Com A Força Da Água
Com A Força Da Água
Com A Força Da Água
muito úmido. Por isso, ninguém deveria sair de casa nesta tarde de fevereiro senão
para fazer coisas indispensáveis. Mesmo assim, pelas ruas da capital moçambicana, no
sudeste do continente africano, o movimento está acelerado. As paragens dos
transportes, sem cobertura nenhuma, transbordam de gente. Às vezes, os pontos
contam com a sombra abençoada de uma árvore ou um edifício. Na maioria dos casos,
porém, nada os protege do Sol forte. Quem não pretende tomar algum rumo encontra-
se ali para vender qualquer artigo que possa converter-se em pão à mesa. Uns
negociam recargas de celulares e máscaras contra a Covid. Outros preferem tentar a
sorte do lucro com bolachas e doces baratos ou roupas doadas por pessoas de vários
cantos do mundo.
A certa altura da Avenida Guerra Popular, uma das mais agitadas de Maputo,
desponta um ônibus – ou machimbombo, no linguajar dos moçambicanos. Mesmo de
longe, consigo ver que boa parte dos passageiros viaja espremida e de pé. Uma
pequena placa apoiada no para-brisa, dentro do veículo, anuncia em tinta vermelha:
Albazine. É um bairro pobre e periférico, a 20 km do Centro. Lá, durante o período
colonial, viveu a família dos irmãos José e João Albasini, pioneiros da imprensa que
fundaram O Brado Africano em 1918. O jornal, extinto na década de 1970, lançou Rui de
Noronha, Noémia de Sousa e outros figurões da poesia moderna de Moçambique. O
nome Albazine homenageia os Albasini, apesar da grafia diferente.
Hoje, no bairro, mora a principal escritora do país. A casa simples que divide com uma
neta e um empregado tem apenas dois quartos, mas ocupa um terreno bem amplo, de
1,2 mil m². Um par de casebres, destinados às visitas, circunda a residência de paredes
bege-claras. Indiferente à azáfama doméstica, Paulina Chiziane recebe-me no quintal,
sob uma jovem mangueira. Está descalça, como de hábito, e acomoda-se numa
poltrona de madeira. O jardim onde a árvore floresce é muito colorido. De um lado,
rosas vermelhas e acácias amarelas espalham um odor fresco. Do outro, uma relva bem
verdejante evidencia a regularidade das chuvas de verão num país em que, ao longo
das demais estações, a seca dissemina fome, dor e luto nas populações rurais alheias à
existência de água canalizada.
“Nesta máscara preta e nestes óculos escuros, quase que nem te reconhecia. Vá lá,
senta-te aí”, diz Chiziane assim que me vê. Mal a conversa inicia-se, lembramos que já
estivemos juntos no mesmo quintal em 20 de outubro do ano passado, quando a
escritora ganhou o Camões, o prêmio literário mais importante da língua portuguesa.
Até então, nenhuma africana o havia conquistado. Agora, é entre gargalhadas que
Chiziane – uma negra retinta – evoca alguns episódios que a tornaram uma autora de
referência dentro e fora do país.
Num piscar de olhos, somos transportados para Manjacaze, outrora sede do Império
de Gaza, que englobava o Sul de Moçambique e o sudeste do Zimbábue no século XIX.
Em Manjacaze, reinou o imperador Gungunhana entre 1884 e 1895. Muitos o
consideram um herói audaz, por ter lutado contra o regime colonial português. Mas há
quem o mencione com desprezo e horror, por ter perseguido os chopes, povo a que a
autora pertence. Gungunhana era de outra etnia: a Nguni. Das inúmeras histórias
sobre o imperador, uma parece a favorita dos chopes, que propositadamente
ridicularizam o homem que lhes fez tanto mal. A escritora recorda que o pai dela, o
alfaiate Ricardo Chiziane, quando estava bem-disposto, contava como Portugal
derrotou o monarca, que se intitulava Leão de Gaza. Diz-se que, certo dia,
Gungunhana resolveu tirar a sesta debaixo de uma árvore e mandou os seus guerreiros
imporem silêncio em todo o império. A ordem cumpriu-se. Às tantas, porém, uma
andorinha pousou num galho da tal árvore e soltou uma caganita que atingiu o rosto
do soberano. Furioso, Gungunhana exigiu que os guerreiros andassem atrás do pássaro
malcriado. Com a partida dos melhores soldados, o imperador ficou sem segurança e,
tão logo os portugueses chegaram, o capturaram facilmente. Assim, garantem os
chopes, caiu a última resistência contra a penetração colonial em Gaza. Por causa de
uma andorinha.
A autora cresceu ouvindo essa história. Em 2009, à beira dos 54 anos (atualmente está
com 67), apropriou-se da narrativa e a transformou no conto Quem Manda Aqui?, o
primeiro dos três que compõem o livro As Andorinhas, pouco divulgado em
Moçambique e no mundo. Chiziane pretende reeditá-lo.
Em Balada de Amor ao Vento, a camponesa Sarnau casa-se com o rei Nguila, apesar de
gostar do plebeu Mwando desde a adolescência. Num determinado momento, resolve
ser dona do próprio destino, abandona o monarca e assume a velha paixão, o que a
conduz à miséria. Durante a tormentosa jornada, a moça questiona as decisões de sua
família, as tradições religiosas, o poder do rei e as convenções sociais. O enredo instiga,
assim, o debate sobre a condição da mulher africana. Ainda hoje, os moçambicanos
insistem em restringir a liberdade feminina, especialmente a das raparigas, que nas
zonas rurais são dadas como aptas para casar tão logo menstruam pela primeira vez.
Isso reflete diretamente nas altas taxas de desistência escolar. Segundo o Ministério da
Educação e Desenvolvimento Humano, 14 mil meninas deixaram os estudos por causa
da gravidez e dos casamentos prematuros em Moçambique, entre 2014 e 2018.
Geralmente, a evasão acontece no sétimo ano de escolaridade. Cerca de 8 milhões de
crianças frequentam o ensino primário no país, que termina justamente na sétima série.
45 anos. Chama-se Domingos, mas Chiziane trata-o por Duque. É o filho mais velho
dela. Ele senta-se numa cadeira de plástico, voltado para o Sol que mal se vê devido às
sombras das diversas árvores no quintal. São 18 horas, e a temperatura está baixando.
Agora, os termômetros marcam 29ºC. Ao inteirar-se da conversa, Domingos pergunta:
“Minha mãe te disse em que condições costumava escrever?” À resposta negativa, o
filho conta que, quando ele e a irmã, Salomé, eram miúdos, Chiziane acordava bem
cedo, punha-se à mesa da cozinha e enfrentava o papel em branco. Para se prevenir do
frio da madrugada, usava um pesado casaco. Se o traje fosse insuficiente, a autora
caminhava até o fogão e o deixava aceso. “Ficar perto do fogo enquanto escrevo é
essencial. Até hoje.” Ela não entra em detalhes sobre a peculiaridade porque mal lhe
sabe explicar as razões. Antes de ser expulso da conversa por estar a contar os segredos
da escritora, Domingos acrescenta: “Lembro que, depois de o Sol raiar, já sob um calor
considerável, Salomé e eu íamos ter com a minha mãe e pedíamos que retirasse o
casaco. Ela não nos dava a mínima. Conservava-se ali, sentada, quieta, a escrever à
mão, com o fogão ainda aceso.” A autora confirma, sorrindo: “Os miúdos
incomodavam, e eu mandava-lhes passear.” Sem precisar ouvir mais nada, afinal a
sentença da sua retirada estava traçada, Domingos levanta-se e some pela mesma porta
que abrira dez minutos antes.
O que parecia uma conversa banal teve uma repercussão imensa. O jornal alemão para
o qual o repórter lusófono trabalhava publicou uma notícia mais ou menos assim:
enquanto os grandes celebram no salão principal, uma escritora negra exibe seus livros
num estande como que a pedir esmola. Nos dias seguintes, uma vaga de jornalistas
procurou a moçambicana, querendo saber tudo sobre ela.
Chiziane levanta-se da poltrona. Ajeita a almofada que está quase a cair no chão. “Em
Frankfurt, vi editores portugueses. Vários”, relembra. Atraídos pelo burburinho da
imprensa, cinco representantes de editoras lusas fizeram propostas à escritora. Ela
acabou escolhendo a Caminho, que já publicava autores de Moçambique e Angola.
“Sou o que sou graças a isso. Comecei de fato na Alemanha.” Em 1999, a Caminho
lançou Ventos do Apocalipse. A seguir, colocou no mercado O Sétimo
Juramento (2000), Niketche: Uma História de Poligamia (2002), Balada de Amor ao
Vento (2003) e O Alegre Canto da Perdiz (2008). Ainda hoje, Chiziane tem contrato com a
editora em Portugal.
promessa de retorno. Escusa-se dizer que caminha descalça. Vai dar uma volta ao
outro lado da casa, como que a cavar memórias. O Sol já quase nem se vê. A brisa do
anoitecer deixa cair flores da acácia. “Podemos continuar”, avisa a escritora, depois de
se ausentar por quinze minutos. Ela senta-se novamente e confessa nunca ter pensado
fazer da literatura uma missão. “Sou uma pecadora, uma mulher comum. Não quero
ser missionária de coisa nenhuma. Esforço-me apenas para ser livre. O que realizei até
aqui foi por amor ao meu povo, à minha cultura.”
A liberdade a que se refere implica principalmente remar contra a maré num mundo
dominado pelo masculino. “Tudo é sempre em nome do pai. Em nome da mãe,
jamais”, lamenta. Na opinião da escritora, o descompasso ocorre porque tanto as
religiosidades tradicionais do país quanto o sagrado cristão desprezam o feminino. “O
Antigo Testamento está muito próximo das crenças patriarcais bantu. A mulher é
excluída desde o nascimento. Ela nunca teve espaço para expressar a sua voz mais
profunda.” Em Moçambique, o catolicismo divide espaço com o protestantismo, o
islamismo e as tradições bantu – dos curandeiros, que fazem a ponte entre os vivos e os
mortos. Vários moçambicanos acreditam em Cristo ou no profeta Maomé, mas também
nos próprios antepassados, a quem pedem benesses e proteção, inclusive contra
feitiços. Embora não se considere mais cristã, a escritora mantém a fé em seus espíritos
ancestrais.
Todos os romances de Chiziane são atravessados por questões relacionadas à condição
da mulher, sobretudo às amarras culturais, políticas e religiosas que tornam muito
estreito o horizonte das africanas. Niketche, por exemplo, coloca em xeque uma antiga e
recorrente prática moçambicana: a poligamia masculina. Trata-se do livro mais lido e
traduzido da autora. É tão popular que Chiziane já nem quer ouvir falar dele. Quando
descobre que o marido mantém diversas relações extraconjugais, Rami, a esposa oficial
e protagonista da trama, vai procurar as amantes. De início, as insulta, mas logo se
arrepende e decide lutar pelos direitos de cada uma. Por tabela, vira porta-voz das
insatisfações emocionais e sexuais que as mulheres de Moçambique costumam ocultar
ao se verem enredadas num sistema matrimonial que as rebaixa. Apesar de não
reconhecida judicialmente, a poligamia dos homens é muito comum em todas as
regiões do país e nem sempre se dá às escondidas. Com frequência, os parentes das
noivas só as liberam depois de receber o lobolo – indenização que o noivo paga, em
dinheiro ou espécie, para tirar as moças da casa paterna e incorporá-las à nova família.
Outro costume que ainda persiste é o levirato, a obrigação de a viúva se unir a um
irmão do marido morto, mesmo que seja casado.
Assim que Niketche veio a público, houve acadêmicos que acusaram a autora de estar a
levar feminismos à literatura, um lugar sagrado. As objeções nunca apareciam por
escrito. Eram feitas nos bares, em reuniões sociais ou nas salas de aulas. Maledicências
semelhantes já corriam quando Chiziane lançou o primeiro livro. Àquela altura, dizia-
se que a autora explorava temas menores e não conseguiria impor-se no ofício. “As
críticas afetaram-me sempre. Mas a minha sorte tem a ver com a minha forma de ser.
Quando alguém me provoca e se julga forte, nesse momento eu fico calada. Depois, lhe
digo: ‘Espera aí que tu vais saber quem sou.’ Diante de um obstáculo, ninguém me
vence. Pode-me vencer hoje, mas vou recuperar-me e mostrar que a razão está do meu
lado. A minha escrita sempre foi saltar barreiras, desde o princípio. Por isso, fico muito
grata aos meus adversários. Sem eles, eu não teria chegado até aqui.”
Com um enredo como esse, a escritora mexeu em alguns tabus. Apesar de recorrerem a
curandeiros e feitiçarias, os moçambicanos evitam abordar o tema publicamente.
Chiziane é uma das raras personalidades que ousam fazê-lo. Agindo desse modo, ela
afronta a autoridade das igrejas cristãs e legitima a tradição bantu. Uma coisa é toda
gente saber que aqueles costumes existem. Outra é aparecer alguém como Chiziane a
dizer que se deve valorizá-los, embora não cegamente.
Em novembro de 2013, dois anos antes de lançar o livro, a escritora discorreu sobre
assunto similar durante uma palestra na Primeira Feira Literária Brasil-África de
Vitória, no Espírito Santo: “Por incrível que pareça, no meu país, falar de africanismo é
quase um tabu. Os africanos independentes ainda reproduzem os estereótipos do
colonizador sobre si mesmos. Todo negro que foi submetido à dura repressão colonial
começou a olhar-se com medo de si próprio. Ele autorreprime-se. Fica vigilante de si
próprio para não fazer algo que desagrade o opressor. Por temer nova repressão,
talvez, adotou o discurso do colonizador. Começou a condenar-se constantemente e a
aceitar como verdades as teorias de quem domina. A repressão foi de tal maneira
violenta que, muitos anos depois das independências em África, o cidadão comum
parece temer fazer uma reflexão sobre si mesmo, recalcando-se com medo do regresso
da repressão da sociedade ocidentalizada. Muitos de nós ainda têm medo de abordar a
nossa essência dentro do nosso próprio território. […] A religião, a medicina, o
pensamento, quando é africano, é etiquetado logo de tradicional. Quando é europeu, é
considerado moderno. Isso ainda nos priva de dar passos em direção a nós mesmos,
com medo de sermos vistos como tradicionalistas, atrasados, supersticiosos etc.”
Mal Ngoma Yethu chegou às lojas, algumas igrejas pentecostais indignaram-se com a
escritora. Nenhuma se manifestou às claras, mas Chiziane tomou conhecimento da
revolta. Curiosamente, o livro esgotou em pouco tempo, e não faltaram teorias da
conspiração. Acredita-se que certas igrejas compraram praticamente todos os
exemplares e os queimaram. Nos cafés de Maputo, o boato correu solto, mas ninguém
nunca o comprovou.
A par de Mia Couto, Chiziane é a autora moçambicana que mais vende no país e no
estrangeiro. Todos os títulos dela, até os recentes, estão em reedição. Alguns foram
adotados por escolas públicas e particulares de Moçambique. Niketche tornou-se leitura
obrigatória para o acesso à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 2022 e
2023. Difícil precisar quanto a escritora já faturou, mas sabe-se que o mercado local é
muito pequeno. Um livro vira best-seller se vender somente 1,5 mil exemplares – num
país com 30 milhões de habitantes. Por isso, a autora não sobrevive apenas de direitos
autorais. Também ministra palestras, orienta pesquisas, envolve-se em projetos
humanitários e participa de debates. Outros ficcionistas moçambicanos de destaque são
Ungulani Ba Ka Khosa, João Paulo Borges Coelho, Aldino Muianga, Marcelo Panguana
e Luís Carlos Patraquim.
“Não escrevo para agradar ninguém”, costuma proclamar Chiziane, mesmo ciente de
que hoje tem uma legião de admiradores e boa recepção crítica. A literatura lhe parece
uma confrontação necessária. “Habituei-me à condição de ser incômoda, ainda que o
conflito não faça parte de minhas motivações.” Em 2016, fatigada de tantas batalhas, a
autora quase atirou a toalha ao chão. No programa Artes & Letras, transmitido por um
dos principais canais moçambicanos de televisão, o STV, ela anunciou que iria largar o
ofício. “É normal que alguém se canse de certa profissão e mude. Não gostaria de
voltar a escrever, não. Posso publicar eventualmente qualquer coisa, mas escrita como
carreira, basta! Chegou a minha hora de sentar”, prometeu à época – e não cumpriu.
agraciou treze brasileiros, como Jorge Amado, Rubem Fonseca, João Cabral de Melo
Neto, Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Raduan Nassar, Dalton Trevisan,
Ferreira Gullar, João Ubaldo Ribeiro e Chico Buarque. Entre os portugueses, estão José
Saramago, Sophia de Mello Breyner Andresen, Agustina Bessa-Luís, Miguel Torga e
António Lobo Antunes. O prêmio também foi concedido aos moçambicanos José
Craveirinha e Mia Couto, ao angolano Pepetela e ao cabo-verdiano Germano Almeida.
Para Chiziane, porém, o Camões parecia nem existir mais. Fazia tempo que a escritora
não o acompanhava. Até que, em 20 de outubro do ano passado, o telefone dela tocou.
Era de tarde, e Chiziane – que se gaba de cozinhar bem – preparava mboa, verdura
que se come com amendoim e coco, muito apreciada no Sul de Moçambique. “Ligo
para informar que a senhora é a grande vencedora do Camões 2021”, disse a voz que se
encontrava do outro lado da linha. A autora desconfiou. Pensou ser brincadeira e
recusou-se a acreditar. No entanto, porque contra fatos há poucos argumentos,
Chiziane acabou percebendo que o dia aparentemente banal terminaria de maneira
espetacular. Quando desligou o telefone, todo um percurso foi-lhe à memória. Ela
recordou-se da sua origem, das suas lutas e dos seus personagens. A panela de mboa
queimou. A emoção tomou conta da casa, e ninguém se lembrou de sentir fome.
Naquela noite, não houve jantar. Quando a notícia ultrapassou os limites de Albazine,
o celular da escritora começou a tocar incessantemente. Chegou um momento em que
ela já não conseguia atendê-lo. Restou à sua neta de 21 anos, Rita, assumir a missão de
secretária.
Nos dias que se seguiram, Moçambique entrou em festa. As redes sociais, as tevês, as
rádios, os jornais e os frequentadores dos cafés não falavam em outra coisa. “Paulina,
Paulina, Paulina… Nós te amamos! Parabéns!” Os críticos de outrora se calaram, e o
país comemorou o triunfo como se fosse uma façanha esportiva. Com a popularidade
de Chiziane em alta, lá surgiram os convites. “Tive propostas de costureiros para me
vestir e de cabeleireiros para me pentear.” Até estilistas sul-africanos a procuraram. Ela
mandou essa gente toda passear, como gosta de dizer. “Meu corpo não é cabide e
adoro um penteado despenteado”, explicou-lhes, bem-humorada.
O Camões veio a calhar numa altura em que a escritora estava txonada – sem dinheiro,
no linguajar local. Os 100 mil euros do prêmio, que ainda não foram pagos, servirão
principalmente para saldar dívidas e acelerar reformas em sua casa. Com a quantia,
correspondente a 6,5 milhões de meticais, a moeda de Moçambique, é possível comprar
um apartamento confortável num prédio antigo de Maputo, daqueles construídos há
cinquenta anos, durante o período colonial. Imóveis equivalentes e mais novos podem
atingir preços muito superiores.
Desde outubro, Chiziane pergunta-se por que fez jus à honraria, mas até agora não
achou nenhuma resposta satisfatória. A explicação oficial pouco a convence. Formado
por seis integrantes (dois portugueses, dois brasileiros, um bissau-guineense e uma
moçambicana), o júri do Camões afirma que a premiou devido à “sua vasta produção”,
ao “reconhecimento acadêmico e institucional da sua obra”, à “importância que dedica
nos seus livros aos problemas da mulher africana” e a “seu trabalho recente de
aproximação aos jovens, nomeadamente na construção de pontes entre a literatura e
outras artes”.
A partir de então, a escritora já não quer saber de entregar seus títulos a ninguém de
Moçambique. Por isso, a Matiko & Arte – pequena editora que Chiziane abriu em 2015
– almeja republicar aos poucos todo o catálogo da autora, sempre com tiragens de
quinhentos exemplares ou menos e o patrocínio de instituições locais. Matiko é uma
expressão da língua chope para convocar e dignificar espíritos ancestrais.
Em 2016, o cineasta mineiro Joel Zito Araújo lançou Niketche – a Rainha das Rivais, série
de televisão inspirada no livro da autora. As atrizes negras Adriana Lessa, Sheron
Menezzes, Erika Januza, Roberta Valente, Juliana Alves e Léa Garcia compuseram o
elenco, além do ator angolano Ery Costa. O diretor agora planeja realizar um longa-
metragem a partir do romance. Outro cineasta do Brasil, Renan Ramos Rocha, assinou
o documentário Paulina Chiziane – Do Mar que nos Separa à Ponte que nos Une. O filme
registra uma visita que a escritora fez à Universidade Federal de Santa Catarina em
2019.
“É filha do Duque”, esclarece a avó, que tem mais quatro netos. Mal resolve o assunto
doméstico com a matriarca, a jovem vai tocar violino num canto do quintal.
Instrumentista amadora, Rita executa uma peça de Beethoven. A escritora levanta-se
de novo e caminha ao interior da casa. “Quero-te mostrar uma coisa.” Quando
regressa, traz o CD Cantos de Esperança, que gravou em 2019. Chiziane canta?! Sim,
canta. Nunca estudou música, mas solta a voz por diversão há muito tempo. Chegou,
inclusive, a estrelar um show em Moçambique e outro em Angola. Ela mesma escreveu
as letras das doze canções do álbum, o único que ousou lançar até agora. A direção
artística do projeto coube a Eduardo Salmo, que em certo momento aparece no quintal
e é convidado a participar da conversa. Por razões exclusivamente afetivas, o poeta e
produtor de 31 anos chama a escritora de avó.
Tão logo o aparelho de som toca a quinta canção do álbum, os presentes se empolgam
e aplaudem: Quando o amanhã chegar/Quando o novo Sol nascer/Vós sereis a luz do
mundo/Meu povo de África. Chiziane fica encabulada, mas tenta disfarçar. A conversa já
vai longa. Estou no quintal há quase oito horas e sei que não esgotamos nada. A
trajetória da escritora é um mar sem fim. Um ponto, ao menos, restou claro. A autora
quer seguir adiante sem pressões, realizando o que gosta e quando bem entender.
Imensas vezes repetiu a frase: “O Camões vale pelo que fiz e não pelo que vou fazer.”
Ela garante que continuará a viver de forma simples e descomprometida. Ninguém vai
tirar essa ideia de sua cabeça teimosa. Quando finalmente me levanto da cadeira,
lembro que nem conversamos sobre outras condecorações da autora: a Medalha de
Mérito Artes e Letras, oferecida por Moçambique, o grau de Grande Oficial da Ordem
Dom Infante Henriques, concedido pelo Estado português, e o grau de Oficial da
Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, uma láurea brasileira. Chiziane sorri e dá de
ombros, como se não levasse nenhuma daquelas honrarias muito a sério. Satisfeito,
despeço-me, cruzo o portão do quintal e enveredo pelos ermos do bairro Albazine.