recolhidas por investigações realizadas a partir dos anos 1980.
Jeanne Penvenne, ao estudar as experiências de trabalhadores e tra‑
balhadoras africanos em Lourenço Marques, no início do século XX,
para “sustentar sua confiança e orgulho como adultos contra o sis‑
tema humilhante de dominação” implementado pelo colonialismo,

100 Tracey, Chopi Musicians, 32. No original: “Hark how the music thunders!” [tradução
livre].
101 Era prática recorrente dos gerentes das empresas mineradoras, por exemplo, encorajarem
as diferenças étnicas como mecanismo de controle da força de trabalho. Ver: Harries, Work,
culture, and identity.

343
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

demonstra como esses recorreram, muitas vezes, a canções como


formas de comunicação e protesto.102 Uma das mais conhecidas
músicas contra o sistema de trabalho forçado promovido pelos por‑
tugueses, o chibalo, questionava a voracidade dos abusos coloniais
sobre a mão de obra local:

Que tipo de shibalo é esse de Magandana, ho…?


Ela pega todo mundo, até as mulheres…, ho…
Captura até os avós [mães, pais, filhos, irmã, etc.]
Eles nem nos deixam descansar, ho…
Que tipo de shibalo é esse de Magandana, ho…?103

Para o caso específico dos migodo, como apontam Leroy Vail e


Landeg White, os “alvos dos ataques mais ferozes [...] são consis‑
tentemente aqueles que representam a autoridade portuguesa”.104
Os portugueses, em geral, apareciam como agentes usurpadores do
poder que controlavam homens e mulheres por meio dos impostos
que cobravam e dos castigos físicos que infligiam. Os versos de
Katini eram cheios dessas acusações. Era necessário bastante cui‑
dado, porque os “portugueses batem nas nossas mãos / Em nós e
nas nossas esposas”.105
Nas composições que exploravam as dificuldades do cotidiano
no mundo colonial racialmente hierarquizado, os músicos versaram
sobre as penúrias da migração para os locais de trabalho e como essa
ausência afetou as relações sociais, especialmente as matrimoniais.
As canções de Gomukomu weSimbi e Sauli Ilova, outros informan‑
tes de Tracey e líderes de orquestras de timbila da região de Zavala,

102 Penvenne, African workers and colonial racism, 2. No original: “sustain their confidence and
pride as adults against the humiliating system of domination” [tradução livre].
103 Penvenne, African workers and colonial racism, 3. No original: “What kind of shibalo is this
of Magandana, ho…? / It catches everyone, even the women…, ho…/ It catches even the
grandparents [mothers, parents, children, sister, etc.] / They don’t even let us rest, ho… /
What kind of shibalo is this of Magandana, ho…?” [tradução livre].
104 Vail and White, “The Development of Forms”, 135. No original: “The targets of the most
fierce attack in the migodo are consistently those that represent Portuguese authority”
[tradução livre].
105 Tracey, Chopi Musicians, 15. No original: “the Portuguese beat us on the hands, / Both us
and our wives” [tradução livre].

344
MATHEUS SERVA PEREIRA

também teciam críticas ao colonialismo português e reverberavam


o desmantelamento de relações sociais provocadas pelos processos
migratórios para Lourenço Marques e, sobretudo, para as minas
sul­‑africanas. Da totalidade de canções registradas por Tracey, as
de Gomukomu e Sauli possuem uma característica singular. Em
dois dos movimentos do ngodo escritos por eles temos a tentativa de
apresentar aspectos fundamentais das experiências das mulheres do
sul de Moçambique, de diferentes grupos étnicos, durante a pri‑
meira metade do século XX. Fica evidente a importância de tecidos
e roupas para essas sociedades. Gomukomu, por exemplo, cantou
adotando um eu­‑lírico feminino que dizia estar “muito angustiada
/ Estou mais angustiada que meu homem foi trabalhar / E ele não
me deu roupas para vestir / Nem mesmo um tecido preto”.106
Segundo Tracey, Sauli não era “uma pessoa naturalmente ale‑
gre”.107 Suas trágicas vivências domésticas teriam­‑no levado a
compor movimentos para o ngodo com letras distintas das de Katini
e Gomukomu. Quando adotou uma posição feminina, o alcolismo
e a violência masculina contra as mulheres, ainda que de maneira
breve, são apresentados ao público: “My husband will tell me when
he’s drunk / My husband will tell me when he’s drunk / You
bitch!”.108
Dessa vez, diferentemente do que tenho feito ao longo do livro,
achei importante deixar a versão como foi traduzida originalmente
da língua machopi para o inglês no corpo do texto. É importante
apontar para o fato de que Hugh Tracey, tendo realizado seus tra‑
balhos nos anos subsequentes a Segunda Guerra Mundial, período
em que se iniciam os movimentos de descolonização na África, não
esteve preocupado em amenizar as letras dos migodo que criticavam
diretamente a autoridade colonial portuguesa. No entanto, a des‑
crição dessas canções marcadas pela “conversa fiada, o humor e a

106 Tracey, Chopi Musicians, 46. No original: “I am most distressed, / I am most distressed as
may man has gone off to work, / And he does not give me clothes to wear, / Not even black
cloth” [tradução livre]. As roupas pretas seriam consideradas mais simples por serem aque‑
las usadas para dormir ou pela manhã.
107 Tracey, Chopi Musicians, 53.
108 Tracey, Chopi Musicians. Tradução livre: “Meu marido vai me dizer quando ele está bêbado
/ Meu marido vai me dizer quando ele está bêbado / Sua cadela!”.

345
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

fofoca local”109 feitas pelo autor nem sempre condiziam com os rela‑
tos que as mesmas traziam das altercações decorrentes da ausência,
em grandes períodos do ano, dos homens que se encontravam em
idade produtiva, do alcolismo e de uma determinada forma de vio‑
lência sexual contra as mulheres, fenômenos decorrentes da ação
colonial portuguesa na região. Quando as letras apontavam para
aspectos morais de alteração da vida cotidiana local, Tracey interviu
censurando­‑as moralmente ou, no mínimo, amenizando­‑as. Como
indicam Vail e White, a tradução de Tracey da estrofe “Ngongo
wako” para “You bitch!” não seria a mais apropriada. Para os autores,
o correto seria “Your cunt!”, uma palavra bastante pejorativa e ofen‑
siva em inglês, o que significaria, literalmente, em português “Sua
boceta!” ou, adaptando­‑a para o significado chulo, de “Sua puta!”.110
Katini, Gomukomu e Sauli parecem ter sido selecionados por
Tracey por serem reconhecidamente, entre grupos étnicos e a admi‑
nistração colonial, como os compositores de ngodo mais talentosos
dentre os existentes.111 As apresentações das orquestras de timbila
realizadas na Exposição do Mundo Português, em 1940, em Lisboa,
que contaram com a presença de Katini, não foram as primeiras dele,
nem de Gomukomu, em um contexto de celebração do império
português ou na presença de figuras de autoridade política. Ambos
apresentaram suas canções nas festividades ocorridas, em 1939, pela
visita de Óscar Carmona, então presidente e uma das lideranças do
golpe de 1926, que destituiu o regime republicano em Portugal.
No itinerário do tour de Carmona por Moçambique foram
organizadas cerimônias na região de Magul, localidade próxima de
Marracuene, ambos sítios em que foram travadas batalhas entre os
portugueses e os guerreiros de Gungunhana. Diferentemente do
“batuque” organizado nessas terras em 1905, que tinham como obje‑
tivo celebrar o poderio militar português sobre os guerreiros africa‑
nos, o destaque das apresentações de 1939 foram confiados aos
chopi. Esse grupo era opositor de Gaza e lutou ao lado dos portu‑

109 Tracey, Chopi Musicians, 48.


110 Vail and White, “The Development of Forms”, 151.
111 O autor ainda registrou e analisou o ngodo de Sipingani Likwekwe, também da região de
Zavala, e outro sem autoria determinada.

346
MATHEUS SERVA PEREIRA

gueses contra a dominação de Gungunhana. A rivalidade chopi aos


outros grupos étnicos que haviam ficado contrários aos portugueses,
como os shangana, era um indicativo da possibilidade de uma maior
garantia da ocorrência de grandiosos “batuques” e do engajamento
dos “indígenas” no espetáculo de dança e música em conformidade
com os objectivos de controle e dominação portugueses. A adminis‑
tração colonial apostava que o passado de proximidade era um cata‑
lizador de respaldo junto aos chefes chopi e, consequentemente,
diminuiam os potenciais problemas que poderiam aparecer durante
os “batuques” propagandeadores da ação colonial.
Nos versos compostos por Katini sobre a ocasião, transpareceu
o poderio do ngodo em louvar a identidade chopi, as vantagens que
os chopi obtinham por terem estabelecido uma proximidade com o
poder colonial e como isso transformava­‑se em desvantagens sus‑
tentadoras da rivalidade pré­‑colonial existente com os shanganas.112
No entanto, no ngodo que Katini havia composto aquando de seu
regresso de Lisboa, em 1940, os portugueses eram apresentados
como aqueles que, por meio dos impostos, conseguiam se alimentar
com “ovos e galinhas”, enquanto que os trabalhadores passavam
fome.113 De fato, a principal receita do Estado colonial português
em Moçambique provinha do imposto cobrado sobre a habitação
“indígena”, o que era entendido por um estudioso português dos
impostos coloniais como uma maneira que poderia ser cruel, mas
fundamental, por meio do qual a “civilização penetra e vai produ‑
zindo os seus benéficos resultados”.114
Gomukamu também abordou criticamente a dominação colo‑
nial portuguesa. Enfatizou a maneira como esses exploravam a mão

112 Isso pode ser percebido no verso: “Katini will come to Magule to play Timbila / The
President is glad to see the WaChopi / The Sangaans are left to sing their ‘Ho­‑ho siyana’
/ Until very late for the Presidente”. Tracey, Chopi Musicians, 23.
113 Tracey, Chopi Musicians, 10. No original: “It is time to pay taxes to the Portuguese, / The
Portuguese who eat eggs / And chiken” [tradução livre]. Noutra composição, Gomukomu
cantou “And when we spoke about the matter of food, / About the matter of food, they
turned their backs. / We overhead the Portuguese speaking about food, / Speaking about
food while their backs were turned”, 48.
114 Luís Da Cunha Gonçalves, Revista Portuguesa Colonial e Marítima, vol. 19.º, n.º 114,
(1907), 263. Apud, Maciel Santos, “Trabalho forçado na época colonial – um padrão a
partir do caso português?,” 12.

347
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

de obra africana, a cobrança abusiva de impostos e a interferência


abusiva do “homem branco” na vida política chopi.115 Como apon‑
tam Vail e White, alguns versos do ngodo de Gomukomu, elabora‑
dos a partir de suas experiências durante os eventos da viagem
presidencial para Moçambique de 1939, estavam, na verdade, “retru‑
cando os argumentos de Katini de que os portugueses haviam sido
seduzidos pelo apelo da cultura chopi ao enfatizar como sua própria
orquestra foi tratada quando cumpriu um compromisso oficial”.116
A desilusão de Gomukamu pode ser interpretada como uma
resposta a ausência da contrapartida que deveria ser oferecida pela
participação da orquestra que liderava em um momento de celebra‑
ção do controle colonial português. Ao chegarem atrasados no local
dos batuques para Carmona, por conta de um problema no trem
que os levava, lhes havia sido negado alimentação: “E quando fala‑
mos sobre o assunto da comida, / Sobre a questão da comida, eles
viraram as costas. / Nós ouvimos os portugueses falando sobre
comida, / Falando sobre comida enquanto suas costas estavam vira‑
das”.117 Nas estrofes em que Gomukamu problematizou a proximi‑
dade dos chopi com os portugueses, o gatilho motivador para sua
crítica está em algo que foi observado anteriormente nas ações de
contestação dos realizadores dos “batuques” em 1905 e 1907. Nova‑
mente, a negação na participação de festejos oficiais passava pela
não retribuição com comida ou, quando era necessário, pelo roubo
de carne quando a comida disponibilizada era entendida como insu‑
ficiente. Os versos de Gomukamu são mais um exemplo de como
o emprego de cantos e danças de grupos étnicos do sul de Moçam‑

115 Tracey, Chopi Musicians, 43: “Ha! We quarrel again! The same old trouble. The older girls
must pay taxes. Natanele speak for me to the white man to let me be. You elders must
discuss affairs. The one whom the white men appointed was the son of a commoner. The
Chopi no longer have right to their own country, let me tell you”.
116 Vail and White, “The Development of Forms”, 132. No original: “Gomukomu, in effect,
was retorting to Katini’s argument that the Portuguese have been seduced by the appeal
of Chopi culture by emphasizing how badly his own orchestra was treated when fulfilling
an official engagement” [tradução livre].
117 Tracey, Chopi Musicians, 48. No original: “We got on the train and arrived at Sewe, / And
when we spoke about the matter of food, / About the matter of food, they turned their
backs. / We overheard the Portuguese speaking about food, / Speaking about food while
their backs were turned”.

348
MATHEUS SERVA PEREIRA

bique nas cerimonias coloniais, como valorativos do poder colonial


sob as populações africanas, passou efetivamente por um tênue exer‑
cício de equilíbrio de expectativas que deveriam ser cumpridas por
ambas as partes.
É nesse vai e vem entre imposições do poder colonial português,
através da taxação e da coerção física, que produziram e se consoli‑
daram os movimentos migratórios das áreas rurais para a cidade de
Lourenço Marques, para as plantações e minas sul­‑africanas. Foi no
estabelecimento de equilíbrios a partir das experiências nativas de
desmantelamento das formas de vida previamente constituídas no
sul de Moçambique e das resistências baseadas em expectativas a
serem cumpridas pelos poderes coloniais portugueses, que essas can‑
ções e orquestras de timbila adquiriram uma forma de disseminação
de um sentimento anticolonial efervescente que conseguiu ir para
além das fronteiras chopi. “O­‑oh, escute as ordens, / Escute as
ordens do Português. / Homens! O Português diz, ‘Pague seu
pound’ / Isso é maravilhoso, pai! / Onde devo achar o pound?”.118
A pergunta provocadora de Katini demonstra como a poesia cantada
incorporou a espetacularização que buscou controlar suas formas de
expressão numa narrativa de pertencimento nacional português
como um palco para expressar angústias e insatisfações.
Foi assim que o fascínio pelos “batuques” e as “danças nativas”
causaram um embaraço internacional. Em 1928, os alunos da Uni‑
versidade de Witwatersrand resolveram promover uma festa. O obje‑
tivo era de angariar fundos para a construção de algumas instalações
esportivas. Para isso, organizaram a apresentação de “indígenas
portugueses das raças ‘Shangane’ e ‘Mchope’”. Era comum traba‑
lhadores da mesma designação étnica organizarem­‑se para pratica‑
rem seus cantos e danças na região de Witwatersrand, em
Johannesburgo. Segundo levantamento realizado pela Witwaters‑
rand Native Labour Association (WNLA), empresa responsável
pelo engajamento de trabalhadores no sul de Moçambique para as
minas sul­‑africanas, em agosto de 1944 existiriam um total de 47

118 Tracey, Chopi Musicians, 14 [tradução livre].

349
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

“orquestras chopi”, compostas por 780 pessoas.119 O espetáculo da


“dança usual” desses homens moçambicanos trabalhadores nas
minas sul­‑africanas ocorreu no dia 21 de abril daquele ano e teria
atraído mais de 5.000 espectadores. O trabalho de marketing dos
alunos, divulgando o evento na imprensa local, havia dado resultado.
O grande público presente, mas, principalmente, o programa do
espetáculo com uma descrição breve do que seria apresentado, duas
fotografias das danças e um sumário com trechos das letras das
músicas a serem cantadas, acabou por atrair a atenção das autorida‑
des portuguesas. Aquela teria sido a “primeira vez que em danças
indígenas se imprime programa”.120

42. Capa do programa do evento organizado pelos alunos da Universidade de Witwatersrand.


In “Explanatory Programme of Monster Native Dance at the Wanderers”, AHM, DSNI, Di‑
versos, caixa n.º 37.

119 Tracey, Chopi Musicians, 160.


120 Correspondência confidencial do curador dos negócios indígenas em Johanesburgo para o Diretor
dos Serviços e Negócios Indígenas em Lourenço Marques, 27 de abril de 1928. In: AHM, DSNI,
Diversos, caixa n.º 37.

350
MATHEUS SERVA PEREIRA

43.

44. Imagens 43 e 44 são fotografias usadas no programa do evento organizado pelos alunos da
Universidade de Witwatersrand. In “Explanatory Programme of Monster Native Dance at the
Wanderers”. AHM, DSNI, Diversos, caixa n.º 37.

351
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

Um dos funcionários do órgão responsável pelos “indígenas por‑


tugueses” nas minas de Johanesburgo assistiu ao evento e, rapida‑
mente, informou ao seu superior como havia “ficado positivamente
vexado com o que ali se tinha passado”. O que tanto o incomodou
foi o fato de terem sido apresentados cantos “ofensivos para a auto‑
ridade portuguesa”. O problema não estava no fato das canções faze‑
rem críticas aos portugueses. Era de domínio público, como
corroborava o funcionário, que “toda a gente” sabia ser “hábito dos
indígenas nas suas cantigas criticarem os brancos”. O problema
estava na realização dessas críticas num espetáculo ocorrido em um
“campo de um clube”, para uma numerosa plateia, contendo, num
programa vendido pelos alunos, “a tradução em inglês do que os
pretos cantavam”. Como agravante, para demarcar com clareza o
que era apresentado pelos músicos e dançarinos, foi utilizado um
megafone que anunciava o número correspondente no programa.
Ou seja, o problema não estava na crítica a ação colonizadora por‑
tuguesa existente nas letras, mas no fato dessas terem sido traduzidas
e apresentadas durante um espetáculo voltado para brancos­
‑europeus. Segundo o funcionário colonial português, se não fosse
por essas características “ninguém correspondia o que os pretos
diziam e a coisa passava”. Em momento algum a correspondência
entre os funcionários coloniais portugueses e as diferentes autorida‑
des sul­‑africanas, que prontamente mostraram­‑se preocupadas com
o desentendimento, dão a entender que os praticantes daquelas dan‑
ças e músicas tiveram a intenção de realizar aquelas críticas. A inter‑
pretação, seguindo os moldes racistas que inferiorizavam a capacidade
dos negros­‑africanos de pensarem por si próprios, foi de que aquilo
teria sido obra de brancos desavisados, sendo consenso de que todos
estavam “de acordo que o programa é uma estupidez [...] e confec‑
cionado por pessoa ignorante dos atritos que poderia ocasionar”.121
Apesar do Chamber of Mines de Johannesburgo reconhecer as
suspeitas de influência na seleção de “um comentário difamatório e

121 Correspondência confidencial do curador dos negócios indígenas em Johanesburgo para o Diretor
dos Serviços e Negócios Indígenas em Lourenço Marques, 27 de abril de 1928. In: AHM, DSNI,
Diversos, caixa n.º 37.

352
MATHEUS SERVA PEREIRA

injusto contra as autoridades de seu próprio governo” presente nas


canções apresentadas,122 o comitê organizador do evento insistiu em
afirmar que não teve nenhum controle direto na opção dos “nativos
para escolher suas canções ou em exercer propaganda de qualquer
natureza”.123 A espetacularização dessas práticas, com a sua organi‑
zação para um público majoritariamente branco, revela uma perda
de autonomia e, ao mesmo tempo, uma apropriação por parte de
diferentes segmentos da sociedade colonial dessas práticas locais ao
mundo simbólico do dominador. Esse processo marcou uma série
de mudanças, como a não correlação entre uma orquestra de timbila
e um chefe local específico patrocinador da mesma. A emergência
de novos patrocinadores para as orquestras indica uma nova corre‑
lação entre a prática e os intentos narrativos de suas composições.
Outras evidências das possíveis transformações são encontradas
na descrição das apresentações existente no programa do evento.
Segundo o documento, os dois grupos chopi iriam dançar acompa‑
nhados da “Timbila, o piano nativo” e, como eram todos homens
que trabalhavam nas minas, as mulheres, que deveriam exibir passos
de dança específicos do ngodo, foram substituídas por homens.
Semelhante a isso, os dois grupos shangana trocaram a presença
feminina em suas danças por “um grupo de homens vestidos de
mulheres, que batem as mãos e cantam, mantendo o ritmo da
dança”. 124
Como um momento de recreação capaz de aliviar as duras con‑
dições de trabalho nas minas, as letras descritas revelam a impor‑
tância dessas práticas como um canal de comunicação interno e
externo dessas comunidades. As transformações ocorridas graças à

122 Carta do Chamber of Mines para a Curadoria dos indígenas portugueses no Transvaal, 23 de
abril de 1928. In: AHM, DSNI, Diversos, caixa n.º 37. No original: “a libellous and unfair
comment against the authorities of their own Government” [tradução livre].
123 Carta do Gold Producers Committee para a Curadoria dos indígenas portugueses no Transvaal,
26 de abril de 1928. In: AHM, DSNI, Diversos, caixa n.º 37 [tradução livre]. No original:
“The Committee is confidente that no influence was brought to bear upon natives to choose
their songs or to carry on propaganda of any kind whatsoever”.
124 Explanatory Programme of Monster Native Dance at the Wanderers. In: AHM, DSNI, Di‑
versos, caixa n.º 37. No original: “Timbila the native piano” e “They have a group of men
dressed as women, who clap their hands and sing, keeping the rhythm of the dance”
[tradução livre].

353
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

presença colonial não impediram que os trabalhadores nas minas,


por meio das suas músicas e danças, interpretassem e agissem frente
às transformações vivenciadas durante aquele contexto. O primeiro
grupo chopi que se apresentou, por exemplo, cantou sobre a expe‑
riência de saírem de suas terras, indo num trem até o seu destino no
Transvaal e, para sua surpresa, encontrar o local envolto em distúr‑
bios provocados pela greve de 1922.125 O segundo grupo chopi can‑
tou: “Lá vai o trem da Costa Leste; ele vai para a terra dos
Portugueses, que estão nos tratando tão mal”. Enquanto que o pri‑
meiro grupo shangana reclamou que os portugueses estavam “sem‑
pre coletando dinheiro da gente”, e, para piorar, estariam dispostos
a fechar os caminhos migratórios para o Transvaal.126 Em seguida,
o grupo enalteceu o seu compositor: “Há muitos compositores no
compound, mas o nosso compositor, David, era um bardo na nossa
casa, em Gazaland. Deixe os resmungões sozinhos no compound;
deixe­‑os reclamar; todo mundo sabe que nós, homens de Chai Chai,
somos famosos no mundo inteiro como dançarinos”.127 Falar mal
dos seus concorrentes diretos por um emprego ou elevar as capaci‑
dades dos seus pares poderia significar uma melhor ocupação no
duro mercado de trabalho das minas.128
Desempenhados para olhos e ouvidos estranhos àquelas práti‑
cas, as orquestras de timbila, o ngodo, os “batuques de guerra”, e
tantas outras danças e cantos, passaram por acelerados processos de
ressignificação durante as primeiras décadas do século XX. Por um

125 No original: “We leave home, enter the train and are rushed through a tunnel, when we
have to clutch our hats, as the wind threatens to nlow them away. Arrived at our destination
we find there is a strike, and we see the white people chasing each other with the flying
machine”.
126 No original: “The Portuguese are always collecting money from us, and now they want to
close the way”.
127 No original: “There goes the East Coast train; it goes to the land of the Portuguese, who
are treating us so badly” e “There are many song­‑makers in the Compound, but our song­
‑maker, David, was a bard even in our home in Gazaland. Leave the grumblers in the
compound alone; let them complain; everybody knows that we men of Chai Chai are
famous the world over as dancers” [tradução livre].
128 Nos anos 1940, Gomukomu cantou para Hugh Tracey: “There is no relish left, you Shan‑
gaans, it has been eaten by the Sotho. / Cast of your skins! / There is no relish left, you
Shangaans, it hans been eaten by the Sotho. / It has been eaten by the Sotho and the Xhosa,
and we will not get it. / They came to the gatekeeper and wanted good Jobs. / Even the
cooks in the kitchen know it”. In: Tracey, Chopi Musicians, 30­‑31.

354
MATHEUS SERVA PEREIRA

lado, buscou­‑se, por meio de uma espetacularização daquelas apre‑


sentações, abrandar sentidos nativos das mesmas que poderiam ser
nocivos aos intuitos dominadores portugueses. Ao mesmo tempo,
existiu um esforço de apropriação de práticas socioculturais nativas
musicais e dançantes com o intuito de reverberar aspectos centrais
dos projetos de controle coloniais. Por outro lado, independente das
adaptações que os praticantes dos “batuques” foram obrigados a
promover no bojo desse processo, participar ou não nas performan‑
ces espetacularizadas que ressignificavam suas práticas significou
angariar para si um espaço de diálogo que dificilmente existiria de
outra maneira dentro da estrutura racista excludente colonial que
vinha sendo desenvolvida com a consolidação do poder dominador
colonial europeu.
Os casos aqui analisados permitem entender formas de poder e
de intercâmbios dentro do mundo colonial moçambicano racial‑
mente desigual, construído pela estrutura colonial portuguesa, que
interagiram constantemente entre si. Ao forçarem as frestas das
estruturas de controle produzidas pelo arcabouço do poder colonial,
as populações nativas do sul de Moçambique transformaram o pró‑
prio projeto colonizador, mas também foram transformadas a partir
das trocas desenvolvidas com as interações obrigatórias. As mudan‑
ças ocorridas nessas práticas, advindas das pressões da dominação
colonial, abriram portas para novos contextos. Ao dançarem e can‑
tarem para o príncipe, ou para plateias que não compartilhavam das
lógicas socioculturais que atribuíam um significado específico para
essas práticas, fez­‑se um espetáculo. Nesse sentido, era algo que
deveria ser visto e que possuía um propósito que fugia aos grupos
que desempenhavam as performances.
A apresentação de questões que preocupavam membros da
comunidade chopi de Zavala ou trabalhadores provindos do sul de
Moçambique nas minas sul­‑africanas e a possibilidade de dialoga‑
rem com outros que compunham aquela sociedade, fossem eles os
colonizadores brancos, seus patrões ou os demais grupos rivais
oriundos de diferentes regiões de Moçambique que arriscavam suas
vidas nas profundezas da terra, revelam como essas apresentações
também foram apropriadas por aqueles que expuseram artistica‑
mente seus corpos e vozes em um mecanismo de ação concreta sobre

355
ENTRE O SUBSÍDIO E A SUBVERSÃO

aquela realidade. As transformações provocadas pelo processo de


espetacularização dos “batuques” e das “danças nativas”, que buscou
ressignificá­‑las ao incorporá­‑las ao discurso do controle que legiti‑
mava a empresa colonial portuguesa, teve que lidar com esse pro‑
cesso inverso de apropriação daqueles palanques feita pelos próprios
praticantes dessas músicas e danças. Na medida em que os signifi‑
cados daquelas práticas estavam em disputa, o momento da cele‑
bração do poder português sobre aquelas pessoas foi uma ocasião
preciosa para reivindicar a capacidade de dizer o que se pensava e
mostrar do que era capaz. As populações ditas indígenas agiram ao
se negarem a participar das celebrações que não achavam serem
próprias para si ou que quebravam acordos consuetudinariamente
estabelecidos, causando embaraços e resistindo aos intentos contro‑
ladores coloniais. Ao mesmo tempo, quando participaram de
maneira relativamente espontânea nos momentos em que foram
chamadas para apresentarem suas formas de cantar e dançar, apro‑
veitaram a oportunidade para dialogarem entre si, mas, principal‑
mente, para expressarem ao público branco­‑europeu as queixas que
tinham contra o regime colonial. Ou seja, esses foram momentos
preciosos para as populações nativas sul­‑moçambicanas dizerem o
que pensavam e mostrarem do que eram capazes frente a um sistema
construído para as oprimir.

356
Considerações finais

No contexto do sul do atual Moçambique, entre as décadas de 1890


e 1940, sobretudo na cidade de Lourenço Marques e em suas regiões
periféricas, aquilo que o linguajar colonial português designou como
batuques foi resignificado de diversas maneiras, na medida em que
as experiências de seus praticantes dialogavam com a ação coloni‑
zadora. Pude, ao acompanhar a história desse processo, demonstrar
como no decorrer da construção e da implementação das práticas
dos poderes colonizadores portugueses existiu um campo de disputa.
Por muitas vezes a historiografia tratou essas disputas nos espaços
africanos coloniais a partir de perspectivas que valorizavam catego‑
rias macro de análise. Noutros momentos, terminaram por enxergar
a ação colonial de maneira tão poderosamente aniquiladora das
individualidades daqueles que foram dominados, que produziram
abordagens que deixaram pouco, ou quase nenhum, espaço para a
ação criativa dos colonizados.
Os intentos classificatórios homogeneizadores das diversidades
locais, que faziam parte dos objetivos dominadores coloniais portu‑
gueses, encontraram barreiras concretas no trato cotidiano com as
populações nativas africanas. O esforço em construir Lourenço
Marques como uma capital colonial propagadora dos esforços civi‑
lizatórios esteve atrelado aos arranjos estabelecidos nessas vivências
e nos percalços que esse esforço teve que enfrentar. As incansáveis
tentativas de regular o espaço urbano, como as demandas por uma
indumentária que condissesse com as atribuições que grupos sociais
davam àquele espaço ou do controle da presença feminina nativa no
ambiente urbano e fora de um controle masculino, demonstram,

357
CONSIDERAÇÕES FINAIS

por um lado, um exercício do poder que buscou ser efetivamente


totalizante. Por outro lado, foi por meio das ações entre as frestas
desse contínuo processo excludente que sujeitos como as “raparigas
de Maxaquene”, Maria e Maria Lougame, Fátima, Fanana Pen‑
dane, Maria ou [Bisse], Rosa, Alfredo Vilhena, Fernando Lidou, e
tantos mais, conseguiram, ao menos, amenizar as duras vidas que
levavam. As múltiplas interações sociais estabelecidas nesse processo
produziram a emergência de novos significados nas suas redes de
relações sociais.
É evidente que as situações sociais nas quais esses sujeitos apa‑
receram nas fontes demonstram a produção colonial da inferioriza‑
ção do Outro por meio das perspectivas racializantes e racistas que
corroboravam as ações interventoras europeias. A produção dessa
documentação sempre esteve carregada com esse viés. Porém, as
situações sociais que os dados coletados apresentam não são “mera
ilustração” da estrutura social racista, excludente e exploratória
levada a cabo pelo colonialismo português em Lourenço Marques
e no sul de Moçambique como um todo. A análise de uma genea‑
logia das apresentações musicais e dançantes realizadas no contexto
de consolidação da presença dominadora portuguesa nessa região,
entre as décadas de 1890 e 1940, apresentam situacionalmente a
agenciabilidade daqueles que praticavam as performances como
ações dentro de contextos que reforçam ao mesmo tempo em que
os modificam. Nesse sentido, o “batuque” que mimetizava a ação
colonial portuguesa também foi usado para subverter essa lógica,
servindo para cantar os amores, os grandes feitos pessoais ou de seus
grupos e para criticar as mazelas cotidianas resultantes das formas
de exploração.
A partir dos anos 1950, a expansão econômica ocorrida em toda
a África Austral, com o crescimento do incentivo à migração de
população branca de origem portuguesa para zonas urbanas, como
Lourenço Marques, e o surgimento de novos empreendimentos
industriais, encontrou uma população classificada como indígena
que, desde o início do século XX, vivia batucando pelas esquinas,
ruas, quintais, cantinas e apresentando suas habilidades artísticas
em espetáculos com diferentes significados entre a África do Sul,
Portugal e Moçambique. Os rebuliços suburbanos de Lourenço

358
MATHEUS SERVA PEREIRA

Marques ocorridos desde sua elevação à capital do colonialismo


português na região foram marcados pelas duras condições de vida
de seus habitantes e pelas intermitentes idas e vindas entre a cidade,
suas periferias, as zonas rurais, as minas de Johanesburgo e outras
cidades africanas. Katini weNyamombe, um dos compositores chopi
entrevistados por Hugh Tracey nos anos 1940 foi mais além. Cir‑
culando por todos esses meios, teve papel importante em Lisboa,
quando da Exposição do Mundo Português. Nos anos 1950 e 1960,
suas composições sobre os eventos ocorridos quando de sua estadia
em Lisboa continuavam a ser cantados por Gomukomu weSimbi,
outro importante músico chopi do período. O falecimento do pri‑
meiro, possivelmente no início dos anos 1950, e do segundo, em
1962, fecham um período de mudanças pelas quais o ngodo e as
orquestras de timbila passavam. Seus trânsitos contínuos possibili‑
taram uma expansão no mundo dessas pessoas para além das rela‑
ções com suas comunidades de origem ou com as autoridades
coloniais portuguesas. Resultando numa efervescência cultural que
foi acionado por diferentes agentes sociais com seus interesses polí‑
ticos próprios, as andanças de Katini e Gomukomu representam
alguns dos resultados possíveis das tensões, arranjos e experiências
existentes na primeira metade do século XX.
Para Leroy Vail e Landeg White, o avançar e a consolidação
das estruturas de dominação colonial portuguesas no sul de Moçam‑
bique, como os intensos fluxos migratórios de homens para as minas
sul­‑africanas, suas consequências nas relações familiares e a “coop‑
tação pelos portugueses, primeiro, dos chefes e, depois, da música
timbila para ocasiões oficiais criou uma crise para os músicos Chopi”
a partir dos anos 1960.1 Os autores analisam as transformações no
ngodo no período do colonialismo­‑tardio (1945­‑1975) como uma
incorporação das orquestras de timbila ao colonialismo que as leva‑
ram, invariavelmente, a perda de seu poder de crítica. Efetivamente,
algo mudou a partir dos anos 1950. No entanto, a percepção de que

1 Vail and White, “The Development of Forms”, 143. No original: “The cooptation by the
Portuguese of, first, their chiefs and, then, their timbila music for official occasions created
a crisis for Chopi musicians” [tradução livre].

359
CONSIDERAÇÕES FINAIS

os músicos Chopi haviam entrado em declínio é demasiado baseada


na percepção de agentes da colonização portuguesa empenhados em
apresentar propostas de engenharias sociais que salvaguardassem os
interesses de perpetuação do domínio português na região. As preo‑
cupações de António Rita­‑Ferreira, por exemplo, sobre a “salvação
da música chopi” passavam por uma leitura sua que desenhava um
cenário cultural em desestruturação justificador da continuidade de
ações dominadoras portuguesas supostamente capazes de impedi‑
rem o desaparecimento de práticas como as das orquestras de
timbila.2
Acreditar numa ideia de declínio do ngodo é crer na ideia de que
as culturas morrem. Elas se transformam na medida em que novas
relações sociais são estabelecidas. Segundo Ilídio Rocha, contem‑
porâneo dos processos de transformações nas formas de batucar dos
anos 1940 e 1950, Katini era um “compósitor de timbila dos mais
famosos do povo chope” e Gomukomu um “magnífico músico”. As
composições feitas por Katini quando de sua passagem por Lisboa
eram consideradas “pelos próprios chopis” como uma das mais belas
feitas por “mãos dos seus músicos”.3 As reconhecidas habilidades
artísticas de ambos os levaram a participar intensamente nos pro‑
cessos de incorporação e diferenciação de práticas culturais nativas
desenvolvidos durante o regime colonial, assim como das alterações
dessas práticas ocasionadas graças a esses processos. Gomukomu
não chegou a ir para a metrópole como Katini. Mas, em 1953, esteve
à frente de uma grande orquestra, composta por 40 tocadores, 85
bailarinos e uma bailarina, que compunham o Pavilhão da Repre‑
sentação de Moçambique na Exposição Comemorativa do Cente‑
nário de Rhodes, na Rodésia do Sul e, por isso, realizou apresentações
numa excursão entre Lourenço Marques, Beira, Bulawayo e Salis‑
bury, atual Harare.

2 Ver: António Rita­‑Ferreira, “Timbilas e jazz entre os indígenas de Homoíne (Moçambi‑


que)”, in Boletim do Instituto de Investigação Científica de Moçambique, vol. 01, n.º 01 (1960):
68­‑79. Ou a série de textos intitulados “Em salvação da música chope” que Rita­‑Ferreira
publicou no jornal Notícias, em Lourenço Marques, nas edições de 30 de junho, 14 de julho,
28 de julho, 11 de agosto, 22 de agosto, de 1974.
3 Ilídio Rocha, A arte maravilhosa do povo chope (Lourenço Marques: Instituto de Investigação
Cientifica de Moçambique, 1962), 26.

360
MATHEUS SERVA PEREIRA

A imprensa laurentina da época ovacionou os espetáculos e o


“régulo de Zandamela”, Felisberto Joaquim Machatine, mais conhe‑
cido pelo seu nome chopi, Mafumane, que teve como função
comandar a excursão. Ilídio Rocha, em artigos publicados pelo jor‑
nal Notícias, descreveu o entusiasmo causado no público e na rainha
da Inglaterra por conta da “exibição daquele grupo de indígenas
portugueses”.4 Responsável pela imprensa e propaganda da Comis‑
são Moçambicana nas comemorações, o autor não deixou de notar,
em outro momento, como a espetacularização dos “batuques” havia
alterado sua sonoridade. Como Rocha aponta, “as grandes exibi‑
ções” transformaram a relação entre a orquestra e as chefaturas
chopi. A organização de grandes orquestras compostas por músicos
de diferentes chefes locais interferiu na manufatura das timbila. Per‑
cebendo a relevância que havia ganhado para o regime colonial por‑
tuguês, os produtores do instrumento teriam passado a construí­‑lo
“com afinações iguais – o que não sucedia no passado, pois cada
grupo de régulos dos instrumentos, e às vezes um régulo só, tinha
a sua afinação”.5 O grande grupo de 1953 seria exatamente um
exemplo desse fenômeno.
Mafumane, o chefe local incutido de coordenar a junção das
várias orquestras de timbila de diferentes chefaturas, também tinha
como função explicar ao público o significado daquilo que seria visto
e ouvido.6 Diferentemente do show de “dança nativa” promovido
por alunos da Universidade de Witwatersrand, em 1928, analisado
no último capítulo, dessa vez as letras não parecem ter sido causa‑
doras de discórdia, o que é interessante já que elas remetiam a versos
críticos aos portugueses.7 A compreensão, por parte dos portugue‑
ses, de que por meio da espetacularização das orquestras de timbila
elas haviam sido incorporadas ao projeto colonial, parece ter rene‑
gado as críticas presentes nas letras dos ngodo a mais uma caracte‑
rística intrínseca da prática, ao invés de uma ameaça concreta ao
domínio colonial.

4 Notícias, 08 de julho de 1953. BNP


5 Rocha, A arte maravilhosa do povo chope, 15.
6 Notícias, 20 de junho de 1953. BNP.
7 Notícias, 14 de junho de 1953. BNP.

361
CONSIDERAÇÕES FINAIS

No entanto, como sujeitos vivendo em momentos de transfor‑


mações das relações coloniais, os tocadores de timbila exerceram
pressões a partir das ferramentas que melhor dominavam: suas com‑
posições. Gomukomu, por exemplo, em dois versos seus gravados
em 1955, indica grande insatisfação que poderia ter resultado de
suas experiências durante as excursões de 1953. Um dos alvos dessas
críticas era justamente o chefe local Mafumane e sua demasiada
proximidade com os portugueses. O outro verso também girava ao
redor desse evento, já que reclamava da frequente utilização dos
músicos de timbila em apresentações organizadas para espetáculos
de promoção da ação colonizadora portuguesa, comparando o exces‑
sivo número de performances a uma forma de trabalho forçado.8
Com o avançar das lutas nacionalistas nos contextos africanos,
sobretudo após 1945, o cantar e dançar dessas populações passaram
por novas disputas de atribuição de significados que viriam a marcar
os processos de construção das nações que emergiram com o período
pós­‑colonial. Nesse contexto, o colonialismo português se reinven‑
tou como necessário para proteger práticas musicais e dançantes do
sul de Moçambique, ao mesmo tempo em que promoveu, de maneira
não proposital, uma vida social e cultural marcada pelo encontro
entre àquela analisada ao longo do livro e as novas formas de cons‑
trução do capitalismo e do colonialismo da segunda metade do século
XX, que se aglutinou nos subúrbios de Lourenço Marques.9
Nos anos 1960, “os marimbeiros, as bailarinas e os bailarinos”
atuavam em “todos os pontos” do subúrbio da cidade.10 Em dife‑
rentes bairros, como o de Xipamanine, “realizavam­‑se [...], com

8 Apud, Vail and White, “The Development of Forms”, 141 e 143.


9 De maneira geral, no pós­‑1945, “os Estados coloniais operam mudanças políticas supos‑
tamente marcadas pelo anti­‑racismo, por propósitos desenvolvimentistas e por preocupa‑
ções sociais; confrontam­‑se com movimentos sociais africanos (greves, revoltas), sofrem a
oposição política e/ou militar de movimentos nacionalistas e enfrentam crescentes críticas
externas e internas ao status quo, tentam revigorar e legitimar o império através de projetos
de modernização [...]; recorrem como nunca até então à ciência e à tecnologia, configu‑
rando uma ‘segunda ocupação colonial’ [...]; fazem a gestão dos seus próprios limites”. In:
“Tardo­‑colonialismo e produção de alteridades”, in Os Outros da Colonização: Ensaios sobre
o Colonialismo Tardio em Moçambique, org. Cláudia Castelo, Omar Ribeiro Thomaz, Sebas‑
tião Nascimento e Teresa Cruz e Silva (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2012),
21­‑22.
10 Notícias, 16 de outubro de 1967. BNP.

362
MATHEUS SERVA PEREIRA

frequência, espetáculos de música chope”.11 Muitos dos músicos


que marcaram os palcos de Lourenço Marques entre os anos 1950
e 1970, e que chegaram a alcançar certo sucesso internacional, foram
influenciados por suas experiências de migrações, inserções no sis‑
tema capitalista colonial de exploração da mão de obra africana e as
consequentes transformações nas relações sociais e culturais desen‑
cadeadas com esses processos de produção de modernidades múlti‑
plas. Alexandre Langa, por exemplo, importante guitarrista nascido
em 1943, era filho de um carpinteiro tocador de mbila que cresceu
escutando discos em um gramofone.12
Outro exemplo é o do mais famoso parceiro de Alexandre
Langa, o cantor e compositor Fany Mpfumo. Considerado um dos
pais da Marrabenta, hoje ritmo estimado enquanto característico da
identidade nacional moçambicana, Fany Mpfumo consolidou­‑se
como músico durante os vinte anos que passou em Johanesburgo,
onde havia primeiramente se deslocado para trabalhar nas minas da
África do Sul. Quando de seu regresso para um espetáculo, em
1973, tocou e cantou no pavilhão do clube do Sporting, com grande
alvoroço do público composto, majoritariamente, pela “população
suburbana” de “origem africana”, ao lado de outros conjuntos que
iriam se tornar símbolos de uma virada de cunho nacionalista­
‑independentista, como o Matalana e o Djambo 70.13
A trajetória de vida de figuras como Fany Mpfumo, desde de
sua migração até o seu apogeu na carreira musical e o seu declínio
no pós­‑independência, abre possibilidades de análises que vinculam
a relação entre práticas culturais musicais e dançantes surgidas nos
intercâmbios promovidos pelas necessidades do remelexo para
sobreviver em contextos de exploração colonial. Ao mesmo tempo,
o seu surgimento como fenômeno musical só ocorreu graças a difu‑
são do rádio e a sua importância como ferramenta para promover,

11 António Sopa, A Alegria é Uma Coisa Rara: Subsídios para a História da Música Popular
Urbana em Lourenço Marques (1920­‑1975) (Maputo: Marimbique, Conteúdos e Publica‑
ções Ltda., 2014), 43.
12 Amâncio Miguel, compilação, Marrabenta – Vozes de Moçambique (Maputo: Marimbique,
2004), 13.
13 Notícias, 7 de junho de 1973. “O regresso de Fany Pfumo”, por António Rita Ferreira.

363
CONSIDERAÇÕES FINAIS

por um lado, as investidas anti­‑independendistas portuguesas e, por


outro lado, a disseminação de um ser moçambicano por meio da
música que condizia com objetivos nacionalistas dos movimentos
de independência.
O projeto de nação que saiu vencedor em 1975 acabou, nos anos
subsequentes, limando as canções de Fany Mpfumo. Seu cantar,
que marcava as duras condições de vida dos trabalhadores moçam‑
bicanos em Johanesburgo, ao mesmo tempo que manifestava o
desejo pela “rapariga ronga”, a “rapariga chopi”, a “rapariga macua”
e a “rapariga china”, não tinha mais espaço na nova nação que
pretendia­‑se construir.14

14 Letra da música Ni Helile (Eu estou acabado), que diz: “Eu estou acabado homens / Eu
estou acabado aqui no Jone / Eu agradecia as libras desta terra / Eu desejo as mulheres de
lá Johanesburgo / Agora eu regressarei, eu vou para casa / Eu vou tomar uma rapariga
ronga / Se eu não conseguir uma rapariga ronga / Eu tomarei uma rapariga chopi / Se eu
não conseguir uma rapariga chopi / Eu tomarei uma rapariga macua / Se eu não conseguir
uma rapariga macua / Eu tomarei uma rapariga china”. Letra compilada e traduzida por
António Rita Ferreira, citada em: http://www.antoniorita­‑ferreira.com/pt/transcricoes­‑e­
‑traducoes­‑por­‑antonio­‑rita­‑ferreira­‑de­‑letras­‑de­‑cancoes­‑de­‑fany­‑mpfumo/34­‑ni­‑helile,
consultado em 09 de abril de 2019.

364
Lista de Abreviaturas

ACM – Fundo da Administração do Concelho de Moçambique do Arquivo


Histórico de Moçambique

ACT/DR – Arquivo Científico Tropical / Digital Repository

AHM – Arquivo Histórico de Moçambique

AHU – Arquivo Histórico Ultramarino

BNP – Biblioteca Nacional de Portugal

CECULT­‑UNICAMP – Base de Dados “Legislação: Trabalhadores e Trabalho


em Portugal, Brasil e África Colonial Portuguesa”

DGU - Direção Geral do Ultramar do Arquivo Histórico Ultramarino

DSAC – Fundo da Direção dos Serviços de Administração Civil do Arquivo


Histórico de Moçambique

DSNI - Fundo da Direção dos Serviços dos Negócios Indígenas do Arquivo


Histórico de Moçambique

GDLM – Fundo do Governo do Distrito de Lourenço Marques do Arquivo


Histórico de Moçambique

GG – Fundo do Governo Geral do Arquivo Histórico de Moçambique

WNA – Word Newspaper Archives

365
Lista de mapas e imagens

Mapas

Mapa 1. “Lourenço Marques, 1903”. In Carlos Santos Reis, A População de Lou‑


renço Marques em 1894 (um censo inédito) (Lisboa: Instituto Nacional de
Estatística, Publicações do Centro de Estudos Demográficos, 1973).
Mapa 2. “Map of South Eastern Africa”. In Hugh Tracey, Chopi Musicians. Their
Music, Poetry, and Instruments (London: Oxford University Press,
1970).

Imagens

1. “O vertical cá da terra. Beiço a mais, miolo a menos...”. In O Intransigente:


suplemento humorístico e ilustrado: 14 de dezembro de 1911. BNP.
2. “A ‘Mafalala’. Dança cafre de Moçambique”. In J. and M. Lazarus. A Souvenir
of Lourenço Marques. An Album of Views of the Town (Lourenço Marques:
Tabler & Co., 1901), 41.
3. “The ‘M’Shongola’. Dança cafre (Bakonga) da Baia de Delagoa”. In J. and M.
Lazarus. A Souvenir of Lourenço Marques. An Album of Views of the Town
(Lourenço Marques: Tabler & Co., 1901), 42.
4. José dos Santos Rufino, ed., Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de
Moçambique. Volume X, Raças, Usos, Costumes Indígenas e Alguns Exemplares
da Fauna Moçambicana (Lourenço Marques: J. S. Rufino, 1929), 30.
5. Ibidem, 33.
6. Ibidem, 5.
7. Ibidem, 8.
8. “Suaris [Suazis?] dançando”. In [Álbum fotográfico n.º 10] Comissão de Deli‑
mitação de Fronteiras de Lourenço Marques 1890­‑91. ACT/DR.

367
LISTA DE MAPAS E IMAGENS

9. “Batuques em Malasche”. In [Álbum fotográfico n.º 10] Comissão de Delimi‑


tação de Fronteira de Lourenço Marques 1890­‑1891. ACT/DR.
10. “Batuques em Malasche”. In [Álbum fotográfico n.º 10] Comissão de Deli‑
mitação de Fronteira de Lourenço Marques 1890­‑1891. ACT/DR.
11. Classificados. O Africano, de 21 de junho de 1913. WNA.
12. José dos Santos Rufino, ed., Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de
Moçambique. Volume III: Lourenço Marques – Aspectos da cidade, Vida Comer‑
cial, Praia da Polana, etc. (Lourenço Marques: J. S. Rufino, 1929), 23.
13. Ibidem, 24.
14. Ibidem, 19.
15. Classificados. O Africano, 8 de junho de 1918. WNA.
16. Classificados. O Brado Africano, 4 de setembro de 1920. WNA.
17. Classificados. O Africano, 1 de agosto de 1911; O Brado Africano, 30 de julho
de 1921. WNA.
18. Kiosks, Praça Mousinho d’Albuquerque”. In J. & M. Lazarus. A Souvenir of
Lourenço Marques. An album of views of the town (Lourenço Marques: Tabler
& Co., 1901), 28.
19. “A Praça 7 de Março – no centro da cidade – com os seus quiosques da... ‘má
língua’...”. In José dos Santos Rufino, ed., Álbuns fotográficos e descritivos da
colônia de Moçambique. Volume III: Lourenço Marques – Aspectos da cidade, Vida
Comercial, Praia da Polana, etc. (Lourenço Marques: J. S. Rufino, 1929),
64­‑65.
20. Ibidem, 62.
21. “A Banda da Missão de Angoche”, José dos Santos Rufino, ed. Álbuns
fotográficos e descritivos da colônia de Moçambique. Volume X, Raças, Usos,
Costumes Indígenas e Alguns Exemplares da Fauna Moçambicana (Lourenço
Marques: J. S. Rufino, 1929), 55.
22. Bilhete da “Direção do Porto e dos Caminhos de Ferro de Lourenço Mar‑
ques”. AHM, GG, Polícia – 1908­‑1914, caixa n.º 19.
23. José dos Santos Rufino, ed., Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de
Moçambique. Volume X, Raças, Usos, Costumes Indígenas e Alguns Exemplares
da Fauna Moçambicana (Lourenço Marques: J. S. Rufino, 1929), 7.
24. Ibidem, 9.
25. Ibidem, 11.
26. “Um grupo de mulheres cafres de Delagoa Bay”. In J. & M. Lazarus. A Sou‑
venir of Lourenço Marques. An album of views of the town. (Lourenço Marques:
Tabler & Co., 1901), 43.
27. “Um interessante grupo de tocadoras de ‘marimbas’ em Mocodoene”. “Um
grupo de mulheres cafres de Delagoa Bay”. In J. & M. Lazarus. A Souvenir

368
MATHEUS SERVA PEREIRA

of Lourenço Marques. An album of views of the town. (Lourenço Marques:


Tabler & Co., 1901), 36.
28. “Orquestra de chopes (marimbas) de Moçambique”. In O Império Português
na Primeira Exposição Colonial Portuguesa: álbum­‑catálogo oficial: documentário
histórico, agrícola, industrial e comercial, paisagens, monumentos e costumes
(Porto: Mario Antunes Leitão: Vitorino Coimbra, 1934), 413.
29. “Lourenço Marques – Manga de Landins”. In Coleção “Missão de Mariano
Cyrilo de Carvalho à província de Moçambique: edição geral”. ACT/DR.
30. “Lourenço Marques – Um almoço nas terras da Corôa”. In Coleção “Missão
de Mariano Cyrilo de Carvalho à província de Moçambique: edição geral”.
ACT/DR.
31. “Lourenço Marques – Landins começando as danças de guerra”. In Coleção
“Missão de Mariano Cyrilo de Carvalho à província de Moçambique: edição
geral”. ACT/DR.
32. “Lourenço Marques – Landins”. In Coleção “Missão de Mariano Cyrilo de
Carvalho à província de Moçambique: edição geral”. ACT/DR.
33. Ibidem.
34. Ibidem.
35. “Chefes de um ‘Batuque de guerra’”. In Álbuns fotográficos e descritivos da colônia
de Moçambique. Volume X, Raças, Usos, Costumes Indígenas e Alguns Exemplares
da Fauna Moçambicana, (Lourenço Marques: J. S. Rufino, 1929), 16.
36. “Os régulos e indígenas de Marracuene”. In Ana Vicente e António Pedro
Vicente. O príncipe real Luiz Felipe de Bragança, 187­‑1908 (Lisboa: Edições
Inapa, 1998), 74.
37. “Batuque em Marracuene em honra de D. Luiz Filipe”. Apud Ana Vicente e
António Pedro Vicente. O príncipe real Luiz Felipe de Bragança, 187­‑1908.
(Lisboa: Edições Inapa, 1998), 74.
38. “S. A. Real o batuque”. Apud António Sopa, A Alegria é Uma Coisa Rara: Sub‑
sídios para a História da Música Popular Urbana em Lourenço Marques (1920­
‑1975) (Maputo: Marimbique, Conteúdos e Publicações Ltda., 2014), 259.
39. “S. A. Real o batuque”. Apud António Sopa, A Alegria é Uma Coisa Rara: Sub‑
sídios para a História da Música Popular Urbana em Lourenço Marques (1920­
‑1975) (Maputo: Marimbique, Conteúdos e Publicações Ltda., 2014), 260.
42. Explanatory Programme of Monster Native Dance at the Wanderers. AHM,
DSNI, Diversos, caixa n.º 37.
43. Ibidem.
44. Ibidem.
Todas as imagens reproduzidas neste livro obtiveram as devidas autorizações legais para
a sua utilização.

369
Fontes e bibliografia

FONTES

Arquivo Histórico de Moçambique (AHM)


Fundo da Direção dos Serviços dos Negócios Indígenas (DSNI):
Álcool e bebidas, caixa 06.
Bairros e povoações indígenas, caixa 528.
Curadoria e Negócios Indígenas, caixas 573 e 602.
Diversos, caixas 29, 30, 37, 84, 91 e 103.
Diversos, Projetos de assistência aos indígenas, caixa 225.
Transgressões – prisões, caixas 07 e 83.
Tribunais indígenas, caixas 1586, 1601, 1602, 1603, 1605, 1606, 1609, 1630, 1632
e 1634.
Requerimentos, petições, reclamações e queixas, caixas 148, 149, 150 e 196.

Fundo da Direção dos Serviços de Administração Civil (DSAC):


Caixa 2195.

Fundo da Administração do Concelho de Moçambique (ACM):


Diversos Confidenciais, caixa 05.
Caixas 2010 e 3245.

Fundo do Governo do Distrito de Lourenço Marques (GDLM):


Século XIX, caixa 71.
Livros de Registro, caixa 3245.

Fundo do Governo Geral (GG):


Caixas, 34, 102, 108.
Processos – Polícia (1908­‑1914), caixa 19.

371
FONTES E BIBLIOGRAFIA

Imprensa:
Lourenço Marques Guardian (1906­‑1918).
O Incondicional (1910­‑1914).
O Mignon (1905).
Os Simples (1911).
Semana Desportiva (1923).

Biblioteca:
Chatelain, Ch. W., e Henri A. Junot. A pocket dictionary, Thonga (Shangaan) –
English; English­‑Thonga (Shangaan), proceeded by an Elementary Grammar.
Lausanne: G. Bridel, 1909.

Arquivo Histórico Ultramarino (AHU)


Direção Geral do Ultramar (DGU):
1.ª Repartição, 2.ª Seção, Caixa: S/N, 1896, Correspondência.
1.ª Repartição, 1.ª Seção, Caixa 1322, Correspondência, 1902.
1.ª Repartição, 1.ª Seção. 1903.
3.ª Repartição, Caixa 1644, 1900.
3.ª Repartição, Caixa 2764, 1885­‑1898, Estatísticas.
3.ª Repartição, Caixa: 1396, 1891­‑1892, Obras Públicas.

Biblioteca Nacional de Portugal (BNP)


Imprensa:
A Tribuna (1907).
Boletim Oficial, n.o 48 (1904).
Diário de Notícias (1905).
Heraldo (1910).
Lourenço Marques Guardian (1945).
O Brado Africano (1923­‑1940).
O Chocarreiro (1910).
O Distrito (1904­‑1905).
O Imparcial (1922­‑1924).
O Intransigente: Suplemento humorístico e ilustrado (1911).
O Portuguez (1900­‑1901).
O Progresso de Lourenço Marques (1902­‑1908).
Notícias (1953 e 1967).

Publicações impressas:
Albuquerque, Mouzinho de. Moçambique 1896­‑1898. Volume II. Lisboa: Divisão
de publicações e biblioteca. Agência Geral das Colónias, 1934.

372
MATHEUS SERVA PEREIRA

Algumas palavras acerca das operações de guerra no distrito de Moçambique durante o


governo do exmo. Sr. Conselheiro Jayme Pereira de Sampaio Forjaz de Serpa
Pimentel (1903­‑1904). Lisboa: Tipografia d’A Editora, 1904.
Antologia colonial portuguesa. Volume I: Política e administração. Lisboa: Agência
Geral das Colónias, 1946.
Augusto, António. Estudos Psicotécnicos. Nível intelectual de algumas tribos de
Moçambique. Lisboa: Ministério das Colónias, 1949.
Azevedo, Guilherme de. “Relatório sobre os trabalhos do recenseamento da popu‑
lação de Lourenço Marques e Subúrbios, referido ao dia 01 de dezembro de
1912”. In Boletim Oficial, suplemento: 177­‑193.
Branco, Francisco Xavier Ferrão de Castello. “Relatório precedendo a proposta
de regulamentação do trabalho indígena, apresentada ao Conselho do
Governo”. In Província de Moçambique. Relatórios e Informações. Anexos
ao Boletim Of icial. 1908­‑09. Lourenço Marques: Imprensa Nacional,
1909.
Cabral, António Augusto Pereira. Raças, usos e costumes dos indígenas do Distrito
de Inhambane (Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1910).
Cabral, António Augusto Pereira. Raças, usos e costumes dos indígenas da Província
de Moçambique. Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1925.
Cabral, António Augusto Pereira. Primeira Exposição Colonial Portuguesa. Porto,
1934. Colónia de Moçambique. Indígenas da Colónia de Moçambique. Lourenço
Marques: Imprensa Nacional de Moçambique, 1934.
Camacho, Brito. “A Preguiça Indígena. Do Livro ‘Moçambique – Problemas
Coloniais’ – 1926”. Antologia colonial portuguesa. Volume I: Política e adminis‑
tração, 189­‑194. Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1946.
Cayolla, Lourenço. Marracuene. Lisboa: Divisão de publicações e biblioteca,
Agência Geral das Colónias, 1935.
Código de Postura da Câmara Municipal do Distrito de Inhambane. Aprovado por
acordão do conselho de província n.º 22 de 8 de julho de 1887. Lourenço Mar‑
ques: Imprensa Nacional, 1887.
Courtois, Victor José. Dicionário Português­‑Cafre­‑Tetense Ou Idioma Falado No
Distrito De Tete E Na Vasta Região Do Zambeze Inferior. Coimbra: Imprensa
da Universidade, 1900.
Cunha, Joaquim D’Almeida da. Estudos acerca dos usos e costumes dos Banianes,
bathiás, parses, mouros, gentios e indígenas. Para cumprimento do que dispões o
artigo 8.º, § 1.º do decreto de 18 de novembro de 1869. Lourenço Marques:
Imprensa Nacional, 1885.
D’Andrade, A. Freire. Relatórios sobre Moçambique por Freire D’Andrade. Lourenço
Marques: Imprensa Nacional, 1907.

373
FONTES E BIBLIOGRAFIA

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ao Congresso Colonial Nacional. Lisboa: A Liberal – Oficina Tipográfica, 1901.
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Farinha, Padre António Lourenço. Elementos de Gramática Landina (shironga).
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1907.
J. & M. Lazarus. A Souvenir of Lourenço Marques. An album of views of the town
(Lourenço Marques: Tabler & Co., 1901.
Lavradio, José Luiz de Almeida. Memórias do Sexto Marquês de Lavradio. Lisboa:
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Lupi, Eduardo do Couto. Breve memória sobre uma das capitanias­‑mores do distrito
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Matsinhe, Guidione de Vasconcelos. O auxiliar do médico e do enfermeiro. Vocabu‑
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Mello, Lopo Vaz de Sampayo e. Política Indígena. Porto: Magalhães e Moniz
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Raposo, Alberto Carlos de Paiva. Noções de gramática landina. Breve guia de con‑
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Lisboa, 1895.
Recenseamento da População e das Habitações da Cidade de Lourenço Marques e seus
Subúrbios: referidos a 1.º de dezembro de 1912. Lourenço Marques: Imprensa
Nacional, 1913.
Regulamento das Circunscrições Civis dos Distritos de Lourenço Marques. Aprovado
por portaria n.º 671­‑A, de 12 de setembro de 1908. Lourenço Marques:
Imprensa Nacional, 1908.
Regulamento de Serviçais e Trabalhadores Indígenas no Distrito de Lourenço Marques.
Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1904.

374
MATHEUS SERVA PEREIRA

Regulamento do Mercado Público da Cidade de Lourenço Marques. Lourenço Mar‑


ques: Imprensa Nacional, 1903.
Regulamento para o serviço dos Rickshaws de praça e particulares. Aprovado pelo acor‑
dão do conselho administrativo do distrito, n.º 6, de 1903. Lourenço Marques:
Imprensa Nacional, 1903.
Santa Rita, José Gonçalo. “O Contacto das Raças nas Colónias Portuguesas: Seus
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tuguesa para o Progresso das Ciências. Tomo V – 4.º Sessão, Ciências Naturais,
625­‑645. Porto: Imprensa Portuguesa, 1951.
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‑Palustre da cidade de Lourenço Marques (aprovado por portaria provincial n.º
86 de 4 de fevereiro de 1907).
Trabalhos do 1.º Congresso Nacional de Antropologia Colonial. Porto: Edições da 1.ª
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Valle, E. Torre. Dicionários shironga­‑português e português­‑shironga. Precedidos de
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Fontes impressas

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Journal of the Royal Geographical Society of London, vol. 45 (1875), 45­‑128.
Freire De Andrade, Alfredo e José António Matheus Serrano. Explorações Portu‑
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de Lourenço Marques. Lisboa: Imprensa Nacional, 1894.
Junod, Henry. “The mbila or ative piano of the Tchopi tribe”. Bantu Studies, vol.3:
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———. Usos e Costumes dos Bantu. Campinas, SP: UNICAMP, Instituto de Filo‑
sofia e Ciências Humanas, 2009.
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oficial: documentário histórico, agrícola, industrial e comercial, paisagens,
monumentos e costumes (Porto: Mário Antunes Leitão e Vitorino Coimbra,
1934).

375
FONTES E BIBLIOGRAFIA

Word Newspaper Archives (WNA)


O Africano (1908­‑1920);
O Brado Africano (1918­‑1922).

Portal Memórias da África e do Oriente


Rufino, José dos Santos, ed.. Álbuns fotográficos e descritivos da colónia de Moçam‑
bique. Volume I: Lourenço Marques, panoramas da cidade. Lourenço Marques:
J. S. Rufino, 1929.
Rufino, José dos Santos, ed.. Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de Moçambique.
Volume III: Lourenço Marques – Aspectos da cidade, Vida Comercial, Praia da
Polana, etc. Lourenço Marques: J. S. Rufino, 1929.
Rufino, José dos Santos, ed., Álbuns fotográficos e descritivos da colônia de Moçam‑
bique. Volume X: raças, usos, costumes indígenas e alguns exemplares da fauna
moçambicana. Lourenço Marques: J. S. Rufino, 1929.

Arquivo Científico Tropical / Digital Repository (ACT/DR)


Álbum fotográfico n.º 3: Comissão de Delimitação de Fronteira de Lourenço Mar‑
ques, 1890­‑91.
Álbum fotográfico n.º 10: Comissão de Delimitação de Fronteira de Lourenço
Marques, 1890­‑91.
Coleção Missão de Mariano Cyrilo de Carvalho à província de Moçambique:
edição geral, 1890.

Base de Dados «Legislação: Trabalhadores e Trabalho em Portugal, Brasil e


África Colonial Portuguesa» (CECULT­‑UNICAMP)

Estatuto político, civil e criminal dos indígenas, In Diário do Governo, I Série, n.º 30,
06 de fevereiro de 1929.
Portaria Provincial N.º 317, de 9 de Janeiro de 1917, publicada no Boletim Oficial
n.° 02/1917.

BIBLIOGRAFIA

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am Main: Peter Lang, 2016.
Albuquerque, Orlando de, Motta, José Ferra. História da literatura em Moçambique.
Braga: Edições APPACDM Distrital de Braga, 1998.

376
MATHEUS SERVA PEREIRA

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393
Índice remissivo

A cantinas 47, 49, 55, 57, 78, 81-2, 85,


África do Sul 143, 146, 203, 305, 322 97, 171, 196, 217, 239, 262, 358
exploração de minas 47, 50-1, batuques nas 100, 155, 167, 270
116, 352 proibição de batuques nas 55, 86,
movimentos migratórios 35, 98, 98
217, 233, 236-9, 257, 261, 275, reclame de batuques nas 57, 79,
294, 343, 345, 349, 359, 363 82
trabalhadores nas minas 249, 353-5 trabalhadoras indígenas 46, 266,
Albasini, João 64, 79, 95, 155, 223 246 283-5, 289, 292
autoridade cafreal 253-7 capitalismo 32, 92, 134, 285, 362
régulo 119, 147, 150, 161, 163, Carmona, Óscar 346
236, 254, 273-4, 286, 289-90, Carvalho, Marianno de 316-8, 330
299, 315, 317, 323-4, 326, Catembe 275, 289
337-9, 341, 343, 361-2 chopi 91, 96, 146, 151, 163, 295,
304-5, 309, 311-2, 315-6, 341,
B 343, 348, 355, 364
batuque cafreal 267 compositor 359-60
música cafre 151, 155 língua 299, 345
música cafreal 101 orquestra 155, 307-8, 311, 324,
batuque de guerra 77, 92, 303, 324-5, 347, 350, 353-4
354. Ver também xigubu tocadores 164, 342, 348, 359
dança de guerra 156, 163, 317, 319 trabalhadores 249, 290
Brito Camacho, Manuel de 170-1, cinematógrafo 44, 45, 106, 195, 199,
191 201, 204, 214
indígenas no 197, 199, 205, 206-7
C Companhia de Moçambique 141,
Cabral, António Augusto Pereira 43, 161, 206, 311
125-7, 129, 131, 157, 160, 163, Congresso Nacional de Antropologia
310 Colonial, 1.º 140

395
ÍNDICE REMISSIVO

cultura popular 19, 39, 110, 202, 302 I


indigenato 33, 168, 234
D Inhambane 125, 131, 139, 141, 146,
dança cafre 75-6, 86, 89 160, 289, 296, 304, 308, 313,
destribalização 33, 145, 208 315, 317, 321
batuque de guerra 92
E cidade de 149, 150
etnia 156, 286, 304 Código de Postura da Câmara
Exposição Colonial Portuguesa 129, Municipal de 97
140, 161, 311, 313-4 músicos de 101, 326
Exposição do Mundo Português 313, regulamentação dos batuques em
315, 341, 346, 359 97
Exposição Insular e Colonial Regulamento das Circunscrições
Portuguesa 317 Civis dos Distritos de Lourenço
Marques e 254
F trabalhadoras indígenas de 282, 287
folclore 110-1, 141, 161, 302, 310 Instituto Negrófilo 68, 112
folclorização 161, 298
Freire de Andrade, Alfredo 238-9, J
260, 282 jazz-band 91, 325
As Explorações Portuguesas em Junod, Henri 42, 131-2, 134, 162,
Lourenço Marques. Relatórios da 180-1, 256, 288
Comissão... 146-7, 150-1, 153, história da antropologia 139, 141,
155 299
indígenas na cidade 134-5, 137-8,
G 142, 230
Gaza 101, 131, 139, 141, 146, 160, mbila 307
261, 265, 289, 296, 317, 324 política colonial 136, 158
reino de 123, 147, 150-1, 158, 305,
336–7 K
Gomukomu weSimbi 344-8, 359-60, Katini weNyamombe 342, 344-9,
362 359-60
Grêmio Africano de Lourenço
Marques 64-8, 78, 112 L
Gungunhana 123, 139, 147, 149-50, Lazarus (irmãos) 76-7, 327, 330
322, 326, 336-7, 346-7. Ver lazer 81, 168-71, 192-3, 197, 209,
também Gaza, reino de 212
espaços urbanos de 39, 44, 191,
H 193, 201, 208, 210
Honwana, Raúl Bernardo 67-8, 179, lobolo 253, 256-7
336-7 kutlhuva 256

396
MATHEUS SERVA PEREIRA

M 360, 361. Ver também mbila


maconde 105, 119-20, 129, 313, 315 migodo 151, 299, 305, 312, 316,
macua 71, 76, 78, 119-20, 129, 162, 344, 345
213, 226, 313, 364
batuque 77 O
definição étnica 70, 75, 92 Ornellas, Ayres d’ 43, 124, 126, 131,
designação 71, 73, 78 274, 322
Mafalala 57, 75-6, 85, 266, 367 Raças e Línguas índigenas em
Magude 259, 265 Moçambique 124, 125
mão de obra africana 168-9, 261, Viagem do Príncipe Real 322, 330
298, 343, 348, 363
classe 36 P
nas cidades 34, 169, 218 Pereira, Manoel Romão 76, 316-8,
Marracuene 202, 325, 327, 335-7,
330
341, 346
Pires de Lima, Fernando de Castro
administrador de 259, 339
141, 161-2, 310-1
batuque em 326, 338
príncipe D. Luiz Filipe 322, 324-5,
estrada do 85, 283
330-1, 333-4, 338, 340, 355
Matola 249, 289
prostituição 271, 275, 282, 284, 286,
Maxaquene 49-50, 54-5, 57, 72, 80,
292
82, 85-6, 99, 107, 270, 358
mbila 96, 151, 299, 305, 307, 310,
363, 375 Q
marimba 98, 101, 103, 162, 293, quiosque 44-5, 192-3, 195-6
299, 305, 307-10, 314, 316, 322,
326 R
timbila 91, 96, 151, 163-4, 299, racismo 36, 38, 66, 73, 140, 149, 251
307, 309-11, 315-6, 321, 342-4, racialização 66, 153, 168, 174, 201
346, 349, 353-4, 359-62 racismo científico 66, 142, 172
milando 250-1, 254, 258 repressão 73, 162, 210, 212, 259, 266
modernidade 111, 122, 134, 136, batuques 41, 100, 102, 191
138, 172, 196, 237, 239, 243, resistência 18, 20, 22-6, 48, 147, 265,
363 293, 305, 335, 338
reapropriação da 19 conceito de 20, 22-5
Mouzinho de Albuquerque 122-3, militarizada 17, 139
126, 195 primária 22
Munhuana 54, 57, 71-3, 79-80, 82-3, repertórios de 26-7, 48, 228, 290,
85-6, 102, 155, 236, 266-8, 289 349
rickshaw 225-7
N condutores de 244
ngodo 96, 156, 299, 305, 307, 309, proprietários de 225-6
335, 342, 345-8, 353, 354, 359, regulamento 224-5

397
ÍNDICE REMISSIVO

Rita-Ferreira, António 33, 34, 83, 85, tonga 131, 146, 304
208, 360 bitonga 304
roupa 44, 77, 182-3, 186-90, 197, tsonga 132, 230
213-4, 221-2, 228-9, 232, 243, trabalho forçado 35, 110, 168, 344
283, 345 chibalo 143, 260, 344
capulana 107, 189, 201, 220, 226, Tracey, Hugh 295, 299, 342-4, 346,
232-5, 244, 288 359
indumentária 188, 231-2, 236, Transvaal 35, 47, 115, 146, 239, 249,
357 354
quimáu 189, 229-31, 288
Rufino, José dos Santos 87, 89, 155, V
174, 291 vátua 70, 119, 120
rusga policial 212, 220, 262-3, 284-6
X
S Xigubu 325
Santos Júnior, Joaquim Rodrigues dos Xipamanine 57, 85, 86, 362
141
Sauli Ilova 344-6 Z
Secretaria dos Negócios Indígenas Zambeze 120, 159, 317
46, 246, 251-3, 255-6, 258, 262, Zavala 249, 295, 315, 321, 341, 346
269, 274, 284, 313, 333 chopi 304, 355
reclames indígenas 252, 259, ngodo 315, 344
264-6, 282-3, 291 trabalhadores 249
shangana 146, 159, 164, 295, 304, Zixaxa 57, 86
347, 353, 354

T
tambor 15, 16, 79-80, 96, 103, 151,
164, 216, 298-9, 305-6
ngoma 161

398
OBRAS DA IMPRENSA DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA

Ricardo Noronha
“A banca ao serviço do povo”: Política e Economia durante o PREC
(1974-1975)

Daniel Ribas
Uma dramaturgia da violência: os filmes de João Canijo

António Duarte Silva


O Império e a constituição colonial portuguesa

Fernando Ampudia de Haro


O processo civilizacional da tourada:
Guerreiros, cortesãos, profissionais… e bárbaros?
MATHEUS SERVA PEREIRA
MATHEUS SERVA PEREIRA

TENSÕES, ARR ANJOS E EXPERIÊNCIAS COLONIAIS EM MOÇAMBIQUE


“GR ANDIOSOS BATUQUES”
O “batuque” possui uma história múltipla. O termo foi empregado para
designar diferentes práticas musicais e tipos de performance produzidos
por africanos ou afrodescendentes. Este livro investiga as formas como os
“Grandiosos
“batuques” foram praticados e ressignificados pelo colonialismo português
em Lourenço Marques (atual Maputo) e no sul de Moçambique durante o
período de 1890-1940.
As categorias criadas e implementadas pela ação colonial portuguesa não
batuques”
foram capazes de conter a multiplicidade das experiências e das práticas das
populações africanas. Por meio de ferramentas teórico-metodológicas da Tensões, arranjos e experiências
História Social da Cultura, da história “vista de baixo” e da microhistória,
os “batuques” são aqui configurados como objeto de investigação e janela coloniais em Moçambique
privilegiada para analisar resistências, tensões e arranjos cotidianos daque-
les que foram subalternizados pelo poder colonizador português na região. (1890-1940)
Matheus Serva Pereira (Rio de Janeiro, 1985) é investigador no Instituto de Ciências
Sociais, da Universidade de Lisboa. Doutor em História Social da África pela Universidade
Estadual de Campinas, realiza pesquisas nas áreas da História Social, História da África
e História de Moçambique no século xx.

ISBN 978-989-8956-10-1

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