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DA IDEOLOGIA
* PALAVRAS-CHAVE:
• Fernando C. Prestes Motta
Professor Titular do Departamento de Administração
Empresas, organizações, ideologia,
espetáculo, hegemonia.
Geral e Recursos Humanos da EAESP/FGV.
© 1992, 1984, Revista de Administração de Empresas / EAESP / FGV, São Paulo, Brasil. Publicado na RAE, 24(3): 19-24, jul./set. 1984. 39
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Para o marxismo, as rupturas não se dão cional e a herança de uma cultura. Isto
apenas no interior da esfera ideológica. quer dizer que para entender a ideologia
As rupturas mais importantes a nível é preciso fazê-la historicamente e a partir
ideológico decorrem de mudanças na de seu núcleo, que é a divisão social do
base material. De outro lado, entende-se trabalho.
que em toda sociedade fundada no anta- Assim, não se pode simplificar o con-
gonismo de classe, a emancipação da ceito de ideologia, identificando-a com o
classe oprimida surge como uma condi- simples discurso da classe dominante. A
ção vital. É, porém, apenas dotada de ideologia deve ser encontrada na ação
uma consciência de classe que ela desen- das classes sobre o Estado, a empresa, a
volve uma ação historicamente significa- escola e todas as instituições modernas. É
tiva, em termos de seus interesses. preciso notar que a ideologia está sempre
O surgimento da consciência de classe a serviço de um projeto, que se traduz
acompanha a trajetória de uma classe so- em uma prática política. No caso da clas-
cial. Uma classe que não percebe como se dominante, esta prática pode ser anali-
atua a totalidade social não pode modifi- sada do ponto de vista de uma trajetória.
cá-la. É uma classe inerte. É, porém, dota- Tendo os aparelhos repressivos do Esta-
da de consciência que uma classe procura do a seu serviço, ela procura controlar os
impor sua ideologia ao resto da socieda- aparelhos ideológicos.
de. Há, portanto, um processo de imposi- Os elementos organizacional e autori-
ção ideológica dotado de uma determina- tários têm nesse processo uma função
da anatomia. É nesse particular que se muito grande, tão logo se tenha verifica-
entende a importância das instituições e do a orientação da trajetória. A adesão ou
especialmente dos aparelhos ideológicos não das massas a uma ideologia é o
de Estado. modo pelo qual se verifica o caráter his-
Os aparelhos ideológicos contribuem tórico dos modos de pensar. Modos de
na reprodução das condições de produ- pensar secundários são mais ou menos
ção. Entre essas condições, situa-se a re- rapidamente eliminados pela competição
produção de sua força de trabalho, de histórica, ainda que consigam gozar de
sua qualificação e de sua sujeição à ideo- certa popularidade. Ao contrário, cons-
logia dominante. Tal ideologia consubs- truções mentais que correspondem às
tancia-se em práticas e tais práticas estão exigências de um período histórico com-
presentes nas escolas, na igreja, na indús- plexo terminam sempre por prevalecer.
tria da comunicação etc. É nosso ponto Em qualquer lugar do mundo, a escola
de vista que tais práticas também estão e a Igreja são organizações culturais im-
presentes em aparelhos econômicos, portantíssimas na transmissão da ideolo-
como a empresa. gia. Deve-se ainda lembrar os jornais, a
O que parece importante frisar é que televisão, as revistas, os partidos políticos
na forma e sob a forma de sujeição ideo- e todas as instituições. Há ainda a ideolo-
lógica é assegurada a reprodução da qua- gia inculcada através das profissões, que
lificação da força de trabalho. Para que correspondem a frações não desprezíveis
possam agir eficazmente, os aparelhos da cultura. É o caso dos médicos, dos ofi-
ideológicos precisam ser controlados pela ciais do exército e da magistratura.
classe dominante. Esta controla mais fa- Apesar de tudo o que foi dito, não é
cilmente os aparelhos repressivos, dada a difícil perceber uma cisão entre os grupos
própria natureza básica do Estado de ser- de intelectuais e as massas populares.
vir à classe dominante para a apropriação Isto ocorre porque o Estado, ainda que os
do excedente. A luta pelo domínio dos governantes digam o contrário, não tem
aparelhos ideológicos é portanto vital na uma concepção unitária, coerente e ho-
trajetória de uma classe em ascensão. mogênea. Ainda assim, é evidente que o
Todavia, a ideologia não nasce nos que se procura é a obtenção coletiva de
aparelhos ideológicos, mas nas relações um mesmo clima cultural. A realização
entre as classes. Para tornar mais claro o desse clima se dá através do homem cole-
problema da ideologia é preciso conside- tivo, que reúne uma multiplicidade de
rar que por trás dela está o conflito de vontades desagregadas e de fins hetero-
classes, o regime político, a tradição na- gêneos, que se solidificam na busca de
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restringindo-se o seu recrutamento a um dos casos aqueles que efetivamente che-
grupo relativamente pequeno e fechado. gam às posições mais altas em menos
Como conseqüência, os administradores tempo. Villette constata que a questão
de nível médio não sabem até onde po- passa por uma estratégia de inovação,
dem chegar, nem mesmo conhecendo baseada em um deslocamento permanen-
bem a amplitude de sua autoridade e de te do prestígio e do peso relativo das di-
sua autonomia. A possibilidade de co- versas funçõesn. Dito de outra forma, é
nhecerem seus limites é dada pelo pro- preciso que o capital sócio-cultural se
cesso de socialização, especialmente pe- transforme em competência rara, legiti-
los seus contatos com detentores de capi- mando as promoções. O movimento, por-
tal social e cultural mais elevado. tanto, implica que uma nova competên-
Os administradores de nível médio cia se valorize porque é rara, porque foi
são, principalmente, treinados no traba- escolhida pelos filhos-família e porque é
lho, o que significa aprender muito mais útil em um determinado momento, bem
do que um ofício ou um conjunto de fun- como no fato de os filhos-família terem
ções. Na realidade, seu treinamento con- adquirido um monopólio de tal compe-
siste, em larga escala, na interiorização tência, tornando-se os únicos a terem ex-
dos valores dominantes no mundo em- periência prática e global dos novos mé-
presarial. Esse processo pode ser razoa- todos.
velmente doloroso, na medida em que in- Há, pois, uma aliança família-empre-
corpora visões estereotipadas da vida co- sa-escola de elite que se articula para o
tidiana e conflitos entre posição de classe acesso de pessoas dotadas de capital so-
e pertencimento de classe, na medida em cial e cultural aos postos dominantes.
que a identidade desejada não correspon- Também alguns cursos ou graus de pós-
de à identidade original. graduação no exterior, principalmente
A investigação de Boltanski indica a nos EUA, podem participar desse tripé.
criação de um tipo particular de indiví- A estratégia não é, de qualquer forma,
duo, no universo empresaríalu. O ho- conduzida de um só golpe. As especiali-
mem organizacional é na verdade o ho- zações constituem-se em simples "tram-
mem unidimensional de Marcuse, o indi- polins" para as posições dominantes. Os
víduo que não distingue realidade e apa- detentores de capital sócio-cultural per-
rência, fenômeno e essência. Essa "consci- dem tempo absoluto para ganhar tempo
ência feliz" seria portanto um estado de relativo. Tudo se passa de forma natural,
alienação, no qual o divórcio entre com- como se fosse resultado de imposições do
portamento dramatúrgico e personalida- meio, isto é, apenas como resultado do
de não seria algo consciente, mas o resul- progresso técnico que impõe às empresas
tado de um esforço quase compulsivo em as inovações necessárias à concorrência
ser o que não se é. inter-capitalista.is
O trabalho "O acesso às posições do- Uma outra linha interessante de análi-
minantes na empresa", de Michel Villette, se de transmissão ideológica da empresa
trata da forma pela qual os filhos de fa- refere-se a seu sistema de comunicações e
mílias já privilegiadas garantem para si em especial aos jornais de empresa. Na
os cargos mais importantes na hierarquia Europa, o jornal da empresa está relacio-
das empresas francesas». A questão se nado com o crescimento e o desenvolvi-
coloca uma vez que a ideologia dominan- mento das empresas industriais a partir
12. Idem, ibidem. te apregoa que indivíduos com habilida- do início deste século, bem como à orga-
des técnicas semelhantes, independente- nização crescente da classe operária no
13. VILLETIE, Michel. "O aces- mente de sua origem social e cultural, mesmo período.
so às posições dominantes na
empresa". São Paulo, possuem oportunidades iguais de acesso Segundo Jean-Claude Poitou, autor de
EAESP/FGV (Mimeo.) Traduzi- às posições dominantes. Esse tipo de ra- um trabalho intitulado "A imprensa pa-
do, por José Carlos Garcia Du- ciocínio amplia-se pela idéia de que o tronal na grande empresa", o jornal pa-
rand, de Actes de la Recherche
em Sciences Sociales. Paris, acesso às escolas melhores, onde se trans- tronal significa uma tentativa de neutrali-
(4), jul. 1975. mite essas qualificações técnicas, também zação dos conflitos entre objetivos de em-
é igual para todos. pregadores e empregados em uma época
14. Idem, ibidem
Permanece porém o fato de que os de aumento quantitativo de bens produ-
15. Idem, ibidem. chamados filhos-família são na maioria zidos, de concentração de capital e de
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